domingo, setembro 29, 2013

Treta da semana: Raposo contra Raposo.

O Henrique Raposo já protagonizou aqui alguns posts que, admito, não foram muito lisonjeiros. Por isso, desta vez começo por elogiar-lhe a capacidade de mudança. Não de melhoria, infelizmente, e temo que se esgote já aqui o elogio. Mas kudos por ter mudado, e foi azar que o Henrique Raposo tenha discordado tão completamente do Henrique Raposo sem que nenhum dos dois contribuisse com alguma coisa de jeito.

Na passada quinta-feira, no blog do Expresso, o Henrique Raposo descreveu a sua «utopia urbanística: cidades sem cães; cidades onde os passeios não são WC de bichos [...]; cidades onde os jardins não são latrinas para lulus e bóbis [...]; cidades onde um sujeito pode estar no parque sem ser interrompido por um cão a rosnar». E propôs que nos aproximássemos desta utopia por meio de «leis severas», como multas e proibições, porque «O civismo não nasce no coração dos homens e não está na genética de um povo. O civismo nasce na espada que protege a lei.»(1)

O Henrique Raposo de 2005 certamente discordaria. Escrevendo sobre o «Tabaco e Fascismo Hipocondríaco», o Henrique criticou o “americanismo moral” do «antitabagismo (antitabagismo é um bom eufemismo para aquilo que não passa de uma imposição burocrática de comportamentos)»(2). Segundo este Henrique, o pior é que «Para os americanos, esta cruzada é moral, isto é, é partilhada pela comunidade, é desenvolvida entre as pessoas. Só depois passa a lei. […] Na Europa, a coisa é burocrática, exterior ao indivíduo e terciária». No final, remata com um hipotético «cartão com a seguinte inscrição: “não fumo, mas como tenho um certo pó a fascistas, pode fumar ao pé de mim”.»

É uma divergência interessante. Enquanto o Henrique acha que o «civismo nasce na espada que protege a lei»(1) e, por isso, primeiro precisamos de leis que obriguem as pessoas a comportar-se como ele julga correcto para que depois interiorizem esses valores, o Henrique defende que essa «imposição burocrática de comportamentos […], exterior ao indivíduo e terciária» nunca deve preceder uma ideologia «moral, [...] partilhada pela comunidade [...] desenvolvida entre as pessoas»(2). Enquanto o Henrique defende que «o problema do asseio em Lisboa só será resolvido quando os donos dos cãezinhos receberem multas para pagar ali na hora»(1), o Henrique, por ter «um certo pó a fascistas», convida os fumadores a ignorar a lei e a fumar ao pé dele (2).

Isto pode parecer contraditório para quem não domina esta forma de argumentar. Para os adeptos, no entanto, faz todo o sentido. O Henrique deve ter amigos fumadores e, como já foi mordido por cães, naturalmente não gosta desses bichos. Assim, formula primeiro as conclusões: abaixo os cães, viva o tabaco. Depois é só urdir o argumento que for preciso para parecer que consegue lá chegar partindo algures da vizinhança da realidade. Fazer as coisas ao contrário é uma chatice. Quem parte de um fundamento e depois deriva conclusões por inferências válidas arrisca-se a não chegar às conclusões que queria. Nada disso. É mais seguro concluir primeiro e depois logo se martela um raciocínio ou dois.

