Mostrar mensagens com a etiqueta amendoins. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta amendoins. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, outubro 08, 2024

Competições.

Imane Khelif e Lin Yu-ting venceram as provas olímpicas de pugilismo feminino nas categorias de 66Kg e 57Kg. Foi polémico porque ambas têm um cromossoma Y (1) e já tinham sido excluídas de provas destas por falharem "testes de género". Um corpo masculinizado dá tal vantagem no pugilismo que, apesar de este problema genético afectar apenas uma mulher em cada dez mil, duas ganharam medalha de ouro. Alegar que são homens (2) é erro. Nasceram com vulva, nunca lhes cresceu um pénis e sempre viveram como mulheres. São mulheres. E, por isso, é algo injusto, e irónico, exclui-las do pugilismo feminino só porque batem com muita força. As outras também treinam para isso e ninguém veda a participação de homens fortes no pugilismo masculino. No entanto, concordo que atletas como estas sejam excluídas de competições femininas. Parece-me um mal menor porque enquanto a competição masculina é sobretudo uma competição o propósito da competição feminina é ser feminina.

Antecipando a acusação de querer sexualizar as mulheres, esclareço que a sexualização principal aqui é a dos homens. Não é óbvio à partida porque pensamos sempre na sexualização de uma perspectiva masculina, focando atributos femininos que atraem os homens. Mas as mulheres também sentem atracção sexual, não é igual à dos homens e, nesta, a comparação de cada homem com os outros pesa muito. Homens no topo de hierarquias são sexualmente mais atraentes. É por isso que os homens dedicam tanta energia a mostrar quem é o maior, seja competindo por vantagens práticas como poder ou recursos materiais seja em conflitos ritualizados como o desporto. O pugilismo é um exemplo claro. Esmurrar a cara um do outro até alguém ficar inconsciente é o tipo de disparates que homens inventam para impressionar mulheres. E funciona. Por exemplo, Mike Tyson não é especialmente charmoso e cumpriu três anos de prisão por violar uma rapariga de 18 anos mas, ainda assim, já teve nove filhos com quatro mulheres (3). Ser campeão sexualiza os homens. Mas só os homens. Isto não se deve a estereótipos ou ao patriarcado. Deve-se à gravidez. Uma mulher não tem mais filhos só por ter mais homens e, por isso, ganha mais se investir no melhor candidato em vez de dispersar o seu capital reprodutivo por parceiros inferiores. Milhões de anos disto levaram as mulheres a preferir homens que sobem em hierarquias competitivas. Aos homens não compensa rejeitar parceiras só por estarem mais baixo numa hierarquia e, por isso, dão mais valor a outras características.

É verdade que o sexo não é a única motivação para competir. Seres humanos são complexos, têm sempre muitas razões para o que fazem e algumas até são verdadeiras. Mas mesmo no meio de patriotismos, desportivismo, superação e essas coisas, o apelo sexual não é insignificante. Para quem compete e para quem assiste, e ambos importam num espectáculo como os Jogos Olímpicos. Antes de estudos de género e interseccionalidades obrigarem as pessoas a ignorar a realidade, várias provas femininas foram concebidas para dar também às mulheres alguma oportunidade de sexualização. Apesar disto já não ser politicamente correcto, estas provas, como ginástica, patinagem artística ou natação sincronizada, continuam a ser populares precisamente pela ênfase em características femininas. Têm também a vantagem, acidental, de dificultar o domínio por atletas masculinizadas. Mas já não é assim em competições, como o pugilismo, que simplesmente transpõem para o feminino o que homens inventaram para se exibir. Nestas há um conflito entre desejar que mulheres participem e premiar quem for mais como os homens.

É por isso que eu defendo excluir atletas masculinizadas. Não é por só querer mulheres bonitas no desporto, como alguns acusam. Há uma correlação, porque características masculinas não são bonitas nas mulheres. E há uma preferência clara por mulheres bonitas que, por isso, têm vantagens em contratos publicitários, patrocínios e afins. Mas não há necessidade de exigir mínimos de beleza feminina nas competições desportivas. O problema está especificamente nas características masculinas que dão a algumas atletas vantagem sobre todas as outras. Se bem que as provas masculinas também sejam dominadas por certas combinações de genes, como os de Tyson, Ronaldo ou Bolt, isto aumenta o valor de toda a hierarquia e beneficia outros homens perto do topo. Com as mulheres não é assim e não ganham nada em levar socos de alguém mais forte. As vitórias de atletas como Khelif e Yu-ting podem parecer exemplos de inclusão e progressismo mas desencorajam a participação das outras 9999 em cada dez mil que não têm cromossoma Y.

Atrair atletas para estes eventos exige incentivos. O incentivo principal para os homens é sexualizar-se pela competição e quanto mais renhida melhor. Às mulheres isto não serve. Algumas provas femininas salientam atributos que sexualizam as mulheres mas a maioria é mera cópia de provas masculinas e o melhor que se pode fazer é tornar a competição justa e equilibrada para o maior número de mulheres. É isto que se tem feito com testes aos cromossomas, hormonas e diversas regras conforme a modalidade. A febre das identidades está a baralhar tudo mas uma federação desportiva não tem competência para decidir se alguém é homem ou mulher. Nem precisa. Basta identificar, em cada modalidade, que características excluir para não fazer a maioria das atletas sentir-se injustiçada. Por exemplo, não permitir atletas com cromossoma Y, sejam de que sexo ou género forem. Assim, deve haver dois tipos de competição. Um sem restrições porque isso é o que os homens preferem, e o outro excluindo vantagens que a maioria das mulheres considere injustas. E isto já se faz. Por exemplo, na Federação Catalã de Futebol só a liga feminina é que tem restrições. Na liga masculina não há quaisquer requisitos de sexo, hormonas ou cromossomas (4). Parece-me uma forma sensata de atrair o maior número de pessoas à competição desportiva sem cair em polémicas acerca do que é ser homem ou mulher.

1- BBC, What does science tell us about boxing’s gender row?
2- Maria João Marques, Público, O ano em que o desporto feminino de alta competição se tornou paródia
3- Marca, Boxing,
How many children does Mike Tyson have and from how many different women?
4- Público, A primeira equipa trans de futebol de Espanha estreia-se na liga masculina

domingo, novembro 06, 2022

Conversas.

Muitas divergências nas redes sociais acabam em frustração e ataques pessoais. Algumas até em bloqueio. Mas há outras que estimulam conversas produtivas precisamente por os participantes discordarem. Proponho que o factor determinante é o propósito da conversa. É o que queremos com o diálogo que determina se vamos ter frustração ou proveito.

Para dar um exemplo, há tempos João Vasco Gama propôs ser inconsistente apoiar os ucranianos contra a invasão russa sem apoiar os palestinos contra a ocupação israelita (1). Eu discordei porque, apesar de condenar muito que Israel faz, também não consigo apoiar os palestinos. Os vizinhos de Israel há décadas que tentam obliterar esse país, é constante o ódio e o terrorismo contra os judeus e mesmo antes de Israel existir já os palestinos tentaram aliar-se a Hitler para "resolver o problema" dos judeus naquela região. Discordarmos nisto levou a uma troca interessante (para mim) de comentários sobre guerras, genocídios e ocupações até Gama declarar a conversa terminada porque «já expusemos todos os argumentos que consideramos relevantes» e nenhum ia conseguir convencer o outro. Dizendo-se cansado da conversa, exigiu até que me calasse ou continuasse noutro lado.

Parece-me que a causa desta frustração é tentar convencer. Qualquer opinião minimamente ponderada enquadra-se numa rede de premissas, dados e valores. Esta nossa divergência não se limita à Ucrânia e à Palestina. Inclui diferenças políticas, ideológicas, de ponderação de factores históricos, e até da estimativa do que aconteceria aos judeus se os palestinos tivessem maior poder militar. Para um de nós mudar de opinião tem de refazer toda essa rede que lhe dá contexto e isso leva tempo. É possível, mas não é provável que ocorra numa breve troca de comentários no Facebook. Por isso, quem conversa nas redes sociais com o desejo de lhe darem razão ou só conversa com quem já concorde ou vai ficar frustrado.

Dialogar para convencer também tem o defeito de focar a conversa nas pessoas em vez dos assuntos, o que leva a ataques pessoais, zangas e uma atitude de antagonismo. Até torna difícil terminar o diálogo de forma civilizada, levando a mandar calar o outro ou a bloqueá-lo. Eu prefiro uma abordagem diferente, que não me traz frustração. Dialogar com quem discorda é uma oportunidade para ver um assunto pensado de forma diferente. Mesmo que esse pensamento me pareça errado, o diálogo ajuda a questionar premissas e a tornar ideias mais claras. E numa conversa focada nas ideias em vez dos participantes não importa quem ganha, quem se convence ou quem muda de opinião. Pode-se aproveitar as divergências para ajudar a perceber melhor o assunto em apreço. É por isso que nunca senti esse cansaço que Gama invocou nem a necessidade de mandar calar os meus interlocutores ou de os bloquear.

E isto funciona mesmo que a outra parte não queira colaborar. Há casos, como por exemplo criacionistas, teólogos, anti-vacinas ou aqueles que tentam racionalizar a invasão da Ucrânia, em que o objectivo da outra parte é criar o máximo de confusão para disfarçar os problemas das teses que defende. Mas mesmo assim o diálogo pode ser proveitoso. Por um lado porque a nossa confiança numa posição não deve assentar apenas nas razões a seu favor. Devemos também verificar se não há boas razões para escolher uma alternativa. Por exemplo, quando as melhores justificações que me apresentam para Putin invadir a Ucrânia são dissuadir países de se juntar à NATO ou as «afinidades com as pessoas de língua materna» russa na Ucrânia (2), eu fico mais confiante na minha conclusão de que esta invasão foi um erro trágico motivado por ambição e incompetência. Se o maior ataque à nossa posição equivale a bater latas e atirar poeira ao ar provavelmente estamos no bom caminho.

Por outro lado, a resistência empenhada ajuda a afinar explicações. Por vezes encontro auto-proclamados peritos que escrevem vários parágrafos a dissertar sobre a minha ignorância, e arrogância por discordar deles, mas não conseguem explicar os meus supostos erros. Mesmo não me proclamando perito prefiro não fazer tão triste figura. O diálogo ajuda a tornar as ideias mais claras e, mesmo que aquela pessoa não esteja receptiva a explicações, eventualmente saber explicar será útil. Nunca chegamos à perfeição mas a prática ajuda a ficar mais perto.

Por isso, nas redes sociais, não me preocupo se mudo as ideias dos meus interlocutores. Há muito poucas pessoas cuja opinião individual realmente importa na minha vida e com essas não é nas redes sociais que converso. É verdade que me preocupa a popularidade de algumas opiniões. Vivemos numa democracia e a opinião dominante afecta-nos a todos. Mas isto não se deve a esta ou àquela pessoa em particular. E é também porque a opinião pública importa que é melhor evitar amuos, birras, bloqueios e esses surtos de imaturidade que assolam quem só quer que lhe dêm razão. Dedicar a conversa a explorar os assuntos e a tornar as ideias tão claras quanto possível não só é menos frustrante como também contribui para um debate público mais racional.

1- A conversa estava aqui no Facebook, 7 de Julho de 2022 mas entretanto fui bloqueado portanto não sei se é possível ler sequer o que eu escrevi.
2- Nesta conversa com Paulo Gil no Facebook: 12 de Outubro de 2022
.

domingo, junho 06, 2021

Contradições.

