Direitos e injustiças.
Há dias defendi ser injusto boicotar o jornal Sol só pelos disparates do José António Saraiva, e que isso demonstrava uma má compreensão da liberdade de expressão (1). Contra-argumentando, o Rui Passos Rocha escreveu que não era assim porque quem decidir boicotar o jornal está apenas a exercer um direito seu (2). O problema do contra-argumento é assumir que uma coisa exclui as outras.
Se decidissem boicotar o jornal Sol por um dos seguranças ter uma verruga no nariz, eu diria que estavam no seu direito. Afinal, cada um é livre de comprar o jornal que quiser pelas razões que quiser. Mas também diria ser injusto boicotar um jornal por causa da verruga. Os nossos direitos não se limitam àquilo que é moralmente louvável ou justo. Incluem qualquer acto que seja mais imoral proibir do que permitir, pelo que é perfeitamente possível (e até comum) que o exercício de um direito resulte numa injustiça. Mentir, desligar o telefone na cara de alguém ou gritar com os filhos, por exemplo. Assim, a tese de que o boicote «é um reflexo de liberdade»(2) é irrelevante para determinar que o boicote é justo ou que quem o propõe percebe o que é a liberdade de expressão. No entanto, a objecção do Rui faz-me concluir que devia ter explicado melhor a minha posição e, como isto me interessa, aqui vai.
Punir alguém pelas suas opiniões é injusto. Não sei se é preciso justificar isto mas, em traços largos, é injusto porque o direito que a pessoa tem às suas opiniões é muito mais fundamental e importante do que um eventual direito de alterar as opiniões dos outros. Por isso, temos de restringir a forma como alteramos essas opiniões. Pelo diálogo, sátira ou persuasão racional, mas não pela força, ameaças ou coerção. Punir alguém por expressar as suas opiniões também é injusto, em parte porque o direito de opinião não deve ter de ser comprado pelo silêncio e, em parte, porque essa atitude punitiva acaba por nos prejudicar a todos, dada a importância da livre expressão de ideias numa sociedade funcional e saudável. Sendo o boicote uma acção punitiva com o intuito – mesmo que sem o efeito – de coagir o jornal a deixar de publicar aquelas opiniões, é uma acção injusta mesmo que tenham o direito de a cometer. Além disso, é também injusta pelos efeitos colaterais que teria – se fosse minimamente eficaz – em pessoas que nada têm que ver com o assunto.
Quanto à liberdade de expressão, é verdade que não obriga ninguém a dar atenção ao que não lhe interessa. É, por isso, legítimo e justo que não leiam o que o José António Saraiva escreve ou nem sequer comprem o jornal Sol se acharem que é perda de tempo. Mas o boicote só faz sentido para aqueles que se interessam pelo jornal, que compram o jornal, e que comprariam o jornal se não fosse quererem coagir os editores a não publicar os disparates do José. E isso, apesar de ser um direito no sentido de que mais vale deixar fazer do que impedir, é uma ameaça ao outro direito. Só podemos ter todos liberdade de expressão se, em paralelo, assumirmos também o dever da tolerância. O dever de não erguer o punho só porque dizem algo de que discordamos, de não choramingar que nos ofendem e de não retaliar só por alguém defender uma opinião que nos incomoda. Se descurarmos esse dever perdemos a liberdade de expressão porque, para qualquer coisa que qualquer um diga, é inevitável haver outro a quem isso incomoda. Se desatamos todos a retaliar, boicotar e coagir só para impedir que nos exponham a opiniões contrárias às nossas, vamos acabar por perder não só a liberdade de expressão mas, eventualmente, tudo o resto também, por nos tornarmos incapazes de resolver divergências.
Mesmo reconhecendo que quem quer boicotar o que quer que seja tem todo o direito de o fazer, eu proponho uma alternativa mais adequada para lidar com os disparates dos outros. Algo que podemos todos fazer, à vontade, sem pôr em risco a liberdade de ninguém. Dizer o que pensamos. Se mil pessoas não comprarem o jornal Sol em protesto contra o José António Saraiva e as suas opiniões, causam um prejuízo mínimo ao jornal, quase nenhum ao José e nenhum às suas opiniões. Se, em vez disso, escreverem o que pensam dessas opiniões, podem até dar mais lucro ao jornal mas dirigem o ataque ao que importa: a ideia imbecil de que duas pessoas do mesmo sexo não se podem casar para não nos baralhar o “marido” e “mulher”.
1- Dois argumentos novos.
2- Rui Passos Rocha, Gays, parvoíce e liberdade