Talvez o mais triste nesta dialéctica do Henrique é que nenhum dos Henriques acerta. As leis são uma ferramenta de engenharia social e, como tal, operam num sistema complexo. As generalizações do Henrique, de que primeiro deve vir a lei para forçar os valores, ou primeiro os valores para que a lei não seja mera imposição burocrática, são incorrectas porque isto depende muito das circunstâncias. É mais fácil fiscalizar estabelecimentos comerciais e condições de trabalho do que todos os parques e ruas do país. É mais aceitável proibir o tabaco num local fechado onde trabalhem pessoas oito horas por dia, sabendo que os fumadores passivos correm riscos acrescidos de ter cancro, do que proibir que se leve cães para o jardim só porque há quem não gosta de rosnadelas. Multar quem deixa a bosta do cão no passeio é uma boa ideia, que a lei contempla. Mas, na prática, é difícil de implementar esta medida como dissuasor eficaz, tal como acontece com transgressões muito piores como ultrapassar os limites de velocidade em zonas residenciais ou estacionar no passeio obrigando os peões a ir para a estrada. Entre Janeiro e Agosto deste ano morreram 19 pessoas e 199 ficaram gravemente feridas devido a atropelamentos. Houve 763 atropelamentos em passadeiras(3). Também me incomoda pisar bosta de cão, mas se for para coagir mudanças comportamentais reforçando a fiscalização, prefiro começar por problemas mais sérios.

Depois de ler estes textos do Henrique, fiquei com curiosidade acerca de uma coisa. Gostava de saber o que ele pensa das inúmeras beatas que os fumadores deixam espalhadas pelo chão. Será que isso merece multa ou seria fascismo multá-los? Será que devíamos corrigir este comportamento pela “espada que protege a lei” ou será necessário primeiro que a sua condenação seja “partilhada pela comunidade e desenvolvida entre as pessoas”? Ou será que podem deitar beatas ao chão desde que não rosnem ao Henrique? Talvez fosse interessante ver que conclusão o Henrique tirava do chapéu e, depois, que desculpas lhe agrafava por baixo para parecer que argumentava. E daí, talvez não...

1- Henrique Raposo (2013), Uma cidade sem cães, sff
2- Henrique Raposo (2005), Tabaco e Fascismo Hipocondríaco (Esta, sim, é uma das minhas guerras…)
3- RTP Notícias, Dezanove pessoas morreram atropeladas este ano

Novamente o conhecimento.

No post anterior disse que sei não existirem deuses mas que admito poder estar errado. Isto parece ter criado alguma confusão. O Paulo comentou que «Obviamente, se assumo que posso estar errado, não posso dizer honestamente que sei com certeza absoluta. Ou seja, não sei.»(1) e o Molochbaal que «Afinal o Kripphal é kamarada um agnóstico que ainda não saiu do armário»(2). Não é nada disso. Nem é preciso certeza absoluta para saber nem eu sou agnóstico. Mas é melhor começar pelos termos, para evitar mais confusão.

Exceptuando eventuais casos patológicos, todos temos crenças e certezas. A crença é a disposição para aceitar uma proposição como verdadeira. Por exemplo, “a Terra é aproximadamente esférica”. Não é uma afirmação que eu tenha sempre em mente mas, sempre que surja, estou disposto a aceitá-la como verdadeira. Portanto, acredito que a Terra é aproximadamente esférica. A certeza é o grau máximo dessa disposição, tal que já nada poderá aumentar a confiança depositada na afirmação. Tenho a certeza de que a Terra é aproximadamente esférica porque não me restam dúvidas que possam ser reduzidas com mais evidências nesse sentido. Para mim, este assunto já está resolvido e não preciso de mais fotografias, medições ou argumentos confirmatórios. Mas esta certeza não é absoluta. Depende dos dados de que disponho e, por isso, pode ser eliminada por evidências contrárias que me suscitem dúvidas. O facto de não ter dúvidas agora não implica que não as possa vir a ter se novos dados o justificarem. A certeza absoluta é completamente diferente porque é imune às evidências. A minha certeza de que não tenho cobras em casa é razoável e útil porque tenho boas razões para confiar que não há cobras aqui e, graças a esta certeza, não preciso de abrir portas e gavetas com o cabo da vassoura. Mas seria irracional, e até perigoso, se esta certeza fosse absoluta e se nem ver uma cobra no meio da sala me fizesse duvidar. A certeza absoluta é o objectivo último da fé mas é a antítese do conhecimento, da racionalidade e até dos instintos mais básicos de auto-preservação.