Tenho acompanhado com ambivalência os analistas da Bitcoin. Se por um lado me parece que esta tecnologia pode ser útil, por outro lado o que tenho visto de análises e da conferência sobre Bitcoin em Miami parece-me tele-evangelismo de geração TEDx (1). A defesa irracional da Bitcoin, especialmente atacando as alternativas, cai em tantas contradições que me faz suspeitar das suas intenções. Hugo Ramos é um exemplo português desta religião. Trocámos há tempos algumas impressões cordiais sobre a COVID e desde então tenho seguido a sua análise técnica da price action da Bitcoin (2), em particular o seu price to time model. Este "modelo científico" que Ramos criou traçando uma linha exponencial a partir de dois pontos prevê que na primeira semana de Outubro cada Bitcoin vai valer 282 mil dólares (3). Mas esta abordagem pretensamente objectiva contrasta com o fervor ideológico dos olhos de laser, as mãos de diamante, o desprezo por qualquer outra implementação da blockchain e a recomendação constante de se comprar Bitcoin, se subir porque está a subir e se baixar porque está barata (4).

Outra contradição recorrente dos bitcoiners é queixarem-se de que os tweets do Elon Musk afectam o preço da Bitcoin ao mesmo tempo que apregoam a Bitcoin como robusta e invulnerável até ao poder dos Estados. Isto também destoa do silêncio acerca de outras formas óbvias de manipulação. A mediação financeira é fortemente regulada porque o mediador que vê por quanto cada participante quer comprar ou vender pode aproveitar-se disso para ganhar dinheiro à custa de todos. Também pode manipular o mercado com transacções fictícias ou permitindo que uma entidade venda a si própria para aumentar o interesse aparente por um activo. Estas maroscas são ilegais num mercado regulado mas são certamente corriqueiras na selva dos activos criptográficos (5). Perante isto, a preocupação com tweets é ridícula.

Mais estranha ainda é a cumplicidade silenciosa com o Tether. Falei sobre isto com Hugo Ramos mas ele ameaçou bloquear-me no Facebook. Temendo o terrível castigo, optei por escrever aqui, onde estou mais seguro. Ramos declarou ser «contra a existência do USDT desde 2017!» mas acha que isto não tem nada que ver com as Bitcoin. Para o analista técnico, 60% do volume diário ser em moeda falsa não é um risco (6). Nem acha preocupante que a Bitcoin, auto-regulada, distribuída e transparente, tenha o seu mercado capturado por uma "moeda" emitida de forma opaca, centralizada e sem garantias fiáveis. É quase como se as pessoas que participam neste mercado estivessem mais interessadas no lucro fácil do que nos ideais que apregoam.

A defesa evangélica da Bitcoin também está a deturpar o propósito destes activos. No artigo que inspirou isto tudo a blockchain serve para garantir segurança num sistema de transacções descentralizado, transparente e onde todos podem participar. A Bitcoin, sendo a primeira implementação, está para uma verdadeira moeda criptográfica como o Gopher esteve para as redes sociais. Só permite vinte mil transacções por hora, demora dez minutos a registar cada bloco e o registo é caro. Neste momento uma transacção custa 6 dólares mas em Abril, no pico do preço e movimento, chegou aos 60 (7). É óbvio que não vai destronar a Visa ou MasterCard (8). Mas o progresso tem continuado e há outros activos com transacções mais rápidas e baratas, com algoritmos mais sofisticados e outras funcionalidades. A resposta dos evangélicos da Bitcoin é chamar a tudo isto shitcoins e fingir que o propósito da Bitcoin afinal é outro, o de "guardar valor" em vez de facilitar transacções.

Os irmão Winklevoss defendem que a Bitcoin vai substituir o ouro (9) porque enquanto as reservas de ouro vão aumentando a Bitcoin está limitada a 21 milhões de tokens. Mas isto é falso porque cada ramo da Bitcoin (incluindo Bitcoin Cash, Bitcoin SV e Bitcoin Gold) tem os seus tokens e estão constantemente a surgir novos activos criptográficos. É muito mais fácil criar "criptomoedas" do que ouro. Basta convencer as pessoas, e é provavelmente por isso que os evangélicos da Bitcoin chamam shitcoins às outras. Chamar heresia ou blasfémia seria antiquado e demasiado revelador mas estão obviamente receosos da diluição das suas bitcoins num mercado crescente de activos do mesmo tipo. A tese de Michael Saylor é ainda mais absurda: a Bitcoin é o único activo que realmente garante direitos de propriedade porque terrenos, casas, ouro ou dinheiro podem-nos ser retirados por outros ou taxados pelo Estado (10). Mas Bitcoin também. Por muita segurança criptográfica que o algoritmo tenha, qualquer malfeitor com acesso ao dono das Bitcoin consegue contornar essa protecção. Basta uma corda, um barrote e um alicate. Como reserva de valor a Bitcoin é muito menos segura do que praticamente tudo o resto porque a única coisa que temos é uma chave de autenticação numa rede organizada por desconhecidos. Além disso, o carácter automático e anónimo das transacções torna os donos mais vulneráveis a ameaças, chantagens, roubos ou burlas. Somando insulto ao ridículo, Saylor até alega que Bitcoin é ideal para milhares de milhões de pessoas em países pobres, como se o problema dessas pessoas fosse fugir dos impostos e da inflação em vez de garantir um sítio onde dormir e encontrar comida para dar aos filhos.

Activos criptográficos podem ser bons como moeda de troca mas não como reserva de valor. O problema é que a motivação principal para os comprar tem sido a especulação, naquilo que um dos criadores da Dogecoin chama de princípio do tolo maior (10): por muito caro que eu compre agora, há de haver quem me pagará mais ainda. As atitudes irracionais a que recorrem para manter este esquema em pirâmide impedem a boa utilização desta tecnologia de dinheiro inteligente. Mas tenho esperança que o ciclo corrente de manipulação, insuflação e colapso dos preços seja diferente dos anteriores. Este mercado deixou de estar isolado e a aldrabice já não deverá escapar despercebida dos reguladores.

1- Bitcoin 2021
2- Youtube, Hugo Ramos.
3- O vídeo completo está aqui, mas esta parte é especialmente engraçada: 11m09s. É preciso ver alguns minutos para apreciar o método científico em acção, que boa ciência não se faz à pressa.
4- Aparentemente, vendendo até propriedades para comprar Bitcoin, o que me parece insensato: My house arrived at the exchange! #Bitcoin
5- Um short é uma aposta que o preço de um activo vai descer. Por exemplo, alugo Bitcoin por uns dias, vendo-as imediatamente e compro novamente antes de ter de devolver. Se entretanto o preço desceu tive lucro. Neste post no Reddit pode-se ver o gráfico dos shorts no dia antes ao colapso do preço da Bitcoin no dia 19, evidência clara de que alguém sabia antecipadamente o que ia acontecer: BTC short positions on Bitfinex in days leading up to May 19th.
6- No Facebook, num post que julgo ser público:
31 May at 18:42
7- Ycharts, Bitcoin average transaction fee
8- Há formas de fazer transacções rápidas usando uma blockchain. A rede Lightning, por exemplo, usa um fundo registado na blockchain para fazer uma série de transacções e depois registar o resultado consensual dessas transacções. Mas isso nem é específico da Bitcoin nem resolve inteiramente o problema porque as transacções só ficam realmente seguras quando registadas na blockchain que dá segurança ao sistema.
9- News.com.au, Bitcoin price will increase tenfold, argue the famous Winklevoss twins
10- Bitcoin Magazine, Bitcoin 2021 Fireside: Michael Saylor And Max Keiser
11-Benzinga, Dogecoin Co-Creator Says 99.9% Of Crypto Market Is Driven By 'Greater Fool Theory'

domingo, abril 18, 2021

Bitcoin e Tether, parte 2.

Imaginem que aqui na rua muita gente começa a trocar cromos, a comprá-los e a vendê-los, e os preços sobem com a especulação. Mas fazer isso com euros deixa registo de transferências, o fisco pode cobrar mais-valias e os bancos estão atentos à origem do dinheiro. Para facilitar a vida aos mais preocupados, eu imprimo uns papelinhos a dizer “vale um euro” e prometo que vou sempre vendê-los e comprá-los a um euro cada um. É uma maravilha. Com os papelinhos toda a gente compra e vende cromos sem problemas e o preço dos cromos vai subindo.

Os euros que recebo pelos papelinhos podiam ficar no banco, como garantia. Mas eu confio que não vai toda a gente querer trocar papelinhos por euros ao mesmo tempo e entro também no jogo, comprando cromos para aproveitar a sua valorização. E como tanta gente vende cromos a troco de papelinhos eu nem preciso vender os papelinhos. Basta imprimir e usá-los para comprar cromos. Isto empurra o preço ainda mais para cima e deixa toda a gente contente. Entretanto, há muito mais papelinhos em circulação do que euros na minha conta, porque tenho quase tudo em cromos, mas enquanto o preço for subindo não há problema. E se o preço dos cromos ameaça baixar basta-me imprimir mais papelinhos, comprar mais cromos e empurrar o preço novamente para cima. Enquanto toda a gente acreditar que papelinhos são euros vai correndo tudo bem.

Em traços gerais, é isto que tem acontecido no mercado dos cripto-activos com o USDT, uma “criptomoeda” emitida pela empresa Tether sob a vaga promessa* de que cada USDT vale um dólar. O gráfico abaixo mostra o número de USDT em circulação nos últimos 15 dias e o preço de cada bitcoin (BTC).



Nos dias 9 e 12 nota-se dois exemplos de como a emissão de centenas de milhões de USDT de cada vez empurra a seguir o preço das bitcoin. Mas o efeito parece estar a desaparecer. Apesar da emissão de mais de dois mil milhões de USDT nos últimos dias, nominalmente equivalente ao mesmo número de dólares, o preço das bitcoin está a cair. Isto aconteceu também em 2017, mas nessa altura a quantidade de USDT emitido era quarenta vezes menor do que é agora (1).

Não sei o que vai acontecer a seguir mas é pouco plausível que a Tether tenha 48 mil milhões de dólares no banco para comprar os USDT de volta se muita gente decidir trocar os papelinhos por dinheiro. Possivelmente tem em bitcoin ou algo parecido. E como a maior parte das vendas de bitcoin são por USDT, se tentarem vender muitas bitcoin por dinheiro o preço vai cair. Há muito menos dinheiro neste mercado do que parece porque a maior parte é papelinhos.

*Nas letras miudinhas a empresa esclarece que não se compromete legalmente.

1- Investopedia, Bitcoin's 2017 Rise Was Market Manipulation By Tether: Study

sábado, abril 03, 2021

Bitcoin e Tether.

Nos últimos dez anos escrevi aqui ocasionalmente sobre Bitcoin e activos criptográficos afins. O meu entusiasmo com a tecnologia não desapareceu mas a minha perspectiva tem mudado. Não concordo com o termo “moeda criptográfica” porque uma moeda tem suporte legal. Serve para pagar impostos e qualquer comerciante é legalmente obrigado a aceitá-la em troca dos bens e serviços que vende. Uma Bitcoin é como cromos, obras de arte ou túlipas. Pode servir como depósito de valor e para trocas mas depende unicamente da expectativa de outros lhe darem valor também. É uma ideia excelente ter um sistema descentralizado que permite transferir algo de valor pela Internet mas isso não basta para que seja uma moeda.

