Treta da semana: Raposo contra Raposo.
O Henrique Raposo já protagonizou aqui alguns posts que, admito, não foram muito lisonjeiros. Por isso, desta vez começo por elogiar-lhe a capacidade de mudança. Não de melhoria, infelizmente, e temo que se esgote já aqui o elogio. Mas kudos por ter mudado, e foi azar que o Henrique Raposo tenha discordado tão completamente do Henrique Raposo sem que nenhum dos dois contribuisse com alguma coisa de jeito.
Na passada quinta-feira, no blog do Expresso, o Henrique Raposo descreveu a sua «utopia urbanística: cidades sem cães; cidades onde os passeios não são WC de bichos [...]; cidades onde os jardins não são latrinas para lulus e bóbis [...]; cidades onde um sujeito pode estar no parque sem ser interrompido por um cão a rosnar». E propôs que nos aproximássemos desta utopia por meio de «leis severas», como multas e proibições, porque «O civismo não nasce no coração dos homens e não está na genética de um povo. O civismo nasce na espada que protege a lei.»(1)
O Henrique Raposo de 2005 certamente discordaria. Escrevendo sobre o «Tabaco e Fascismo Hipocondríaco», o Henrique criticou o “americanismo moral” do «antitabagismo (antitabagismo é um bom eufemismo para aquilo que não passa de uma imposição burocrática de comportamentos)»(2). Segundo este Henrique, o pior é que «Para os americanos, esta cruzada é moral, isto é, é partilhada pela comunidade, é desenvolvida entre as pessoas. Só depois passa a lei. […] Na Europa, a coisa é burocrática, exterior ao indivíduo e terciária». No final, remata com um hipotético «cartão com a seguinte inscrição: “não fumo, mas como tenho um certo pó a fascistas, pode fumar ao pé de mim”.»
É uma divergência interessante. Enquanto o Henrique acha que o «civismo nasce na espada que protege a lei»(1) e, por isso, primeiro precisamos de leis que obriguem as pessoas a comportar-se como ele julga correcto para que depois interiorizem esses valores, o Henrique defende que essa «imposição burocrática de comportamentos […], exterior ao indivíduo e terciária» nunca deve preceder uma ideologia «moral, [...] partilhada pela comunidade [...] desenvolvida entre as pessoas»(2). Enquanto o Henrique defende que «o problema do asseio em Lisboa só será resolvido quando os donos dos cãezinhos receberem multas para pagar ali na hora»(1), o Henrique, por ter «um certo pó a fascistas», convida os fumadores a ignorar a lei e a fumar ao pé dele (2).
Isto pode parecer contraditório para quem não domina esta forma de argumentar. Para os adeptos, no entanto, faz todo o sentido. O Henrique deve ter amigos fumadores e, como já foi mordido por cães, naturalmente não gosta desses bichos. Assim, formula primeiro as conclusões: abaixo os cães, viva o tabaco. Depois é só urdir o argumento que for preciso para parecer que consegue lá chegar partindo algures da vizinhança da realidade. Fazer as coisas ao contrário é uma chatice. Quem parte de um fundamento e depois deriva conclusões por inferências válidas arrisca-se a não chegar às conclusões que queria. Nada disso. É mais seguro concluir primeiro e depois logo se martela um raciocínio ou dois.
Talvez o mais triste nesta dialéctica do Henrique é que nenhum dos Henriques acerta. As leis são uma ferramenta de engenharia social e, como tal, operam num sistema complexo. As generalizações do Henrique, de que primeiro deve vir a lei para forçar os valores, ou primeiro os valores para que a lei não seja mera imposição burocrática, são incorrectas porque isto depende muito das circunstâncias. É mais fácil fiscalizar estabelecimentos comerciais e condições de trabalho do que todos os parques e ruas do país. É mais aceitável proibir o tabaco num local fechado onde trabalhem pessoas oito horas por dia, sabendo que os fumadores passivos correm riscos acrescidos de ter cancro, do que proibir que se leve cães para o jardim só porque há quem não gosta de rosnadelas. Multar quem deixa a bosta do cão no passeio é uma boa ideia, que a lei contempla. Mas, na prática, é difícil de implementar esta medida como dissuasor eficaz, tal como acontece com transgressões muito piores como ultrapassar os limites de velocidade em zonas residenciais ou estacionar no passeio obrigando os peões a ir para a estrada. Entre Janeiro e Agosto deste ano morreram 19 pessoas e 199 ficaram gravemente feridas devido a atropelamentos. Houve 763 atropelamentos em passadeiras(3). Também me incomoda pisar bosta de cão, mas se for para coagir mudanças comportamentais reforçando a fiscalização, prefiro começar por problemas mais sérios.
Depois de ler estes textos do Henrique, fiquei com curiosidade acerca de uma coisa. Gostava de saber o que ele pensa das inúmeras beatas que os fumadores deixam espalhadas pelo chão. Será que isso merece multa ou seria fascismo multá-los? Será que devíamos corrigir este comportamento pela “espada que protege a lei” ou será necessário primeiro que a sua condenação seja “partilhada pela comunidade e desenvolvida entre as pessoas”? Ou será que podem deitar beatas ao chão desde que não rosnem ao Henrique? Talvez fosse interessante ver que conclusão o Henrique tirava do chapéu e, depois, que desculpas lhe agrafava por baixo para parecer que argumentava. E daí, talvez não...
1- Henrique Raposo (2013), Uma cidade sem cães, sff
2- Henrique Raposo (2005), Tabaco e Fascismo Hipocondríaco (Esta, sim, é uma das minhas guerras…)
3- RTP Notícias, Dezanove pessoas morreram atropeladas este ano