domingo, maio 31, 2009

Indecisão 2009: primeira eliminatória.

Um problema fundamental, e transversal a todos os partidos, é distinguir o que é da legítima competência do governo e o que é do foro pessoal, que deve ficar fora da política. Por isso o meu primeiro teste teste foi sobre estas seis perguntas:

Pergunta BE CDS CDU MEP MMS MPT PCTP PH PNR PPM PS PSD
Devia exigir-se que os imigrantes de fora da Europa aceitem a nossa cultura e valores-22-11----2--12
A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma coisa boa2-22-21--2-2-21-2
Os princípios e valores religiosos deviam ser mais respeitados pela política-22-22---2----11
A descriminalização do uso pessoal de drogas leves é bem-vinda2-222-2-2---2---2
A eutanásia devia ser legalizada2-20-21-2---2-10
Na luta contra o terrorismo deviam ser aceites restrições às liberdades civis-21-2-11------1-1


A primeira parece ambígua mas julgo que nenhum partido isente os emigrantes de respeitar as nossas leis, ou princípios fundamentais como a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por isso interpreto-a como referindo aqueles valores culturais que, entre nós, são típicos mas opcionais. Como estes saem do âmbito do estado, suspeito de qualquer partido que não discorde fortemente desta opção. Mais ainda no que toca ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não é legítimo que a lei discrimine homens e mulheres só pelo seu sexo, e ainda menos que o faça para, alegadamente, manipular a reprodução. Com estas duas o PSD e o CDS ficam muito mal colocados, com o MEP, o PNR e o PPM por perto.


O respeito pelos “valores religiosos” é outra questão importante. O estado deve ser cego aos tais “valores religiosos”, não só porque cada religião tem os seus e o estado não tem nenhuma, mas também porque esses valores são estritamente do âmbito pessoal e é um dever do estado laico mantê-los assim. Estas três bastaram para eliminar o CDS e o PSD. Não quero políticos a meter o nariz no que não lhes diz respeito. As três perguntas seguintes confirmaram esta decisão.


Em parte por estas razões mas, principalmente, porque os acho um disparate pegado, excluí também o PNR e o PPM. Nem o racismo fascista nem o feudalismo saudosista me parecem opções viáveis. Finalmente, o MEP tem posições contrárias às minhas em quatro destas seis questões mas só o rejeitei depois de uma olhada no seu programa eleitoral. Principalmente pela sua ênfase na família que, à partida, não é onde quero políticos. E, no caso do MEP, a preocupação é reforçada pela sua oposição ao casamento homossexual e por afirmações como «reforço na autodeterminação da educação dos filhos»(1). Que os pais possam autodeterminar a educação dos filhos é uma contradição de termos.


Elimino assim cinco partidos dos quais discordo fortemente no ponto mais fundamental: o domínio sobre o qual é legítimo exercerem os poderes que lhes delegamos.



1- MEP, Família e Solidariedade Social.

sábado, maio 30, 2009

Treta da semana: Sem gráfico no suporte.

Numa pesquisa sobre os downloads e a IGAC fui parar ao site da MUNDOKARAOKE®. Os CD de karaoke incluem imagens de baixa resolução onde se pode ler a letra da canção sincronizada com a melodia. Um dos formatos mais comuns, o CD+R, usa seis sub-canais de dados para codificar imagens de 300x216 pixels e 16 cores, e é compatível com os leitores áudio porque estes canais geralmente são ignorados. O que só é útil para quem souber a letra de cor, porque ouvir um CD de karaoke, só para ouvir, tem pouco interesse. Ninguém canta e, geralmente, nem sequer tem a banda. Só um sintetizador. Como degustação musical equivale a abrir uma lata de sardinhas e comê-las no pão. Daí que me tenha surpreendido o preço de €22.49, cerca do dobro de um CD normal (1).

Talvez isto se explique pela lógica das licenças. Um CD normal é mais barato porque só pagamos a licença para o ouvir. Um CD de karaoke autoriza-nos a cantar também, pelo que se paga mais. Não sei. Nunca percebi isto de comprar e vender direitos. Seja como for, acho estranho e acho caro mas não me oponho. Se há quem compra, pois que vendam. Uma transacção voluntária entre adultos informados é legítima. Mas é aí que surge o problema.

No site há uma página sobre «Cópias ilegais»(2) onde o visitante é notificado que «a JGC, Lda, editora dos discos KANTATU e legítima proprietária dos direitos do produtor fonográfico, não hesitará em ver os seus direitos defendidos, levantando os respectivos processos de pedidos de indemnização contra quem for apanhado pelas autoridades na prática [de] contrafacção.» É também avisado de

«situações que não são permitidas, sem autorização expressa do editor, dos autores ou dos detentores dos direitos das obras:
- Fazer cópias de segurança ou de qualquer outro tipo dos CD's
- Copiar os conteúdos dos discos para um PC e usar este equipamento para o karaoke
- Utilizar o playback de um CD de Karaoke para gravar com a voz de um cantor [...]
- Utilizar cópias de segurança na sequência de um acidente com o disco original
- Fazer videos da actuação de um cantor com a base musical de um CD de Karaoke [...]»


A JGC Lda, como a própria admite, não tem direitos de autor sobre estes CD. Tem apenas os direitos de editor. Os direitos conexos que, segundo o Artigo 189º do Código do Direito de Autor, não abrangem o uso privado. É um bom exemplo da falta de escrúpulos desta indústria. Não satisfeitos com o poder legal que já têm querem ainda negar aos seus clientes os poucos direitos que a lei lhes reserva, querendo proibir que façam uma cópia dos seus CD ou filmem o filho a cantar karaoke na festa de aniversário. Infelizmente, ameaçar os clientes com leis inventadas parece não ser tão grave como partilhar ficheiros, e nem a IGAC nem a ASAE podem dispensar um dos agentes a investigar as fotocópias dos estudantes ou bolas de Berlim para dar uma olhada nisto.

Mas a razão principal para este post é mais caricata. Em Fevereiro de 2006 a JGC Lda enviou uma carta à IGAC a pedir que os CD+G não fossem considerados videogramas, dispensando assim o selo. O argumento foi que: «No caso do formato CD+G não existe a fixação de nenhum Videograma, nem de imagens, mas apenas áudio acompanhado de códigos binários que alguns aparelhos de leitura descodificam e transformam em gráficos que se projectam no écran [sic]. Os gráficos não existem fisicamante [sic] no suporte, mas são gerados pelos aparelhos de leitura.»(3)

Genial. A diferença entre um CD+G e um DVD é que o primeiro usa códigos binários e não tem os gráficos fisicamente no suporte. E a IGAC concordou. Espero que não seja o caso, mas a imagem que me veio à mente foi de um técnico na IGAC a olhar para o CD+G com uma lupa e constatar que, de facto, não estão lá os gráficos fisicamente no suporte. Pena é que não tenha examinado o DVD com o mesmo cuidado.

Não me ralo que o CD+G precise ou não precise de selo. Até sou a favor de poupar no papel. Mas esta distinção é ridícula.

1- MundoKaraoke.com, Kantatu pro
2- MundoKaraoke.com, Cópias Ilegais.
3- Ficheiro pdf da carta, e o contexto nesta página.

sexta-feira, maio 29, 2009

O dinheiro.

Antigamente trocava-se coisas. De preferência, práticas de carregar e de usar como moeda de troca. Moedas, por exemplo. Mas sempre coisas que valiam pelo que eram e pelo que cada um, subjectivamente, julgava valerem. Pedaços de ouro, conchas, sal, pedras preciosas, o que estivesse a jeito, fosse escasso e fácil de carregar.

O progresso trouxe duas mudanças importantes. A normalização dos valores relativos destes objectos de troca e o hábito de os deixar no cofre e carregar só a nota a dizer quão rico se é. Foi uma transformação completa. Se eu disser que um feijão vermelho vale cinco feijões brancos vão-me dizer que isso é subjectivo, ou simplesmente disparate. Mas ninguém questiona que aquele papel com um cinco e um zero valha dez dos outros que só têm um cinco. E ninguém espera que o banco lhe dê ouro em troca das notas. Estamos totalmente rendidos ao valor puramente convencional do dinheiro.

Esta transformação tornou o dinheiro muito diferente dos objectos que são propriedade. Para que algo seja meu basta que ninguém mo tire nem me impeça de fazer com isso o que quiser. E ninguém precisa comprometer-se a dar valor às minhas coisas. Se compro um relógio por 100€ nada me garante que o consiga vender pelo mesmo preço ou trocá-lo por uma consulta no dentista. Sou dono da coisa por um direito negativo – de não me privarem dela – e sem qualquer garantia do seu valor como moeda de troca.