Mais importante ainda, mudei de ideias quanto à necessidade de regulação. Inicialmente parecia-me bem ter um sistema descentralizado que não pudesse ser controlado ou regulado pelo Estado. Mas não é verdade que a blockchain seja imune a regulação (1). E ainda bem, porque é preciso regulação para se maximizar a liberdade. Até quando passeamos na rua. Regulação errada seria prejudicial mas se todos pudessem fazer o que lhes apetecesse, como violar, roubar ou matar, seríamos muito pouco livres de passear na rua. O mesmo se passa com qualquer mercado financeiro, mesmo quando é descentralizado e com activos digitais. E neste momento há um perigo grande desta falta de regulação levar ao colapso dos activos criptográficos.

Entre os activos criptográficos, o maior volume diário de transacções é o do Tether (2). Com 100 mil milhões de dólares por dia tem quase o total dos outros activos somados. Porque o Tether (USDT) é um caso especial. Tendo, teoricamente, uma taxa de câmbio fixa de 1:1 com o dólar, é usado para comprar e vender outros activos criptográficos evitando as medidas de controlo de identidade e lavagem de dinheiro que bancos e outras entidades financeiras têm de fazer cumprir. O problema é que os USDT são emitidos por uma empresa, Tether Holdings Limited, na quantidade que a empresa quiser. E a garantia que a cada USDT corresponde um dólar é questionável porque a empresa não revela que activos tem para comprar USDT de volta a quem os queira trocar por dólares. Com 42 mil milhões de USDT em circulação e um padrão suspeito de criação de USDT correlacionado com subidas de preço de Bitcoin, é de suspeitar que muitos tenham sido criados pela empresa para comprar activos criptográficos e manipular o seu preço (4). Neste momento cada Bitcoin tem um valor nominal de 59 mil dólares mas quase todas as transacções são em USDT, que só valem dólares em função de activos detidos pela Tether Holdings Limited, e estes activos podem ser maioritariamente Bitcoin e afins. O perigo de implosão desta bolha é muito grande.

A minha estimativa é que, nos próximos meses, esta aldrabice vai-se desmanchar, o mercado de activos criptográficos vai colapsar, algumas pessoas serão presas, muitas vão perder boa parte das suas poupanças e finalmente haverá motivação política para regular estes mercados. Depois da poeira assentar será mais seguro voltar a entrar nisto. Mas por enquanto a minha recomendação é distância. Vai ser um espectáculo interessante mas será melhor assistir de longe.

1- Mais detalhes nestes posts: criptomoeda, parte 1. e parte 2
2- Podem ver aqui, por exemplo, ordenando por volume diário: Coinmarketcap.com, ou aqui, Coinlib, Bitcoin.
3- Thether.to
4- Este artigo explica o problema em mais detalhe: The Bit Short: Inside Crypto’s Doomsday Machine

segunda-feira, outubro 07, 2019

Treta da semana: a receita.

Esta é a receita da moda para combater desigualdades de género: escolhe-se um indicador estatisticamente diferente em homens e mulheres; presume-se causado por estereótipos e fácil de mudar com exemplos ou educação; tenta-se mudar e, quando se descobre que não muda, impõe-se quotas. Por cá, a receita já foi seguida até ao fim na administração de empresas e nas eleições mas, mesmo sem esta fase terminal, o processo todo peca por assumir que as predisposições visadas são fáceis de ajustar e por presumir que é papel legítimo do Estado tentar condicionar a maneira de ser das pessoas.

Pensemos no que faz alguém sentir-se atraído por outrem, sexualmente ou romanticamente. Apesar da a orientação sexual, fetiches e outras preferências variarem muito de pessoa para pessoa, e de ser tudo influenciado por factores sociais, ainda assim há uma diferença média significativa entre o que atrai homens e o que atrai mulheres. Não permite prever muito acerca de cada indivíduo, porque cada um é só como si próprio, mas há uma correlação grande na população que, inevitavelmente, estraga as estatísticas da igualdade de género. Os homens tendem a preferir parceiras com indicadores físicos de fertilidade, o que inclui a idade, por razões óbvias quando pensamos na evolução do nosso desejo sexual. As mulheres também preferem parceiros com bons genes mas, em média, não preferem parceiros mais jovens pois não é o homem quem aguenta a gravidez e o parto. Esta diferença de preferências afecta muitas estatísticas, desde a diferença média de 8 anos entre actrizes e actores quando ganham o primeiro Oscar (1) à diferença de dois ou três anos entre a mãe e o pai quando nasce o primeiro filho (2). Por sua vez, a diferença de idades entre o pai e a mãe quando o filho nasce contribui para que, nessa altura, o pai tenda a ter um salário maior do que o da mãe. Acresce a isto vantagem que a mulher jovem tem por deter quase tudo o que é preciso para constituir família, permitindo-lhe escolher um parceiro com melhor estatuto sócio-económico. Por seu lado, ao homem não compensa ser exigente neste critério porque não só precisa que a parceira entre com todo o capital biológico como a sua confiança acerca da paternidade está dependente de a convencer a concedê-lo em exclusividade. Por isso o homem tende a preferir uma mulher que precise dele, nem que seja para pagar as contas. Isto nota-se bem nas estatísticas das diferenças salariais. Não são simplesmente entre homens e mulheres. A maior diferença parece ser entre homens casados e o resto (3). Considerando as preferências diferentes quanto à idade e nível sócio-económico dos parceiros e outras diferenças como o parto e a capacidade de amamentar, não é estranho que o rendimento das mulheres caia significativamente quando nasce o primeiro filho (4). Tanto a biologia como as escolhas feitas até esse momento contribuem para que seja o homem a trazer recursos e a mulher a ficar com a criança.

Obviamente, não será popular defender que o Estado deve persuadir as mulheres a escolher parceiros mais jovens e mais pobres para que sejam elas a ir trabalhar, ficando eles em casa com as crianças. Isso punha a nu os problema fundamentais da receita. É por isso preciso inventar causas hipotéticas cuja regulação pelo colectivo seja mais aceitável. Os estereótipos são uma opção sempre popular mas, no Observador, João Pires da Cruz dá um exemplo alternativo: o problema é as mulheres serem perfeccionistas (5). É este perfeccionismo que, segundo Cruz, temos de corrigir às raparigas logo na escola. Mas além de não ser claro como se corrige o perfeccionismo, ou sequer que legitimidade temos para o fazer – não será um direito ser perfeccionista? – as evidências que Cruz apresenta para a sua hipótese são pouco persuasivas.

Começa por apontar que, no ginásio, estão só as «magras, vestidas impecavelmente e […] a risca dos sapatos combina com o tom da camisola». Mas isto é o que se espera pela diferente importância que homens e mulheres dão à aparência em potenciais parceiros sexuais. Se um homem pudesse entrar num bar e garantir encontrar várias mulheres dispostas a ter relações sexuais com ele simplesmente pela forma como ele se vestisse, era certinho que os homens andariam todos produzidos. Como, aliás, é frequente nos homossexuais. Outra diferença que Cruz aponta é que «as mulheres só se candidatam a um posto se cumprirem 100% dos requisitos, os homens candidatam-se se cumprirem 60%». Também não precisamos de invocar um perfeccionismo particularmente feminino para explicar esta diferença. É razoável uma pessoa candidatar-se apenas aos cargos para os quais tem as qualificações necessárias. Excepto se está sob pressão para ter um cargo com mais prestígio ou remuneração porque, por exemplo, dificilmente atrairá a atenção de uma mulher se não o conseguir.

O primeiro problema desta receita para conseguir igualdade alterando as mentalidades é não haver, na prática, forma de o fazer. A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género julga que se atinge a igualdade controlando a publicidade e os livros de actividades para crianças. É pouco plausível. Desde cedo que rapazes e raparigas percebem o que é que atrai o outro sexo. Não adianta insistir com uma rapariga que mais vale ter uma carreira do que ser bonita quando é óbvio o poder da aparência feminina. Até há mulheres que fazem carreira disso. E ensinar a um rapaz que não tem mal nenhum viver com uma mulher de carreira e ficar em casa a cuidar dos filhos não o impede de estimar, realisticamente, que nenhuma mulher de carreira vai querer sustentar um tipo desempregado em casa.

O segundo problema da receita é ainda mais grave. A razão principal para as diferenças estatísticas entre homens e mulheres é que nem os homens querem ser como as mulheres nem as mulheres querem ser como os homens. Isso não se deve corrigir. Deve-se respeitar.

1- Deseret, Oscars illustrate Hollywood’s gender age gap
2- Não encontrei dados para Portugal, mas parece ser bastante constante. Aqui vão alguns links: Noruega, República Checa, Inglaterra e Gales.
3- Quartz, The gender wage gap is between married men and everyone else
4- Vox, A stunning chart shows the true cause of the gender wage gap
5- Observador, João Pires da Cruz, Não há mulheres gordas no ginásio

segunda-feira, março 18, 2019

Treta da semana: fissão é a solução.

Tenho visto muita gente a defender a fissão nuclear como a melhor opção para travar o aquecimento global. Teoricamente, parece que sim: não liberta CO2; produz electricidade de forma fiável e constante, ao contrário da energia solar ou eólica; precisa de menos terreno do que um parque eólico ou solar, ou uma barragem; a electricidade nuclear sai mais barata do que a das renováveis; e se tudo for feito como deve ser não vai haver acidentes como Chernobyl ou Fukushima porque esses erros já não serão repetidos.

Infelizmente, é ingénuo assumir que tudo vai sempre ser feito como deve ser. O colapso do BES, da ponte de Entre-os-Rios e da estrada de Borba são apenas alguns de muitos exemplos de tragédias teoricamente evitáveis que resultaram de problemas humanos que, na prática, são inevitáveis. Vai sempre haver erros, incompetência, ganância ou corrupção. Centrais nucleares não são imunes a estes problemas e quando temos em conta que tudo tem de correr bem não só durante as décadas de operação da central mas também durante os séculos de armazenamento do lixo radioactivo, temos de estimar como muito alta a probabilidade de haver asneiras.

Os defensores da fissão nuclear também subestimam a gravidade dos problemas. É difícil estimar o número de mortes devido ao desastre de Chernobyl (1) e o de Fukushima parece não ter causado mortes directas (2). Em contraste, trabalhar em telhados é perigoso (3) e a instalação de painéis solares vai levar a mais acidentes. Mas esta contabilidade é enganadora. Morre ainda mais gente em acidentes de automóvel mas é consensual que aceitamos esse risco pela liberdade de ir para onde queremos. Um acidente nuclear como Chernobyl ou Fukushima obriga centenas de milhares de pessoas a abandonar a sua casa, escola, bairro, comunidade ou negócio e refazer a vida num lugar diferente, com outras pessoas. O custo pessoal e social de um acidente nuclear é enorme e não pode ser descartado apontando acidentes de construção ou de viação.

Outro problema é o lixo radioactivo, que é das substancias mais perigosas que produzimos. Só na Europa, são quase três mil toneladas de metais radioactivos por ano (3). Comparado com outras formas de produção de energia é um volume pequeno de resíduos. Mas é material que terá de ficar isolado durante séculos. Qualquer problema no armazenamento, seja por corrupção, negligência, crise económica ou instabilidade política, pode ter consequências desastrosas. Isto é especialmente relevante se quisermos usar a fissão nuclear para travar o aquecimento global. A maior parte do CO2 emitido para a atmosfera já vem da Ásia (4) e é nos países em desenvolvimento mais populosos que temos de travar o seu aumento. O aquecimento global não se resolve com centrais nucleares na Alemanha ou na Dinamarca. Tem de ser em países como China, Índia, Indonésia, Brasil, Paquistão e Nigéria. É absurdo presumir que seria seguro investir na construção em massa de centrais nucleares nesses países.

