quarta-feira, agosto 31, 2011

Direitos e injustiças.

Há dias defendi ser injusto boicotar o jornal Sol só pelos disparates do José António Saraiva, e que isso demonstrava uma má compreensão da liberdade de expressão (1). Contra-argumentando, o Rui Passos Rocha escreveu que não era assim porque quem decidir boicotar o jornal está apenas a exercer um direito seu (2). O problema do contra-argumento é assumir que uma coisa exclui as outras.

Se decidissem boicotar o jornal Sol por um dos seguranças ter uma verruga no nariz, eu diria que estavam no seu direito. Afinal, cada um é livre de comprar o jornal que quiser pelas razões que quiser. Mas também diria ser injusto boicotar um jornal por causa da verruga. Os nossos direitos não se limitam àquilo que é moralmente louvável ou justo. Incluem qualquer acto que seja mais imoral proibir do que permitir, pelo que é perfeitamente possível (e até comum) que o exercício de um direito resulte numa injustiça. Mentir, desligar o telefone na cara de alguém ou gritar com os filhos, por exemplo. Assim, a tese de que o boicote «é um reflexo de liberdade»(2) é irrelevante para determinar que o boicote é justo ou que quem o propõe percebe o que é a liberdade de expressão. No entanto, a objecção do Rui faz-me concluir que devia ter explicado melhor a minha posição e, como isto me interessa, aqui vai.

Punir alguém pelas suas opiniões é injusto. Não sei se é preciso justificar isto mas, em traços largos, é injusto porque o direito que a pessoa tem às suas opiniões é muito mais fundamental e importante do que um eventual direito de alterar as opiniões dos outros. Por isso, temos de restringir a forma como alteramos essas opiniões. Pelo diálogo, sátira ou persuasão racional, mas não pela força, ameaças ou coerção. Punir alguém por expressar as suas opiniões também é injusto, em parte porque o direito de opinião não deve ter de ser comprado pelo silêncio e, em parte, porque essa atitude punitiva acaba por nos prejudicar a todos, dada a importância da livre expressão de ideias numa sociedade funcional e saudável. Sendo o boicote uma acção punitiva com o intuito – mesmo que sem o efeito – de coagir o jornal a deixar de publicar aquelas opiniões, é uma acção injusta mesmo que tenham o direito de a cometer. Além disso, é também injusta pelos efeitos colaterais que teria – se fosse minimamente eficaz – em pessoas que nada têm que ver com o assunto.

Quanto à liberdade de expressão, é verdade que não obriga ninguém a dar atenção ao que não lhe interessa. É, por isso, legítimo e justo que não leiam o que o José António Saraiva escreve ou nem sequer comprem o jornal Sol se acharem que é perda de tempo. Mas o boicote só faz sentido para aqueles que se interessam pelo jornal, que compram o jornal, e que comprariam o jornal se não fosse quererem coagir os editores a não publicar os disparates do José. E isso, apesar de ser um direito no sentido de que mais vale deixar fazer do que impedir, é uma ameaça ao outro direito. Só podemos ter todos liberdade de expressão se, em paralelo, assumirmos também o dever da tolerância. O dever de não erguer o punho só porque dizem algo de que discordamos, de não choramingar que nos ofendem e de não retaliar só por alguém defender uma opinião que nos incomoda. Se descurarmos esse dever perdemos a liberdade de expressão porque, para qualquer coisa que qualquer um diga, é inevitável haver outro a quem isso incomoda. Se desatamos todos a retaliar, boicotar e coagir só para impedir que nos exponham a opiniões contrárias às nossas, vamos acabar por perder não só a liberdade de expressão mas, eventualmente, tudo o resto também, por nos tornarmos incapazes de resolver divergências.

Mesmo reconhecendo que quem quer boicotar o que quer que seja tem todo o direito de o fazer, eu proponho uma alternativa mais adequada para lidar com os disparates dos outros. Algo que podemos todos fazer, à vontade, sem pôr em risco a liberdade de ninguém. Dizer o que pensamos. Se mil pessoas não comprarem o jornal Sol em protesto contra o José António Saraiva e as suas opiniões, causam um prejuízo mínimo ao jornal, quase nenhum ao José e nenhum às suas opiniões. Se, em vez disso, escreverem o que pensam dessas opiniões, podem até dar mais lucro ao jornal mas dirigem o ataque ao que importa: a ideia imbecil de que duas pessoas do mesmo sexo não se podem casar para não nos baralhar o “marido” e “mulher”.

1- Dois argumentos novos.
2- Rui Passos Rocha, Gays, parvoíce e liberdade

terça-feira, agosto 30, 2011

Pensar com os testículos.

O Gonçalo Portocarrero de Almada escreveu, no Público, um post onde se opõe à possibilidade de alguém ser reconhecido pela sociedade como sendo do género com o qual se identifica. O argumento do Gonçalo, pelo que consegui perceber, assenta na analogia com uma hipotética mudança de espécie segundo a qual ele seria reconhecido como ave rara (1). Uma coisa que achei interessante no texto do Gonçalo é uma profusão de chalaças – presumo que o sejam, porque fazem ainda menos sentido se não o forem – ilustrando na perfeição o que propus no post de há dias (2). Mas o propósito deste não é comentar o sentido de humor do Gonçalo. É apenas apontar um pequeno problema no seu argumento.

A distinção entre aves e humanos é uma distinção biológica. Tem consequências sociais – as aves não escrevem para o Público, por exemplo – mas estas categorias assentam rigidamente na distinção biológica. Em contraste, enquanto o sexo é uma distinção biológica, o género é uma distinção social, abarcando aspectos como quem passa primeiro nas portas, quem tira o chapéu quando cumprimenta, cuida de crianças no infantário, muda o pneu furado, usa bâton e assim por diante. E enquanto o sexo é determinado pelo tamanho dos gâmetas, o género resulta de hábitos, expectativas, comportamentos e relações sociais que não são totalmente dependentes das diferenças biológicas, pelo que a distinção entre ser mulher ou homem, socialmente, é bem mais complexa do que ter óvulos em vez de espermatozóides. Ou penas em vez de pêlos. Quando o Gonçalo pergunta «será que o faz-de-conta é válido para o sexo, mas já não para a idade, a altura e o peso?» comete o equívoco de julgar que o Estado reconhece uma mudança de categoria biológica quando, na verdade, trata-se apenas de uma categoria social. Mais correctamente, do género e não do sexo.

Além disto, o Gonçalo presume também um dualismo de corpo e mente quando critica a determinação da identidade pessoal por «um acto libérrimo de vontade de cada qual». As evidências que temos contradizem este dualismo. Não há um fantasminha transcendente a mexer nos neurónios para manipular o corpo. A nossa identidade de género, aquilo que nos faz sentir homem ou mulher, é determinada pelas nossas hormonas, pelos genitais, e pelo cérebro. Pelo corpo todo, no fundo. Na maior parte das pessoas, os indicadores concordam e é fácil ver que é homem ou mulher. No entanto, noutros casos os indicadores discordam. Para a biologia tanto faz, mas a questão de como uma pessoa se identifica e se apresenta aos outros é mais complexa do que ser XY e ter gâmetas pequenos. Por isso temos de decidir o que é vai contar mais para determinar o género, se os testículos ou o cérebro.

Sendo vice-presidente da Confederação Nacional das Associações de Família e padre católico, suspeito que o Gonçalo prefira a primeira opção. Convém-lhe que a identidade de cada um seja função de indicadores externos para que uma figura de autoridade possa dizer a cada pessoa aquilo que ela é. Simples e fiável. Confiar no cérebro é uma chatice porque passa o problema para o íntimo da pessoa, onde outros não mandam. Se admitimos que alguém se identifique como homem ou mulher por processos que se passem lá dentro em vez de algo que seja óbvio cá fora, só com a desculpa de que é assim que se sente, qualquer dia julgam que podem também ter opiniões acerca das tradições, da religião ou do que lhes dizem ser certo ou errado. Seria uma desgraça.

No entanto, por muito inconveniente que isto seja, o facto é que os testículos e os ovários estão menos habilitados do que os cérebros – do que alguns, pelo menos – para gerir a complexa rede de relações sociais que estrutura o género de cada pessoa. Devemos, portanto, permitir que cada um use o seu cérebro para resolver este problema em vez de engavetar as pessoas pelo que têm entre as pernas. Mesmo correndo o risco das pessoas se habituarem a usar o cérebro.

1- Gonçalo Portocarrero de Almada, Igualdade de género ou falsa identidade. Via Shyz Nogud no Google+
2- Treta da semana: com isso não se brinca!

segunda-feira, agosto 29, 2011

Fiquei obsoleto.

E pronto. É só o Creative Machines Lab de Cornell traduzir o software para português e podemos automatizar a conversa sobre religião.



Via Disinformation.

Capitalismo de esquerda.

Se eu tiver de projectar as minhas opiniões políticas numa só linha, fico claramente na “esquerda”. No entanto, sou ideologicamente capitalista, o que complica qualquer discussão que tenha acerca disto. É no que dá tentar reduzir a uma dimensão algo que é multi-dimensional.

Considero que a liberdade de cada um seguir os seus objectivos é um valor fundamental e, por isso, exijo que a sociedade só imponha aquelas restrições que promovam essa liberdade. Proibir o homicídio e a violação ou obrigar à educação das crianças são exemplos de restrições que resultam em mais liberdade do haveria sem elas. A propriedade privada também serve este propósito. Não com músicas ou algoritmos, de que todos podem usufruir sem impedir o usufruto a terceiros, mas com cotonetes e tractores é útil ter regras claras acerca de quem pode usar o quê. No entanto, devem ser as pessoas envolvidas a decidir se gerem essa propriedade de forma individual ou colectiva. Não deve ser a sociedade a impor isto. Isto torna-me um defensor do capitalismo, enquanto ideologia, porque não aceito que se proíba a propriedade privada dos meios de produção. Se permitirmos às pessoas ter tractores, alugá-los e contratar gente para os operar, temos capitalismo.

No entanto, “capitalismo” também designa outras coisas, com as quais não concordo tanto. Uma delas é um conjunto de modelos económicos assentes na premissa de que, num mercado livre com propriedade privada, cada pessoa age de forma a maximizar o seu capital. Isto era uma boa aproximação no tempo de Adam Smith, e permite criar modelos quantitativos detalhados de um sistema complexo. No entanto, hoje em dia a margem de erro é muito maior, porque outras motivações, como as condições de trabalho e lazer, têm uma influência maior na economia. A acumulação de capital, apesar de ser uma medida quantitativa conveniente, já não é tão fiável para prever o comportamento dos agentes económicos.