Com a nota de 100€ é o contrário. Em rigor, enquanto objecto material a nota nem é minha. É do estado. E o que é “meu” é o compromisso de todos em assumir que aquela nota, que me foi atribuída, vale sempre 100€, ou duas de 50€, ou cinco de 20€ ou qualquer outra combinação em qualquer troca. A nota é apenas o marcador. O valor vem exclusivamente daquilo que todos concordaram atribuir-lhe.

Antes do próximo passo quero frisar bem esta diferença. Se ninguém der valor ao meu relógio, tanto me faz. Não preciso do aval nem da colaboração activa de ninguém para o ter, para ser minha posse e tirar proveito dele. Basta que me deixem em paz. Mas se ninguém der valor ao meu dinheiro fico falido. A minha conta bancária, e as notas e moedas que tenho no bolso, só valem pela promessa dos outros em dar-lhes valor. Sem este empenho público o dinheiro não servia de nada. Ao contrário dos objectos que são minha propriedade privada, o “meu” dinheiro apenas quantifica o compromisso dos outros em aceitar que eu tenho esse valor à minha disposição.

E agora o tal passo. Esta distinção implica que as contas bancárias, e o dinheiro que passamos uns aos outros, possam ser de conhecimento público. Não implica que tenham de ser mas, sendo o dinheiro um compromisso público por parte da sociedade, não se justifica haver um direito individual de esconder dos outros quanto desse valor os outros nos atribuem. E há muitas vantagens em assumir que o dinheiro é uma promessa pública em vez de propriedade privada.

Se tivermos uma base de dados pública com o registo do dinheiro atribuído a cada cidadão, e das transferências entre cidadãos, torna-se muito mais fácil prevenir certos crimes e cobrar impostos de forma justa e transparente. Os impostos podem ser cobrados simplesmente em proporção ao dinheiro que cada cidadão têm, como uma renda razoável pelo uso desse valor cuja estabilidade é garantida pelo estado. Seria também difícil desastres como o colapso do sistema de crédito, cuja falha ilustra bem a natureza pública e social do valor do dinheiro. Ao tomar como dinheiro as promessas dos indivíduos que se endividaram assentaram o seu valor numa fundação instável e pouco duradoura. Para o dinheiro funcionar tem de haver a colaboração e empenho de todos.

E não seria uma mudança tão radical como parece. Todas estas bases de dados já existem, de contas bancárias e transferências nos bancos, e de transacções comerciais no estado que, por lei, obriga a que tudo fique registado com recibos. Esta informação já não é privada. Simplesmente é acedida por empregados bancários e outros funcionários longe da nossa vista. Por isso também não se justifica o medo de caminhar para um cenário orwelliano só por permitir que o estado veja as nossas contas bancárias. Porque o pior é alguns poderem vê-las sem sabermos, e sem podermos ver as deles. O Nuvens de Fumo mencionou o exemplo de empresas que proíbem a divulgação dos bónus dados a cada funcionário. O objectivo destas não é defender a privacidade dos empregados mas sim dar mais poder aos gerentes que, desta forma, são os únicos a saber quanto cada um ganha.

É claro que a publicação de todos os detalhes financeiros é um sonho inatingível. Porque não interessa a quem tenha poder. Os banqueiros não querem que se saiba o que fazem com o dinheiro que lá pomos. Os políticos não querem transparência nas contas, como demonstraram eloquentemente há um mês. E os burocratas são alérgicos à eficiência. O Ministério das Finanças nunca aceitaria um sistema eficaz e simples de cobrar impostos que implicasse reduzir os seus quadros a uma fracção do actual exército de puxa-papéis. Quem tem poder é porque quer poder e, por isso, “levantar o sigilo bancário” quer dizer apenas eles verem as nossas contas. Não quer dizer que nós possamos ver as deles.

1- Comentário em Indecisão 2009, prólogo.

quinta-feira, maio 28, 2009

Indecisão 2009: a tabela.

Aqui está a compilação das posições de 12 dos 13 partidos, segundo o EU Profiler. Obrigado ao Mário Miguel, à Paula e ao Mind Booster Noori pelas dicas e links.

O código fonte, os dados e um executável para o Windows estão aqui. Falta o POUS, que não encontrei no EU Profiler, mas se acrescentarem o html à pasta Dados deve funcionar (se tiver o mesmo formato que as outras).

Os valores vão de -2 (“Discordo completamente”) a 2 (“Concordo completamente”). O zero é o neutro e o traço indica que não têm opinião expressa. A tabela está feiosa, mas é o que o tempo e o jeito permitem. Se alguém quiser alindá-la pode editar o ficheiro StyleHeader.css na pasta do programa e correr o programa para refazer a tabela, ou editar o html directamente. Se quiserem mexer no código, foi escrito e compilado com o Lazarus.

Editado às 11:32. Acrescentei o cabeçalho da tabela de 6 em 6 linhas e actualizei o arquivo com o programa.
E outra vez às 11:39 por causa do encoding do texto, e novamente às 11:55 porque o Blogger usa UTF8 mas assume que o texto na caixa de edição está em ANSI. E tirei o PP do CDS, que estava a destoar na tabela. As minhas desculpas a quem for só do PP.


Pergunta BE CDS CDU MEP MMS MPT PCTP PH PNR PPM PS PSD
Os programas sociais  deviam ser mantidos mesmo que isso implique o aumento dos impostos2-221-2222-1-11-2
Devia haver um esforço maior para privatizar os serviços de saúde em Portugal-22-200-1-2-20212
Os subsídios estatais para infantários e cuidados à infância deviam ser substancialmente aumentados222211-22-21
As políticas de imigração orientadas para trabalhadores qualificados deviam ser encorajadas como meio de promover o crescimento económico-21-2220---2-22
A imigração para Portugal devia tornar-se mais restritiva-22-2-210--22--11
Devia exigir-se que os imigrantes de fora da Europa aceitem a nossa cultura e valores -22-11----2--12
Pergunta BE CDS CDU MEP MMS MPT PCTP PH PNR PPM PS PSD
A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma coisa boa2-22-21--2-2-21-2
Os princípios e valores religiosos deviam ser mais respeitados pela política-22-22---2----11
A descriminalização do uso pessoal de drogas leves é bem-vinda2-222-2-2---2---2
A eutanásia devia ser legalizada2-20-21-2---2-10
A despesa pública devia ser reduzida para permitir a descida dos impostos-22-212-1-2-22-12
A UE devia passar a ter o poder de aumentar os impostos--2-2-11-1-2---2--
Pergunta BE CDS CDU MEP MMS MPT PCTP PH PNR PPM PS PSD
Os governos deviam ajudar os bancos em falência com dinheiros públicos-1-1-11----1--2-1
Os governos deviam reduzir os regulamentos de protecção dos trabalhadores para combater o desemprego-22-212--2-20212
A UE devia reduzir drasticamente os subsídios aos agricultores europeus-1-2-112-2--21-1-2
As fontes de energia renováveis (tais como a energia solar ou eólica) deviam ser apoiadas mesmo que isso implique maiores custos222222-11-22
A utilização de transportes públicos devia ser promovida através dos chamados impostos verdes (como, por exemplo, o imposto de circulação)  1111-112--22
As políticas de combate ao aquecimento global deviam ser encorajadas mesmo que isso tenha custos no crescimento económico ou no desemprego2111-1-2--11
Pergunta BE CDS CDU MEP MMS MPT PCTP PH PNR PPM PS PSD
Na luta contra o terrorismo deviam ser aceites restrições às liberdades civis-21-2-11------1-1
Os criminosos deviam ser punidos mais severamente-22002---22-0-1
Em assuntos de política externa, como por exemplo nas relações com a Rússia, a UE devia falar a uma só voz-2-22--1-2--2-222
A UE devia reforçar a sua política de segurança e defesa-22-222-1-21--222
A integração europeia é uma coisa boa02-12---22-2122
Portugal está muito melhor dentro da União Europeia do que fora dela02-122--22-2-22
Pergunta BE CDS CDU MEP MMS MPT PCTP PH PNR PPM PS PSD
A União Europeia devia ser alargada à Turquia0-1-1---1-2-111
Deviam ser dados mais poderes ao Parlamento Europeu1-1-22--1-2---22-1
Cada estado-membro da UE devia ter menos poder de veto--2-21---2---1--
Qualquer novo Tratado Europeu devia ser sujeito a aprovação através de referendo em Portugal2221-2222222
A regionalização devia ser implementada em Portugal212122-22--2-1
Nos próximos anos, o governo português devia investir em grandes infra-estruturas, como o TGV e o novo aeroporto de Lisboa1-12-1-102---12-2

quarta-feira, maio 27, 2009

Ilegais? Porquê? – (in)conclusão.