Economicamente, também não é tão viável como parecem presumir. A energia nuclear exige um investimento inicial muito grande e só dá lucro ao fim de décadas. Com a queda constante dos custos de produção das renováveis, melhorias tecnológicas na produção e armazenamento de energia e potencial para alterações sociais – por exemplo, a automação levar as pessoas a sair das cidades, distribuindo o consumo e a produção de energia – é muito arriscado estar a investir milhares de milhões de dólares (5) sem uma garantia de retorno. E não é nada claro que seja um bom investimento, mesmo considerando apenas a redução das emissões de CO2. Em números redondos, o custo de construir uma central nuclear é o mesmo de reflorestar o necessário para compensar as emissões da mesma energia produzida durante dez anos pela combustão de biomassa (6). São estimativas por alto, porque o custo varia muito em detalhe, mas o custo de substituir centrais térmicas por centrais nucleares é semelhante ao de converter centrais térmicas para usar biomassa e reflorestar o suficiente para compensar as emissões. Para o aquecimento global o efeito é o mesmo e ficamos com florestas em vez de lixo radioactivo.

Um defeito que apontam ao uso de biomassa para produzir energia é que estamos a queimar a madeira agora e só mais tarde voltamos a sequestrar o CO2, porque a floresta demora anos a crescer. Mas esse problema é igual para a energia nuclear. Entre decidir ter energia nuclear e pôr a central a funcionar já as árvores estão todas grandes. E se bem que a florestação exija investimento público, a energia nuclear também. Nenhum privado vai investir esse dinheiro sem garantias de retorno e não é razoável esperar que sejam os privados a guardar o lixo radioactivo durante séculos.

Temos de abandonar a queima de combustíveis fósseis. Mas a fissão nuclear não é uma boa alternativa. A quantidade de reactores que seria preciso e os países onde os teríamos de construir é receita certa para desastres. O enorme investimento seria melhor aplicado na recuperação de solos e reflorestação, que mais que reduzir emissões retiraria carbono da atmosfera. E a fissão nuclear é um beco tecnológico, como o motor a vapor ou o VHS. O progresso na produção de energia de fontes renováveis, melhorias nas baterias ou alterações demográficas que favoreçam a produção distribuída, com menos gente concentrada nas grandes cidades, facilmente tornam a fissão nuclear economicamente inviável. Além disso, não é de excluir a possibilidade da fusão nuclear se tornar rentável no prazo de 30 ou 40 anos de um novo investimento em fissão nuclear. Somando a isto tudo, o lixo radioactivo produzido pela fissão nuclear seria um fardo – e um perigo – para muitas gerações além das que beneficiariam da electricidade produzida, uma atitude irresponsável que criticamos nas gerações passadas e que temos o dever de não perpetuar.

1- Wikipedia, Deaths due to the Chernobyl disaster
2- World Nuclear Association, Fukushima Daiichi Accident
3- EEA, EN13 Nuclear Waste Production EN13 Nuclear Waste Production
4- Global Carbon Atlas
5- Dois a nove mil milhões de dólares por unidade, segundo a USCSA, Nuclear Power Cost
6- A construção de uma central de fissão nuclear fica em cerca de $5000/kWe segundo a World Nuclear Assoiation, excluindo custos de financiamento. Uma tonelada de madeira produz um MWh e uma tonelada de CO2 custa $100 a sequestrar. Dez anos de produção de um kWe dá 87MW, o que custa cerca de $8700 a sequestrar em floresta.

sábado, março 09, 2019

Grato às feministas.

As mulheres que podem usar calças, votar, escolher a sua profissão, gerir a sua propriedade, pedir divórcio e exercer muitos outros direitos têm de agradecer às feministas (1). E os homens também, porque é evidente que restringir metade dos cidadãos, além de injusto, dá sociedades de porcaria. A igualdade de direitos entre homens e mulheres beneficia-nos a todos e só cá chegámos graças ao feminismo. Infelizmente, a palavra “feminismo” foi mudando de sentido e agora é diferente daquilo que conseguiu estas vitórias. Superficialmente, ainda dizem que é a luta pela igualdade de direitos. Mas não é. Nem é luta, nem é por essa igualdade justa.

Emmeline Pankhurst foi uma sufragista britânica que, em 1913, proferiu um famoso discurso para as suas companheiras de luta nos EUA. Começou por dizer que o movimento pelo direito de voto das mulheres era «matéria de revolução e guerra civil», que ela tinha vindo «como um soldado que deixa provisoriamente o campo de batalha» e que fazia o que fariam os homens se não se pudessem fazer ouvir pelos votos: «sublevar-se e adoptar alguns dos meios antiquados pelos quais os homens do passado fizeram resolver os problemas de que se queixavam» (2). Pankhurst era mãe de três filhas e dois filhos, um falecido em criança com difteria, era viúva e foi sete vezes presa na sua luta pelos direitos das mulheres. Que envolvia, entre outras coisas, destruição de propriedade, confrontos com a polícia, greves de fome e até fogo posto (3). Pode parecer excessivo, mas estas mulheres estavam mesmo a lutar por direitos que eram seus e lhes estavam a ser negados. O fim justificava os meios.

Esse é o feminismo que merece a nossa gratidão e ainda faz falta na maior parte do mundo. O feminismo da luta por direitos, de pessoas dispostas a sacrificar-se pelo que é justo. Por exemplo, uma medida feminista que a União Europeia devia adoptar era proibir a importação de bens ou serviços de países cuja lei não garanta igualdade de direitos entre homens e mulheres. Saía caro, iria afectar a economia, mas seria uma forma eficaz de pressão sobre países como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos ou o Irão, para que respeitassem por igual os direitos de todas as pessoas. E o nosso sacrifício não seria nada comparado ao que Pankhurst sacrificou. Mas esse feminismo que faz falta não é o feminismo que agora temos.

O que temos agora são “feministas” como as autoras da lei do piropo: «Carla Rodrigues, deputada do PSD na última legislatura [...] assume a maternidade da iniciativa. "A alteração surgiu por proposta nossa. Visava dar resposta a uma situação que não estava prevista no Código Penal. […] Os assédios às adolescentes parecem ter sido decisivos para tal: "Falei de casos como o de uma jovem de 15 anos que vai na rua e vem um velho e diz "fazia-te isto fazia-te aquilo". Isso sensibilizou-os mais. O insulto ou injúria estão desde sempre previstos no Código Penal, mas um homem a importunar, a amedrontar uma miúda não estava a cometer um crime. E um dos argumentos contra criminalizar é que as mulheres têm de saber lidar com isso, responder - mas as adolescentes também? Tenho uma filha de três anos e falei disto com o meu marido, sobre como nos sentiríamos com isto a suceder-lhe, como se podia protegê-la. E cheguei a esta formulação."»(4) Querem protecção como as crianças em vez de direitos como os homens.

Ironicamente, a fotografia que o Diário de Notícias escolheu para ilustrar o artigo sobre a lei do piropo é “Uma rapariga americana em Itália”, de Ruth Orkin. Tirada em Florença, em 1951, mostra Ninalee Craig, então com 23 anos, fitada por vários homens enquanto passa na rua. Hoje é vista como exemplo do assédio que aflige as mulheres na rua mas, para as duas mulheres envolvidas, fotógrafa e fotografada, representava precisamente o contrário: a independência das mulheres. Serviu até para ilustrar um artigo na Cosmopolitan de 1952 que encorajava as mulheres a viajarem sozinhas. «A admiração pública […] não a deve perturbar. Mirar as senhoras é um passatempo popular, lisonjeiro e inofensivo em muitos países estrangeiros. Os cavalheiros são mais vocais e expressivos que os homens Americanos, mas sem más intenções»(5). Setenta anos depois caminhamos de volta para o século XIX.

Devemos muito ao feminismo. E ainda precisamos do feminismo. Mas do feminismo que defende mulheres autónomas, eticamente equivalentes aos homens, igualmente capazes de arcar com responsabilidades e igualmente merecedoras de direitos. É por essa igualdade, a de direitos e responsabilidades, que vale a pena lutar em todo o lado aonde ainda não chegou. Lutar exige sacrifícios, mas se é por um fim justo vale a pena. Infelizmente, nas democracias ocidentais, este feminismo de mulheres está a dar lugar a um “feminismo“ adolescente que troca a luta pelo queixume e que, em vez de independência e igualdade de direitos, exige protecção especial contra propostas de teor sexual, estereótipos, anedotas sexistas e o olhar masculino. E exige lugares reservados em cargos competitivos, espaços seguros, validação, encorajamento e muitas outras coisas que se tem de conceder à mulher só porque é mulher. É um feminismo de primeiro mundo, de regalias, mais preocupado com o género de protagonistas nos filmes de Hollywood do que com a injustiça com que as mulheres são tratadas fora das democracias ocidentais. E é um feminismo perigoso. As mulheres conquistaram direitos iguais aos dos homens quando convenceram a sociedade de que eram igualmente capazes de viver a sua vida e de competir e colaborar com os homens sem regras especiais para as proteger. É esse feminismo que merece a nossa gratidão. Mas é isso que o novo feminismo está a destruir com as suas reivindicações de que seja o homem a acomodar as sensibilidades femininas para que a mulher consiga caminhar a seu lado.

1- Público, És mulher e estás a ler isto? “Agradece a uma feminista”
2- Guardian, Great speeches of the 20th century: Emmeline Pankhurst's Freedom or death
3- Wikipedia, Emmeline Pankhurst
4- Diário de Notícias, Piropos já são crime e dão pena de prisão até três anos
5- CNN, The real story behind 'An American Girl in Italy'

segunda-feira, fevereiro 11, 2019

Tipos de treta.

Apesar da oposição da ministra da cultura, foi aprovado no Parlamento o IVA a 6% para a tourada, beneficiando assim da redução reservada a espectáculos culturais. Parece estranho. A tourada não é um espectáculo cultural. Lutas de cães e de galos já foram proibidas e até a matança do porco tem de respeitar a legislação vigente para a «proteção dos animais de abate, quanto à contenção, atordoamento, sangria e demais disposições aplicáveis»(1). Trazer um porco para a praça, ou qualquer outro animal, e fazer o espectáculo espetando-lhe ferros seria repudiado até pelos aficionados da tourada. Invocar a preservação do touro “bravo” também não faz sentido. Não só porque a conservação ecológica não se faz espetando ferros nos animais como porque o touro “bravo” é gado doméstico, uma casta seleccionada pelo seu comportamento previsível (2). A justificação para a tourada é treta mas as tretas não são todas a mesma coisa.

Algumas tretas afectam apenas como cada um usufrui das suas liberdades. Se vai muitas vezes à missa, se consulta o horóscopo, se anda à caça de fantasmas ou se acredita que um deus criou cada vespa, varejeira e víbora de acordo com a sua espécie. Esses disparates não exigem grande preocupação acerca de como as pessoas vão reagir à crítica. Por exemplo, alguns crentes têm dito que as minhas críticas à sua religião só lhes reforçam a fé. Bom para eles. Não é coisa que me preocupe porque o meu interesse é nas ideias e no diálogo, pelo fascínio que tenho por estas tretas. Cada um que acredite no que lhe der mais gozo e use os crucifixos ou cristais que quiser.