E sou especialmente contra o capitalismo quando o termo refere implementações como a dos EUA, exemplo paradigmático daquilo que o capitalismo se torna se não temos cuidado. A corrupção da democracia, uma terrível desigualdade social, a criminalização da pobreza, a promiscuidade entre o sector público e o privado são consequências práticas da implementação do capitalismo, mas que me parece que podem ser evitadas sem deitar fora a liberdade de cada um usar, alugar ou vender as suas coisas e o seu trabalho.

O que me põe à esquerda é não considerar a propriedade privada um valor fundamental. É apenas uma ferramenta para promover a liberdade, e para se usar somente na medida em que cumpra esse objectivo. Não me apoquenta que a taxa mais alta do IRS passe para 90%. À direita dirão que é um roubo, uma violação dos direitos de propriedade sobre o rendimento, mas os direitos de propriedade são o que quisermos. Se eu ganhar um milhão de euros por mês, ficar só com cem mil depois dos impostos tem um custo pequeno para a minha liberdade. Há muito pouco que eu possa fazer com um milhão de euros por mês que não possa fazer quase tão bem com uns meros cem mil. E se, com isso, se aumente em mil euros o rendimento de novecentas pessoas quem só ganhem umas poucas centenas, o ganho de liberdade dessas pessoas compensa amplamente a modesta restrição que me impõem.

É por isto que, apesar de ser capitalista, também defendo que o Estado deve redistribuir riqueza de forma eficaz, apropriando-se do que for necessário para optimizar a liberdade individual de todos. Qualquer um deve ter a possibilidade de ser rico e de ter muitas coisas, mas ninguém deve ser forçado à miséria. No entanto, para complicar ainda mais, sou contra muitas medidas concretas que a esquerda defende. Ordenados mínimos, limites ao arrendamento, subsídio de desemprego, rendimento de inserção e essas coisas.

Eu defendo que o Estado deve garantir, de forma universal e gratuita, aquilo que é importante demais para deixar ao sabor dos mercados. A educação, a justiça, a saúde, e também transportes, comunicações e outras necessidades básicas. Não é preciso ser de luxo, mas todos devem ter um acesso mínimo a estes serviços fundamentais. Defendo também que o Estado nunca deve manipular preços. Além de estupidez, é uma restrição às liberdades individuais sem nada que a compense. Ninguém deve ser proibido de vender o seu trabalho ao preço que quer, por muito pouco que seja, nem deve ser proibido de alugar uma casa pelo preço que quiser, por muito que queira pagar. E defendo que as prestações sociais devem ser desligadas da burocracia, do estigma e da humilhação que agora carregam os subsídios de desemprego, de inserção social e essas coisas. A redistribuição deve ser equitativa e transparente, com todos a receber, por igual, a parte a que têm direito, e sem burocratas a fiscalizar o coitadinhismo de cada um para subsidiar em conformidade.

Basicamente, e talvez devesse ter reduzido o post a isto, o que me importa é a liberdade. Por isso rejeito as restrições comunistas, defendendo que cada um deve ser livre de comprar, vender e acumular como quiser, mas exijo uma redistribuição agressiva, capaz de garantir que a liberdade é para todos e não apenas para os filhos de alguns.

sábado, agosto 27, 2011

Treta da semana: com isso não se brinca!

Já ouvi dizer muitas vezes que há coisas das quais não se pode troçar, supostamente por serem sérias. A nação, a religião, o clube de futebol, a verruga no nariz, o que calhar. No seu post desta semana, o João César das Neves critica o Jon Stewart, o anfitrião do excelente Daily Show, precisamente pelo «perigo da atitude» de brincar com coisas sérias. Esclarece que «Podem tratar-se coisas sérias fingindo brincar», mas são se for para rir com gosto, porque «é tão perigoso brincar com coisas sérias.» (1). Parece-me que o João tem alguma dificuldade com o humor.

Dois amigos andam à caça quando um, subitamente, desfalece. O outro telefona para o 112.
- Está? É o meu amigo... agarrou-se ao peito, caiu no chão e não está a respirar. Acho que está morto!
- Tenha calma. Primeiro, temos de ter a certeza...
Ouve-se um tiro.
- Pronto. E agora, o que faço?*

Para apreciar o humor é preciso ter capacidade para mudar de perspectiva, percebendo as coisas de uma forma contrária à pré-concebida e, igualmente importante, ter prazer em fazê-lo. A maior parte das pessoas consegue, em teoria, imaginar o que seria ver as coisas de outra forma. Mas, para muita gente, há situações em que fazê-lo é quase doloroso. São essas pessoas que dizem que não se brinca com coisas sérias, as tais em que lhes custa contemplar uma mudança de ideias.

É por isso que o João César das Neves diz que podemos criticar fingindo brincar mas, com “coisas sérias”, o gozo tem de ser fingido. Nesses casos, dói tentar pensar de outra forma, mudar de perspectiva ou largar os preconceitos, pelo que só se pode dar um esgar sofrido e não um sorriso com gosto. Daí a dificuldade que pessoas como o João César das Neves têm em aceitar o humor nessas situações. E, suspeito, é também por isto que há tão poucos cómicos de sucesso que são crentes religiosos. A religião é, por excelência, uma “coisa séria”, onde se treina desde criança a temer a possibilidade de mudar de ideias.

O defeito desta relutância é que a capacidade de ver as coisas de outra perspectiva é uma ferramenta fundamental para resolver problemas, porque permite procurar alternativas, corrigir erros, tomar boas decisões e avaliar correctamente as situações. Principalmente quando o problema é sério. Quem se mantém disposto a rir mesmo com coisas sérias não só demonstra esta capacidade como também a disposição para se servir dela. E isto é bom, dá-nos jeito a todos e devemos praticá-lo com frequência para nunca perder o hábito. Não é por acaso que os xenófobos, nacionalistas, hooligans e fanáticos têm, geralmente, um sentido de humor bastante pobre.

Por exemplo:



Eu sou fã do Dawkins, acho que os problemas que ele aborda são sérios e, para mim, o cepticismo é uma coisa importante. Também não me parece que a motivação dele para escrever seja esta que o sketch dá a entender. Mas não só me dá gozo ver, por uns momentos, as coisas desta perspectiva – mesmo sabendo que não é verdade – como acho útil ser capaz de considerar esta possibilidade. Não se aplica aqui, mas talvez se aplique noutros casos.

O humor é brincadeira, mas é também um teste importante da nossa capacidade de nos colocarmos fora dos nossos preconceitos, hábitos e tabus. Se gozar com uma coisa nos custa, se não conseguimos rir por nos parecer “coisa séria”, então não estamos preparados para lidar com o assunto de forma objectiva e imparcial. Só para concluir, deixo mais este. Tentem adivinhar o tipo de pessoa que não achará graça a isto.




Adenda, 29-8: Este exemplo talvez seja melhor do que o sketch sobre o Dawkins. É uma edição feita por um fã do Dawkins a uma entrevista com o Steven Pinker. A conversa original era sobre a origem da linguagem, mas ficou um pouco diferente. Penso que mais ateus se riem disto do que se ririam católicos se fosse com o Papa ou Nazis se fosse com o Hitler. Obrigado ao Nuno Dias pela sugestão.




* Segundo os inquéritos do Richard Wiseman, esta é a piada mais engraçada do mundo, originalmente do Goon Show. Infelizmente, não encontrei uma expressão em português tão ambígua como o “let´s make sure he's dead” original.

1- DN, O poder de Jon Stewart

sexta-feira, agosto 26, 2011

E o método, pá?

Hoje em dia é desconfortável uma religião admitir conflitos com a ciência. Por isso, muitos religiosos se esforçam para disfarçar a incompatibilidade entre as duas abordagens. O Miguel Panão, por exemplo, citando John Haught, aponta que o problema é «a crença num âmbito explanatório ilimitado da ciência»(1), enquanto o Alfredo Dinis alega não haver conflito porque «a ciência não consegue demonstrar que Deus não existe, a fé também não consegue provar o contrário»(2). Nada disto é relevante. O que o Alfredo aponta é trivialmente verdadeiro para uma infinidade de coisas, como os mafaguinhos, o Pai Natal e um bule em órbita entre a Terra e Marte. E se bem que não se saiba se é possível explicar tudo, sabe-se que, para explicarmos alguma coisa, precisamos de um argumento sólido de onde a possamos inferir. Precisamos de premissas que possamos confirmar independentemente e de um raciocínio válido que nos conduza ao que queremos explicar. E isso a fé não dá.

A teoria da evolução é uma boa explicação. As premissas são fáceis de confirmar: os organismos herdam características dos seus antepassados, reproduzem-se e o sucesso reprodutivo depende, em parte, das características herdadas. E disto podemos inferir os mecanismos que vão moldando a distribuição de características nas populações ao longo das gerações. Para casos mais concretos podemos detalhar as premissas por observação e chegar a conclusões muito específicas. Em contraste, a hipótese de que Deus criou tudo não explica nada. Fica pendurada, sem fundamento, e dela nada se pode concluir. Não explica porque é que as mitocôndrias têm ADN, porque é que a retina dos vertebrados está ao contrário da dos invertebrados ou porque é que as bactérias adquirem resistência aos antibióticos. Não explica nada, nem se justifica crer que é verdade. No entanto, é nisso que os religiosos crêem.

E o fundamental na ciência nem sequer é o conjunto de explicações que se adopta num dado instante. É o método para as avaliar, sempre a título provisório, pelos dados disponíveis. Nisto, o conflito com a religião é óbvio. Segundo o Anselmo Borges, «Deus não é objecto de ciência [...] Deus é objecto de fé e há razões para acreditar como há razões para não acreditar.»(3) Isto assume implicitamente que Deus existe, que não é mera fantasia ou termo sem sentido, e considera apenas a fé e a crença. Mas se as pessoas acreditam ou não é lá com elas, e a fé é o que cada um quiser. A questão objectiva é se a hipótese de Deus existir é factualmente correcta e, para chegar a uma conclusão fundamentada acerca disto, é preciso seguir o tal método: formular a hipótese de forma a poder ser testada, confrontá-la com alternativas e com os dados e, com base nas evidências disponíveis, aceitá-la como verdadeira, provisoriamente, apenas se o seu desempenho for nitidamente superior ao das restantes. Concluir que um deus existe porque se tem fé é atirar a ciência pela janela.

