Mente e fisiologia, parte 3: qualia.
O subjectivo tem qualidades que percebemos imediatamente. A dor dói, o doce tem aquele sabor, o pensar, recordar, imaginar, desejar. Os filósofos chamam qualia às qualidades que fazem o subjectivo ser como é. Parece ser o maior mistério da mente.
Ninguém que a sinta tem dúvidas acerca duma sensação. Seja pensar ou doer, seja encarnado ou doce, se sentimos sabemos como é. Mas não há descrição que transmita a sensação a quem nunca a teve. A quem nunca viu encarnado não há nada a dizer que faça perceber a sensação de ver encarnado. Thomas Nagel ilustrou isto num exemplo famoso: mesmo sabendo em detalhe todos os processos neurológicos do morcego continuamos sem conhecer a sensação de ser morcego. O Desidério Murcho, no De Rerum Natura, tem um bom resumo deste exemplo e do problema dos qualia (1). Eu gosto mais do exemplo da Mary, do Frank Jackson.
A Mary é uma neurologista hipotética que sabe tudo acerca da percepção visual mas que nunca viu cores. Sempre viveu em sítios a preto e branco. Apesar de saber tudo o que há a saber acerca da neurologia da cor, se a Mary vir uma rosa encarnada vai aprender algo de novo: a sensação de ver essa cor.
Isto demonstra que os qualia são irredutíveis à descrição neurológica, levando muitos filósofos a conceder algo ao dualismo. Até John Searle, um dos meus preferidos. Defende que a consciência é tão natural e materialista como a digestão ou a respiração, mas concede um dualismo pela separação entre a sensação e a descrição dos processos que a produzem. Como muitos outros, diz não ser possível passar de «os neurónios fazem isto» para o que eu sinto. Mas nisto atrevo-me a dizer que ele está enganado. Parece-me que há um mal entendido.
Podemos descrever o motor de combustão a dois níveis diferentes. Ao nível microscópico, pelas propriedades das ligações químicas das moléculas de gasolina e do metal. E ao nível macroscópico, o da termodinâmica, metalurgia, e mecânica do automóvel. Mas estas descrições estão logicamente interligadas. Das propriedades microscópicas é possível deduzir as propriedades macroscópicas, e a descrição macroscópica pode ser reduzida à descrição microscópica.
O problema filosófico diz que isto não é válido para os qualia. A Mary não pode deduzir a sensação de ver encarnado a partir da descrição microscópica do funcionamento dos neurónios. Mas é um falso problema. Surge de confundir a sensação com uma descrição. Na analogia do motor, a sensação de encarnado não corresponde à descrição macroscópica. Corresponde ao motor. A sensação é a coisa descrita, e não a descrição.
Esta confusão é exacerbada noutra forma de expor o (alegado) problema, separando o relato de terceira pessoa do relato de primeira pessoa. Por exemplo, a Mary diz «os meus neurónios fazem isto e eu sinto que vejo encarnado». Interpretamos a primeira parte da frase como uma descrição dos neurónios, e que é distinta da coisa descrita. Mas na segunda parte, quando a Mary diz «eu sinto», não sabemos se está apenas a descrever ou se está mesmo a sentir. A descrição da sensação é redutível à descrição dos neurónios. Se soubermos tudo sobre o morcego podemos descrever o que ele sente. O que não é redutível à descrição é a sensação. E o morcego, já agora. O que é descrito é mais que a descrição.
Explorar os detalhes num texto curto baralha mais do que explica. Por isso fico por aqui com o apanhado do mais importante. A mente é como a digestão. É um processo natural, fisiológico, de física e química. A sensação é diferente da descrição dos neurónios mas isso não é um mistério. É característica de qualquer descrição ser distinta da coisa descrita. Descrever a digestão da maçã não digere maçãs. Para digerir maçãs é preciso mais do que a descrição. É preciso maçãs, enzimas, estômago, e assim por diante. E para sentir o que é ser morcego ou ver cores é preciso ter mesmo os neurónios a funcionar daquela maneira. Só com conversa não se vai lá.
A questão agora é como a actividade do cérebro é sensação. Ou seja, como é que os neurónios causam mente. Em parte já é uma questão científica para a neuropsicologia ir respondendo. Mas também é uma questão filosófica porque depende da noção de causa. Se tudo correr bem, será o próximo post da série.
1- Desidério Murcho, 19-4-07, Como é ser um morcego?
Episódios anteriores:
Mente e fisiologia, parte 1: o dualismo.
Mente e fisiologia, parte 2: Homúnculos.
Eu acho que para se sentir o que é ser morcego, só há uma maneira, é ser morcego! Não?
ResponderEliminarNão joana, não é preciso.
ResponderEliminarHoje em dia basta ser religioso, e acreditar muito, muito, muito que ser um morcego é???... Sei lá. Eu não sou religioso. Acho que afinal não lhe vou conseguir explicar como é.