Outras tretas levam pessoas a exigir que a sociedade imponha restrições à liberdade dos outros. Mas, felizmente, são restrições que não conseguem impor sozinhas. Por exemplo, exigem que um casamento tenha um homem e uma mulher ou que uma administração de uma empresa tenha pelo menos 40% de pessoas de cada sexo. Que seja crime dizer certas coisas ofensivas ou partilhar ficheiros na Internet. Neste caso, temos de ter atenção ao poder que essas pessoas possam ter para influenciar a legislação, ou para encontrarem outras formas de impor a sua vontade. Não é treta para encarar com a mesma leviandade que as do primeiro tipo. Mas, como o defensor da treta, sozinho, nada pode fazer, desde que se acautele a imposição da treta o problema fica resolvido. Por exemplo, uma vez abolidas as quotas de género no casamento tanto faz que fique muita gente irritada por os homossexuais poderem casar. Passa a ser uma treta inofensiva.

As piores tretas são aquelas que fazem uma pessoa cometer injustiças. Mutilar os genitais de crianças, não as vacinar, bater na mulher ou até matar os filhos, durante a gestação ou depois. Por exemplo, várias etnias tribais no Brasil praticam o infanticídio (3). Apesar de ser crime, não é viável prender tribos inteiras por causa disso. Medidas coercivas só são aceitáveis quando o acto a reprimir é suficientemente raro. Caso contrário, a lei não adianta. Por cá temos problemas semelhantes. O aborto foi despenalizado até às 10 semanas, na premissa de que isso resolvia o problema, mas continua a haver aborto ilegal pois nem todos os fetos são abortados até essa idade. Tal como antes da despenalização, não se vai prender quem o faça e despenalizar o aborto até aos 9 meses seria, mais uma vez, apenas disfarçar o problema. A mutilação genital de crianças, principalmente do sexo masculino, é uma prática tão comum que a justiça tem de a considerar excepção à regra evidente de que não se deve mutilar crianças. O mesmo com os castigos corporais. Teoricamente são crime mas só são punidos se o castigado for o cônjuge. Se for um filho faz-se de conta que não importa. Foi este aspecto da tourada que a ministra descurou. O “espectáculo” de espetar ferros num animal é indefensável. Mas este tipo de treta exige convencer as pessoas. Enquanto tantos acharem bem espetar ferros nos touros não há muito que se possa fazer.

Por isso, sem prejuízo da liberdade (e gozo) de desancar verbalmente quem defende tretas deste tipo, nestas tretas não podemos ignorar o que as pessoas pensam. Nas outras tretas não há problema. Tanto faz se o caçador de OVNI teima que Vénus é uma nave extraterrestre. E basta que quem queira proibir os homossexuais de casar não tenha poder para isso que não vale a pena ralarmo-nos com a sua opinião. Mas as tretas do terceiro tipo exigem considerar os factores que levam as pessoas a abraçá-las. Não se vai acabar com o infanticídio nas tribos do Brasil, ou a mutilação de crianças por crendice religiosa, só a escrever leis. É preciso compreender o que faz as pessoas agir assim e dar-lhes alternativas que elas prefiram. Só depois de reduzir a prática o suficiente é que se pode reprimi-la pela força. No caso da tourada, não sei ao certo o que se poderá fazer. Talvez incentivos económicos que facilitem a mudança de negócio a quem se dedica à criação dos touros. Talvez haja alterações graduais que se possa introduzir para reduzir o sofrimento do animal. Seja como for, com tretas deste tipo, se queremos resolver o problema é preciso engolir uns sapos e ser mais pragmático. Não podemos ficar só pelo escárnio e maldizer.

1- DRE, Despacho n.º 7198/2016, de 1 de junho de 2016.
2- Como os próprios aficionados admitem: «As ganadarias de toiros bravos surgem com a profissionalização do toureio a pé nos meados do século XVIII. Antes desta época o toiro era um animal silvestre, que vivia nos bosques da península ibérica. O touro bravo que hoje conhecemos é o resultado de mais de três séculos de cuidadosa selecção dos ganadeiros (pessoas que criam os toiros), que ao longo deste tempo foram selecionando caracteres comportamentais e morfológicos (aspecto) deste animal, numa busca constante pela bravura. Deste modo, hoje, podemos dizer que o toiro é cultura, ou seja, é o resultado da mistura entre as características naturais deste animal extraordinário e a acção do homem, na sua selecção.» Touradas.pt.
3- «Ainda praticado por cerca de 20 etnias entre as tribos brasileiras, o infanticídio indígena leva à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo.», INFANTICÍDIO INDÍGENA

domingo, outubro 28, 2018

Treta da semana: o beijinho.

Daniel Cardoso é doutorado em Ciências da Comunicação, activista das sexualidades e uma de muitas pessoas no Facebook que estão zangadas comigo. Tinha planeado neste post gozar com a sua declaração de que «Há aqui um problema grave: o poder de decisão que nós temos sobre os nossos corpos é muito limitado» e com os exemplos que ele deu desse grave problema (1). Quando Cardoso quis «iniciar o processo, pelo SNS, para fazer uma vasectomia», o médico perguntou se Cardoso sabia que o processo era irreversível. Mais tarde, quando exames indicaram que Cardoso poderia ser infértil, o médico disse que era preciso confirmar os exames e considerar terapias e que ser pai era fantástico. Estes exemplos da grave limitação de poder sobre os nossos corpos teriam dado um post divertido. Infelizmente, entretanto Cardoso foi tão enxovalhado por afirmar que obrigar uma criança a «dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho» é «educar para a violência sobre o corpo do outro»(2) que, pelo menos por enquanto, fiquei com menos vontade de gozar com os disparates dele. Assim, este post ficou mais sério do que tinha planeado e será sobre este tema em vez do outro.

Algumas pessoas defenderam Cardoso apontando o perigo dos abusos sexuais. Por exemplo, Paula Cosme Pinto explicou que «O raciocínio é apenas básico, e se pensarmos que a larguíssima maioria dos abusos sexuais com crianças acontecem dentro do seio familiar (quase 90%, diz a OMS), não é difícil chegar a conclusões.»(3) Realmente, não é difícil chegar a conclusões. Mas, se não se compreende o que as estatísticas significam, o mais certo é chegar às conclusões erradas. Que 90% dos abusos sexuais de crianças são perpetrados por familiares caracteriza os abusos sexuais. Não caracteriza os familiares. O que justificaria cautela seria a percentagem de avós que abusam sexualmente dos netos mas essa deve ser menor que 90%.

No entanto, a justificação principal que Cardoso apresenta é a de que não se deve obrigar ninguém a dar beijos se não os quer dar. O problema é que isto descura a diferença entre obrigar uma criança e obrigar um adulto. Também não se deve obrigar um adulto a comer a sopa, a levar vacinas ou a agradecer o chocolate que a avó lhe deu, mas isso é porque, por um lado, obrigar um adulto exige coação e, por outro lado, o adulto é responsável pelas consequências dos seus actos. Com crianças não é assim. A forma mais comum dos pais obrigarem as crianças a fazer algo é simplesmente dizendo-lhes para o fazer. Lava os dentes. Diz “obrigado”. Dá um beijinho à avó. Se fosse com um adulto ninguém diria que isto era «obrigação coerciva». Além disso, não podemos responsabilizar as crianças pelos seus actos. Se não lava os dentes, nem vai à escola, nem leva vacinas porque não a querem obrigar a criança vai sofrer consequências que não são culpa dela. São culpa dos adultos que a deviam ter obrigado.

Isto é verdade também para o beijinho à avó. Uma característica fundamental do adulto é a capacidade de regular o seu comportamento pelo que reconhece que deve fazer em vez de simplesmente pelo que prefere. É por isso que não é aceitável que um adulto a quem uma senhora de idade venha cumprimentar lhe diga eh lá, beijos de velhas é que não, vá lá lambusar outro. Mas o auto-controlo não surge do nada. Exige prática e os pequenos gestos que obrigamos as crianças a fazer são parte do treino. Para que, quando forem adultas, possam assumir o controlo sobre os seus actos e as suas liberdades. Cardoso opõe-se a isto alegando que «é um exemplo que elas vão levar ao longo da vida toda. E esse exemplo diz que se tiveres poder suficiente, podes passar por cima do não do outro.»(4) Mas isto não faz sentido. Nenhuma criança que seja obrigada a comer a sopa se torna num adulto convencido de que os outros têm direito de lhe enfiar colheres de sopa na boca. Ou de lhe lavar os dentes à força, ou de lhe tirar a roupa para lhe dar banho sem a sua autorização. Dizer à criança para dar o beijinho à avó não a ensina que se pode «passar por cima do não do outro.» Ensina-a a ter mais controlo sobre si própria quando isso é necessário para ter consideração pelos outros.

Eu julgo que este problema – que Cardoso, involuntariamente, tão bem ilustra – não é apenas ideológico. É também demográfico. Passar de criança a adulto exige aprender a viver também pelos outros em vez de apenas para si próprio. Dantes não era difícil. Havia irmãos com quem se tinha de partilhar tudo. Era preciso ajudar em casa ou cuidar dos mais novos. Os jovens adultos tentavam formar relações estáveis, o que exige cuidado pelo outro, e ter filhos obriga a sacrificar muito em proveito deles. Hoje há menos oportunidades para aprender a ser adulto, principalmente nas classes sociais mais activas nestas reivindicações. Crianças sem irmãos nem responsabilidades, relações sem investimento nem filhos e muita gente a viver só para si resultam numa sensibilidade excessiva a qualquer contrariedade e um desequilíbrio entre o que presumem como direitos e o que reconhecem como responsabilidades. Penso que isto contribui para verem como “problemas graves” o médico dizer que é bom ser pai ou achar que o beijinho à avó é «educar para a violência sobre o corpo do outro». Mas outro factor relevante parece ser um interesse profissional em empolar problemas da treta. Cardoso menciona um «artigo científico» que publicou «sobre o significado da criança na nossa cultura»(4). Deixo aqui uma parte da conclusão. Julgo que não vou resistir a voltar a este assunto.

«As considerações acima procuraram mostrar como, a partir de um neo-positivismo que continua a investir profundamente a fisicalidade enquanto elemento de veredicção sobre a juventude, os discursos contemporaneamente validados sobre a juventude operaram e operam ainda para a manutenção de estruturas históricas normativas de poder – patriarcal, branco, de classe alta, heterossexual. A crítica queerfeminista mostra o funcionamento dessa retórica, construída em torno de uma visão normalizada da adultície, tomada como teleologia que dá sentido à juventude.»(5)

1- Dia mundial da saúde sexual, Daniel Cardoso
2- YouTube, Daniel Cardoso, nos Prós e Contras
3- Paula Cosme Pinto, O ‘beijo na avozinha’ e o esgoto da hipocrisia da nossa sociedade
4- DN, Daniel Cardoso: "Não usei o exemplo do beijinho ao avô e avó por acaso"
5- Cardoso, D. (2018). Notas sobre a Criança transviada: considerações queerfeministas sobre infâncias. Revista Periódicus, 1(9), 214–233. (texto completo em pdf)

domingo, fevereiro 04, 2018

Treta da semana (atrasada): criptomoeda, parte 2.

Na primeira parte, propus que as “criptomoedas”, mesmo não sendo moedas por falta de estatuto legal, são fundamentalmente equivalentes às moedas fiduciárias. Todas valem em função daquilo que especulamos irão valer para os outros no futuro. Se estimamos que ninguém vai querer bolívares, o Bolívar deixa de ter valor. De pouco adianta o governo da Venezuela insistir que é muito bom para pagar impostos. Se as “criptomoedas” funcionam como o dinheiro mas não estão sujeitas a autoridades centrais que as possam controlar, pode parecer que só têm vantagens. Não é bem assim.