Recebi hoje nova resposta da IGAC, desta vez à minha pergunta de onde vinha a parte do «cuja cópia tenha sido adquirida licitamente» que me tinham indicado no primeiro email (1). Fiquei agradavelmente impressionado com a eficiência e a disponibilidade. Este último email citava os dois números relevantes do artigo 75º: o número 2, que estipula ser licita a cópia para uso privado; e o 4 que exige que, para tal, a cópia não deve «atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor». O problema, como me explicaram agora, é que não há nada na lei acerca do que é a exploração normal nem prejuízo injustificado. Em resultado, e cito, «o que seja atingir a exploração normal da obra, ou o prejuízo injustificado, enquanto conceitos indeterminados, cabe aos Tribunais determinarem».

Ou seja, fiquei na mesma. É lícito? Ilícito? O juiz logo decide...

A IGAC não tem culpa disto, que não são eles que fazem as leis. Mas isto é como o código da estrada dizer que não se pode andar depressa demais e deixar o tribunal decidir a que velocidade é isso. A não ser que seja incorrecta a interpretação que lhe estão a dar; a IGAC e, especialmente, os MAPiNET, ACAPOR, FEVIP e afins. Pode ser que a cláusula «não devem atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor» sirva simplesmente para distinguir o uso pessoal de usos com implicações económicas significativas, e não seja para o juiz decidir se a pessoa ia comprar o CD ou não, caso não o tivesse encontrado na net.

Esta redacção do artigo 75º surgiu na lei 50 de 2004. Segundo o site da Assembleia da República, o seu autor foi o Francisco Louçã (2). Não me parece que o Bloco de Esquerda queira tornar ilegais os downloads. Pelo contrário, esta lei foi a primeira a legitimar explicitamente a cópia privada*. Como as coisas têm corrido bem até agora, amanhã vou escrever ao Francisco Louçã a perguntar. Quem sabe ele não só me esclarece acerca disto como dá já um golpe forte na minha indecisão de voto.

Mas sempre posso concluir daqui qualquer coisa. Não se pode afirmar que o download para uso pessoal é lícito em Portugal mas, pelas palavras da própria IGAC, também é errado afirmar que é ilegal. Isso, caros mapinetas e companhia, nem vem na lei nem são vocês a decidir. É o juiz. A menos que aconteça como na Suécia e o juiz seja membro de associações de defesa do copyright e compincha da acusação... (3)

* Talvez venha daqui a insistência do Luís Canau, nos comentários aos posts anteriores, que o artigo 75º apenas cobria excertos e citações. Isso era verdade na legislação anterior, mas foi alterado em 2004.

1- Ver a história completa em Ilegais? Porquê?, O 75º e o 189º e Ilegais? Porquê? – actualização.
2- Assembleia da República, Projecto de Lei 414/IX
3- ZDNet, Pirate Bay judge is member of Copyright Association

terça-feira, maio 26, 2009

Indecisão 2009, prólogo.

No dia 7 vou cumprir o meu dever de eleitor. A escolha não é clara, mas não quero abster-me e dar o meu voto aos outros. Por muito pouca confiança que tenha na minha decisão, tenho menos ainda nos que decidam por mim. Portugal vai eleger 22 eurodeputados, de 13 listas de partidos e coligações políticas nacionais, mas os que lá estão agora pertencem apenas a três grupos parlamentares europeus: o PSE para o PS; o PPE para o PSD e CDS-PP; e a EUE para o BE e a CDU (2).

Este ano não vou usar a heurística cómoda de votar num dos dois grandes conforme o lado para onde acordei no dia das eleições. E vou evitar escolher por clube ou ideologia. Estas regras exigem pouco investimento mas, neste momento, justifica-se uma escolha mais cuidada.

Um grande problema é economia, mas não faço ideia como se resolve nem como avaliar a capacidade dos candidatos para o fazer. E não sei se encontro um partido economicamente alinhado comigo. Apesar das políticas mais capitalistas gerarem, em média, mais riqueza, quando há problemas é preciso ter apoio social. Isto inclina-me a votar à esquerda, à cautela. Mas, por outro lado, a esquerda confunde a redistribuição de riqueza, que é um bem necessário, com a repressão dos ricos por motivos ideológicos, um mal que dispenso. Além disso defendem que o dinheiro, que no fundo é apenas uma promessa, deve equivaler ao esforço físico que faz suar e ganhar calo. Isto parece-me um grande disparate.

Estou de acordo em cobrar em proporção ao esforço que isso impõe, mais aos ricos que aos pobres. Isso penso que é consensual. A minha reforma económica era depois dividir o bolo igualmente por todos. O que fazemos com escolas, polícia e hospitais, que servem ricos e pobres da mesma maneira, devíamos fazer com toda a riqueza que o estado distribui. Todos os subsídios, pensões e ajudas deviam ser um direito do cidadão em vez de uma esmola ao pobrezinho enquanto for pobrezinho. Acabava a maior parte da papelada e incentivos à miséria, e sabia-se exactamente quanto ia para quem. Infelizmente, não conheço partido algum que alinhe numa redução tão drástica da obesidade estatal ou que se interesse por tanta transparência se passar a governo.

Mas como não tenho muita confiança nas minhas ideias acerca da economia, prefiro avaliar os candidatos por questões que também considero importantes mas cuja resolução me parece mais clara, e da qual estou mais seguro. Uma é aproveitar a tecnologia da informação para melhorar o acesso à cultura, incentivar a inovação e defender a liberdade de expressão. Isto exige deixar a obsessão com a informação proprietária, que nem faz sentido, e passar a considerar acerca de quem é a informação em vez de a quem "pertence". Em vez de ter a IGAC a confiscar fotocópias e a ASAE a investigar a partilha de mp3 deviam preocupar-se com o cruzamento de dados pessoais por parte do estado, das bases de dados que as empresas criam acerca das nossas comunicações e hábitos de consumo, e o uso cada vez mais insidioso desta informação.

Outro ponto importante para mim, relacionado com o anterior, é separar o estado da vida pessoal. Isto afecta muita coisa, da educação religiosa ao casamento entre homossexuais e aos downloads. Eu quero o estado para resolver conflitos, gerir o bem comum e dar estabilidade e segurança. Não quero o estado para ensinar uma religião a uns e outra a outros, para me dizer o que deve ser uma família ou para meter o nariz na informação que troco com outras pessoas.

Neste momento, estes são os critérios que considero mais importantes para escolher os candidatos ao Parlamento Europeu. Mas só tenho uma ideia vaga de onde tenciono votar e não me quero precipitar antes de ver com mais atenção os programas dos partidos. O propósito deste post é estrear a tag política aqui no blog e convidar-vos a deixar sugestões, críticas, insultos, algo sobre a informação codificada nas gaivotas ou simplesmente lamentar que aqui só falo de religião. Os vossos comentários são o que mais me estimula a pensar, e escrever, o que escrevo aqui. E sem trocar impressões é difícil ter ideias claras.

1- Conselho Nacional de Eleições, Eleição Europeia
2- Wikipedia, Deputados de Portugal no Parlamento Europeu (2004-2009)

segunda-feira, maio 25, 2009

Ilegais? Porquê? – actualização.

Recebi hoje resposta da IGAC. Não foi um dos destinatários da minha mensagem inicial (1), mas presumo que alguém no Ministério da Cultura tenha reencaminhado a mensagem. Aproveito para agradecer publicamente a resposta. Infelizmente, não fiquei muito esclarecido.

A mensagem que recebi indicava que a Lei n.º 50/2004 teria alterado o nº 2 do artigo 75º do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), citando de seguida que «são lícitas, sem o consentimento do autor, a reprodução de obra, cuja cópia tenha sido adquirida licitamente, em qualquer meio, para uso exclusivamente privado e sem fins comerciais directos ou indirectos». Isto parecia arrumar o assunto porque restringia o direito de cópia apenas às cópias licitamente adquiridas, dando razão a alguns comentadores do post anterior. Noto, de passagem, que a mensagem não mencionou o artigo 189º, que exclui os direitos conexos do uso privado.

Mas quando fui ver a Lei n.º 50/2004, a redacção do nº 2 do artigo 75º não inclui a restrição que me citaram:

«2 — São lícitas, sem o consentimento do autor, as seguintes utilizações da obra:
a) A reprodução de obra, para fins exclusivamente privados, em papel ou suporte similar, realizada através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou processo com resultados semelhantes, com excepção das partituras, bem como a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos;»
(2)

Só no ponto 3, respeitante à distribuição e não à cópia privada, é que vem mencionada uma restrição às cópias (exemplares) obtidas licitamente:

«3 — É também lícita a distribuição dos exemplares licitamente reproduzidos, na medida justificada pelo objectivo do acto de reprodução.»