O Bernardo Mota vai dar um curso sobre “Ciência e Fé”(4), que aproveito para divulgar, para pedir que ele depois disponibilize a gravação das aulas* e para sugerir que aborde o problema como ele é. O Bernardo também defende que não há conflito entre ciência e religião e gosta de apresentar o exemplo de Galileu na tentativa de ilustrar isto. Galileu disse que nem tudo orbitava a Terra, pela observação das luas de Júpiter. Se isto se podia considerar evidência conclusiva é discutível, e é aceitável, cientificamente, que houvesse alguma relutância em aceitar de imediato o heliocentrismo só por causa disto. Mas o que fizeram foi prender Galileu e ameaçá-lo para o obrigar a negar o que as evidências lhe diziam. Cientificamente, mesmo que Galileu fosse parvo e não tivesse razão nenhuma, mesmo assim isto não se faz. Se os doutores da Igreja lhe tivessem feito perguntas tramadas, publicado refutações ou até feito comentários sarcásticos, eu concordava com o Bernardo. Mas não vejo maior conflito com o método da ciência do que mandar prender quem defende hipóteses com as quais se discorda.

O que os apologistas do está tudo bem sistematicamente esquecem é que a ciência não é um pacote de hipóteses que possam isolar das suas fés alegando não haver lá nada acerca do seu deus preferido. A ciência é o melhor método que conhecemos para encontrar a verdade, porque exige hipóteses explícitas com consequências claras, exige o confronto de hipóteses alternativas e corrige os erros quando dados novos o permitem. Afirmar que um deus existe porque se tem fé e porque é impossível provar que não existe é contrário e este método, porque está bem estabelecido, cientificamente, que a fé não é um indicador fiável da verdade de hipóteses factuais e que ser impossível de refutar, quaisquer que sejam os dados, apenas mostra que a hipótese foi mal formulada.

Gostava que o Bernardo, no seu curso, e os apologistas do tal “diálogo”, encarassem o problema verdadeiro em vez de inventar espantalhos. Gostava que explicassem como é que o seu método de concluir coisas pela fé e pelo “não se prova o contrário” pode ser compatível com o método a que chamamos ciência. É claro que também gostava de ganhar o Euromilhões, benesse com a qual não conto e que, mesmo sem jogar, ainda me parece a mais provável das duas.

* E posso dar dicas de como gravar os slides e sincronizá-los com a voz; faço isso nas minhas aulas e não custa nada.
1- Miguel Panão, Método científico contradiz Cristianismo?, mas ver comentários acerca da tradução da expressão original.
2- I Online, Ciência e religião. Afinal o diálogo é possível
3- DN (2009), Darwin e a religião
4- Bernardo Motta, Curso "Ciência e Fé"

quinta-feira, agosto 25, 2011

Dois argumentos novos.

Pensava que, quando se discutiu a legalização do casamento homossexual, já tinham apresentado todos os argumentos contra. A defesa do casamento, que é sagrado, a tradição, a reprodução, o homem isto e a mulher aquilo, e assim por diante. Afinal, ainda havia mais dois, que o José António Saraiva apresentou esta semana. O argumento da pobreza de vocabulário e o da pobreza de espírito.

Reza assim o primeiro: «não havendo neste ‘casal’ um marido e uma mulher, poderá falar-se em dois maridos? […] Não é fácil descrever estas situações. Por essas e por outras, numa recente entrevista a Manuel Luís Goucha reafirmei a minha oposição aos casamentos homossexuais.[...] Confesso que, até ao dia de escrever este texto, não me tinha debruçado sobre o modo como deverão tratar-se os dois membros de um ‘casal’ homossexual.» (1) Felizmente, este problema é fácil de resolver com um dicionário. Recomendo ao José António que consulte, por exemplo, a palavra “cônjuge”.

O segundo é mais tramado; «é justo que as pessoas que vivem juntas tenham certos direitos em comum. Mas, para isso, não é necessário pôr em causa as nossas referências nem baralhar os nossos pobres espíritos.» De facto, é pena que os pobres espíritos fiquem baralhados com a legalização do casamento homossexual. Mas também isto tem remédio. Sugiro ao José António que fale deste problema a alguém da sua confiança. Desta forma, se o José estiver, por confusão, prestes a casar com alguém de sexo que não lhe convenha, haverá quem impeça a boda e desfaça a confusão. Não é preciso proibir pessoas de casarem com outras do mesmo sexo só para evitar confusões que são perfeitamente evitáveis mesmo sem legislação especial.

O que acho mal é quererem boicotar o blog do Sol (chamam-lhe semanário, porque imprimem os posts à sexta-feira e os vendem em papel, mas não percebo o porquê de tanto desperdício). Que não leiam porque não gostam, compreendo. É o que eu faço, à excepção de textos inspiradores como este do José António. Mas que deixem de comprar só para castigar a publicação de uma opinião da qual discordam é injusto para com as outras pessoas que lá escrevem e que não têm culpa do José António não ter coisa melhor para escrever. Além disso, o direito de se dizer o que se pensa serve precisamente para dizer o que incomoda, porque para dizer o que não estorva ninguém não é preciso direito nenhum.

1- Sol, Dois maridos

quarta-feira, agosto 24, 2011

Cinco pontos para Gryffindor!

A Penitenciaria Apostólica, em resposta à «súplica de Sua Eminência Reverendíssima Antonio María Rouco Varela, Cardeal Arcebispo de Madrid […], foi dotada de faculdades especiais para conceder, mediante o presente Decreto, o dom da Indulgência, segundo a mente do próprio Pontífice, como segue: Concede-se a Indulgência plenária aos fiéis que devotamente participarem em qualquer função sacra ou exercício piedoso a realizar-se em Madrid durante a “XXVI Jornada Mundial da Juventude”»(1)

Na economia católica da culpa, o pecado, quando devidamente arrependido e confessado a um sacerdote credenciado, é perdoado. Fica o pecador, por este meio, livre do sofrimento eterno a que se sujeitaria por ter pensado em malandrices com a mulher do vizinho, ou coisa do género. No entanto, fica ainda obrigado ao pagamento de uma multa em dias no purgatório. Sabe-se lá porquê. É daqueles mistérios que, por mero acaso, se revelam muito convenientes para os religiosos profissionais que gerem estas coisas.

É aí que entram as indulgências, que podem ser obtidas de várias maneiras, como usando bijutaria abençoada, jejuando, recitando orações e outras ladaínhas ou pela «visita ao Santíssimo Sacramento durante pelo menos 30 minutos»(2). Antigamente também se podia comprar indulgências mas, agora, em ocasiões festivas, a Penitenciaria Apostólica, via dom concedido pelo Papa, dá-as de borla. A utilidade da indulgência é descontar ao tempo que a alma do pecador teria de ficar em espera no purgatório. Será algo como telefonar à pessoa amiga que trabalha na secretaria para dar o jeitinho de pôr o nosso processo à frente.

Duas coisas intrigantes nisto são, como sempre, o mecanismo e as evidências. Não é claro como isto funciona. Obviamente, ninguém pode levar o voucher para o purgatório ou redimir o código de oferta no site de São Pedro. Deve haver algum processo mágico tal que, assim que a Penitenciaria proclama “menos três dias para fulano de tal!” automaticamente o contador é actualizado no purgatório. Também é intrigante como é que a Penitenciaria sabe que isto funciona. Ao que parece, ninguém voltou de lá para lhes garantir que sim senhor, as indulgencias plenárias funcionam mesmo em pleno, e até as parciais dão um jeitão. A falta de confirmação cabal deixa em aberto a desagradável possibilidade de, depois deste trabalho todo, chegarem as pessoas ao purgatório e o encarregado dizer não senhor, ficam aqui os dias todos porque os pedidos de indulgência só são considerados se entregues no formulário A23, em triplicado, e dentro dos prazos vigentes.

Pode parecer exagero andar a implicar com estas coisas que, admito, são mais ridículas do que prejudiciais. Mas incomoda-me, de tão absurdo que é, que estes Bispos, homens já com idade para ter juízo, supostamente inteligentes e certamente cultos, se reúnam com o ar sério de quem trabalha para decretar descontos nos dias de purgatório aos jovens que foram a Madrid. Nem sei o que será pior, se a possibilidade de o fazerem por aldrabice ou se a possibilidade de acreditarem mesmo num disparate destes.

1- Vaticano, PENITENCIARIA APOSTÓLICA, MADRID, DECRETO. Obrigado ao Bruce pelo link e concomitante gargalhada.
2- Wikipedia, Indulgência. Vejam também aqui várias promoções e outros descontos de oportunidade.

terça-feira, agosto 23, 2011

Comunismo, capitalismo e partilha.

O painel onde vou estar no dia 6 de Outubro, na conferência “Cultura Pirata na Sociedade da Informação”(1), vai discutir o tema “Consumismo e comunismo na Cultura Pirata”. O primeiro termo já abordei noutro post (2). Este é sobre a ideia de que partilhar ficheiros é uma forma de comunismo.

Há duas grandes diferenças entre o comunismo e o capitalismo. Uma é que enquanto o capitalismo assenta num mercado livre, onde cada indivíduo aplica os seus recursos segundo os seus interesses, o comunismo tem um planeamento central da economia, estipulando, em teoria para bem de todos, onde se pode investir. A outra diferença é na propriedade, com o comunismo a excluir da propriedade privada tudo o que seja classificado de “meio de produção”, uma categoria bastante vaga. Nestes mecanismos, a proibição da partilha de obras aproxima-se mais do comunismo do que a partilha em si.

A partilha gratuita, e mesmo a pirataria – a venda de cópias sem autorização – não dependem de planeamento central. São um produto da mão invisível do mercado, emergindo dos interesses individuais de cada participante. Se copiar e distribuir música tem um custo marginal praticamente nulo e uma empresa cobra vinte euros por álbum, é de esperar, num mercado livre, que surjam concorrentes oferecendo cópias por muito menos. E quando o preço é baixo outros interesses prevalecem sobre os interesses económicos. O resultado é que milhões de pessoas decidem livremente pagar um pouco mais de electricidade só pelo gozo de partilhar ficheiros e fazer um manguito virtual às editoras. O que se aproxima do comunismo, no mecanismo se bem que não na motivação, são os monopólios concedidos por um poder central que ditam quem pode aplicar os seus recursos a copiar e quem está proibido de o fazer.

Nos direitos de propriedade passa-se o mesmo. Tanto no capitalismo como no comunismo, os direitos de propriedade servem principalmente para gerir recursos escassos, cujo usufruto por parte de uns necessariamente exclui outros de um usufruto igual. Em geral, os limites impostos à propriedade seguem esta orientação: não se pode ser proprietário da luz do Sol ou da poesia de Camões, das quais todos podem usufruir, não se pode usar a propriedade para a privar outros do usufruto da sua, como poluindo, desviando rios, impedindo acesso aos terrenos dos vizinhos e assim por diante. Mas, além disto, o comunismo também nega direitos de propriedade sobre meios de produção, uma restrição arbitrária e pouco consistente. Por exemplo, por este critério pode ser legítimo ser dono de cada uma das peças do tractor quando separadas, mas já não se estiverem juntas porque o tractor é um meio de produção.

