Razões para crer. 3- E para descrer.
«[O] pensamento claro e o respeito por indícios concretos – especialmente os indícios inconvenientes que contrariam os nossos preconceitos – são cruciais para a sobrevivência da espécie humana no século XXI»
Alan Sokal, «O que é a ciência e porque é que isso interessa?»(1)
«Deus que Se dá a conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela.»
João Paulo II, «Fides et ratio»(2)
Alguma da filosofia do último século ajudou a compreender a ciência, especialmente pela demarcação entre o que é e não é ciência. Popper propôs a falsificabilidade como característica fundamental; a hipótese científica tem que admitir que algo observável a possa refutar. Assim o criacionismo fica de fora porque o que quer que se observe é compatível com um criador omnipotente, e a hipótese que permite tudo não serve para nada. Mas Kuhn apontou que falsificar é pouco vulgar na ciência. O mais comum é resolver problemas. Quando um astrólogo falha numa previsão encolhe os ombros e segue para a próxima. Mas um astrónomo, quando falha, tem mecanismos para verificar os cálculos, reconsiderar premissas e confirmar observações até encontrar o problema e resolvê-lo. E só quando o problema é muito profundo é que há uma «mudança de paradigma».
Lakatos tirou a ênfase da hipótese isolada e mudou-a para as hipóteses em conjunto, o «programa de investigação». A biologia tem hipóteses centrais acerca da evolução e parentesco de todos os seres vivos. Estas não costumam ser postas à prova. São as hipóteses periféricas como a existência daquela forma intermédia ou a classificação deste organismo que são normalmente sujeitas a testes directos. Como se pode sempre proteger as hipóteses centrais sacrificando as periféricas, a questão principal não é a falsificação da hipótese isolada mas o desempenho do programa como um todo. Ou seja, se as revisões permitem prever melhor e resolver novos problemas ou se, pelo contrário, apenas disfarçam os falhanços com desculpas retrospectivas.
Isto é um resumo grosseiro de um tema complexo mas serve os objectivos deste post (até porque incluem não adormecer o leitor). Um é mostrar que a ciência é o caminho para o conhecimento. A verdade tem que ser claramente distinta da treta e o conhecimento só o é se resolve problemas ou responde a perguntas. E as hipótese que não se conformam ao que observamos devem ser corrigidas de maneira que permita compreender cada vez mais e cada vez melhor. No conhecimento, e na ciência, não há lugar para mistérios insondáveis, verborreia confusa ou desculpas teimosas em nome da fé.
Outro objectivo é desmascarar o truque de qualificar este conhecimento de “científico” para, enquanto o público olha para essa mão, a outra tirar do bolso o “conhecimento” teológico, transcendente, revelado, a priori ou o que mais calhe. Esses não são conhecimento. A premissa que um Deus perfeito escreveu a Bíblia permite inferir que a Bíblia é a verdade revelada. E as regras do Xadrez permitem inferir que o cavalo anda em L. Nem uma nem outra dizem o que quer que seja acerca da realidade. São meros jogos de lógica abstracta, e o conhecimento tem que ser mais que isso. Tem que confrontar o que observamos, responder a perguntas e levar-nos a compreender coisas que desconhecíamos.
Principalmente, quero contrapor a ideia que não podemos afirmar não haver deuses. Segundo a Enciclopédia Católica, «que tal afirmação é irrazoável e ilógica não precisa de demonstração porque é uma inferência injustificável pelos factos ou pelas leis do pensamento». É exemplo típico de duplicidade de critérios, de terminologia vaga (nunca explicam que “leis” são essas) e um erro flagrante se “leis do pensamento” se referir à atitude crítica e de respeito pelos factos que nos conduz ao conhecimento.
Há uma razão forte para descrer dos deuses. Muito mais forte que qualquer prova deduzida de axiomas tirados do chapéu. É que as hipóteses da existência de deuses só atrapalham. Ou contradizem a realidade ou não dizem nem sim nem não e, quer num caso quer noutro, não servem para compreender nada. Tal como não é preciso uma demonstração matemática para tirar a pedra do sapato, também não é preciso uma prova irrefutável para deitar fora os raciocínios circulares, a retórica obscura e as hipóteses inúteis que dificultam a caminhada. É que mesmo que nunca cheguemos ao conhecimento perfeito só temos a ganhar com os avanços na direcção certa.
1- O texto completo está aqui (em pdf). Recomendo.
2- Texto integral aqui.
Episódios anteriores:
Razões para crer. 1- Conhecimento.
Razões para crer. 2- Dois é companhia.