Não haver autoridades centrais que controlam o nosso dinheiro protege-nos de ficar sem nada quando o banco vai à falência ou do Estado facilmente restringir o que podemos fazer com o dinheiro. Mas se eu perder o cartão multibanco posso pedir um novo e se me enganar numa transferência ou falsificarem a minha assinatura tenho a quem recorrer. Em contraste, se perder a chave criptográfica de uma “criptomoeda” é impossível recuperá-la e qualquer transacção é irreversível. Posso mitigar o risco distribuindo-o por várias “criptomoedas”, ter cuidados com a segurança e especial atenção a fraudes, mas qualquer distracção pode sair cara.

Outra apregoada vantagem das “criptomoedas” é a segurança criptográfica. Em teoria, a criptografia é a tecnologia mais segura que temos. Mais segura do que qualquer fechadura ou cofre. Mas a teoria e a prática não são a mesma coisa. Na prática, basta um erro de implementação para estragar tudo e o software que usamos faz parte de um ecossistema complexo, com muito que pode correr mal. Pode haver um problema na geração de números aleatórios (1) ou selecção de números primos (2), o computador pode estar infectado com malware ou até haver falhas na arquitectura do CPU (3). Este risco também pode ser mitigado, com algum esforço, mas será sempre significativo. Isto é especialmente importante para quem queira investir a suas poupanças em “criptomoeda”. Basta um bug para perder tudo.

Finalmente, como as “criptomoedas” funcionam sobre sistemas distribuídos, sem controlo central, muita gente julga que são à prova de interferência do Estado. Não é verdade. São sistemas robustos porque estão concebidos para contrariar incentivos económicos à aldrabice. Por exemplo, para controlar a rede Bitcoin e poder reverter transacções e gastar as mesmas bitcoins várias vezes é preciso ter mais de metade do poder de computação da rede. Além de exigir um investimento enorme, isto seria imediatamente visível no registo dos blocos, levando toda a gente a abandonar essa “criptomoeda”. O investidor nesta aldrabice passaria a controlar algo que mais ninguém quereria e que, por isso, não teria qualquer valor. O incentivo económico é apenas para colaborar e ajudar a proteger a rede.

Mas nem todo o incentivo é económico. Se o governo da China decidir que a Bitcoin é um empecilho, facilmente obtém o poder de computação necessário para controlar a rede e destruir a Bitcoin. Ou qualquer outra “criptomoeda”. E, na prática, nem precisa desse investimento. A mera capacidade de o fazer torna suficiente declarar essa intenção para colapsar o preço de qualquer “criptomoeda”. Esta é outra consideração importante para quem quer ganhar dinheiro investindo nestas coisas. Quanto mais peso as “criptomoedas” tiverem na economia, mais provável é serem eliminadas ou sujeitas a regulação do Estado.

É por estas razões, e não pelo valor ser especulativo, que eu não recomendo investir muito nestas “moedas” com o intuito de enriquecer. Na prática, há muita coisa que pode correr mal. Mas faz sentido investir um pouco nesta tecnologia porque é muito mais do que uma aposta para ganhar euros. Estes sistemas distribuídos de registo de transacções podem servir como dinheiro, para registar contratos, para alugar poder de computação ou espaço de armazenamento ou, em teoria, qualquer coisa que se possa fazer com a Internet e serviços digitais. Nós estamos habituados a obter estes serviços de entidades nas quais temos de confiar, seja o banco seja a Google ou a Microsoft. Mas, por um preço um pouco mais alto – um sistema distribuído fiável tem custos – poderemos optar por alternativas que não dependem de confiar em ninguém. Não é claro que fracção do mercado corresponderá a essas alternativas mas é muito provável que seja significativa. As “criptomoedas” são apenas o primeiro exemplo desse potencial.

1- Arstechnica, 2013, Google confirms critical Android crypto flaw used in $5,700 Bitcoin heist
2- Arstechnica, 2017, Flaw crippling millions of crypto keys is worse than first disclosed
3- Meltdownattack.com

quinta-feira, janeiro 25, 2018

Treta da semana (atrasada): criptomoeda, parte 1.

A popularidade de “criptomoedas” como a Bitcoin tem estimulado muita crítica, proselitismo e opinião. E, como é inevitável, muita treta. Dá para dois posts, pelo menos, começando logo pelo nome.

Uma moeda é um meio de troca com suporte legal. O Euro é moeda porque a lei favorece o seu uso no comércio e no sistema bancário e o Estado aceita, e usa, euros para saldar dívidas. Neste sentido, uma “criptomoeda” não é moeda. Nem sequer é especialmente “cripto”, porque usar criptografia para autenticar agentes e garantir a integridade de registos não é novidade nenhuma. O que distingue as “criptomoedas” é a listagem de transacções ser pública e permitir que qualquer participante acrescente registos. Esta listagem pública – a blockchain – elimina a necessidade de confiar numa autoridade central que decida quem tem o quê. Muitos criticam a Bitcoin pela electricidade gasta a proteger as transacções, mas parece-me ser um preço aceitável para não pôr tudo nas mãos de um Ricardo Salgado ou uma Lehman Brothers.

A crítica mais comum às “criptomoedas” é a de que o seu valor é especulativo, alegadamente ao contrário de uma moeda fiduciária como o Euro. Esta crítica é parcialmente correcta. Se dou 20€ por um bilhete para ver o espectáculo, estou decidir que, para mim, ver o espectáculo vale mais que 20€. Isto não é especulativo porque eu sei o que prefiro. Mas se dou 20€ pelo bilhete contando vendê-lo por 30€ à porta do pavilhão, o valor que dou ao bilhete será parcialmente especulativo porque depende de especular acerca do valor que outros lhe darão. Pode até ser totalmente especulativo se eu não tiver interesse nenhum no espectáculo. Neste sentido, é verdade que o valor das “criptomoedas” é principalmente especulativo.

Onde esta crítica falha é em julgar que o Euro é diferente. Não é. É verdade que, por ser moeda, o Estado garante que o aceita para saldar dívidas, como impostos e taxas. Mas pagar impostos não tem um valor positivo e se fosse essa a única utilidade do Euro ninguém iria querer euros. Apesar de, colectivamente, todos beneficiarmos por todos pagarem impostos, individualmente é sempre preferível deixar os outros pagar. Por isso, só damos valor aos euros porque especulamos que outros irão dar valor a esses euros, no futuro, quando os quisermos trocar por outra coisa. É essa confiança especulativa num valor futuro, e não a mera garantia do Estado, que nos faz dar valor a moedas como o Euro. E a “criptomoedas” como a Bitcoin.

Isto é contra-intuitivo porque a utilização ubíqua de moeda no mercado faz parecer que o valor da moeda está objectivamente ligado aos bens e serviços transaccionados no país. Normalmente, é a proporção entre a quantidade de dinheiro em circulação e o tamanho da economia que determina a inflação. Mas isto só acontece enquanto a maioria especular que os outros continuarão interessados nessa moeda. Quando falha a confiança, o valor da moeda desliga-se do resto da economia. Por exemplo, a Venezuela produz petróleo. Se o preço do Bolívar estivesse preso aos bens que a Venezuela produz, qualquer país aceitaria bolívares porque poderia trocá-los por petróleo na Venezuela. Mas não é isso que acontece. Ninguém quer vender coisas à Venezuela em bolívares porque o valor presente do Bolívar não é função daquilo que a Venezuela tem agora para vender. É função da expectativa – especulativa – de quanto se poderá comprar no futuro com esses bolívares. Neste momento, ninguém especula que seja grande coisa.

É verdade que o Estado tem algum poder para manter os cidadãos presos à sua moeda. Se eu recebo em euros e o supermercado vende em euros, é mais difícil eu desistir do Euro do que da Bitcoin. Mas se bem que isto sirva para pressionar a maioria das pessoas a usar a moeda oficial do país, a maior parte do capital está concentrada numa minoria que facilmente escapa a esta pressão. Um dos primeiros sintomas do desmoronamento de uma moeda é a fuga de capital quando os ricos se descartam dela antecipando – e contribuindo para – o seu colapso. Este é um problema que afecta qualquer “criptomoeda” mas que afecta também qualquer moeda. Há diferenças de grau, tal como há diferenças entre entre o Euro e o Bolívar, mas o valor de uma moeda fiduciária é, fundamentalmente, tão especulativo quanto o de uma “criptomoeda”.

Ou até mais. Para mim, a “criptomoeda” – ou, melhor dizendo, a participação num sistema aberto e descentralizado de registo de transacções – tem algum valor próprio, além do especulativo. Acho interessante a ideia e a implementação. Foi esse interesse que me fez investir nisto há uns anos. Não foi para especular e vender. Era o meu bilhete para o espectáculo. É verdade que, neste momento, esse valor é residual comparado ao seu valor especulativo, ordens de grandeza maior. Mas isso apenas aproxima as “criptomoedas” de moedas como o Euro e o Bolívar, que nem aquele valor próprio residual têm. Além disso, o nosso controlo sobre os euros no banco é bastante menor do que o controlo sobre bitcoins, como ficou demonstrado no Chipre em 2013 e como, suspeito, será ainda mais evidente em breve (1).

No entanto, apesar de achar que muitas das críticas que fazem a este sistema serem treta e de ver algumas vantagens em ter sistemas distribuídos de registo de transacções, não recomendo a ninguém que arrisque nisto dinheiro que lhe vá fazer falta. Porque, do outro lado, também há tretas que merecem consideração. Mas isso fica para a segunda parte.

1- Reuters, 2017-07-28, EU explores account freezes to prevent runs at failing banks

domingo, setembro 24, 2017

Adenda à rábula da misoginia.

A conversa com Mário Moura durou mais um pouco (1). Segundo Moura, a desigualdade sexual nas profissões «Não tem nada a ver com evolução, com biologia ou o que seja». Isto é pouco plausível. Entre outras coisas, implica acreditar que nenhum homem alteraria o seu projecto de vida perante o prognóstico de ficar estéril aos quarenta anos e que a gravidez e a amamentação têm um impacto exactamente nulo na competição por promoções. Implica também que a cultura humana seja independente da biologia, quando a capacidade de criar culturas como as que temos é a característica biológica mais saliente da nossa espécie. Mas a conversa estava a ser interessante pela admissão de Moura que rejeitar uma explicação biológica «é uma questão de princípio» e pela forma quase explícita como defendeu que a melhor explicação é aquilo que cada um quiser: «nunca te expliquei porquê... de uma maneira que tu achasses plausível. Porque já te expliquei porquê uma dúzia de vezes ou até talvez mais.» O relativismo é comum nas humanidades. Mas aquelas pessoas cuja disciplina tem “ciências” no nome tendem a disfarçá-lo melhor. Moura, que é designer, tem menos receio em admitir que mistura o que é com o que gostaria que fosse, exibindo às claras um tipo de raciocínio que sempre me fascinou.

Foi uma conversa penosa. Quando algo me interessa, sou muito melga e não respeito a convenção para este tipo de diálogo. Manda a tradição que se comece com arrogância, se passe logo ao insulto, que o interlocutor depois responde à altura e a conversa detona em indignação catártica para gáudio da assistência. Como eu não alinho nisto, a conversa costuma arrastar-se por várias tentativas de me picar até que a outra parte se farta. Pode parecer fútil, mas só perseverando é que se percebe como pensa quem diverge tanto de nós que nos detesta visceralmente. O normal é a conversa acabar quando o outro diz que já chega mas, desta vez, Moura também me bloqueou. E isto tem uns efeitos engraçados.