O conhecimento, segundo a definição mais comum, é uma crença verdadeira e justificada. É crença porque seria contraditório saber algo que não se está disposto a aceitar; verdadeira porque senão seria erro em vez de conhecimento; e justificada porque acertar por palpite não conta. Não há nada aqui que exija certezas. Excluindo apenas a certeza absoluta, que é injustificável, o grau da crença pode ir desde o mais reservado “parece plausível” até à certeza do “aposto a minha vida e as da minha família nisso” que demonstramos cada vez que andamos de elevador ou a 120km/h na autoestrada. É obviamente incorrecta a noção de que só tendo a certeza é que sabemos ou, pior ainda, de que só com certeza absoluta é que podemos saber. Mas a definição de conhecimento não mostra onde entra a possibilidade de erro. A definição apenas delimita um conceito e, por si só, não tem qualquer alvo que possa falhar: ou a crença é verdadeira e justificada e é conhecimento, ou falha um requisito e não é. Para conciliar a minha alegação de que sei que não existem deuses com a admissão de que posso estar enganado é preciso considerar também a aplicação prática da definição.

É claro que se a crença for falsa, não será conhecimento por muitos indícios que a justifiquem. Dantes acreditava-se que a gravidade era uma força de atracção instantânea e o sucesso dessa hipótese justificou bem a crença. Mas era falsa. Hoje dizemos saber que a gravidade é uma deformação no espaço-tempo e que se propaga à velocidade da luz, o que se justifica por a teoria da relatividade ter sido testada com grande precisão (3). Será verdade? Sem acesso directo à verdade das proposições, nunca podemos excluir a possibilidade de erro. Só podemos, em cada fase, ir determinando que crenças têm melhor fundamento e se houver alguma que se justifica concluir verdadeira, então também se justifica chamar-lhe conhecimento. Se for erro, depois corrige-se, mas não vamos ficar eternamente paralisados na ignorância à espera de conclusões definitivas.

É assim que eu sei que não existem deuses mesmo rejeitando certezas absolutas. A minha crença de que Hórus, Zeus, Odin e Jahvé são personagens tão fictícios como o Pai Natal ou o Tintin está suficientemente justificada para lhe chamar conhecimento. O agnosticismo, além de ser aplicado apenas aos deuses mais populares, sugerindo que se deve a considerações mais sociais do que epistémicas, é inconsistente nos critérios. Os agnósticos aceitam serem conhecimento conclusões como as de que é perigoso ter o esquentador na casa de banho ou que há água em Marte enquanto rejeitam sequer a possibilidade de se saber se a história de um personagem que transforma pessoas em sal e faz milagres é realidade ou ficção.

É legítimo chamar conhecimento à crença que podemos justificar de forma objectiva e adequada. O problema da justificação é complexo em teoria mas, na prática, as diferenças entre crenças justificadas e crenças sem fundamento são normalmente claras. Compare-se, por exemplo, o criacionismo com a biologia ou a astrologia com a astronomia. A crença pode ser ou não uma certeza, conforme considerarmos que já não vale a pena obter mais evidências a seu favor ou que ainda nos restam dúvidas, mas qualquer certeza racional depende da informação de que se dispõe e admite a possibilidade de revisão se surgirem dados contraditórios. Perceber isto ajuda a evitar dois erros comuns. Do lado do cepticismo inconsistente, o erro de defender que não se sabe só porque não se tem a certeza absoluta. Do lado da fé, o erro de defender que algo é conhecimento só porque muitos acreditam com intensidade e sinceridade. O fundamental para considerar que uma crença é conhecimento é a sua justificação objectiva. A certeza é opcional e a fé é irrelevante na melhor das hipóteses ou um obstáculo se impedir a conclusão correcta.

1- Comentário em Acreditar, saber e afirmar. (no Que Treta!)
2- Comentário em Acreditar, saber e afirmar. (no Diário de uns Ateus)
3- Wikipedia, Tests of general relativity

terça-feira, setembro 24, 2013

Acreditar, saber e afirmar.

