domingo, outubro 28, 2018

Treta da semana: o beijinho.

Daniel Cardoso é doutorado em Ciências da Comunicação, activista das sexualidades e uma de muitas pessoas no Facebook que estão zangadas comigo. Tinha planeado neste post gozar com a sua declaração de que «Há aqui um problema grave: o poder de decisão que nós temos sobre os nossos corpos é muito limitado» e com os exemplos que ele deu desse grave problema (1). Quando Cardoso quis «iniciar o processo, pelo SNS, para fazer uma vasectomia», o médico perguntou se Cardoso sabia que o processo era irreversível. Mais tarde, quando exames indicaram que Cardoso poderia ser infértil, o médico disse que era preciso confirmar os exames e considerar terapias e que ser pai era fantástico. Estes exemplos da grave limitação de poder sobre os nossos corpos teriam dado um post divertido. Infelizmente, entretanto Cardoso foi tão enxovalhado por afirmar que obrigar uma criança a «dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho» é «educar para a violência sobre o corpo do outro»(2) que, pelo menos por enquanto, fiquei com menos vontade de gozar com os disparates dele. Assim, este post ficou mais sério do que tinha planeado e será sobre este tema em vez do outro.

Algumas pessoas defenderam Cardoso apontando o perigo dos abusos sexuais. Por exemplo, Paula Cosme Pinto explicou que «O raciocínio é apenas básico, e se pensarmos que a larguíssima maioria dos abusos sexuais com crianças acontecem dentro do seio familiar (quase 90%, diz a OMS), não é difícil chegar a conclusões.»(3) Realmente, não é difícil chegar a conclusões. Mas, se não se compreende o que as estatísticas significam, o mais certo é chegar às conclusões erradas. Que 90% dos abusos sexuais de crianças são perpetrados por familiares caracteriza os abusos sexuais. Não caracteriza os familiares. O que justificaria cautela seria a percentagem de avós que abusam sexualmente dos netos mas essa deve ser menor que 90%.

No entanto, a justificação principal que Cardoso apresenta é a de que não se deve obrigar ninguém a dar beijos se não os quer dar. O problema é que isto descura a diferença entre obrigar uma criança e obrigar um adulto. Também não se deve obrigar um adulto a comer a sopa, a levar vacinas ou a agradecer o chocolate que a avó lhe deu, mas isso é porque, por um lado, obrigar um adulto exige coação e, por outro lado, o adulto é responsável pelas consequências dos seus actos. Com crianças não é assim. A forma mais comum dos pais obrigarem as crianças a fazer algo é simplesmente dizendo-lhes para o fazer. Lava os dentes. Diz “obrigado”. Dá um beijinho à avó. Se fosse com um adulto ninguém diria que isto era «obrigação coerciva». Além disso, não podemos responsabilizar as crianças pelos seus actos. Se não lava os dentes, nem vai à escola, nem leva vacinas porque não a querem obrigar a criança vai sofrer consequências que não são culpa dela. São culpa dos adultos que a deviam ter obrigado.

Isto é verdade também para o beijinho à avó. Uma característica fundamental do adulto é a capacidade de regular o seu comportamento pelo que reconhece que deve fazer em vez de simplesmente pelo que prefere. É por isso que não é aceitável que um adulto a quem uma senhora de idade venha cumprimentar lhe diga eh lá, beijos de velhas é que não, vá lá lambusar outro. Mas o auto-controlo não surge do nada. Exige prática e os pequenos gestos que obrigamos as crianças a fazer são parte do treino. Para que, quando forem adultas, possam assumir o controlo sobre os seus actos e as suas liberdades. Cardoso opõe-se a isto alegando que «é um exemplo que elas vão levar ao longo da vida toda. E esse exemplo diz que se tiveres poder suficiente, podes passar por cima do não do outro.»(4) Mas isto não faz sentido. Nenhuma criança que seja obrigada a comer a sopa se torna num adulto convencido de que os outros têm direito de lhe enfiar colheres de sopa na boca. Ou de lhe lavar os dentes à força, ou de lhe tirar a roupa para lhe dar banho sem a sua autorização. Dizer à criança para dar o beijinho à avó não a ensina que se pode «passar por cima do não do outro.» Ensina-a a ter mais controlo sobre si própria quando isso é necessário para ter consideração pelos outros.