Bloquear podia ser uma forma razoável de filtrar comentários indesejados. Há tempos, quando o spam criacionista neste blog estava a ser excessivo, criei um script que permitia cada visitante filtrar os comentários como quisesse no seu computador. Mas, no Facebook, o bloqueio é mais radical. O bloqueado fica isolado de tudo o que esteja relacionado com o bloqueador. Por exemplo, quando Moura me bloqueou, fiquei sem acesso a toda a conversa, incluindo tudo o que eu escrevi e os diálogos que tive com outros interlocutores. Este bloqueio faz também com que eu não possa ler o que Moura escreve sobre mim no seu perfil público, acessível a todos os outros utilizadores do Facebook. Faz-me lembrar os segredos e os bilhetinhos passados às escondidas na escola primária. Sempre discordei de chamar “redes sociais” a estas plataformas. A rede são as pessoas e não a tecnologia. Mas talvez o Facebook mereça a designação de rede anti-social pela forma como aproveita os piores impulsos dos seus utilizadores para vender mais anúncios.

Obviamente, só usa o Facebook quem quer e Moura tem todo o direito de o usar como entender. Quem bloqueia ou não bloqueia é consigo. Mas esta pirraça é parte de um padrão preocupante nos guerreiros da justiça social. Não é um padrão novo, mas repete erros antigos que sabemos serem nefastos. Seitas e religiões sempre impuseram preceitos para isolar os seus seguidores de ideias que os pudessem tresmalhar. O que comer, como rezar, o que vestir, ler ou dizer, e até com quem se podiam casar, contribuíam para manter fiéis separados de infiéis. Hoje, nestas novas seitas, cumpre-se o sagrado dever de bloquear, “desamigar” ou limpar das listas de contactos qualquer fonte de impureza ideológica. É a doutrina do sou tão contra a discriminação que nem sequer falo com essa gente. Isto é preocupante porque mostra que não estão interessados em promover as suas ideias pelo diálogo. O que querem é impô-las à força.

Outro aspecto preocupante deste padrão é a convicção de que as explicações certas só podem interpretar os dados de acordo com a ideologia adoptada. É claro que homens e mulheres são muito diferentes. Mas essa diferença não pode influenciar a progressão numa carreira porque, se influenciasse, a realidade estaria a contradizer o princípio sagrado de que a culpa tem de ser do sexismo. No tempo de Galileu era a heresia. Agora é o politicamente incorrecto. O nome difere mas a ideia é a mesma. E, como podemos ver no exemplo do aquecimento global, quando a ideologia se interpõe entre nós e a realidade quem se lixa somos nós porque a realidade está-se nas tintas para o que pensamos dela.

Os gregos adorariam isto. Nas trevas da ignorância e da superstição fizemos luz. Inventámos métodos para compreender a realidade, criámos tecnologia que permite partilhar informação globalmente e construímos sociedades livres partilhando poder e responsabilidade entre todos. Há uns anos, a Internet aberta parecia anunciar uma sociedade global ainda mais esclarecida. Mas os deuses devem ter ficado com inveja, ou essas coisas que acontecem nas tragédias, e agora o negócio aduba novamente a mesquinhez intelectual que começara a definhar. As coutadas isoladas pela ideologia são alvo fácil de manipulação, comercial por intenção e eleitoral por efeito secundário. O discurso racional não consegue competir com a indignação irracional, que cabe no ecrã do telemóvel e dá mais likes. E a facilidade com que se cria uma bolha na qual todos concordam faz parecer que a realidade, afinal, obedece mesmo à ideologia. Algures pelo Facebook, apoiantes incondicionais da igualdade de género aplaudem com antecipação os autocarros exclusivos para mulheres, expurgando dos seus contactos qualquer machista que desconfie da contradição. É uma questão de princípio, dirão. Esperemos é que não seja o princípio do fim.

1- Nelson Zagalo, (Facebook). Ver também o post anterior, Treta da semana (atrasada): diz que sou misógino.

sexta-feira, setembro 22, 2017

Treta da semana (atrasada): diz que sou misógino.

O Facebook é um meio de comunicação peculiar. Nelson Zagalo mencionou que a sua filha o questionara acerca de haver tão poucas mulheres realizadoras. Vários comentadores apontaram o dedo ao sexismo e ao “patriarcado”. Este patriarcado está para as humanidades como o éter luminífero esteve para a física; um fluido invisível, sem massa nem viscosidade, mas milhões de vezes mais rígido do que o aço. O patriarcado também tem de ser tão poderoso que impede as raparigas de ir para informática, barra o acesso das mulheres a cargos eleitos e não as deixa fundar empresas mas, ao mesmo tempo, não se consegue vislumbrar como é que obriga as mulheres a fazer o contrário do que querem. O sexo que dantes marchou contra os cassetetes da polícia para ganhar o direito ao voto agora é subjugado pelo poder misterioso dos brinquedos cor-de-rosa e dos micromachismos.

Eu propus uma explicação alternativa. Há países onde a lei discrimina as mulheres e, nesses, o sexismo é obviamente o factor dominante. Mas nos países que garantem igualdade de direitos, a vontade individual tem mais poder do que essas pressões. O sexismo não desapareceu mas também não consegue impedir uma rapariga de ser engenheira ou um rapaz de ser enfermeiro se for isso que querem ser. As pessoas não são tão frágeis quanto a tese do patriarcado exige. A explicação mais plausível é a de que há diferenças médias nas preferências de homens e mulheres. Em particular, em quanto querem sacrificar para serem melhores que os outros.

Vamos imaginar que só existiam homens e, por só haver um sexo, não havia sexismo nem patriarcado. Mas metade dos homens engravidava, dava à luz, amamentava, só podia ter filhos em segurança até aos 40 anos de idade e, da puberdade aos 50 anos, tinha hemorragias e dores dois ou três dias por mês todos os meses. É óbvio que estes homens, mesmo sem sexismo, teriam de fazer um sacrifício maior para competir com os outros. É o que acontece às mulheres. Não é um impedimento. Não é impossível uma mulher superar os homens e há mulheres que o fazem, como Angela Merkel demonstra. Mas sai-lhes mais caro. Aos 63 anos, se Merkel fosse homem ainda podia ter filhos. Ou, não tendo de engravidar nem amamentar, até podia tê-los tido mais cedo. Mas, sendo mulher, seria muito difícil chegar onde chegou se tivesse tido filhos e agora já não os pode ter. Diferenças como estas afectam, em média, as escolhas das pessoas.

Além de ter custos menores, investir no sucesso profissional tem benefícios maiores para homens do que para mulheres. Woody Allen é um bom exemplo disso. Casou três vezes, a terceira com uma mulher com metade da sua idade, e teve relações com Diane Keaton e Mia Farrow. Eu não sei como ele é na cama, mas suspeito que, sem o sucesso profissional que teve, o seu sucesso com as senhoras seria também menor. Donald Trump, Richard Branson e Mick Jagger são outros exemplos de como o sucesso traz mais benefícios aos homens do que traz às mulheres.

Assim, a melhor explicação para haver mais homens que mulheres no topo de muitas carreiras é que a fossanguice para ser o melhor custa menos aos homens e dá-lhes mais proveito do que dá às mulheres. É uma explicação melhor do que a do tal “patriarcado”, não só porque se percebe de onde vem – não exige postular factores ad hoc para explicar cada caso – como também explica porque é que muitas desigualdades sexuais se agravam quanto mais liberdade, legal e económica, as pessoas têm para viver as suas vidas como preferem.

Mas este post é mais sobre o Facebook. Enquanto estava a ter esta discussão com Mário Moura no post de Nelson Zagalo (1), Moura deturpava a minha posição no seu perfil, escrevendo que eu defendia que «o facto de uma mulher ter dores menstruais a incapacita para realizar filmes» e que «A UP está cheia de grunhos mas desta vez» o grunho é da NOVA (2). É perfeitamente legítimo mas, graças à magia do Facebook, toda a gente pode ver esses comentários mas eu não posso comentar lá. Como Moura também não dá a ligação para o que eu escrevi, é fácil mostrar o espantalho que lhe aprouver sem enfrentar contraditório. Não é por isso de estranhar que passasse a ideia de que eu sou misógino (3). O que é falso e até irónico.

Apesar de perceber a correlação entre a fossanguice masculina e o sucesso reprodutivo, e como isso fez evoluir estas disposições típicas dos homens, parece-me que as mulheres é que têm razão. Allen, Branson, Jagger e Trump podem ter muito sucesso mas uma vida bem vivida não se mede por isso. Exige um equilíbrio razoável entre carreira, família e vida pessoal. Foi um revés infeliz do feminismo moderno ter adoptado uma métrica machista para avaliar a vida das pessoas. Moura, por exemplo, escreveu que numa sociedade igualitária as mulheres não se vão «dedicar a ser sopeiras ou qualquer actividade adequadamente feminina»(1). É como se fosse degradante investir menos na carreira para ter uma vida familiar melhor. Eu acho que é precisamente o contrário. Seria um disparate abdicar de brincar com os meus filhos e de os ajudar com os trabalhos de casa, ou abandonar interesses pessoais como a agricultura e discussões sobre religião, só para ser chefe ou para ser o melhor investigador do departamento. A ânsia de ultrapassar os outros é um impulso tipicamente masculino, e que suspeito estar relacionado com a maior taxa de suicídios neste sexo, mas não é receita para uma vida boa. Nisto, ao contrário de ser misógino, até sou mais mulher que homem. E tenho alguma pena daqueles, principalmente homens, que não conseguem perceber isto.

PS: tenho de me lembrar de discutir menos no Facebook e, em vez disso, trazer a discussão para aqui onde o direito ao contraditório incentiva mais honestidade.

1- Nelson Zagalo, (Facebook)
2- Mário Moura, (Facebook)
3- Mário Moura, mais comentários aqui, e aqui, por exemplo.

quarta-feira, janeiro 04, 2017

O Fim

é o título de uma história que escrevi há cerca de 18 anos. Foi publicada em 2001 pela Simetria FC&F e, se não fosse o leitor Herberti Pedroso, nunca mais me teria lembrado disto. Aproveito para agradecer ao Herberti os comentários gentis acerca da história e para pedir desculpa por ter demorado tanto tempo a desenterrá-la e a pôr novamente online. Resisti à tentação de rescrever tudo mas corrigi algumas gralhas.

Para quem estiver interessado, aqui está o pdf: o_fim.pdf. E se alguém quiser reformatar o texto, adaptar, reciclar ou o que mais calhe, tem aqui o ficheiro LaTeX: o_fim.tex.

Bom ano novo.

Errata (8 de Janeiro): havia um problema com os sinais de %, que no LaTeX indicam um comentário e estavam a cortar as frases. Já corrigi. Obrigado ao Luis Carvalho pelo aviso.

domingo, novembro 27, 2016

Treta da semana (atrasada): Trump e os ofendidos.

Donald Trump teve sessenta e dois milhões de votos, mais dois milhões de votos que John McCain e Mitt Romney quando perderam para Barack Obama. Obama teve 69 milhões de votos em 2008, 66 milhões em 2012 e, agora, Hillary Clinton teve 64 milhões de votos. Nestas três eleições os Democratas caíram cerca de 7% em proporção aos eleitores, com os Republicanos a manterem a sua fatia aproximadamente constante. A menos de surpresas nas recontagens, esta eleição parece ter sido mais uma derrota dos Democratas do que uma vitória dos Republicanos (1).

