segunda-feira, outubro 07, 2019

Treta da semana: a receita.

Esta é a receita da moda para combater desigualdades de género: escolhe-se um indicador estatisticamente diferente em homens e mulheres; presume-se causado por estereótipos e fácil de mudar com exemplos ou educação; tenta-se mudar e, quando se descobre que não muda, impõe-se quotas. Por cá, a receita já foi seguida até ao fim na administração de empresas e nas eleições mas, mesmo sem esta fase terminal, o processo todo peca por assumir que as predisposições visadas são fáceis de ajustar e por presumir que é papel legítimo do Estado tentar condicionar a maneira de ser das pessoas.

Pensemos no que faz alguém sentir-se atraído por outrem, sexualmente ou romanticamente. Apesar da a orientação sexual, fetiches e outras preferências variarem muito de pessoa para pessoa, e de ser tudo influenciado por factores sociais, ainda assim há uma diferença média significativa entre o que atrai homens e o que atrai mulheres. Não permite prever muito acerca de cada indivíduo, porque cada um é só como si próprio, mas há uma correlação grande na população que, inevitavelmente, estraga as estatísticas da igualdade de género. Os homens tendem a preferir parceiras com indicadores físicos de fertilidade, o que inclui a idade, por razões óbvias quando pensamos na evolução do nosso desejo sexual. As mulheres também preferem parceiros com bons genes mas, em média, não preferem parceiros mais jovens pois não é o homem quem aguenta a gravidez e o parto. Esta diferença de preferências afecta muitas estatísticas, desde a diferença média de 8 anos entre actrizes e actores quando ganham o primeiro Oscar (1) à diferença de dois ou três anos entre a mãe e o pai quando nasce o primeiro filho (2). Por sua vez, a diferença de idades entre o pai e a mãe quando o filho nasce contribui para que, nessa altura, o pai tenda a ter um salário maior do que o da mãe. Acresce a isto vantagem que a mulher jovem tem por deter quase tudo o que é preciso para constituir família, permitindo-lhe escolher um parceiro com melhor estatuto sócio-económico. Por seu lado, ao homem não compensa ser exigente neste critério porque não só precisa que a parceira entre com todo o capital biológico como a sua confiança acerca da paternidade está dependente de a convencer a concedê-lo em exclusividade. Por isso o homem tende a preferir uma mulher que precise dele, nem que seja para pagar as contas. Isto nota-se bem nas estatísticas das diferenças salariais. Não são simplesmente entre homens e mulheres. A maior diferença parece ser entre homens casados e o resto (3). Considerando as preferências diferentes quanto à idade e nível sócio-económico dos parceiros e outras diferenças como o parto e a capacidade de amamentar, não é estranho que o rendimento das mulheres caia significativamente quando nasce o primeiro filho (4). Tanto a biologia como as escolhas feitas até esse momento contribuem para que seja o homem a trazer recursos e a mulher a ficar com a criança.

Obviamente, não será popular defender que o Estado deve persuadir as mulheres a escolher parceiros mais jovens e mais pobres para que sejam elas a ir trabalhar, ficando eles em casa com as crianças. Isso punha a nu os problema fundamentais da receita. É por isso preciso inventar causas hipotéticas cuja regulação pelo colectivo seja mais aceitável. Os estereótipos são uma opção sempre popular mas, no Observador, João Pires da Cruz dá um exemplo alternativo: o problema é as mulheres serem perfeccionistas (5). É este perfeccionismo que, segundo Cruz, temos de corrigir às raparigas logo na escola. Mas além de não ser claro como se corrige o perfeccionismo, ou sequer que legitimidade temos para o fazer – não será um direito ser perfeccionista? – as evidências que Cruz apresenta para a sua hipótese são pouco persuasivas.

Começa por apontar que, no ginásio, estão só as «magras, vestidas impecavelmente e […] a risca dos sapatos combina com o tom da camisola». Mas isto é o que se espera pela diferente importância que homens e mulheres dão à aparência em potenciais parceiros sexuais. Se um homem pudesse entrar num bar e garantir encontrar várias mulheres dispostas a ter relações sexuais com ele simplesmente pela forma como ele se vestisse, era certinho que os homens andariam todos produzidos. Como, aliás, é frequente nos homossexuais. Outra diferença que Cruz aponta é que «as mulheres só se candidatam a um posto se cumprirem 100% dos requisitos, os homens candidatam-se se cumprirem 60%». Também não precisamos de invocar um perfeccionismo particularmente feminino para explicar esta diferença. É razoável uma pessoa candidatar-se apenas aos cargos para os quais tem as qualificações necessárias. Excepto se está sob pressão para ter um cargo com mais prestígio ou remuneração porque, por exemplo, dificilmente atrairá a atenção de uma mulher se não o conseguir.

O primeiro problema desta receita para conseguir igualdade alterando as mentalidades é não haver, na prática, forma de o fazer. A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género julga que se atinge a igualdade controlando a publicidade e os livros de actividades para crianças. É pouco plausível. Desde cedo que rapazes e raparigas percebem o que é que atrai o outro sexo. Não adianta insistir com uma rapariga que mais vale ter uma carreira do que ser bonita quando é óbvio o poder da aparência feminina. Até há mulheres que fazem carreira disso. E ensinar a um rapaz que não tem mal nenhum viver com uma mulher de carreira e ficar em casa a cuidar dos filhos não o impede de estimar, realisticamente, que nenhuma mulher de carreira vai querer sustentar um tipo desempregado em casa.

O segundo problema da receita é ainda mais grave. A razão principal para as diferenças estatísticas entre homens e mulheres é que nem os homens querem ser como as mulheres nem as mulheres querem ser como os homens. Isso não se deve corrigir. Deve-se respeitar.