Eu julgo que este problema – que Cardoso, involuntariamente, tão bem ilustra – não é apenas ideológico. É também demográfico. Passar de criança a adulto exige aprender a viver também pelos outros em vez de apenas para si próprio. Dantes não era difícil. Havia irmãos com quem se tinha de partilhar tudo. Era preciso ajudar em casa ou cuidar dos mais novos. Os jovens adultos tentavam formar relações estáveis, o que exige cuidado pelo outro, e ter filhos obriga a sacrificar muito em proveito deles. Hoje há menos oportunidades para aprender a ser adulto, principalmente nas classes sociais mais activas nestas reivindicações. Crianças sem irmãos nem responsabilidades, relações sem investimento nem filhos e muita gente a viver só para si resultam numa sensibilidade excessiva a qualquer contrariedade e um desequilíbrio entre o que presumem como direitos e o que reconhecem como responsabilidades. Penso que isto contribui para verem como “problemas graves” o médico dizer que é bom ser pai ou achar que o beijinho à avó é «educar para a violência sobre o corpo do outro». Mas outro factor relevante parece ser um interesse profissional em empolar problemas da treta. Cardoso menciona um «artigo científico» que publicou «sobre o significado da criança na nossa cultura»(4). Deixo aqui uma parte da conclusão. Julgo que não vou resistir a voltar a este assunto.

«As considerações acima procuraram mostrar como, a partir de um neo-positivismo que continua a investir profundamente a fisicalidade enquanto elemento de veredicção sobre a juventude, os discursos contemporaneamente validados sobre a juventude operaram e operam ainda para a manutenção de estruturas históricas normativas de poder – patriarcal, branco, de classe alta, heterossexual. A crítica queerfeminista mostra o funcionamento dessa retórica, construída em torno de uma visão normalizada da adultície, tomada como teleologia que dá sentido à juventude.»(5)

1- Dia mundial da saúde sexual, Daniel Cardoso
2- YouTube, Daniel Cardoso, nos Prós e Contras
3- Paula Cosme Pinto, O ‘beijo na avozinha’ e o esgoto da hipocrisia da nossa sociedade
4- DN, Daniel Cardoso: "Não usei o exemplo do beijinho ao avô e avó por acaso"
5- Cardoso, D. (2018). Notas sobre a Criança transviada: considerações queerfeministas sobre infâncias. Revista Periódicus, 1(9), 214–233. (texto completo em pdf)

domingo, outubro 21, 2018

Conceitos de Deus.

Acerca de como podemos conceber os deuses, António Afonso escreve no seu blog que o argumento do mal pode ser facilmente refutado se «alegar que na minha concepção (particular), Deus são as leis fundamentais da física. Por exemplo, na minha concepção particular, Deus é a gravidade. E claro, eu posso demonstrar que a gravidade existe e faz coisas extraordinárias, logo, na minha concepção particular de Deus, Deus existe.»(1) Realmente, o problema de determinar se existe algo chamado “Deus” pode ser trivialmente resolvido pela afirmativa chamando “Deus” a algo que exista. A minha máquina de lavar roupa, por exemplo. Mas isto não ajuda muito e Afonso também o reconhece, notando que «Partir de concepções particulares para justificar uma crença sobre Deus [pode ser um erro] porque podem ser ignoradas princípios fundamentais». Eu diria que o problema é mais fundamental ainda porque, na verdade, não estamos a mudar qualquer concepção de Deus. Cada concepção de Deus continua a ser o que sempre foi. O que fazemos com este truque é simplesmente apontar a palavra “Deus” para um conceito ou objecto diferente. É um truque recorrente entre apologistas, quando dizem que Deus é amor ou Deus é a verdade, mas isto é só brincar com as palavras porque as questões importantes são se o universo foi criado de propósito por um ser inteligente e se esse criador se rala alguma coisa connosco.

Os argumentos do mal incomodam os crentes porque mostram formas de concluir que não é plausível existir um deus competente que se importe com o bem. A ideia é simples. Há actos tão maldosos que qualquer ser capaz de os impedir teria o dever moral de o fazer. Se o Super-Homem existisse, teria a obrigação de usar os seus poderes para impedir a malta do ISIS de cometer as atrocidades que têm cometido. Um deus infinitamente mais poderoso teria uma obrigação ainda maior. Se não o fez ou é ruim ou não existe. Para quem defende a existência desse super super homem este argumento é inconveniente. Mas Afonso comete o mesmo erro que cometem os apologistas desta crença ao julgar que o mais relevante é a refutação de um argumento específico destes. Como aquele que Afonso considera:

«1) Se Deus existe, deve intervir no mundo para prevenir o mal.
2) Deus não intervém no mundo para prevenir o mal.
3) Logo, Deus não existe.»