Boa parte do problema foi Clinton. Ganhou a candidatura graças ao apoio da cúpula do partido Democrata, dos superdelegados ao comité nacional, e da gente importante que queria afastar Sanders. Mas, ao contrário de Sanders, não ofereceu nada de novo que entusiasmasse eleitores fartos do vira o disco e toca o mesmo. Por outro lado, factores sociais e económicos alteraram a demografia do eleitorado republicano e isto acabou por dar a vitória a Trump mesmo ficando atrás no voto popular. Beneficiou também dos votos de protesto contra Wall Street e contra a crescente desigualdade de rendimentos nos EUA (2). Quem sofre injustiças tem mais vontade de partir tudo do que de optimizar racionalmente os seus benefícios. Isto foi importante na vitória de Trump como já tinha sido no Brexit e como será novamente enquanto não resolvermos as injustiças económicas que ameaçam a nossa democracia.

Mas o aspecto mais saliente da vitória de Trump foi o seu populismo racista e xenófobo. Custou-lhe alguns votos, ao alienar a franja menos insana do eleitorado republicano. Mas, feitas as contas, compensou. Ainda que muitos eleitores não tenham votado em Trump por serem racistas ou xenófobos, o facto é que sessenta e dois milhões de pessoas lhe deram o seu voto apesar dele defender políticas obviamente imorais e perigosas, de deportações em massa a perseguição religiosa. A popularidade destes disparates sugere um erro grave na forma de os combater e eu suspeito que esse erro é a crescente intolerância daqueles que, em nome da igualdade, atropelam a liberdade de pensar de forma diferente. Um mal do qual também sofremos por cá.

Se um barbeiro só atende homens, invadem-lhe a barbearia (3). Se um comentador diz mal dos ciganos, fazem uma petição para o proibir de aparecer na TV (4). Se o dono de um hotel pede a homossexuais para não pernoitarem lá, é caso para a ASAE e exige-se legislação à medida para proibir tais pedidos (5). Esta luta pela igualdade não reconhece a diferença entre o que é incorrecto e o que é legítimo proibir. Além de não respeitar a liberdade de consciência dos outros – mesmo quem erra tem o direito de ser como é e de dizer o que pensa – esta atitude é estúpida. Racismo, misoginia, xenofobia e afins são ideias. São sensações, preferências, disposições íntimas que não se pode combater pela força. O ladrão preso não rouba mas o racista censurado ou coagido continua a ser tão racista quanto era. Vai apenas disfarçar até estar sozinho com o boletim de voto.

Para combater ideias más é preciso persuasão, o que exige vontade de dialogar e respeito pela liberdade de discordar. Infelizmente, muita gente que defende a igualdade de direitos fá-lo sob a impressão errada de que a indignação e a força têm mais virtude do que o diálogo. O problema tem-se agravado com a crescente dependência de negócios de venda de publicidade a que chamam “redes sociais”. Para maximizar o tempo que as pessoas lhes dedicam, estes serviços encorajam, e até automatizam, a filtragem de tudo o que possa desagradar ao utilizador. Muita gente até se gaba com orgulho de “limpar” as suas listas de contactos para se isolar de quem pensa de forma diferente. Se bem que, individualmente, esta intolerância é legítima – cada um tem o direito de decidir onde gasta o seu tempo – a morte do diálogo pela indignação do virtuoso é uma oportunidade perdida de esclarecer, de explicar e de vencer este combate onde ele tem de ser vencido. Na mente do outro. Não se consegue persuadir toda a gente com diálogo. Há muita gente demasiado casmurra. Mas sem diálogo o resultado é ainda pior e, como Trump demonstrou, não é preciso persuadir toda a gente. Basta alguns, no sítio certo.

Pior ainda, quando esta atitude de intolerância se manifesta colectivamente, a tendência é estender o filtro para a coerção e censura. Não basta mudar de canal. É preciso proibir o racista de aparecer na televisão, ou banir o vídeo do YouTube, ou retirar a página da Internet, fechar a barbearia e assim por diante. A mensagem que isto transmite a quem tem opiniões politicamente incorrectas é clara. Só terá liberdade para dizer o que pensa quando estiver no poder quem partilhe dessas opiniões. Isto praticamente força as pessoas a eleger alguém como Trump só para poderem dizer o que lhes vai na mente.

Quem usar o diálogo para opor o racismo, a misoginia e demais formas de discriminação tem a vantagem de ter razão. Ter razão não garante sucesso mas ajuda muito. No diálogo. Na coacção e na repressão tanto faz porque aí só conta a força. Nisso, ter razão não adianta de nada. É esta vantagem que perde quem “desamiga” o intolerante, quem assina a petição para censurar o racista e quem exige leis que proíbam hoteleiros de pedir clientes heterossexuais. Barafustar de indignação pode dar likes mas, se querem mesmo combater estas ideias parvas, têm de deixar de se fazer de ofendidos e começar a falar com as pessoas. E admitir que elas discordem.

E aqui fica a versão TL;DR deste post:


1- CNN, Voter turnout at 20-year low in 2016; ver também aqui as contagens actualizadas e aqui o perfil dos eleitores.
2- Wikipedia, Income inequality in the United States
3- Público, 2015, Activistas invadem barbearia de Lisboa onde só entram homens e cães
4- Petição Pública, Afastar Quintino Aires da TV
5- DN, Hotel no Minho veda entrada a "gays e lésbicas"

segunda-feira, agosto 15, 2016

Treta da semana (atrasada): Expulsar o Quintino.

É quase unânime a condenação de espectáculos de tortura animal como as lutas de cães. Mas muitos consideram a tourada excepção porque é tradição e assim. É consensual que quem aluga quartos pode escolher os inquilinos. À volta de cada faculdade há dezenas de anúncios de quartos e residências para alugar apenas a raparigas. Ninguém se opõe. Mas quando numa pousada pediram aos homossexuais que não fizessem reservas foi imenso o clamor contra o crime hediondo de discriminação. Apesar dos ideais de igualdade e liberdade terem permitido um grande progresso social nos últimos séculos, ainda há muitos buracos por onde a indignação arbitrária se infiltra. O resultado pode ser caricato como a invasão de feministas a uma barbearia (1), mais sério como condenar à prisão trolhas que formulem propostas de teor sexual (mas não prostitutas, evidentemente) e até, se as coisas correm mesmo mal, meter um Khomeini ou Erdogan no poder. O caso Quintino Aires é mais ridículo que trágico mas ilustra como a arbitrariedade da indignação é inimiga da justiça.

Quintino Aires disse na TVI que «a maioria (dos ciganos) vive dos subsídios, ou trafica droga e não trabalha» (2). Para muitos, é inadmissível dizer tal coisa. Ou até pensá-la. Milhares assinaram uma petição que, inventando o crime opinião racista, exige «o afastamento definitivo deste senhor da TV»(3). Terá Aires passado os limites da liberdade de expressão?

Não. Em rigor, não há limites para a liberdade de expressão. Se queremos que todos sejam igualmente livres e tão livres quanto isso permita, temos de garantir a cada um o máximo de liberdade compatível com liberdades equivalentes para todos. É isto que resolve o problema de um acreditar que quem rejeita Jesus merece arder no inferno, outro achar que isso é disparate e um terceiro defender que os dois vão para o inferno porque não seguem Maomé. Qualquer um pode achar que as tatuagens são feias, que o sexo anal é nojento ou que o boxe é um desporto estúpido. Basta que ninguém pique, enfie ou esmurre contra a vontade do outro e, sobretudo, que não tente enviar terceiros para o inferno antes do tempo, para não haver problema em respeitar por igual a liberdade de todos acreditarem e exprimirem as suas crenças. Esta ideia é tão importante que a sua adopção ou rejeição é a principal diferença entre sociedades onde vale a pena viver e sociedades de onde mais vale a pena sair. É por isso que a liberdade de expressão, enquanto tal, não merece limites.

O problema é que dizer palavras tem outros efeitos além de exprimir uma ideia. São esses efeitos que podem violar liberdades importantes e justificar restrições. Por exemplo, exprimir a ideia de incendiar a embaixada de Israel, em abstracto, é perfeitamente legítimo. Fi-lo aqui agora mesmo sem infringir liberdade alguma. Mas gritar “vamos incendiar isto tudo!” durante uma manifestação neonazi à porta da embaixada já tem o efeito previsível de infringir liberdades mais importantes do que a liberdade de gritar isso, dessa forma, nessa altura. Portanto, se bem que a liberdade de exprimir ideias não mereça limite, a liberdade de agir pela palavra tem de ser limitada para respeitar o princípio de que todo devem ter as mesmas liberdades.

Sendo assim, é fácil perceber que o critério para julgar as palavras de Aires não pode ser o quanto desagrada a ideia subjacente. Deve ser apenas que efeito que as suas palavras possam ter em liberdades tão ou mais importantes que a liberdade dele de dizer o que pensa. E não parece haver tal efeito, porque a liberdade de não se sentir ofendido com o que outros dizem não se aproxima sequer, em importância, da liberdade de dizer o que se pensa mesmo que ofenda.

O mesmo não se pode dizer dos peticionários. Toda a gente tem o direito de dizer mal de Aires, de deixar de ver os programas onde ele comente e de dizer aos responsáveis pela programação que não verão mais televisão enquanto o Aires lá aparecer. Por sua vez, quem dirige a TVI tem o direito de não querer lá mais o Aires. Mas quando se organiza gente para exigir que se expulse o Quintino Aires da televisão, esse acto pretende ter um efeito que já interfere com as liberdades de terceiros. Com a liberdade do Quintino Aires aparecer na televisão, com a liberdade de quem dirige a TVI decidir quem convida para comentar e com a liberdade dos portugueses que gostem de ver o Quintino Aires na televisão e que, independentemente do seu mau gosto, também são gente e também merecem respeito.

A quem quer suspender os princípios da igualdade e liberdade neste caso porque o Quintino fez algo chocante, apresento este outro caso. Na Coreia do Sul, uma actriz de videojogos publicou uma foto vestindo uma camisola onde se lia «as raparigas não precisam de um príncipe». É uma camisola vendida por um grupo feminista polémico na Coreia e a foto levou a imensos protestos de jogadores exigindo que a actriz fosse despedida. Foi despedida (4).

Eu defendo que qualquer actriz tem o direito de usar qualquer camisola, que qualquer jogador tem o direito de jogar, ou não jogar, qualquer jogo por quaisquer razões, mesmo machistas, e que os produtores dos jogos têm o direito de contratar quem quiserem. Mas quando se exige algo não se está apenas a exprimir uma opinião. Mesmo quando essa exigência não tenha a força da lei, visa subordinar as liberdades à mera opinião de quem o exige. E isso pode ser tão injusto quanto incitar a turba a incendiar a embaixada. É isso que me parece imoral no que fizeram na Coreia e no que estão a tentar fazer ao Quintino. Não é pelo mérito ou demérito das opiniões de cada um, do Quintino, dos seus críticos, da actriz ou dos jogadores machistas. É imoral porque exigem que a sua opinião conte mais do que a liberdade dos outros.

1- Observador, Barbearia que proíbe entrada a mulheres invadida em protesto feminista
2- Sábado, Quintino Aires em polémica de "extrema gravidade" com etnia cigana
3- Petição Pública, Afastar Quintino Aires da TV
4- BBC, South Korea gaming: How a T-shirt cost an actress her job