A concessão de monopólios sobre a cópia cria um efeito análogo nos computadores. O legítimo proprietário de um computador tem direitos de propriedade sobre cada byte que lá estiver armazenado. Em abstracto, os números não são propriedade de ninguém, mas o disco magnetizado que representa esses números pode ter dono. No entanto, se guardar no seu computador uma sequência de bytes que represente uma música então os seus direitos de propriedade serão limitados por uma restrição abstracta. Não por serem “meio de produção” mas por serem “conteúdo protegido”, uma diferença insignificante perante violação dos direitos de propriedade sobre aquele objecto físico, seja computador ou tractor.

É verdade que a motivação de quem partilha ficheiros parece mais comunista do que capitalista. Tal como contribuir para a Wikipedia, escrever blogs, criar software gratuito e tantas outras coisas que muita gente faz sem cobrar nada. Mas, num capitalismo democrático, é perfeitamente legítimo que indivíduos se guiem por ideais comunistas, porque o fundamental neste sistema político e económico é a liberdade de cada um agir de acordo com os seus interesses. O que não é compatível com um capitalismo democrático é a imposição dos mecanismos comunistas de planeamento central e de restrição arbitrária de direitos de propriedade. Infelizmente, os monopólios sobre a cópia são mecanismos deste tipo, impondo ao mercado livre um pouco do que há de pior no comunismo para impedir que as pessoas livremente façam aquilo que o comunismo tem de bom.

1- Cultura Pirata 2011
2- Produtores, consumidores e colaboradores.

domingo, agosto 21, 2011

Treta da semana: decida-se...

Segundo discursou Joseph Ratzinger recentemente em Espanha, «sabemos bem que fomos criados livres, à imagem de Deus, precisamente para ser protagonistas da busca da verdade e do bem, responsáveis pelas nossas ações e não meros executores cegos, colaboradores criativos com a tarefa de cultivar e embelezar a obra da criação. Deus quer um interlocutor responsável, alguém que possa dialogar com Ele e amá-Lo.»(1) Tirando o problema de, na verdade, não saberem isto – apenas acreditam, mas não há justificação objectiva para considerá-lo conhecimento – o conselho implícito parece-me bom. Temos de ser responsáveis, buscar a verdade e ter capacidade para dialogar. Infelizmente, Ratzinger trata também de contradizer estes conselhos.

Dialogar exige procurar razões em comum de onde se possa encetar um raciocínio partilhado. Se um afirma que a Terra é plana e o outro defende que é esférica, não pode ser esse o ponto de partida para uma conclusão. Terão de concordar primeiro acerca do que conta como evidências e se essas evidências existem de forma a suportar alguma das hipóteses. Fotografias tiradas de órbita ou a sombra que a Terra projecta na Lua durante um eclipse lunar, por exemplo. Só assim se pode ter um diálogo racional que ajude a resolver a divergência. No entanto, os católicos fazem como Ratzinger e presumem que «fomos criados livres, à imagem de Deus» é o ponto de partida. Recusam-se a apresentar evidências que possam suportar essa alegação e ainda afirmam que estas coisas são verdades impossíveis de testar, excluindo logo à partida a possibilidade de partilhar razões com quem não acredite nisto, o que impossibilita o diálogo. Se os católicos são bons a dialogar com o seu deus é apenas por se tratar de um monólogo.

Ratzinger critica também os «muitos que, julgando-se deuses, pensam que não têm necessidade de outras raízes nem de outros alicerces para além de si mesmo. Desejariam decidir, por si sós, o que é verdade ou não». Suspeito que a crítica se dirija a ateus como eu, o que é irónico visto não sermos nós quem se arroga infalível, em certas matérias, por alegada orientação divina. E isto contradiz directamente a sua exortação à procura da verdade. Só quem deseja decidir por si se algo é verdade ou não é que pode procurar a verdade. Quem, pelo contrário, delegar essa tarefa a terceiros, limitar-se-á a enfiar barretes.

Quer também Ratzinger que os jovens, e todos nós, sejamos «responsáveis pelas nossas ações e não meros executores cegos», o que é de louvar. Mas depois aponta o dedo a quem quer «decidir, por si […] o que é bom ou mau, justo ou injusto», e que, ao contrário das palavras que «instruem, sob alguns aspectos, a mente; as palavras de Jesus, ao invés, têm de chegar ao coração, radicar-se nele e modelar a vida inteira». Considerando que as alegadas palavras de Jesus chegam por via de “testemunhado” e “interpretação” da parte de profissionais como o Ratzinger, o que ele está a recomendar é que sejamos eticamente responsáveis mas sem decidirmos o que é justo ou injusto e aceitando o que ele nos diz sem pensar muito no assunto. Isto é claramente contraditório.

Um artigo recente na Spiegel relata uma correlação significativa entre o secularismo e a ética, com os descrentes sendo mais tolerantes e tendo mais tendência a opor a discriminação, a guerra e a pena de morte do que os crentes no mesmo nível de educação e estrato social. O título do artigo pergunta se o secularismo torna as pessoas mais éticas (2), mas penso que, em grande parte, será o contrário. O que o Ratzinger propõe é uma contradição porque ninguém pode ser responsável nas suas decisões se delega a terceiros algo tão fundamental como distinguir o justo do injusto e o bom do mau. Bombistas suicidas e outros fanáticos fazem-no, convictos de cumprir a vontade do seu deus, mas quem se sente constrangido por considerações éticas não aceita facilmente a conversa dos alegados representantes divinos. E uma vez assumida a responsabilidade por estas decisões, a religião perde o seu papel fundamental, restando apenas o hábito e o medo de desiludir pais e avós. Para muitos isso não é suficiente para continuar adepto.

Segundo o Papa, e muitos bispos, o problema principal da Igreja é o ateísmo. Mas nas críticas ao ateísmo acaba por deixar a descoberto o verdadeiro problema do catolicismo. Dizem buscar a verdade mas abdicam da capacidade de determinar o que é verdadeiro e o que é falso. Dizem assumir responsabilidade ética mas delegam a responsabilidade de decidir o que é bom e o que é mau. E dizem querer dialogar mas não reconhecem a necessidade de justificar as suas premissas de forma que os outros as possam aceitar. O maior inimigo da Igreja católica não é o secularismo. É o catolicismo.

1- Canção Nova, Discurso do Papa na Festa de Acolhida dos jovens na JMJ 2011. Obrigado ao Ilídio Barros pelo link.
2- Spiegel Online, Does Secularism Make People More Ethical?. Já não me lembro onde vi isto primeiro, mas recentemente foi via o João Vasco no DA.

sábado, agosto 20, 2011

Produtores, consumidores e colaboradores.

No dia 6 de Outubro vou falar na conferência “Cultura Pirata na Sociedade da Informação”(1), onde tenciono abordar a terminologia que é usada para deturpar os problemas. Entretanto, vou escrevendo aqui um esboço dos argumentos, começando, neste, pela alegada relação de produtores e consumidores no contexto da criatividade, arte e cultura.

A distinção principal entre um produtor e um consumidor é que o primeiro gera valor com o seu esforço, que depois o segundo degrada para proveito próprio. O agricultor e o fabricante são produtores. As batatas, couves, guarda-chuvas e automóveis que produzem têm valor para quem os vai consumir. Por sua vez, os consumidores reduzem o valor destes bens pelo seu uso. A batata vale menos depois de comida.

Com os chamados bens culturais acontece algo diferente. Quem escreve, encena ou actua numa peça de teatro está a gerar valor com o seu esforço, mas quem assiste na plateia não degrada esse valor cultural gerado por quem produziu a peça. Pelo contrário. Uma actuação perante uma sala vazia tem menos valor, até para quem actua, do que perante uma audiência interessada. Coisas como histórias, músicas, poemas, ciência, filosofia, matemática, receitas culinárias e até regras de jogos têm mais valor quanto mais pessoas usufruírem dessas ideias. Escrever, compor e encenar criam valor, mas ler, ouvir e assistir também contribuem para o valor final da obra. Quem aprecia a cultura, a divulga e partilha, não é um consumidor mas sim um colaborador na produção desse valor cultural.

Isto deve-se, principalmente, a três factores. Primeiro, os bens culturais não se gastam com o uso. O livro vai-se estragando mas o texto pode ser preservado copiando-o para outro suporte. Em segundo lugar, o objectivo principal do criador é, em geral, comunicar. Há casos em que quererá manter privado, ou secreto, aquilo que criou, e esse direito deve ser garantido. Mas se decide publicar a sua obra é porque quer que outros a conheçam e, nesses casos, a partilha é em um valor acrescido não só para o público mas para o autor também. E, finalmente, porque o maior valor das melhores obras não é imediato. Surge a longo prazo, conforme serve de substrato para criações futuras. As obras de Shakespeare tiveram um grande valor no seu tempo. No entanto, tiveram ainda mais nos séculos que se seguiram, e até hoje. Apesar de já poucos apreciarem os originais, a sua obra continua a ter um enorme impacto na poesia, na literatura e até no cinema. E se considerarmos que cultura não é apenas arte, mas também ética, filosofia, política e ciência, é óbvio que o valor de uma ideia, a longo prazo, está principalmente naquilo que inspira.

A quem defende os monopólios sobre a cópia interessa pintar a cultura como algo que uns produzem e que outros consomem, acusando a partilha gratuita de consumismo e de destruir valor cultural sem compensar o “consumo”. No entanto, quando consideramos a cultura, em vez do mero negócio de vender cópias, isto nem sequer é verdade para cada obra individualmente. Nenhuma obra se degrada pela partilha, e a obra ganha pela divulgação. Além disso, a cultura é muito mais do que a soma das obras originais. É todo o contexto no qual são apreciadas, todas as experiências e ideias que inspiram e todas as transformações que alimentam a criatividade das gerações seguintes. Os suportes materiais, como livros e discos – cada vez menos necessários para distribuir bens culturais – são produzidos por uns e consumidos por outros. Mas o valor das obras, e da cultura, vem da colaboração de todos, desde o compositor ao admirador que faz um remix, empresta o CD a um amigo, ou põe o teledisco no YouTube. Mesmo que isto reduza o lucro dos distribuidores, aumenta o valor cultural da obra, que fica assim mais acessível e mais integrada no meio cultural em que é apreciada.