E enquanto o ponto 2 refere a «reprodução de obra», o ponto 3 refere a «distribuição dos exemplares licitamente reproduzidos». Isto é significativo porque a obra e as cópias materiais são coisas diferentes, como está patente nos artigos 1º e 10º do CDADC. A obra é a criação intelectual e os exemplares são a sua materialização em objectos físicos. A interpretação literal do ponto 2 do artigo 75º sugere claramente que é lícito reproduzir a obra para uso privado, independentemente de onde vem a cópia, visto esta nem ser mencionada neste ponto e ser algo diferente da obra em si. Um exemplo seria fotografar uma estátua para uso privado, que pela lei parece ser legítimo mesmo que o fotógrafo não tenha adquirido a estátua, mas diferente de distribuir réplicas da estátua sem que sejam exemplares licitamente reproduzidos para esse fim.

Apesar de apreciar a resposta relativamente rápida, fiquei desiludido e preocupado. Desiludido porque continuam a não me apontar a parte relevante da lei, dando-me em vez disso citações de fonte desconhecida. E preocupado que a IGAC me envie esta citação referindo explicitamente o número 2 do Artigo 75º da Lei n.º 50/2004 quando não é isso que lá está. Já pedi que me esclarecessem de onde vem o trecho adicional, «cuja cópia tenha sido adquirida licitamente», que me citaram mas que não se encontra na Lei. Tenho esperança que isto não tenha vindo do Tózé Brito e que a IGAC interprete a legislação pelo que lá está escrito e não pelo que o lobby da rodela de plástico queria que lá estivesse. Mas é uma esperança assolada pelas evidências.

Preocupa-me também o que isto sugere acerca da lei. Se fosse legislação para regular o comércio ou a actuação de empresas não me ralava que a lei fosse obscura e sujeita a interpretações. As empresas têm dinheiro para pagar a advogados que argumentem essas coisas em tribunal. Mas esta lei regula uma coisa que podemos fazer todos os dias. É como o limite de velocidade na autoestrada ou o direito de voto. É inadmissível que não se consiga saber, pela simples consulta da lei, que se comete um ilícito ao descarregar um mp3 e que só interpretações rebuscadas vindas sabe-se lá de onde digam que é mesmo assim.

1- Ilegais? Porquê? e O 75º e o 189º
2- Pdf disponível no site do DR, Lei 50/2004 de 24 de Agosto

domingo, maio 24, 2009

Mais sobre a cópia e a criação digital.

Desta vez o post é no De Rerum Natura, graças a um amável convite do Desidério. Vou tentar responder a comentários lá, durante os próximos dias, mas se quiserem comentar também aqui sempre os recebo por email.

Treta da semana: “Lixo mental”

A ironia é irresistível. No dia a seguir ao relatório sobre abusos a crianças por parte da Igreja Católica irlandesa, o João César das Neves defende, na sua forma rebuscada e parca de conteúdo, que a «descida ao abismo espiritual a que se assiste» se deve ao «Lixo mental».

«Filmes boçais, sites infames, programas idiotas, revistas escabrosas, videojogos obscenos, séries imbecis constituem a dieta intelectual dos cidadãos [...]. Na ficção como nas notícias, a violência extrema, pornografia descarada, egoísmo, gula, desonestidade são produtos comuns.»(1)

O lixo mental não é novo. Recordo-me da Crónica Feminina que a minha avó materna lia há 30 anos. Tinha umas listas semanais com os números da sorte para jogar na lotaria, que indicavam um número diferente para cada signo. Hoje lê a Caras ou coisas dessas, mas a diferença é pouca. O meu pai tem uns livros do final do século XIX, que eram do pai dele, com compilações do Fliegende Blätter, um semanário satírico alemão especializado em estereótipos sociais(2). Na altura talvez tivesse graça mas, hoje, aquele humor é fraquito*. Portugal teve dois reis que sabiam escrever. Um escreveu sobre caça e o outro sobre montar a cavalo. E se compararmos o que vemos na televisão com o que assistia o camponês medieval vemos que era bem pior no auge da "espiritualidade" católica do João César das Neves. A superstição, a ignorância, a injustiça, a misoginia, os autos de fé e execuções públicas superavam qualquer Big Brother em “lixo mental”.

A diferença não é haver mais lixo mental. Uma diferença é compreendermos que o lixo para uns pode não o ser para outros. O Kama Sutra tanto pode ser pornografia obscena como um livro sagrado. As revistas que a minha avó lê parecem-me perda de tempo e não vejo graça nas piadas que o meu avô adorava. Mas, ao contrário do camponês medieval e do João César das Neves, eu percebo que estas divergências são inconsequentes. Meros gostos subjectivos onde o bom e o mau se distinguem de forma arbitrária. Ao contrário de queimar pessoas na fogueira ou sancionar legalmente a blasfémia, que prejudica pessoas em vez de lesar apenas os preconceitos.

Esta compreensão inibe o que o João César das Neves chama de “espiritualidade”, porque revela que qualquer religião é tão arbitrária, e relativa à sua cultura, como qualquer outra. Ao contrário do que cada uma apregoa, a religião não é um bastião contra o relativismo moral. É um exemplo extremo de relativismo, derivando tudo daquilo que se lembram de inventar acerca dos deuses.

Mas a causa mais importante do “abismo espiritual” é o mesmo factor que permite ver este relativismo da religião. É a liberdade de expressão e de acesso à informação. É verdade que quando todos se podem exprimir e ter acesso ao que os outros dizem muita coisa vai parecer lixo. Mesmo que não haja consenso acerca do que é, ou não é, lixo. Mas, infelizmente, também é verdade que a religião sempre foi uma desculpa para injustiças e abusos. Tal como o lixo mental, o abuso de crianças em instituições religiosas não é recente. O que é recente é que agora falamos disso. E essa violência e pornografia afasta muito mais gente da "espiritualidade" que os filmes do Bruce Willis ou da Cicciolina.

* Mas é humor alemão; é preciso dar um desconto. Como dizem os ingleses, a german joke is no laughing matter.

1- João César das Neves, 21-5-09, Destak, Lixo mental. Via Espectadores
2- Podem descarregar os volumes mais antigos na Arthistoricum.net

sexta-feira, maio 22, 2009

O 75º e o 189º.

Ainda não recebi resposta “oficial” à minha pergunta acerca da alegada ilegalidade dos downloads, mas o Luís Canau deixou um comentário interessante acerca da «vertente estritamente legal da questão». Foi demasiado breve para justificar as afirmações, e não sei se o Luís é jurista, mas é interessante na forma de interpretar o que está escrito na lei. Escreveu o Luís que «O contexto do art. 75 é de "reprodução" de uma obra, de excertos para crítica, etc. [...] não confundir direitos de utilização por algo que se comprou com direitos de utilização por algo que se sacou ilicitamente, pois esses direitos são conferidos a quem compra, a quem recebe o artigo para efeitos de crítica, etc.»(1)

O Capítulo II do Título II do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC) intitula-se «Da utilização livre», não da utilização do artigo comprado ou recebido para efeitos de crítica (2). O Artigo 75º, o primeiro deste capítulo, estipula no ponto 2 que «São lícitas, sem o consentimento do autor, as seguintes utilizações da obra: a)[...] a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos;»

Este artigo refere o que é lícito fazer mesmo contra a vontade do autor, e não apenas depois da compra. Os outros pontos do artigo reforçam esta ideia. O ponto 1 declara lícita a reprodução que faça parte dos processos de transmissão. Se eu envio um email nem que me pinte de azul posso proibir a Netcabo de criar cópias nos seus servidores, cópias de segurança, caches e assim por diante. No entanto, não cedo quaisquer direitos de autor à Netcabo. As restantes alíneas do ponto 2 autorizam a reprodução resumida de alocuções públicas pelos meios de comunicação social para efeitos de notícia, o arquivamento por parte de bibliotecas públicas e instituições de investigação para fins académicos e assim por diante, nada disto carecendo da concessão de direitos por parte do autor.

É verdade, como menciona o Luís, que estas utilizações «não devem atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor.» Mas para nos negar os direitos da utilização livre é preciso demonstrar este prejuízo injustificado. Isto não é o caso quando se grava para o computador uma música da rádio ou de um teledisco. Se não há problema em “sacar ilicitamente” coisas da rádio e da televisão, não há razão para tratar de forma diferente o que se copia da Internet.

O Artigo 189, referindo-se ao Título que codifica os direitos conexos, estipula que «1–A protecção concedida neste título não abrange: a) O uso privado». Neste não há mesmo margem para interpretação. E isto é importante na música porque, neste caso, os direitos de autor são apenas os direitos do compositor. Todos os direitos associados à gravação do disco e à sua exploração são direitos conexos. Que não abrangem o uso privado.