1- Deseret, Oscars illustrate Hollywood’s gender age gap
2- Não encontrei dados para Portugal, mas parece ser bastante constante. Aqui vão alguns links: Noruega, República Checa, Inglaterra e Gales.
3- Quartz, The gender wage gap is between married men and everyone else
4- Vox, A stunning chart shows the true cause of the gender wage gap
5- Observador, João Pires da Cruz, Não há mulheres gordas no ginásio

quinta-feira, outubro 03, 2019

Legislativas 2019.

Nestas eleições tenho um problema. Não encontro um partido no qual queira votar, nem mesmo depois de considerar os candidatos elegíveis a ver se, ao menos, me dava vontade de votar na pessoa. Resta-me portanto fazer o que tenho recomendado a quem pensa abster-se: na ausência de uma boa opção, votar na menos má. Mas votar.

Os partidos pelos quais tenho mais afinidade ideológica são o LIVRE e o BE. Isto tem-me facilitado a decisão nos últimos anos. Mas estes partidos estão a defender posições que considero inaceitáveis em questões demasiado importantes para ignorar. Ambos defendem que o Estado discrimine cidadãos em função de atributos como raça ou sexo, pela imposição de quotas. Está na moda mas eu não quero que o Estado trate pessoas de forma diferente em função desses atributos. Ninguém deve ser preterido ou favorecido pelo Estado por causa do seu sexo, etnia ou cor de pele. Pior ainda, o LIVRE e o BE estão a atolar-se numa ideologia que confunde a identidade do indivíduo com estes atributos, segregando as pessoas por raça e sexo e alegando que é preciso eleger mulheres negras para representar mulheres negras. A noção deturpada de diversidade e representatividade como sendo por estes atributos em vez de pelos valores e ideias das pessoas joga a favor das parvoíces da extrema direita. Presume que as mulheres negras são um grupo homogéneo que será representado na Assembleia por qualquer mulher negra. Como se fossem todas iguais. Isto é tão absurdo como achar que basta o candidato ser homem branco para me representar. E implica também que eu nunca poderia ser representado por uma mulher negra, outra premissa obviamente falsa porque a Assembleia é um órgão legislativo e o que me interessa que representem lá são valores relevantes para legislar, que excluem sexo e a cor de pele. Esta ideia de que brancos representam brancos e negros representam negros só dá jeito aos racistas.

Outro problema nestes partidos é o crescente desprezo pela separação entre o Estado e o cidadão. O Estado deve garantir a liberdade de todos e que todos respeitam a liberdade dos outros mas não se deve imiscuir na forma como cada um usa a sua liberdade. Mas estes partidos querem usar as escolas para condicionar a opinião das crianças acerca de matérias privadas, desde a sexualidade à distribuição de tarefas domésticas; querem proibir a expressão de certas opiniões explicitamente para evitar que outras pessoas concordem; querem controlar o que se publica para combater estereótipos e preconceitos sem reconhecer que, bons ou maus, é um direito de cada um ter os seus estereótipos e preconceitos. Isto para mim é um problema grave porque a separação entre o Estado e o cidadão é fundamental para uma sociedade livre. Este problema sempre me levou a votar contra o PCP, apesar de eu ser de esquerda, e agora contribui também para que vote contra o LIVRE e o BE.

O PS também sofre parcialmente destes problemas e, além disso, não quero votar nos partidos grandes. Há muita gente nesses partidos que sente ter o lugar reservado e, por isso, acha que pode fazer o que quer. Não quero contribuir para manter esse regime. À direita do PSD, incluindo monárquicos, “renovadores” e palhaçadas, também não vejo nada de aceitável. O único que considerei deste lado foi o Iniciativa Liberal pela sua posição acerca da liberdade de comunicação na Internet e liberdade de expressão mas, infelizmente, as suas propostas para a economia parecem-me erradas. Numa sociedade moderna quem tem dinheiro tem imenso poder para acumular mais dinheiro e só um Estado forte, capaz de compensar esta tendência pela distribuição, pode manter o sistema estável. A posição do IL de que se deve reduzir os impostos e o peso do Estado é receita para um desastre.

Dos restantes, há dois que me pareceram candidatos à posição de mal menor: o PAN e o “Nós, Cidadãos!” (NC). Mas o programa do PAN é uma mistura caótica de ideias razoáveis, medidas que nem parecem fazer sentido num programa eleitoral (e.g. «112 Criar uma fileira de recolha de resíduos de cortiça») e propostas francamente erradas (e.g. «150 Proibir a produção e o cultivo comercial de Organismos Geneticamente Modificados»). O NC, por seu lado, tem um conjunto de propostas que me parecem razoáveis, começando logo pela defesa dos direitos das pessoas, algo que é cada vez mais importante, e continuando pelo combate à corrupção e sobre-endividamento, ambiente, saúde e afins, mas sem nada de transformador ou radical. Nem para bem, nem para mal. O NC é a papa de aveia da política portuguesa. Não é doce, não é salgado, não é picante nem amargo e até parece vir à temperatura ambiente, tal como o cabeça de lista do partido pelo distrito de Lisboa.

É assim, sem entusiasmo mas de consciência tranquila, que vou votar no NC. A probabilidade de eleger um deputado é pequena mas a utilidade do voto não está apenas nos deputados que se elege. É também uma oportunidade para mostrar aos partidos o que pensamos da sua prestação. Além disso, tenho sempre a esperança de que os eleitores que consideram abster-se para protestar contra o estado da política em vez disso protestem votando em partidos pequenos que lhes pareçam menos repugnantes. Se os 45% de abstenção se tornarem votos de protesto sai uma centena de lugares dos partidos grandes para os pequenos. Seria um safanão sem precedentes nas negociatas montadas e pregava um susto valente àqueles que julgam que ninguém os tira do poiso.