Os consumidores de cultura, naquela acepção negativa de quem destrói valor em proveito próprio, são os detentores dos monopólios sobre a cópia. Estes é que ganham dinheiro reduzindo o valor cultural das obras por restringirem a transformação, a partilha e o acesso.

1- Cultura Pirata 2011

quarta-feira, agosto 17, 2011

Criacionismos.

Uma conversa recente com o Mats e o Miguel Panão ilustrou algumas semelhanças entre o criacionismo dos cristãos evangélicos e o dos católicos. Como é norma em tretologia, ambos se defendem como se, para justificar uma crença, bastasse não haver provas em contrário. O Mats diz que precisamos de «encontrar a força natural, não-inteligente, aleatória, que tenha a capacidade de criar um sistema como o da lingua do pica-pau»(1) ou, caso contrário, devemos crer que foi tudo criado pelo deus dele em seis dias, há cerca de dez mil anos. Encontrar esse deus, no entanto, parece ser desnecessário. O Miguel Panão vai mais longe, mas na mesma linha. «Criar em Deus consiste em conferir ser ao não-ser, não consiste neste ou naquele processo»(2). Como não se pode aferir se um deus “conferiu ser” a algo que não era, o Miguel não só dispensa evidências positivas a favor da sua hipótese como exclui até a possibilidade teórica de alguma coisa o contradizer. Mesmo que se descubra todas as reacções químicas que originaram a vida e as espécies modernas, o Miguel dirá sempre que foi o deus dele a “conferir ser”. O que quer que isso seja.

Esta forma de adoptar crenças obriga a inconsistências. Durante muito tempo, conveio a esta religião reivindicar desgraças como provindo do seu deus mas, hoje, à parte de alguns tele-evangelistas, preferem a apresentar os desastres como naturais e deixar ao deus só as coisas boas. No entanto, é tão difícil “encontrar a força” que faz tremer a Terra como a que faz as populações evoluírem. Em ambos os casos, só se pode inferir o processo como explicação para o que se observa. Se o Mats sujeitasse a hipótese da origem natural dos terremotos ao mesmo crivo com que rejeita a evolução das espécies, não conseguiria safar o seu deus de responsabilidade por estas coisas. O mesmo para o Miguel Panão. Se o deus deste “confere ser” ao que não é, independentemente do processo por que surge, então também terá “conferido ser” ao tsunami que matou duzentas mil pessoas em 2004, ou ao parasita da malária que mata um milhão por ano.

Além de ambos avaliarem a hipótese da criação divina de forma inconsistente com o que fazem na maioria dos casos, também erram na confiança que nela depositam e na importância que lhe dão. «Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis.» Os crentes por vezes apontam que os ateus e cépticos também têm crenças. Claro que têm. Crer é aceitar proposições como verdadeiras, pelo que não crer em nada implica ou ignorar tudo ou ser inconsistente. Mas a crença dos cépticos é proporcional às evidências que suportam as hipóteses e, por isso, vem sempre depois da evidência e é sempre provisória. Ou seja, está integrada numa rede consistente e dinâmica de crenças onde todas são tratadas da mesma forma. A crença da fé é a crença da excepção, exigindo que um conjunto de hipóteses seja aceite em definitivo e antes de qualquer evidência. O que também leva à ignorância, porque o conhecimento exige justificação e capacidade de corrigir erros, e à inconsistência na forma de avaliar hipóteses.

Outro ponto comum é que ambos os criacionismos são inúteis, e até contraproducentes, para a nossa compreensão do universo. Não duvido que ajudem a manter a importância social das igrejas e dos profissionais da religião, mas o propósito cognitivo de um relato sobre a origem da vida ou do universo é esclarecer como surgiram. Para isso, não adianta a hipótese de ter sido tudo criado pelo milagre misterioso de alguém invisível.

O criacionismo evangélico e o criacionismo católico são diferentes nos detalhes, mas semelhantes no fundamento. Os criacionistas evangélicos tentam deturpar as descobertas cientificas e enganar o publico acerca dos factos. A idade da Terra, o Dilúvio, a treta da informação codificada e afins. Os católicos dizem que aceitam a ciência, mas acabam por deturpá-la também, enquanto método, ao defender que é igualmente legítimo saber coisas por magia. Chamam-lhe teologia, mas dá no mesmo. E se bem que em países como os EUA o criacionismo evangélico seja o mais prejudicial, por cá, onde muita gente sabe que os Flintsones não existiram de verdade, o criacionismo católico pode ser o mais nefasto. Não só pela falsa autoridade que confere aos “peritos” da teologia, como também pela forma insidiosa com que mina a ciência ao propagar a ideia de que investigar as coisas com rigor e atenção aos erros é muito bonito mas, para saber a Verdade, é acreditar no padre que o espírito santo depois logo inspira. Isto dá jeito à Igreja mas, para o resto da sociedade, é prejudicial.

1- Comentários em Treta da semana: “nephesh hayyah”
2- Comentários em Jornada fé e ciência (2008)

domingo, agosto 14, 2011

Direitos, dizem eles.

Quem se opõe aos monopólios legais sobre a cópia é muitas vezes acusado de se opor aos direitos dos autores. Isto é falso, porque proibir outros de partilhar informação legitimamente publicada não é um direito moral. É até uma violação dos direitos morais desses outros. E além da concessão de monopólios sobre a cópia não servir os direitos morais dos autores, ainda incentiva a sua violação.

Como não tenho seguido o percurso artístico do Tony Carreira, só recentemente soube que o Tony foi acusado de plagiar várias músicas (1). Este exemplo ilustra bem o propósito desta legislação e como ela dista dos direitos do autor. Primeiro, quando recebeu a denúncia, a SPA declarou que «Ouvimos as canções e chegámos à conclusão que, sobretudo numa, estamos perante uma situação de aparente cópia sem autorização. A comprovar-se tecnicamente, trata-se de um plágio» mas que «Não podemos desenvolver nenhuma acção. Para que isso suceda, tem que ser apresentada uma queixa por parte do autor ou do proprietário dos direitos de publishing»(2). Se alguém comete plágio e ganha dinheiro fazendo-se passar por autor da música de outros, e até a regista na SPA para recolher royalties, a SPA não pode “desenvolver nenhuma acção”. Mas se o problema é a partilha de ficheiros mp3, sem fins lucrativos nem qualquer fraude acerca da autoria, a SPA até marca reuniões especiais com o Procurador Geral da República (3).

O castigo dos prevaricadores também é revelador. Quem partilhar ficheiros gratuitamente pode ser castigado com até três anos de prisão, como repetem constantemente os vídeos que quem aluga ou compra DVDs é obrigado a ver antes do filme. Felizmente, os filmes sacados da net não vêm com esse lixo. Mas, segundo a SPA, o castigo normal para quem plagia por dinheiro é uma «indemnização que corresponda à dimensão do artista em causa e que seja, de alguma forma, equivalente, às vendas e aos royalties recolhidos»(2). Ou seja, tem apenas de devolver o dinheiro que indevidamente ganhou. E é se as editoras quiserem porque, tanto quanto sei, o Tony Carreira apenas admitiu “que errou” e o caso ficou arrumado (4).

A razão para isto é óbvia. Copiar ficheiros gratuitamente põe em causa o negócio e mostra a todos que qualquer um pode copiar. Por isso, as editoras e sociedades de cobrança têm de reprimir a “pirataria” com vigor. Mas o Tony plagiar não importa. O que importa é vender discos e, se houver chatice, as editoras logo fazem as contas entre elas. Isto não só falha na defesa dos direitos dos autores – o direito de ser reconhecido como autor, por exemplo – como até incentiva a sua violação. Se não fosse o monopólio comercial sobre a cópia, que nem sequer é do autor mas das editoras, o Tony Carreira não teria razão para mentir acerca da autoria da canção. Adaptava-a como entendesse, dava crédito ao autor da versão original e cantava sem aldrabar ninguém. Mas como a legislação vigente o obriga a dar parte do dinheiro se for honesto acerca de onde foi buscar a música, o Tony tem um forte incentivo para aldrabar. E a SPA está-se nas tintas porque, com plágio ou sem plágio, recebe o seu à mesma.

Apesar de se chamar “Código do Direito de Autor e Direitos Conexos”, este diploma é mais fruto da pressão de lobbies do que de qualquer preocupação com direitos. Ser contra estes monopólios sobre a cópia não é ser contra os direitos do autor. Pelo contrário. Esta legislação, além de incentivar o plágio também nega direitos fundamentais ao autor, como o direito de transformar obras de terceiros sem ter de fingir que são criações originais, o direito de partilhar aquilo que cria, transforma ou aprecia, e até o direito de aceder a obras publicadas, um direito fundamental para que se possa tornar num autor. Eu não me oponho à proibição da cópia por ser contra os direitos do autor. Oponho-me porque defendo os direitos daqueles que já são autores e daqueles que podem vir a sê-lo.

1- Pelo leitor Abraão, num comentário a este post, a quem agradeço a ligação ao vídeo abaixo:

2- DN, SPA recebe denúncias de plágio contra Tony Carreira
3- Visão,Direitos de Autor: Combate à pirataria domina reunião do presidente da SPA com PGR
4- Portais, Alegado plágio - Tony Carreira admite que errou

sábado, agosto 13, 2011

Treta da semana: “nephesh hayyah”.

Segundo o Mats, «A língua do pica-pau pode-se esticar entre 3 a 4 vezes o seu tamanho normal como forma de capturar insectos dentro das árvores. [...] Esta maravilha da criação está repleta de designs especiais que negam a possibilidade de serem o resultado de forças não-inteligentes (evolução). A língua do pica-pau está “plantada” na sua narina direita. Saindo na parte de trás da narina, a língua divide-se em duas, enrolando-se à volta da sua cabeça entre o crânio e a pele, passando pelo outro lado dos ossos do pescoço, e saindo de debaixo do seu maxilar inferior ou bico. Até parece que Quem fez o pica-pau sabia o que fazia.»(1)

Pela descrição, não parece que sabia o que fazia, porque plantar a língua na narina é pouco inteligente. Mas o que acontece é que, nos pássaros, o osso hioide faz parte da estrutura e suporte da língua e os dois cornos deste osso estendem-se até à parte posterior do crânio. O pica-pau apenas tem esta estrutura mais comprida, que chega até à narina mas nem entre aspas está plantada nela. Mas a língua do pica-pau fica para um post sobre coisas menos ridículas. Este é sobre a resposta do Mats à pergunta acerca do que o pica-pau comia e outras premissas de fé.