Estes artigos circunscrevem a lei ao monopólio comercial e afastam as editoras da nossa vida pessoal. Esta longa tradição legal foi respeitada até recentemente, pois nunca se processou o cidadão privado por copiar desenhos à mão, cassetes dos amigos ou programas de televisão. Mas a Internet trouxe o poder de partilhar informação sem cobrar dinheiro. O acto pessoal de partilhar substituiu, e tornou obsoleta, a actividade comercial dos distribuidores. A lei ainda não se adaptou a isto, e estes artigos não permitem o envio de conteúdos digitais mesmo a título pessoal. O upload ainda é provavelmente ilegal, e vai ser preciso algum esforço até que se corrija a lei actualizando a distinção entre o comércio e a vida de cada um. Mas o download, tal como copiar uma cassete ou gravar um programa de rádio, é apenas criar uma cópia para uso pessoal.

Já agora, queria apontar outra incorrecção no comentário do Luís, que penso merece menção por ser generalizada. O Luís disse ser importante «não confundir direitos de utilização por algo que se comprou com direitos de utilização por algo que se sacou ilicitamente». Muita gente tem a ideia que por comprar um CD adquire direitos. A lei é clara a este respeito:

«Artigo 10.º
(suportes da obra)
1 – O direito de autor sobre a obra como coisa incorpórea é independente do direito de propriedade sobre as coisas materiais que sirvam de suporte à sua fixação ou comunicação.
2 – O fabricante e o adquirente dos suportes materiais referidos no número anterior não gozam de quaisquer poderes compreendidos no direito de autor.»


Comprar o CD dá apenas o direito de propriedade sobre a rodela de plástico. À luz da lei, temos tanto direito de copiar o nosso CD como temos o direito de copiar o CD que o vizinho nos emprestou, porque comprar o CD não dá quaisquer direitos sobre a obra nele registada. Em ambos os casos, o que nos vale são os artigos 75º e 189º. São esses que dizem que podemos copiar, comprado ou emprestado. Isto também é importante para compreender a diferença entre os downloads legais e ilegais. É nula.

2- Comentário em Ilegais? Porquê?
1- Disponível na SPA, em formato .doc.

quinta-feira, maio 21, 2009

O argumento/desculpa.

O Marcos Sabino critica assim o meu cepticismo acerca dos milagres relatados na bíblia: «O professor Ludwig parece usar o argumento/desculpa de que “é impossível estas coisas acontecerem, portanto, eu não acredito”»(1). Claro. Se considero algo impossível é óbvio que não o aceito facilmente. Admito que me posso enganar. Pode acontecer rejeitar algo como impossível e afinal ser mesmo verdade. Mas, em geral, tenho mais probabilidade de acertar rejeitando o que me parece impossível do que fazendo o contrário.

Nisto penso que estamos de acordo. O Marcos também não vai acreditar se eu lhe disser que todos os dias como as minhas orelhas e elas crescem de novo em cinco minutos. Não porque conheça os meus hábitos alimentares ou tenha informação privilegiada acerca das minhas orelhas mas simplesmente porque isto parece impossível. E rejeitar o impossível é do mais elementar bom senso.

Mas o Marcos contrapõe que: «Todas as vezes que a Bíblia refere milagres não os atribui a causas naturais mas sim ao poder de Deus, que está acima das causas naturais (foi Ele que criou a natureza).» Admito que uma coisa pode ser impossível em certas circunstâncias e possível noutras. É-me impossível levantar uma tonelada só com a força dos braços mas posso fazê-lo com uma grua. Por isso não rejeito à partida que possa haver circunstâncias em que alguém pareça caminhar na água, ressuscite depois de clinicamente morto ou engravide ainda virgem.

Mas só se justifica aceitar o que é geralmente impossível se houver confirmação independente das circunstâncias que o tornam possível. Por isso o Marcos não se vai convencer se eu lhe disser que regenerar as orelhas é perfeitamente possível para mim porque nasci em Krypton. Nem ele tem evidências de eu ter nascido em Krypton nem de isso adiantar de alguma coisa à regeneração das orelhas. E até aqui ainda estamos de acordo. Seria insensato da parte dele aceitar uma alegação infundada como justificação para o impossível.

É quando chegamos ao deus dele que nos separamos. Até lá o Marcos usa o mesmo “argumento/desculpa” para distinguir o possível e o impossível. E ainda bem, porque a escolha é entre isso e paredes acolchoadas. Mas há um cantinho onde o Marcos, como muitos outros, despe a sensatez, descalça o bom senso e inventa seres do outro mundo para lhe confundirem o impossível com o possível. Aí já não vou, que só de assistir cá de fora já faz impressão que chegue.

1- Marcos Sabino, Resposta ao Ludwig – Por que não acredito no ateísmo

quarta-feira, maio 20, 2009

Ilegais? Porquê?

Na passada segunda feira enviei um email à ACAPOR, ao Ministério da Cultura e à SPA, a perguntar porque é que os downloads são ilegais. O Artigo 75º do Código do Direito de Autor estipula que é legítima «a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos», e o Artigo 189º que «A protecção concedida [no título referente aos direitos conexos] não abrange [o] uso privado». Por isso gostava que explicassem a interpretação em que se baseiam para afirmar que eu violo a lei se descarregar do YouTube um teledisco da Mariza ou sacar do Rapidshare um disco do Tózé Brito. É que copiar para o meu uso privado um ficheiro que encontro na Internet parece-me claramente dentro do âmbito destes artigos.

Não sei se dois dias é pouco para ter resposta. Mas como nenhum dos três respondeu, acho que preciso de ajuda. Assim, apelo publicamente às várias entidades que apregoam a ilegalidade do download para que expliquem porque é ilegal, neste caso, usarmos os direitos que a lei nos concede. Peço também a quem ler isto, se tiver interesse, que lhes faça a mesma pergunta. E que insista, que divulgue a pergunta e que peça a outros para perguntar também. E aos jornalistas que oiçam falar em “downloads ilegais” peço o favor de perguntar porquê. Falta sempre essa explicação nas notícias.

Em parte, peço isto na esperança que alguém saiba responder. Mas, principalmente, na suspeita que nos estão a enganar. Eu sei que quando dou aulas falo em vez de cantar. Quando faço investigação concebo hipóteses e experiências em vez de compor músicas. E não estou a contar que, quando fizer 75 anos, ainda me paguem pelo trabalho que fiz aos 25. Mas mesmo que o estado não me conceda estas benesses, sei que tenho direitos. Não aceito que me tirem os que resta em favor dos vossos privilégios.

Contactos:
ACAPOR
MAPiNET
FEVIP
Ministério da Cultura
SPA

Legislação.

O email:
Caros senhores,

Tenho ouvido falar muito, ultimamente, sobre "downloads ilegais". Infelizmente, nunca vejo mencionados os artigos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) que estariam a ser violados por se copiar para o computador um ficheiro disponibilizado por terceiros na Internet.

Compreendo que disponibilizar esse ficheiro possa violar o CDADC, ou a variante aplicável no país de origem. Mas sei também que esta legislação varia de país para país e, seja como for, o que me preocupa é a legalidade dos meus actos face à lei portuguesa e não a legalidade daquilo que outros fazem no estrangeiro, face às leis em vigor nos seus países. Compreendo também que o uso de programas de partilha pode levar a que um ficheiro descarregado seja também distribuido. A minha dúvida é se um utilizador da Internet em Portugal viola a lei quando descarrega um vídeo do YouTube ou um ficheiro mp3 que encontre num blog, página pessoal ou serviço de armazenamento de ficheiros. Ou seja, quero saber se o download, por si só e enquanto tal, pode ser uma violação do CDADC.

Isto porque o Artigo 75º do CDADC afirma explicitamente ser legítima, mesmo sem a autorização do autor, «a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos». Adicionalmente, e respeitante aos Direitos Conexos, o Artigo 189º estipula que «A protecção concedida neste título não abrange [o] uso privado». Parece-me que o download deveria estar coberto por estes artigos, pois trata-se apenas da reprodução no computador pessoal para uso privado e sem quaisquer fins comerciais.

Pedia por isso que me ajudassem a esclarecer esta dúvida indicando qual o artigo do CDADC que torna o download ilegal e porque é que o download para uso privado e pessoal não é contemplado pelos artigos que explicitamente o declaram como lícito.

Agradecendo desde já a vossa atenção, e com os meus melhores cumprimentos,

Ludwig Krippahl

terça-feira, maio 19, 2009

Liberdade e determinismo.

O determinismo é a hipótese que tudo acontece como resultado do que aconteceu antes. As teorias de Newton e Einstein, por exemplo, são deterministas. Segundo estas, conhecendo por completo o estado do universo neste momento poderíamos conhecer todo o futuro. Em contraste, a mecânica quântica é indeterminista, admitindo que alguns acontecimentos não tenham causa e, por isso, não sejam determinados pelo passado.

Muitos defendem que o determinismo é incompatível com a vontade livre e, por implicação, com a responsabilidade moral. O argumento mais forte é o das consequências. Se tudo o que acontece é consequência daquilo que aconteceu antes, como exige o determinismo, então tudo o que eu decidi resultou de uma sequência inevitável de acontecimentos estendendo-se até antes de eu ter nascido. Como isto torna impossível eu ter agido de outra forma tira-me a liberdade de agir por mim.