O problema desta abordagem da refutação de cada argumento isolado é que perde de vista o mais importante. Cada argumento é apenas a expressão de uma linha de inferência. Para refutar o argumento basta invocar premissas que contrariem algum elemento do argumento ou indiquem condições nas quais alguma inferência é inválida. Por exemplo, no caso do argumento que Afonso formulou, podemos negar a primeira premissa alegando que nem todo o mal deve ser prevenido. Há actos maldosos que cabem nas liberdades legítimas do indivíduo. Podemos negar a segunda alegando que há milagres em que Deus intervém e corrige algum mal. E isto pode ser repetido para todos os argumentos exprimindo todas as linhas de inferência que levam à conclusão de que não existe um ser poderosíssimo ralado com a nossa existência. Isto tem de ser feito caso a caso com diferentes desculpas para cada argumento e para cada observação.

Mas o mais importante não é cada linha de inferência individual. É o padrão de inferências consistentes que se reforçam em contraste com as desculpas ad hoc inventadas para tentar atacar cada uma delas. O argumento do mal é relevante apenas como peça desse puzzle, pela forma como encaixa no resto. Sempre que desvendámos algum processo natural descobrimos que não tinha nada que ver com deuses. A justificação que cada crente dá para acreditar no seu deus, pela sua fé, é a mesma que dão outros para acreditar em deuses diferentes. Os milagres que alegadamente demonstram a preocupação dos deuses para connosco só aparecem nos buracos do nosso conhecimento e são cada vez mais pequenos para lá conseguirem caber. E assim por diante. Há muitas formas de chegar à conclusão de que o universo não foi criado de propósito por um ser que se rala connosco e são todas consistentes entre si.

Apesar de ser sempre possível propor premissas que enfraqueçam qualquer argumento isolado, quando olhamos para as refutações teístas encontramos o padrão oposto ao que suporta o ateísmo. Não há consistência. Não se reforçam mutuamente. Alteram o significado da palavra “Deus” conforme dá mais jeito. As premissas invocadas para justificar a fé de uns são contrárias às que invocam para rejeitar as religiões dos outros. O milagre pelo qual Deus salva os sobreviventes do desastre contradiz a justificação dada para não ter salvo os que não sobreviveram. E quando falta desculpa melhor refugiam-se no mistério. É como tentar completar o puzzle fingindo que os buracos fazem parte do desenho. E com mais buracos que desenho.

Este é o problema mais importante das hipóteses teístas, mas não acontece só no teísmo. É um problema comum quando se tenta defender uma tese havendo alternativas com melhor suporte nas evidências. É preciso fragmentar, isolar pedaços, descartar dados inconvenientes e fazer de conta que não há problema em invocar aqui justificações que contradizem as que se invocou ali. Isto é o que faz o criacionismo e a astrologia, as teorias da conspiração, as ideologias políticas extremistas, os que negam o aquecimento global e a generalidade das tretas pseudo-científicas que nos querem impingir. Focam na refutação deste ou daquele argumento invocando as premissas necessárias mas, se dermos um passo atrás e olharmos para o boneco, vemos que não faz sentido nenhum.

1- António Afonso, Uma concepção particular do sujeito

domingo, outubro 14, 2018

Treta da semana: minorias privilegiadas.

João Pais do Amaral, vice-presidente do Partido Nacional Renovador, não gosta que Marcelo Rebelo de Sousa diga ser também presidente dos ciganos portugueses. Não é claro que alternativa haveria. Tanto quanto sei, não há mecanismos legais que permitam ao Presidente da República ser presidente de só alguns portugueses. Mas queixa-se Amaral de que «O PNR já realizou várias tentativas para ser recebido pelo "Presidente de todos os Portugueses" e tem sido sistematicamente ignorado.»(1). Na verdade, é má ideia. Quem não é da extrema direita parece ter muita dificuldade em lidar com estes movimentos e o desconforto leva aos três passos do costume: primeiro ignorar a ver se desaparece; depois tentar reprimir quando começam a ganhar força; e, finalmente, ficar tudo espantado que os extremistas ganharam as eleições. Talvez seja altura de repensar a estratégia. Mas este post não é sobre isso.

O maior problema para Amaral, neste caso, parece ser os ciganos. Segundo escreve:

«Para o PNR não existem minorias privilegiadas. Ou trabalham para pagar as contas, ou roubam e vão para a prisão para pagar a estadia.
Basta de tentar integrar quem quer somente viver com o dinheiro dos contribuintes, basta de RSI,s e prestações afins para quem nada produz!»