O Mats defende que Deus criou o pica-pau no paraíso, onde não havia morte nem insectos a parasitar árvores, e onde seria pouco inteligente ter uma língua especializada em comer insectos. A resposta do Mats foi que «O que tens que demonstrar é que o conceito de “vida” que tu usas é o mesmo que […] a Bíblia qualifica de “nephesh hayyah” (alma vivente). […] Em relação aos insectos, se eles têm “nephesh hayyah” então o pica-pau não os comia antes da Queda. Se ele comia insectos antes da Queda, então os insectos não tem “nephesh hayyah”.»(1) Este truque de fingir que a questão factual é um problema do conceito não é só dos criacionistas. O Miguel Panão, por exemplo, escreve que «ao aferir uma hipótese de existência de um determinado Deus, não chega procurar evidências, importa conhecer bem cada conceito de Deus sobre o qual se pronuncia a hipótese»(2). O problema é que se passa o tempo todo a remoer o conceito e nada de evidências. O “nephesh hayyah”, o “Deus-Trindade” e a “lei dos semelhantes” podem motivar discussões sisudas entre criacionistas, teólogos e homeopatas, mas o que queremos saber é em que medida correspondem à realidade.

Os conceitos são importantes, porque são potenciais peças do puzzle, mas o conhecimento só vem no entrelaçado consistente de hipóteses testáveis acerca da correspondência entre os conceitos e aquilo que eles referem. Por sua vez, testar hipóteses exige interpretar dados, o que exige outros conceitos, outras hipóteses e novos testes. Muitos assustam-se por não haver fim para isto e procuram um fundamento irrefutável e axiomático para o conhecimento. Mas não há. Sobram sempre questões em aberto e a confiança que se justifica ter nas descrições que vamos construindo da realidade depende da interligação consistente de dados, modelos, hipóteses e teorias. Esta confiança pode ser grande, se temos muita coisa bem encaixada e que cubra muitos dados, mas nunca se justifica certezas absolutas. Perceber esta limitação cognitiva é uma parte fundamental do cepticismo.

E negá-la é essencial para a fé. O Mats resolve o problema do pica-pau assim: «Se alguém conseguir mostrar como a Bíblia confere o estatuto de “alma vivente” aos insectos, então fico a saber que o pica-pau não comia insectos antes da Queda» porque o Mats acredita que a Bíblia é «a Palavra do Criador dos insectos e dos humanos»(1). O Miguel Panão diz que «O Deus Trindade em quem acredito criou o universo»(2). Os católicos assumem que o Papa é infalível, os muçulmanos assumem que Allah ditou o Corão, os astrólogos assumem que os astros afectam a nossa vida amorosa e todos agem como se tivessem magicamente adquirido o dom da infalibilidade e, por isso, já não precisarem de testar essas suas hipóteses.

Eu não acredito que o “nephesh hayyah” tenha qualquer coisa que ver com o que o pica-pau comia há dez mil anos, nem que o “Deus Trindade” tenha criado o universo, nem que Maomé tenha falado pessoalmente com o anjo Gabriel. Não rejeito estas hipóteses por fé nalgum dogma contrário mas pela mesma razão porque também rejeito que o Elvis esteja vivo ou que andem por aí ETs a raptar vacas. Estas hipóteses não encaixam naquela rede consistente que constitui o nosso conhecimento, e julgar que são verdade só porque sim é disparate.

1- Mats, O Pica-Pau, e comentários.
2- Comentários em Jornada Fé e Ciência (de 2008).

quinta-feira, agosto 11, 2011

Mecenato.

Num post sobre o que ele chama “Stallmanismo radical”, o Luís Miguel Sequeira conclui que «é preciso criar um modelo que fomente a preservação do artista enquanto uma profissão crucial do ponto de vista civilizacional». Curiosamente, acrescenta de seguida que «a existência de arte sempre foi uma consequência da civilização!»(1), o que parece contradizer a ideia de ser preciso criar “um modelo” específico para isto. Nunca houve civilização humana sem arte, apesar de muitas não terem concedido monopólios legais sobre a cópia. Mas esta não é a única confusão no post do Miguel.

O Miguel também confunde software livre com trabalho à borla, escrevendo que Stallman propôs «um modelo futuro em que todos os programadores do mundo partilhassem livremente as aplicações que desenvolviam gratuitamente». O software livre (2) não é uma norma acerca do salário dos programadores. Basicamente, diz que uma descrição de um conjunto de operações algébricas – o software – deve ser publicada de forma a permitir que se execute, examine, modifique e partilhe essa descrição. O que é prática secular na física, química, biologia, geologia e matemática, por exemplo. A forma correcta de publicar as expressões algébricas para calcular a pressão de um gás, a trajectória de uma pedra ou qualquer outro algoritmo, por mais complexo que seja, é às claras e sem restrições legais. É o software obscurecido e restrito que devíamos considerar uma excepção, e isto não tem nada que ver com o salário de ninguém.

O Miguel também fala dos «defensores da abolição dos direitos de autor», mas nunca vi defender que o autor não tenha o direito de se exprimir, de decidir quais obras publica e quais mantém privadas, de ser reconhecido como autor, de repudiar deturpações da sua obra, de se inspirar nas obras de outros ou de ser mencionado quando o citam. O que o Miguel chama “abolição dos direitos de autor” é a oposição às restrições legais sobre a cópia não comercial e a um sistema de regulação comercial ultrapassado, que até incentiva a violação dos direitos morais do autor. Mas darei um exemplo disso noutro post.

A confusão mais subtil, mas talvez mais fundamental, é acerca do papel dos monopólios sobre a cópia, que o Miguel presume ser um incentivo aos autores: «o modelo do «patrono das artes» também foi descartado e substituído no século XIX pelo sistema de royalties.» A arte é uma forma de expressão, e o autor cria a sua obra para que seja apreciada por todos. Antes do século XIX, o autor era pago por um patrono rico e poderoso que servia de intermediário entre o autor e o seu público. Depois do século XIX, passou a ser pago pelo editor rico e poderoso que serve de intermediário entre o autor e o seu público. A única coisa que mudou foi que os patronos sustentavam o autor por prestígio enquanto os editores procuram o lucro, ficam com direitos exclusivos sobre a obra e só pagam ao autor o que a lei obrigar. O novo sistema subsidiou a distribuição de cópias mas manteve, e até agravou, o problema fundamental: o autor continuou dependente do intermediário, sem poder vender o seu trabalho directamente aos muitos que apreciavam as suas obras.

Foi por isso que «Dickens passou grande parte da sua vida a tentar impedir que os americanos comprassem os seus livros no Reino Unido e que os reproduzissem a uma velocidade estonteante.» Se os leitores tivessem podido comprar os livros directamente ao Dickens, com a mesma facilidade com que compravam aos editores locais, o Dickens teria dominado o mercado. Qualquer fã preferiria comprar o livro directamente ao autor. E o Dickens teria ganho muito mais do que a pequena percentagem que os seus “patronos” eram obrigados a dar-lhe. Mas, sendo-lhe impossível vender os seus livros, o melhor que conseguiu foi a concessão de um monopólio comercial aos seus “patronos”. Dickens lutou pela instituição de monopólios sobre a cópia, no fundo, porque não tinha Internet nem maneira de vender ele os seus livros.

O Miguel pergunta «Os defensores da abolição dos direitos de autor propõem que «trabalhem como toda a gente». O que quer isto dizer?» Que trabalhem como toda a gente. Ou seja, que os autores vendam o seu trabalho no mercado a quem o quiser comprar. Tanto faz se é na feira, numa loja ou na Internet, se é com contrato a termo, sem termo ou à tarefa. São detalhes irrelevantes. O importante é que, agora que o autor pode vender o seu trabalho directamente a quem o aprecia, se acabe com a imposição legal de um mecenato à força que dá aos distribuidores o poder de proibir uma data de coisas a uma data de gente. Incluindo ao autor.

Como objecção, o Miguel aponta que «Ninguém «encomenda» um livro a um autor (com raras excepções) porque o risco é elevado, excepto para autores muito bem estabelecidos.» Pode ser, mas também é verdade, e praticamente sem excepção, que ninguém encomenda uma cirurgia cardiotorácica a qualquer badameco. A máquina publicitária de excreção de Milli Vanillis promoveu a ideia do artista profissional instantâneo, mas o mais razoável é que quem quiser fazer carreira por ter competências ou aptidões excepcionais demonstre primeiro que as tem antes de vender o seu trabalho. Não se justifica criar algum “modelo” especial só para isentar os artistas do mesmo requisito que cumprem os biólogos, cozinheiros, cirurgiões, matemáticos, professores de xadrez, contabilistas ou qualquer outro profissional especializado. Quem quer ser um profissional da arte faça como qualquer outro. Mostre primeiro o que vale. E hoje não é preciso arranjar um mecenas para fazer isso.

1- Luís Miguel Sequeira, As consequências do Stallmanismo radical
2- GNU, The Free Software Definition

quarta-feira, agosto 10, 2011

Jornada Fé e Ciência (de 2008).

Estou a gravar os vídeos de algumas palestras que dei há tempos. Este é o da “Hipótese de Deus perante a ciência”, na Jornada Fé e Ciência, em Braga, no dia 18 de Outubro de 2008.
(Está aqui o anúncio original, no Companhia dos Filósofos).



Ficheiro para descarregar, .ogv, Theora e Ogg Vorbis.

terça-feira, agosto 09, 2011

“Não é céptico; é normal.”

A conversa à frente das câmaras, hoje no “Querida Júlia”, não foi muito interessante (1). Ninguém lá defendia que o mundo iria acabar em 2012 e o José Martins, espiritualista (2), não se comprometeu a nada suficientemente concreto para justificar uma intervenção. A única coisa que acabei por criticar foi a teoria da conspiração de que estas profecias são um truque para nos distrair dos problemas económicos e sociais. Pareceu-me uma hipótese demasiado rebuscada só para explicar o facto, banal, de haver gente a ganhar dinheiro escrevendo disparates. Mais interessante foi a conversa que tivemos os três – eu, o José e o Rui Silva (3) – antes da emissão. O José estava a defender que não existe uma realidade, mas que cada um cria a sua realidade e as suas verdades. Um bom tema para outro post. Outra coisa interessante foi, depois da emissão, um comentário de uma senhora que acompanhava o Fernando Ventura. Disse-me que eu não era um céptico, mas sim uma pessoa normal. Concordei. O cepticismo é perfeitamente normal.