O problema deste argumento é o “podia ter agido de outra forma”. Se eu me encontrasse exactamente na mesma situação em que, no passado, escolhi agir de uma forma, não faz sentido dizer que eu poderia agir de outra. Certamente que sim se agora tivesse informação diferente, outras preferências ou mais experiência. Mas isso seria uma situação diferente. Se eu estivesse exactamente na mesma situação iria agir, de vontade livre, exactamente da mesma maneira. Caso contrário não estaria a exercer esta vontade livre. Estaria simplesmente a agir ao acaso.

Esta noção metafísica de vontade livre é incompatível tanto com o determinismo como com o indeterminismo. De nada adianta rejeitar a ideia que eu decido em função dos meus genes, da minha educação ou dos impulsos nervosos do meu cérebro, se a substituo pela hipótese que decido sem causa alguma, quer por algum efeito quântico quer pelo capricho de uma alma insubstancial. O agir ao acaso não é mais livre que o agir causado.

Por isso nisto (como em várias coisas) estou de acordo com o Daniel Dennett. A vontade livre que faz sentido não é a liberdade metafísica do “podia ter agido de outra forma”, que é incoerente e impossível. A noção útil é o controlo consciente(1). É agir em função dos nossos mecanismos próprios, psicológicos, neurológicos, fisiológicos, biológicos ou o que for, e quer sejam determinísticos ou indeterminísticos.

Admito que isto elimina o problema teológico da omnisciência de Deus privar-nos de vontade livre, e cuja discussão motivou este post(2). Se um ser fora do tempo sabe tudo o que, para nós, está no futuro, então tudo o que faremos já está fixo e determinado. Isto é um problema se exigirmos uma vontade livre metafísica mas não faz mal se nos contentarmos com o que sabemos ter: um cérebro que geralmente toma decisões adequadas às circunstâncias.

Mas esta noção de vontade livre não exige deuses nem almas nem nada além do que observamos existir. Basta corpos e cérebros como os nossos. O problema teológico de conciliar a omnisciência divina com a nossa vontade livre é, como a maioria dos problemas teológicos, uma consequência trivial de partir das premissas erradas.

Aproveito para deixar aqui esta entrevista com o Daniel Dennett. Obrigado ao Barba Rija pelo link.



1- Wikipedia, Elbow Room
2- Discussão nos comentários a Porque não acredito em Deus.

segunda-feira, maio 18, 2009

Darwin na FCT, o vídeo.

Este é o vídeo da minha apresentação na FCT, no ciclo de debates sobre Darwin em Março e Abril. É também a minha estreia no Blip.tv. Tem duas vantagens em relação ao podcast: o som é melhor e não se vê a minha cara.



O vídeo para descarregar (avi, xvid, mp3, 15Mb) está aqui, e os podcasts deste ciclo de debates estão na página do evento: A rEvolução Darwiniana.

domingo, maio 17, 2009

Treta da semana: Até o ministro...

Esta semana, o nosso ministro da cultura defendeu que a lei francesa dos “três avisos” «não é coisa de um Estado de direito». José António Pinto comentou também que «as pessoas, têm a sensação de que alguém lá pós e eles limitam-se apenas a usar o que está disponível: como alguém encontra notas de banco no chão»(1). Esta analogia tem o mesmo problema das metáforas de descarregar, puxar, sacar ou roubar. Na Internet não se tira. Copia-se. Upload e download é, literalmente, carregar para cima e carregar para baixo. Não se descarrega porque pôr uma cópia do ficheiro num sítio não tira o original de onde estava. Mas o ministro está correcto ao apontar que o utilizador não considera imoral copiar informação publicada porque não subtrai a ninguém algo que seja seu.

Em resposta, a «ACAPOR exige a imediata demissão do Ministro José António Pinto Ribeiro e anuncia que o seu departamento jurídico está a analisar a hipótese de apresentar nos próximos dias uma queixa crime junto do Ministério Público pelo conteúdo destas declarações.»(2) Não basta processar quem “descarrega”. Querem processar até o ministro da cultura por considerar que a privacidade e a liberdade de acesso à informação e cultura são mais valiosas que proteger o lucro da revenda. E o MAPiNET ofereceu-se para explicar a lei ao ministro. «Os downloads ilegais são efectuados com base numa clara violação do direito de colocação à disposição, que é um direito exclusivo dos titulares de direitos, conforme a previsão do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, que o Sr. Ministro tem obrigação de conhecer.[...] Senhor Ministro, se ainda não percebeu o que está em causa, teremos todo o gosto em explicar-lhe!»(3)

Eles próprios admitem que o ilegal é distribuir a obra sem autorização. Mas isso não é o download, que não viola o «direito de colocação à disposição». A lei até sugere o contrário. Por exemplo, o artigo 75º do Código do Direito de Autor, estipula que é lícita, «sem o consentimento do autor [...] a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos».

Normalmente, o download é uma reprodução realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos. A lei sugere que isto é um exercício de um direito e não uma violação da exclusividade do distribuidor. É claro que a lei vale menos que advogados caros, e nisto os distribuidores levam vantagem sobre qualquer cidadão. Mas a tentativa de equacionar o download com a distribuição ilícita é desonesta. E mesmo na partilha de ficheiros, onde o download implica algum upload, cada participante envia, em média, apenas uma nova cópia do ficheiro. O que cada um faz numa rede P2P é, em média, equivalente a pedir uma cópia do CD a uma pessoa e fazer uma cópia para outra. A diferença é a velocidade com que isto se faz na Internet.

Infelizmente, em vez de esclarecer que o seu comentário acerca do download não promove qualquer ilegalidade, o ministro afirmou que «Aquilo que nos parece especialmente grave é quem faz o upload, é quem põe coisas na Internet para que elas possam ser descarregadas, ouvidas, lidas.»(4) O ministro da cultura não deve julgar grave que haja bibliotecas, museus ou escolas onde se tenha acesso gratuito à cultura. Se leva o seu trabalho a sério, deve julgar mais grave que não haja acesso à cultura. Não ameaço processá-lo, mas gostava que ele considerasse também a gravidade de restringir o acesso à cultura proibindo as pessoas de a partilharem entre si.

E está a considerar aumentar para 70 anos o período de restrição. Como se os 50 de agora não bastassem. Porque «A protecção de 50 anos para os artistas que começaram a actuar aos 20, 23, 25, pode significar que as suas primeiras gravações [...] vão terminar quando têm 70, 73, 75 anos. E muitas vezes nessa idade alguns artistas já não têm capacidade de angariação de receita significativa»(4). Aos 75 anos nenhum de nós espera viver do seu trabalho. É por isso que descontamos para a reforma e tentamos poupar alguma coisa até lá. Pedia também ao ministro que considerasse isto antes de passar uma lei que obrigue a pagar ao músico com 75 anos o trabalho pelo qual já foi pago aos 25 e durante os 50 anos que se seguiram. E não tenha medo que o Tozé Brito se zangue.

1- Rádio Renascença, 12-5-09, Liberdade acima de tudo, defende ministro, Via Remixtures.
2- ACAPOR condena veementemente as declarações proferidas pelo Ministro da Cultura em relação à aprovação da "lei Criação e Internet" em França
3- O MAPiNET condena e repudia as declarações do Ministro da Cultura a propósito da aprovação da Lei Criação e Internet em França
4- Público, 14-5-09 Governo procura solução para proteger artistas

sexta-feira, maio 15, 2009

Hospedagem de vídeos.

No Advancing Usability, o Markus Weiland tem uma análise dos termos de serviço para vários sites de hospedagem de vídeos. Os do YouTube estão entre os piores, reservando-se o direito de transferir a terceiros os direitos de transmissão e criação de conteúdos derivados dos vídeos lá hospedados, e de partilhar informação pessoal acerca de quem lá põe os vídeos baseando-se na “premissa de boa fé” por parte de quem a requisita.

O melhor parece ser o Blip.tv, que exige só o direito, revogável, de utilizar os vídeos lá hospedados para o propósito de os mostrar nos seus sites, e compromete-se a não divulgar dados pessoais a menos que obrigado por lei. Mais detalhes em Owned? Legal terms of video hosting services compared.

Já agora, se visitarem o Blip.tv dêem uma olhada na série The Guild, sobre um grupo de geeks viciados em jogos online. É com a Felicia Day, que os mais geeks reconhecerão como a Vi da Buffy e a Penny do Dr. Horrible's Sing-Along Blog. Os menos geeks provavelmente têm coisas melhores para fazer em vez de ver esta série.

Via Lessig.

quinta-feira, maio 14, 2009

Porque não acredito em Deus.

Um aluno da Escola Secundária Alves Martins (ESAM) perguntou-me «porque é que não acredita em Deus?»(1) O tema não é novo neste blog, mas é uma desculpa para voltar ao assunto.