É um comentário sucinto mas dá uma boa ideia daquilo que pensam as pessoas desse lado do espectro político. Primeiro, «Ou trabalham para pagar as contas, ou roubam e vão para a prisão para pagar a estadia.» Para Amaral, são as duas possibilidades admissíveis. Se alguém não ganha dinheiro vendendo o seu trabalho, então que roube e depois fazemo-lo sofrer para pagar pelo que fez. Esta visão retributiva da justiça faz ignorar uma opção que me parece muito preferível: dar dinheiro a quem não consegue vender o seu trabalho para que não precise de roubar. Socialmente é melhor, porque mais vale prevenir o roubo do que puni-lo. E, economicamente, faz sentido porque manter pessoas na prisão sai muito caro. A única coisa que se perde é aquela sensação de “toma lá” quando vemos alguém que fez uma coisa má a sofrer por isso. Mas, no computo geral, parece-me um preço perfeitamente aceitável para ter menos roubos e menos gente na prisão.

Depois, «basta de RSI,s e prestações afins para quem nada produz!». Isto faz sentido se imaginarmos que a sociedade é um peso enorme que todos têm de ajudar a carregar. Nessas circunstâncias, não vamos estar a alimentar os preguiçosos que não ajudam e deixam mais peso para os outros. Só que a sociedade moderna não é assim. A sociedade moderna é mais como um autocarro. O sensato é que a pessoa mais qualificada conduza e os outros fiquem nos seus lugares. Não é que os passageiros sejam irrelevantes. Pelo contrário. Afinal, a viagem é por causa deles e são eles que têm de escolher para onde ir. Mas ir tudo a conduzir dá asneira. Conforme a nossa sociedade se torna mais tecnológica e automatizada, mais especializado se torna o trabalho de manter tudo a funcionar e mais pessoas haverá que só podem contribuir com as suas escolhas. O trabalho pago irá ficar para uma minoria cada vez mais pequena de especialistas. Por isso, temos de abandonar a ideia ultrapassada de que só quem produz é que pode beneficiar daquilo que é produzido. O papel principal dos cidadãos será escolher o que se vai produzir. O que não é nada trivial porque, para as coisas funcionarem, exige educação, ética, informação, capacidade para a analisar e calma para pensar. Nada disso é compatível com fome e miséria.

Finalmente, «Para o PNR não existem minorias privilegiadas.» Mas existe uma minoria privilegiada, e é a mesma que sempre existiu. A dos ricos. Por ricos não quero dizer que têm iates ou aviões privados. A distinção relevante, que foi sempre a mais importante, é a que separa quem vive em privação e quem não tem de se preocupar se vai ter abrigo, comida, assistência médica ou um futuro para os filhos. Se bem que, à escala mundial, esses ricos sejam ainda uma minoria, é uma minoria em crescimento e há muitos países em que essa riqueza é tão banal que muitos nem a notam. É claro que, politicamente, dá muito mais jeito jogar com invejas e aquele sentimento mesquinho de injustiça de quem está sempre a olhar para o prato do lado. Mas devia ser óbvio o ridículo da ideia de que os ciganos são uma minoria privilegiada por receberem o RSI.

Estes protestos do PNR são um disparate. Mas são importantes porque põem à vista preconceitos escondidos por todo o espectro político, especialmente nos extremos. A esquerda é mais benevolente para com os pobres mas também exige da lei a satisfação da vingança por aquilo que considera pecado. Boa parte da esquerda também reserva direitos só para quem trabalha e é visceralmente contra um rendimento universal. E rotular grupos de “privilegiados” conforme a raça ou sexo é bandeira da esquerda identitária, que a extrema direita obviamente aproveita para legitimar o seu racismo. É trágico que a política se esforce tanto por dividir os eleitores em tribos com invejas e exigências em vez de ajudar a perceber o potencial da nossa sociedade, aquilo que é fundamental defender e como podemos colaborar todos para resolver problemas a sério, como as desigualdades económicas a nível mundial que causam tantas guerras e refugiados ou os estragos que estamos a fazer ao clima e ao ambiente. Infelizmente, enquanto os eleitores tiverem mais vontade de votar contra espantalhos do que de perceber o que se passa, isto não se vai corrigir.

1- Facebook, João Pais Do Amaral
2- Facebook, João Pais Do Amaral