O cepticismo é, fundamentalmente, confiar na verdade de uma hipótese apenas na medida em que as evidencias a sugerem mais plausível do que qualquer alternativa. Isto é normal. Se quero a faca do pão e me disseram que está na gaveta, presumo ser essa a hipótese correcta. Mas se abro a gaveta e não vejo a faca, mudo de opinião e exploro as alternativas. Procuro no lava-loiças, na mesa e assim por diante. Todos somos cépticos nas condições ideais em que queremos apurar os factos de forma imparcial e nos dispomos a recolher os dados necessários.

Mas há muitas situações menos ideais, que nos induzem a procurar a verdade de forma anormal. Por exemplo, se um amigo nos diz que os flocos de cereais causam cancro. À partida, sem evidências nunca aceitaríamos tal hipótese. E vir de um amigo não a torna mais verdadeira. Mas custa duvidar de um amigo, e esta pressão emocional pode enviesar a avaliação da hipótese. O mesmo acontece quando nos identificamos com um grupo e queremos partilhar as suas crenças ou quando o problema é complexo mas queremos formar uma opinião sem perder tempo com os detalhes. O cepticismo consciente é o que nos safa nestas alturas, quando factores irrelevantes para apurar a verdade ameaçam condicionar a nossa avaliação das hipóteses.

Especialmente quando invocam uma anormalidade para nos empurrar para a crendice. Os astrólogos dizem que a sua arte é intuitiva e que não se pode testar de acordo com os padrões normais da ciência. É uma excepção. Os homeopatas dizem que a filosofia holística da sua medicina não pode ser avaliada por uma abordagem céptica. Excepção também. Os teólogos dizem que é preciso crer para poder compreender. Ao contrário de tudo o resto, em que se averigua a verdade com base nas evidências, na teologia tem de se ter fé. É comum as tretologias alegarem que a forma normal de apurar a verdade é só para as hipóteses dos outros, enquanto que as de cada tretologia exigem uma abordagem própria, excepcional e anormal.

O que torna o céptico menos normal do que a senhora julga não é o cepticismo. Como a senhora reconheceu, o cepticismo em si é perfeitamente normal. Todos somos cépticos em muitas ocasiões. O que é menos vulgar é tentar ser céptico em todas as ocasiões, não admitir estas alegadas excepções e avaliar todas as hipóteses da forma normal. Da forma que funciona. Se tivesse calhado discutirmos alguma hipótese que esta senhora defenda de forma anormal – acerca de um deus, por exemplo – provavelmente já estranharia a atitude do céptico.

1- Podem ver aqui, no site da SIC. Obrigado ao Barba Rija pelo link.
2- blogjosemartins.blogspot.com
3- Um dos autores do Esquerda Republicana.

segunda-feira, agosto 08, 2011

Fim do mundo.

Amanhã vou estar no programa “Querida Júlia”, na SIC, para manifestar o meu cepticismo acerca das previsões de que o mundo vai acabar em 2012. Disseram-me que será aproximadamente entre as 12:00 e as 13:00, em directo, mas não sei quanto tempo de antena terei, nem o formato do debate, nem se vou ficar lá à frente ou na plateia. Mas, se der, tenciono focar que o mais importante é avaliar as alegações pelo mérito das evidências e, como estas previsões se baseiam nas alegadas mensagens de extraterrestres ou na suposta sabedoria dos Maias e Sumérios acerca do fim do mundo, o mais sensato é nem gastar dinheiro com a enxurrada de livros que se tem escrito sobre isto.

domingo, agosto 07, 2011

Treta da semana: karma bom e barato.

A Alexandra Solnado tem um novo curso. E, desta vez, online.



Por apenas 65€ temos acesso a 12 vídeos – no YouTube, presumo – «que vão ajudar a trazer para a sua vida actual a energia com que nas vidas passadas resolveu os problemas.» O conceito é interessante, mas deixa-me algo preocupado pela possibilidade de criar paradoxos temporais. O que acontece se, numa vida passada, eu usei essa energia para resolver um problema que permitiu aos meus avós, desta vida presente, se conhecerem? Se eu retirar essa energia não arrisco a que os meus avós nunca se encontrem e eu desapareça da fotografia do Marty McFly? Eu compreendo que a Alexandra queira partilhar esta maravilha com todas as pessoas dispostas a dar-lhe 65€ por vídeos no YouTube, mas com paradoxos temporais não se brinca.

Seja como for, parece que eu não preciso do curso. Diz a Alexandra que pode ensinar-me a trazer a energia resolvida do personagem que eu fui numa vida anterior, para a implementar na minha vida actual, e que isso é bom porque «houve um tempo em que você soube escolher. Houve um tempo em que as suas escolhas conferiam com a sua energia e você, e a sua alma, andavam juntos. Eram um só.» Ora, estive aqui a fazer umas contas e, sendo eu um e a minha alma zero, juntos somos um só, pelo que as minhas escolhas certamente conferem com a minha energia. O que calha bem, porque assim uso poupo 65€ que me ajudam a resolver alguns problemas. Afinal, isto do espiritual funciona mesmo.

No entanto, suspeito que a Alexandra vá enfrentar algum cepticismo. Ela diz que «Este curso foi todo ditado por Jesus, de ponta a ponta», mas, como toda a gente sabe, não é Jesus quem fala com a Alexandra Solnado acerca do karma e de vidas passadas. É o Espírito Santo que fala com o Joseph Ratzinger acerca de doutrinas de fé e da vida de Maria, como aliás é fácil de demonstrar pois trata-se de um Mistério.

Obrigado pelo email com o link para este vídeo. A página do curso está aqui, e para quem estiver numa de auto-flagelação mental, há mais sobe isto no canal Sapo Zen.

1- Loja da Alexandra Solnado, Cesto de compras

Subsídios, parte 2.

No outro post sobre isto escrevi que preferia eliminar uma data de subsídios em troca de um ordenado de cidadão mas que, não estando acessível essa opção, não vale a pena considerá-la para substituir os subsídios aos transportes. Foi asneira, porque dei a entender que sou contra todos os subsídios, como o João Vasco apontou (1), e que rejeitava a proposta da Priscila apenas por não poder redistribuir esse dinheiro directamente às pessoas, «um princípio perigoso, porque um dos maiores entraves à adopção de uma redistribuição via transferências é a actual proliferação de prebendas estatais» (2). Na verdade, sou apenas contra alguns subsídios, não acho que as prebendas estatais sejam todas más e discordo da Priscila por uma razão mais fundamental.

Sou contra subsidiar uma actividade que não interessa só para dar dinheiro a quem se dedica a ela. Um exemplo extremo disto é o subsídio de desemprego. É um disparate pagar um prémio por estar desempregado e depois retirá-lo quando a pessoa se emprega. Também será asneira subsidiar a produção ineficiente de algo por cá só para que o possam vender ao mesmo preço que o equivalente espanhol. Sou a favor do Estado apoiar financeiramente as pessoas, e garantir que ninguém passe fome ou durma ao relento só porque o negócio não correu bem. Mas a forma mais inteligente de fazer isto, nestes casos, é dar o dinheiro às pessoas – um ordenado de cidadão ou um escalão negativo no IRS – sem exigir que, em troca, percam tempo a fazer coisas que não interessam a ninguém.

Mas sou a favor de subsidiar bens e serviços que queremos fornecidos em termos que o mercado não pode providenciar. Por exemplo escolas, hospitais, polícia, tribunais e assim por diante. O que pode incluir os transportes. Se queremos transportes acessíveis mesmo a quem tem pouco dinheiro, não podemos contar com o sector privado. E esta é a decisão fundamental.

A Priscila esclareceu que «A economia não diz nada acerca de valores morais nem acerca dos fins que devemos procurar», mas «clarifica aquilo que podemos fazer para atingir os objectivos que almejamos. Neste caso, permite mostrar que o subsídio não aumenta a produtividade - e que portanto, não torna o bolo maior -, e que também não é um instrumento eficaz para redistribuir esse mesmo bolo.» Concordo. A melhor forma de redistribuir dinheiro é cobrando a quem tem mais para dar a quem tem menos. E, no sector privado, os recursos são aplicados de forma mais eficiente para trazer dividendos aos investidores. Não disputo essas premissas. Mas aponto que se pode dizer o mesmo da justiça, da educação e das forças armadas. Em todos estes casos é verdade que esse dinheiro seria redistribuído com mais eficiência se o dessem às pessoas e que os recursos investidos nessas actividades trariam mais dividendos se fossem geridos pelo sector privado. No entanto, isto seria perder de vista que, nestes casos, o mais importante não é nem a distribuição do dinheiro em si nem a rentabilidade económica do investimento mas sim a garantia de que todos terão acesso a certos bens, serviços e direitos.

Daqui a vinte ou trinta anos, quando quase toda a gente trabalhar a partir de casa e a banda larga for um serviço público universal e gratuito, talvez eu mude para o lado da Priscila e concorde com a privatização completa dos transportes. Mas, por enquanto, parece-me que os transportes são um serviço suficientemente importante para justificar um investimento público, mesmo com os custos acrescidos pela ineficiência. A Priscila tem razão em criticar os «custos com pessoal escandalosos, greves intermináveis e uma dívida enorme que cresceu de forma explosiva nos últimos anos». Mas não é claro que o que se deva fazer é simplesmente privatizar tudo e o pessoal que se amanhe, até porque me parece que o problema não é a intervenção do Estado em si mas a relação promiscua entre público e privado. As coisas funcionam mais ou menos quando trabalham para o Estado com rendimentos tabelados ou quando, podendo decidir os seus próprios ordenados, os pagam do seu negócio. Quando lhes dão a escolher quanto ganham e é o Estado que paga é que a coisa dá asneira.

1- Nos comentários ao post, Subsídios
2- Priscila Rego, Tapar o buraco.

sexta-feira, agosto 05, 2011

O suporte.

Soube pela Paula Simões que a Bertrand editou obras no domínio público, em formato electrónico, com DRM. Como a Paula apontou, a lei só permite a imposição de restrições digitais com a autorização expressa do autor, difícil de obter no caso de Camões, Almeida Garrett ou Fernando Pessoa (1). O Paulo Gonçalves, representando a Bertrand, tentou justificar a legalidade desta medida invocando que «não podemos confundir o direito do autor da obra (conteúdo) e o direito do autor da fixação da obra», entre outras coisas, mas sem explicar como é que a Bertrand cumpriu o disposto no número 4 do Artº 217 do CDADC: «A aplicação de medidas tecnológicas de controlo de acesso é definida de forma voluntária e opcional pelo detentor dos direitos de reprodução da obra, enquanto tal for expressamente autorizado pelo seu criador intelectual». A justificação legal do Paulo Gonçalves já foi dissecada nos comentários ao post da Paula. Aqui, vou focar mais o fundamento que o Paulo Gonçalves invoca para os direitos que a Bertrand alega ter, e que consequências isso deveria ter para a lei.