Se acreditar for apenas tomar uma afirmação como verdadeira há duas formas diferentes de não acreditar. Posso considerar que a afirmação é falsa ou posso não ter opinião acerca do assunto. Por exemplo, eu não acredito que a ESAM tenha um número par de alunos. Mas como não sei se o número de alunos da ESAM é par ou ímpar, também não acredito que não tenha. Não tenho qualquer crença formada acerca disto. E considero que não ter razões para acreditar é uma boa razão para não acreditar. Prefiro guardar a crença para quando sei alguma coisa do assunto. Como não tenho dados fiáveis acerca dos deuses, começo logo por não acreditar.

Mas mesmo sem esses dados posso rejeitar uma afirmação que pareça improvável à partida. Por exemplo, mesmo sem saber quantos alunos tem a ESAM, se escolher um número ao acaso rejeito a hipótese de ter acertado no número de alunos. Não é impossível que tenha acertado, mas a probabilidade é tão pequena que o mais sensato é assumir que falhei. As hipóteses acerca da existência de deuses sofrem deste problema. Quem diz que o seu deus existe está apenas a especular, a adivinhar à sorte, sem dados concretos que o justifiquem. E há um número enorme de hipóteses diferentes, e incompatíveis, acerca da existência de deuses.

Estes problemas agravam-se quando substituímos a hipótese vaga de existir algum deus por uma hipótese como a do deus católico. Nasceu Jesus, de uma mãe virgem, morreu e ressuscitou, transubstancia a hóstia quando os padres o solicitam e torna o Papa infalível. Quando se considera tudo isto em conjunto a falta de razões é mais notória e a probabilidade de acertar torna-se ainda mais remota. E há também o problema destes detalhes serem contrários ao que sabemos ser possível, com virgens grávidas, mortos que ressuscitam e outros milagres.

Finalmente, estas hipóteses tendem a ser inconsistentes. Um deus criou-nos com vontade livre mas, sendo omnisciente, já sabe tudo o que vamos fazer no futuro. Ama toda a gente mas deixa crianças a morrer de cancro ou pisar minas. Criou um universo tão vasto e antigo que nem conseguimos imaginá-lo mas preocupa-se quando usamos preservativos ou temos relações sexuais antes de trocar alianças. É infinitamente poderoso, sábio, está em todo o lado e sabe tudo o que pensamos mas precisa de padres, bispos e profetas para interpretar as mensagens confusas que ele deixa.

Não acredito em deuses porque, em geral, não vejo razões para crer que haja algum e, em concreto, é muito improvável que, de tantas possibilidades, o deus certo seja o deste ou daquele crente. Além disso, a mitologia que se acumula à volta destas hipóteses tem tanto de absurdo e contraditório que só com muito esforço se consegue acreditar nela. Não me parece que valha a pena.

E isto se acreditar fosse apenas considerar a hipótese verdadeira. Mas, para os crentes religiosos, acreditar é muito mais. É dar crédito, venerar, louvar, obedecer, amar, temer, rezar e uma data de outras coisas. Se eu tivesse evidências da existência de um deus aceitava a hipótese. Não tenho problemas em mudar de opinião quando se justifica. Mas nem por isso me punha de joelhos a rezar ou ia à igreja ouvir sermões do padre, cantar aleluia e essas coisas que as religiões impingem. Mesmo que existisse um deus, no sentido de ter criado o universo, não seria o meu deus, no sentido de o adorar e venerar como tal. Sou feliz sem isso.

É por isto que não acredito em deuses. A minha avaliação destas hipóteses, que tento tão imparcial e objectiva quanto consigo, leva-me a concluir que são falsas. Não há razão para assumir que há deuses, e menos ainda para acreditar no que as religiões afirmam. E não partilho o gosto por louvar, adorar, rezar e essas coisas que se faz nos templos.

1- Comentário em Ontem, em Viseu.

quarta-feira, maio 13, 2009

O dinheiro que poupo com este blog.

Segundo um relatório da Business Software Alliance (BSA), a indústria de software sofreu uma perda de cinquenta mil milhões de dólares. Este é o «valor monetário global estimado do software para PC que não está licenciado»(1). E o pior é que esta perda está a crescer. «A pirataria global de software para PC aumentou pelo segundo ano consecutivo, de 38% para 41%. O relatório diz que o aumento se deveu às vendas de computadores terem crescido mais rapidamente em países com muita pirataria, como a China e a India»(2).

É assustador. O ano passado, o senhor Singh não tinha computador. Por isso não deu dinheiro nenhum às empresas de software. Este ano comprou um PC, pagou 5000 rupias pelo Windows que vinha instalado e o filho meteu lá uns jogos copiados e um Office sacado da Internet. Quem não percebe nada de economia julga que o senhor Singh aumentou em 5000 rupias os ganhos da indústria. Nada disso. O que ele fez foi dar um prejuízo de vários milhares de dólares por tudo aquilo que não comprou, agora que já tem PC. E não é só na Índia e na China. «Os países com mais pirataria são a Arménia, o Bangladesh, a Geórgia e o Zimbabwe, todos acima dos 90%»(2). É por isso que estão tão ricos, à custa dos milhões que roubam a pobres empresas como a Microsoft.

Mas o que mais me impressionou foi descobrir que quase me arruinei com este blog. Imaginem que eu tinha feito a asneira de pedir um euro a cada leitor por cada post que lesse. Com a ladroagem que anda por aí, era às centenas por dia que viriam cá roubar leituras sem pagar nada. A perder dez mil euros por mês estava a viver na rua em poucas semanas. A minha sorte foi fazer isto de graça, que já poupei um dinheirão.

1- Neuwsbank, Global Theft of Software Approaching $50 Billion per Year
2- Midmarket-eWeek, Report: Software Piracy Costs Industry Billions
Obrigado ao Mário Miguel pelo link para a notícia em Português, na WinTech.

terça-feira, maio 12, 2009

Ontem, em Viseu.

Eu gosto destas coisas, mas também tenho tido muita sorte com as pessoas que me convidam. Obrigado à Anabela Almeida, da Escola Secundária Alves Martins, pelo convite, pela organização e pela amável recepção. Agradeço também aos presentes, e em especial aos alunos pelo seu interesse e entusiasmo.

Uns poucos crentes que visitam este blog preocupam-se que eu fale de ateísmo aos jovens. O receio é lisonjeiro mas não era este o assunto. O tema da conversa foi o ensino de filosofia da religião aos alunos do 10º ano. Este bloco opcional da matéria é geralmente substituído pela filosofia da estética, menos interessante para os alunos mas também menos controversa. Por isso abordei o problema que me pareceu mais importante. Como a confusão entre fé e religião dificulta que se pense claramente nestas coisas.

A fé, enquanto íntima e subjectiva, dispensa justificação e só a expõe a análise racional quem quiser. Eu não questiono a racionalidade de gostar de ervilhas e não exijo que outros questionem a racionalidade de gostar de deuses. Mas as religiões institucionalizam dogmas e prescrevem comportamentos. As religiões são públicas e alegam fundamentos objectivos. É este o deus verdadeiro e não aqueles, é este o livro sagrado e não o outro e são estas as palavras que fazem da hóstia carne. Questionar a racionalidade das proclamações religiosas não é apenas um direito de todos. As consequências de não o fazer tornam-no também um dever cívico.

O desafio no ensino da religião é conjugar estes dois objectivos. Por um lado, ensinar que a fé, qualquer ou nenhuma, é um direito pessoal. Por outro, que a apreciação crítica da religião é um requisito para exercer esse direito e para o respeitar nos outros. Sem a capacidade de questionar racionalmente as proclamações religiosas ninguém é livre de escolher a sua fé nem é capaz de respeitar as escolhas dos outros.

Um obstáculo é a dificuldade em distinguir “acredito que” e “é verdade que”. Esta confusão pode fazer a fé extravasar o âmbito pessoal, torná-la num mecanismo para julgar os outros ou reivindicar no direito de acreditarmos o “direito” absurdo que acreditem em nós. Mas a filosofia está especialmente vocacionada para superar este obstáculo, com muita experiência na distinção entre o que é e o que cremos (ou queremos) que seja.

Mas o maior obstáculo é o antagonismo entre as religiões e a liberdade religiosa. Nenhuma religião quer que os seus fieis dêem aos filhos liberdade para escolher a fé. Como a melhor forma de criar um fiel é dar-lhe acesso apenas à religião “certa”, o sistema de ensino religioso que as religiões querem, e que infelizmente temos, viola os princípios fundamentais de defender a liberdade religiosa e condenar a discriminação. Nas aulas de Educação Moral e Religiosa os alunos são segregados por religião e expostos apenas ao filtrado religioso da doutrina aprovada pelo pároco, pastor ou rabino dos pais.