Uma alegação do Paulo Gonçalves que, infelizmente, ninguém opôs, foi que o trabalho de edição, «como qualquer trabalho digno e sério, deve e tem de ser recompensado». Isto é falso. Há só uma coisa que determina o dever de recompensar alguém pelo seu trabalho: um acordo prévio prometendo essa recompensa. Se,eu limpar as escadas dos prédios todos da minha rua por iniciativa própria ninguém incorre no dever de me pagar. Esse dever só surge se me contratarem para prestar tal serviço, devendo, nesse caso, compensar o meu trabalho de acordo com o que me tenham prometido. Concordo que a sociedade invista nos autores e os incentive, mas apenas porque – e na medida em que – isso beneficia toda a sociedade. É errado pensar que esta legislação cumpre o dever moral de recompensar um trabalho que ninguém encomendou e que ninguém se comprometeu a recompensar.

Quanto às restrições impostas, o Paulo Gonçalves explica que «estes DRM não visam a proteção da Obra enquanto tal, mas sim o seu acesso ao suporte e ao meio digital em que esta é veiculada» e pergunta «Se a Paula Simões for a uma livraria e encontrar uma edição de “Os Maias” que lhe agrada [...] compra-a ou reclama que, sendo a obra de domínio público, tem direito a levá-la debaixo do braço a preço zero?» No caso do livro tem razão. Enquanto a Paula não pagar, o papel, a cola e a tinta são da Bertrand, e a Bertrand tem o direito de fazer o que quiser com esse livro. Por isso, a Paula não pode simplesmente levar o livro nem ditar à Bertrand o que fazer com esse suporte material da obra. Mas quando se aplica o mesmo princípio ao livro digital, o resultado é o oposto.

O “livro” no formato electrónico é apenas um conjunto abstracto de valores numéricos. Para que possa ser lido tem de estar representado num suporte material, como o computador da Paula. Mas este nunca foi da Bertrand. Os campos magnéticos no disco, as cargas eléctricas na memória RAM, o CPU e o monitor, tudo isto é da Paula, e o “livro” electrónico não é mais do que uma combinação de bits no computador da Paula. Pela mesma razão que a Paula não pode levar o livro que é da Bertrand sem pagar primeiro por esse suporte, a Bertrand também só teria legitimidade de impor restrições ao uso do computador da Paula se lhe comprasse o computador primeiro. Caso contrário, ambos estão a violar os direitos de propriedade do outro.

Se bem que, à partida, a Bertrand tenha o direito de codificar os livros, nos seus computadores, com o formato e as restrições que entender, é legítimo regular as relações comerciais de forma a que se respeite as expectativas dos intervenientes. Eu tenho o direito de guardar areia em pacotes de farinha mas não de vender areia em pacotes de farinha. Isso seria burlar o comprador. O DRM é semelhante a isto, porque quem compra algo conta terminar a sua relação com o vendedor no acto do pagamento, mas o DRM obriga a um contrato perpétuo em que o comprador tem de obter autorizações para usufruir daquilo que comprou e estar para sempre limitado pelas restrições que o vendedor decidir impor. É como comprar um pacote de farinha e só depois descobrir que tem areia.

Mas o que é mais ilegítimo no DRM é que a lei proíba a remoção dessas restrições digitais. Isso é uma violação dos direitos de propriedade do comprador porque, uma vez tendo essa sequência de bytes representada no seu PC, devia ser-lhe permitido alterar os valores como quisesse. Se eu não gostar do prefácio do livro que comprei posso cortá-lo à tesoura. É o meu livro. Que não o possa fazer no meu PC é inaceitável. E este problema não se restringe ao DRM nem ao domínio público. Abrange toda a aplicação destas leis ao conteúdo digital.

Nos formatos analógicos, a legislação regulava a venda e cópia do suporte material mas não da informação em si. No conteúdo digital passa-se o contrário. Quando se descarrega um ficheiro não se copia o suporte. Quando se converte a música do CD para mp3 nem sequer a codificação é a mesma. E a lei proíbe a partilha de ficheiros o a remoção do DRM não está a regular a cópia do suporte material da obra mas a censurar a informação e a impedir que os proprietários do computador, telemóvel ou leitor digital gozem dos seus direitos de propriedade. Esta violação dos direitos de propriedade sobre o suporte é que é análoga à Paula roubar o livro da livraria.

1- Paula Simões, Bertrand/Porto Editora ataca Domínio Público

quarta-feira, agosto 03, 2011

Evolução: a origem das espécies.

A teoria da evolução explica a origem das espécies mas, segundo os criacionistas, nunca se observou a origem de uma espécie, o que invalida a teoria (1). Tal como os biólogos antes de Darwin, os criacionistas julgam que Deus criou cada espécie de acordo com um “tipo” ideal, uma forma platónica que a define. Salgueiro, mosca, macaco, etc. Mas o registo fóssil, evidências moleculares e espécies modernas (2) mostram que esta partição de populações em espécies é mais problemática do que seria se cada uma tivesse sido criada de acordo com o seu “tipo”.

Os conceitos de espécie mais usados hoje são o tradicional, que agrupa populações em espécies com base nas suas características persistentes, e o conceito biológico de espécie, segundo o qual duas populações pertencem a espécies diferentes se não houver cruzamentos férteis entre si (3). Ambos têm problemas. O conceito biológico de espécie só se aplica a organismos com reprodução sexuada e não é consensual se o que separa as espécies é apenas a ausência de cruzamentos (uma definição demasiado permissiva) ou se a impossibilidade de haver cruzamentos férteis (difícil de testar e pouco útil, em rigor*). E a classificação por diferenças morfológicas ou genéticas exige uma decisão subjectiva acerca de quantas diferenças é preciso para separar duas espécies. Porque há muita evidência de ascendentes comuns a todas as espécies (4) e porque, em última análise, “espécie” é apenas um conceito conveniente para organizar os nomes, não interessa muito aos biólogos investir tempo e dinheiro só para provar que uma espécie pode evoluir de outra.

O que interessa são os mecanismos de especiação. Se populações podem divergir enquanto partilham o mesmo habitat, se a deriva genética é mais importante do que a selecção natural, se é o contrário ou se depende das circunstâncias e assim por diante. Por exemplo, nos anos 80, criaram moscas do vinagre durante umas dezenas de gerações, seleccionando populações diferentes em habitats diferentes (5). No final da experiência, estas populações praticamente não se cruzavam porque procriavam apenas dentro dos seus habitats preferidos. Isto pode-se considerar especiação, pelo isolamento genético, ou não, se usarmos outros critérios, mas o que importou foi mostrar que a selecção para habitats diferentes criou barreiras ao cruzamento entre as populações. Não valia a pena continuar a experiência mais uma carrada de anos só para determinar o momento, arbitrário e discutível, em que “surgia” uma espécie nova. Noutro exemplo, de uma população de bactérias com cerca de 1,5 micrómetros, e sob pressão de protozoários predadores, surgiu um tipo diferente de bactéria com quase vinte vezes o comprimento do original (6). Mais uma vez, o ponto importante não é se uma bactéria vinte vezes maior constitui uma espécie diferente, uma classificação sem qualquer relevância para a bactéria. O que importou foi mostrar esta resposta evolutiva sob pressão dos predadores, para os quais uma célula pequena é um petisco mas uma célula grande é intragável.

De qualquer forma, exemplos de especiação são abundantes na natureza. Uma espécie nova pode surgir abruptamente por duplicação de cromossomas, como acontece frequentemente nas plantas. A domesticação também deu origem a espécies novas. O milho, Zea mays, é considerado uma espécie diferente das outras do seu género, a partir das quais foi criado artificialmente por selecção e hibridação (7). E a especiação até se pode dar simplesmente pela extinção de populações intermédias. Sem as restantes raças de cão, o São Bernardo e o Chihuahua provavelmente seriam classificadas como espécies diferentes porque, a bem do Chihuahua, não haveria cruzamentos entre estas populações.

Infelizmente, nada disto adianta para responder aos criacionistas. Estão ainda agarrados à ideia de uma criação segundo “tipos” fixos mas, como não existe tal coisa, não conseguem sequer dar uma definição consistente de “tipo”. As moscas são insectos da ordem Diptera, que tem cento e vinte mil espécies conhecidas, 225 milhões de anos e uma gama de tamanhos que vai de pouco mais de um milímetro até seis centímetros de comprimento. Proporcionalmente, é a diferença entre um humano e uma baleia azul. Para os criacionistas, isto é um “tipo”. Moscas dão moscas, dizem repetidamente. Em contraste, a família Hominidae, com 15 milhões de anos de idade, cinco espécies e uma gama de tamanhos que vai do chimpanzé ao gorila, contém pelo menos dois “tipos” criacionistas: o humano e o resto. Não se percebe que critérios objectivos podem justificar esta classificação.

Como a noção de “tipo” é ainda mais vaga e arbitrária do que a de espécie, e como a evolução é um processo gradual, nunca se poderá convencer um criacionista de que a evolução num dado instante alterou o “tipo”. Mas isto é irrelevante. A explicação evolutiva para a origem das espécies, tal como a explicação médica para a calvície, não visa identificar o momento exacto, ao cabelo, em que o homem ficou careca ou a espécie surgiu. Isso é uma classificação arbitrária. O que importa é explicar os mecanismos que governam estes processos. A teoria da evolução dá-nos essa possibilidade, gerando modelos testáveis, especificando onde e como os podemos aplicar e como podemos usá-los para prever o que observamos. O criacionismo equivale a dizer apenas que carecas só dão carecas, graças a Deus.

* Por exemplo, é consensual que cavalos e burros são espécies separadas mas, por vezes, acontece as mulas serem férteis.

1- Isto vem a propósito da pergunta do Nuno Dias (como responder a esta objecção dos criacionistas), deste post do Mats, que o Nuno Dias me indicou, e no seguimento desta discussão no blog do troll.
2- Como espécies em anel, por exemplo: Ring species.
3- Mais detalhes, e exemplos de especiação, no Talk Origins: Observed Instances of Speciation e Some More Observed Instances of Speciation.
4- Mais sobre isto, e outros exemplos, na Wikipedia: Speciation.
5- Rice, Horstet, Laboratory experiments on speciation: What have we learned in forty years?. Evolution 47 (6): 1637–53
6- Shikano et al., Changes of traits in a bacterial population associated with protozoal predation. Microb. Ecol. 1990, 20:75-84.
7- Wikipedia, Zea (genus)