No entanto, o que vi em Viseu deixou-me optimista. Pela vontade dos professores e porque, em perguntas e depoimentos, os alunos manifestaram uma compreensão intuitiva mas sólida da natureza subjectiva da fé, que é legítimo tê-la ou não a ter e que ter fé não obriga a aceitar os dogmas das instituições religiosas. Parece que ultrapassaram sozinhos o primeiro obstáculo. A ver se agora os pais e os párocos os deixam ultrapassar o segundo.

O vídeo da minha apresentação está aqui (.AVI, XVID+MP3, 16 MB). Têm de o descarregar para ver, mas pôr no YouTube é uma chatice por ter de o partir aos bocados e em .flv fica maior e com menos qualidade.

Ofereci-me para responder a perguntas que os alunos ainda tivessem mas que não puderam colocar ontem. Este pode ser um bom sítio para o fazerem, se cá vierem parar. Peço só aos comentadores habituais para não espicaçarem o Zeca neste post a ver se não tenho de apagar comentários...

domingo, maio 10, 2009

Treta da Semana: Educar para a (nossa) religião.

«É um perigo limitar a educação às exigências do mercado de trabalho. Por isso, as escolas devem oferecer às crianças e jovens uma educação completa, que inclua o ensino religioso, defende o Conselho das Conferências Episcopais Europeias (CCEE). O órgão, que reúne 33 países, está preocupado com o ensino religioso.»(1)

Concordo que não se limite a educação à formação profissional. Não por ser um perigo, mas porque o direito à educação abrange mais que o treino para exercer uma profissão. E concordo que o ensino público aborde religiões, se bem que discorde desta inferência falaciosa. Não limitar a educação às exigências do mercado não implica ensinar religião. As religiões são parte da nossa história e da nossa sociedade mas há muitas outras partes que importa ensinar e o tempo é limitado. Mas, no geral, concordo com a ideia. O problema é o que se entende por “religião”.

«“Há algumas forças, uma certa campanha para apagar o religioso. Uma campanha liderada por pessoas que se afirmam ateias e combatem a religião”, denuncia Peter Stilwell, perito no CCEE e responsável pelo Diálogo Inter-religioso do Patriarcado de Lisboa. O Pe. Peter Stilwell dá o exemplo de França, onde este ensino é marginalizado; e de Espanha e Portugal, onde é alternativo. Só em Itália o catolicismo é considerado património cultural.»

A religião não é o catolicismo. São todas, na sua diversidade e nas suas contradições. E esse é o maior obstáculo ao ensino religioso. Cada religião defende que se ensine a cada aluno a religião dos seus pais: «...”o ensino da religião é uma realidade, um direito e um serviço solicitado por milhões de famílias [...] que devem ser livres para desempenhar o seu papel [de primeiros educadores] segundo as suas convicções”». É este o problema.

A nossa sociedade reconhece que a fé deve ser uma escolha pessoal, voluntária e livre. Cada um tem o direito de acreditar no que quiser. Mas isto é incompatível com o papel das religiões como organizações que regulam a fé. E é incompatível com a discriminação religiosa das crianças e dos jovens em função das opções religiosas dos seus pais. É esta incompatibilidade que impede um ensino religioso adequado. Todos querem ensino religioso, mas cada um julga que só a sua é que é religião.

O ensino religioso deve ser igual para todos os alunos. Talvez não justifique uma disciplina própria, mas enquadra-se no estudo da história, da sociedade, da literatura e da filosofia. Há várias matérias no ensino público onde é necessário ensinar aspectos religiosos. Não se percebe a história de Portugal sem compreender as tensões entre o Cristianismo e o Islão, por exemplo.

Mas nunca o ensino público deve depender das convicções dos pais dos alunos. Não só porque o estado deve ser alheio às convicções religiosas seja de quem for, como também pela injustiça de discriminar os alunos de acordo com o que os seus pais acreditam, fazem ou são. Além do absurdo de rotular uma criança de cinco ou dez anos como católica, protestante ou muçulmana. A crença religiosa é uma escolha voluntária e não uma característica congénita.

Isto é parte do que vou propor amanhã na Escola Secundária Alves Martins, em Viseu. Fui convidado para um debate com os professores e alunos de filosofia, onde penso estará também o pároco local, e esta tensão entre religião e fé será um ponto importante. Porque se reconhecemos que a fé é um direito pessoal temos de negar às religiões a pretensão de discriminar o ensino para propagar os seus dogmas.

Peter Stilwell aponta o ateísmo como anti-religioso. Está correcto, mas omite a razão desta oposição. O ateísmo é anti-religioso porque considera que ter ou não ter fé é uma opção pessoal; que a escolha de uma fé é subjectiva e não faz sentido julgá-la por dogmas ou instituições; e que isto faz parte da liberdade individual de opinião e expressão, pela qual nunca se deve discriminar alguém.

Ironicamente, o ateísmo é anti-religioso porque respeita a pessoa que tem fé. Ao contrário das religiões, o ateísmo não exige aos pais de ninguém que lhe imponham a sua fé, não julga ninguém por aquilo em que acredita e não tenta impor crenças a ninguém. Mas comete um enorme pecado aos olhos de todas as religiões. Ao afirmar a fé como opção pessoal põe em perigo a subsistência dos profissionais da religião.

1- Rádio Vaticano, Conferências episcopais da Europa preocupadas com o ensino religioso: as escolas devem oferecer às crianças uma educação completa, que inclua o ensino religioso. Obrigado pelo email com a notícia no Público.

sábado, maio 09, 2009

Condenar por suspeita.

Uma forma prática de multar quem usa telemóvel na autoestrada seria cruzar a informação da Via Verde com as chamadas registadas pelas operadoras. Em alguns casos poderia ter sido outra pessoa a usar o telemóvel ou a chamada ter sido feita numa estação de serviço mas, em média, apanhava-se muitos infractores. Seria prático mas inaceitável. Multar milhares de pessoas sem provas conclusivas perdoando apenas quem provasse a sua inocência em tribunal seria extorsão e não justiça.

É isso que está a fazer a Constantin Film AG, uma empresa alemã de produção e distribuição cinematográfica. Recolheram dez mil endereços IP e obtiveram a identificação das pessoas a quem estavam atribuídos esses endereços no momento em que os associaram a ficheiros em partilha. Agora estão a enviar cartas a pedir 800€ a cada pessoa, ameaçando processar quem não pagar. Já enviaram quinhentas.

Um endereço IP é um número que identifica o destino de um pacote de dados transmitido na Internet. Mas não é uma morada física. Na maioria dos casos é atribuído dinamicamente quando um utilizador se liga ao seu ISP. Quando se desliga, o seu IP fica disponível e é atribuído a outro computador que se ligue mais tarde.

Os problemas são análogos aos daquele processo hipotético para multar condutores. O nome associado a um IP é o nome de quem paga a conta. Não identifica quem partilha o ficheiro, tal como o registo de chamadas não identifica quem usou o telemóvel. E os endereços IP são obtidos das listagens fornecidas pelos trackers, que guardam cada endereço IP de onde recebem pedidos acerca de um ficheiro em partilha. Mas nada garante que o endereço ainda esteja atribuído ao mesmo computador quando o tracker, mais tarde, o fornece a outros.

Além disso não é claro que haja alguma infracção. O endereço é registado pelo tracker assim que o ficheiro é pedido. Não é preciso que o ficheiro seja descarregado, todo ou em parte, e não é preciso que seja transmitido a outrem. E mesmo quando um fica em partilha, muitas vezes não é enviado mais que uma pequena fracção do ficheiro, o que pode não constituir infracção. Até no blog do MAPiNET reconhecem como o IP é uma prova insuficiente.

«A “Constantin Film AG”, uma grande produtora de filmes alemã, que produziu por exemplo a trilogia de “Resident Evil”, tem na sua mão 10 000 nomes de suspeitos que conseguiu obter dos ISPs e já mandou 500 cartas a pedir 800 euros a cada um por compensação por prejuízos causados pela partilha ilegal.»(2)

Como esta empresa pode contratar mais advogados que qualquer uma das suas vítimas, e como é difícil vencer um julgamento por menos de 800 euros, muitos dos visados optarão por pagar em vez de se defenderem em tribunal. Mesmo sendo apenas suspeitos e mesmo sendo as provas meramente circunstanciais. Casos como este, e reacções como as do MAPiNET, demonstram que os distribuidores não estão a defender direitos morais, justiça ou sequer a criatividade artística. Aos olhos desta gente basta uma suspeita para exigir 800€. Porque o que os move é só a ganância. Enquanto lhes dermos leis que possam abusar vão extorquir o máximo que conseguirem.

1- Zeropaid, German Movie Studio Demands $1064 from File-Sharers
2- MAPiNET, Na Alemanha 500 downloaders já foram notificados para pagarem 800 euros