O diálogo sobre o fundamento das religiões não sai da cepa torta pela confusão sistemática, e muitas vezes propositada, entre crença e conhecimento. Acreditar é uma atitude pessoal que nada implica para terceiros. Se eu disser que acredito que Deus não existe isto, por si só, não diz nada acerca das crenças dos outros. Apenas falo de mim. Mas se eu afirmar que sei que Deus não existe estou a fazer uma afirmação acerca da verdade desta proposição e, implicitamente, afirmo serem objectivamente falsas todas as crenças contrárias. Saber não é apenas aceitar uma proposição, como acreditar. Pressupõe a verdade da proposição, a falsidade do seu contrário, uma justificação independente de meras opões pessoais e a capacidade para apresentar essa justificação. E como afirmar que se sabe algo é afirmar que quem discorda está enganado, quem afirma saber incorre numa obrigação, ainda que leve, de explicar como sabe. Quem simplesmente acredita não deve explicações a ninguém.

Assim, porque em vez de simplesmente dizer que acredito que Deus não existe eu afirmo saber que Deus não existe, tenho o dever de explicar como concluí isto. Não ponho de parte a possibilidade de erro. É sempre possível julgarmos que sabemos uma coisa e, afinal, estarmos enganados. Mas quando uma hipótese tem muito mais fundamento do que as alternativas justifica-se arriscar dizer que sabemos. Senão nem saberemos se a Terra é redonda. No caso do Deus judeu e suas variantes, há dois conjuntos de factores que justificam esta conclusão. Primeiro, as evidências apresentadas para a existência desse deus não dão qualquer fundamento à conclusão dos crentes. A tradição, os livros sagrados e a fé de milhões não justificam concluir que Allah mandou um anjo falar com Maomé, que Jahve criou o universo em sete dias ou que Deus é três pessoas numa só substância. As alegadas evidências para estes deuses são tão irrelevantes como as que se possa apontar para a ascendência divina do imperador do Japão ou o papel dos Faraós no amanhecer.

Mas isto é apenas falta de evidências para a existência de deuses. Por si só, não é evidência de que não existam deuses, como muitas vezes os crentes apontam. De facto, se eu olhar em volta numa cidade e não vir pombos, será precipitado concluir que não há pombos nessa cidade. Podem estar noutro lado. No entanto, se eu olhar em volta e não vir elefantes a voar é seguro concluir que não há elefantes voadores nessa cidade. A grande diferença é que eu sei que a existência de pombos é plausível por evidências positivas noutras cidades. A existência de elefantes voadores, pelo contrário, não só carece de exemplos positivos como exigiria excepções a generalizações bem fundamentadas, como a de não ser possível um mamífero com aquela estrutura voar. A existência de qualquer uma das versões de Deus sofre deste problema, agravado infinitamente pelos atributos que lhes associam.

É comum que os crentes tentem responder a objecções destas também de forma objectiva. Por exemplo, tentando focar as alegações mais plausíveis da sua crença religiosa ou tentando encontrar diferenças objectivas entre os fundamentos da sua religião e os fundamentos das restantes. Mas, inevitavelmente, chega-se a pontos como a mãe ser virgem, o filho ser deus e o deus ser três onde se torna inescapável o recurso à fé como fundamento último de qualquer dogma. É aqui que o diálogo encrava. Se estivéssemos a falar de crença, de opções de vida, da esperança e desejos de cada um, então a fé seria um fundamento tão legítimo como qualquer outro. Mas isso não tem nada que ver com o conhecimento dos factos e, se estamos a falar de factos e de conhecimento, a fé é irrelevante.

Devia ser óbvio que não se justifica afirmar que algo é só porque alguém gostaria que fosse. Devia ser óbvio que a fé em deuses é uma preferência e não uma forma de sabedoria. Devia ser óbvio que, por muito que muitos creiam, os auto-proclamados peritos em divinologias não sabem o que alegam saber acerca dos seus deuses. Ninguém pode saber essas coisas porque não há evidências que conduzam a tal conhecimento. O que sabemos é que nada indica que existam deuses e que, se existissem, seriam excepções de muitas regras que parecem não as ter. Um deus omnipotente é infinitamente menos plausível do que um elefante voador e não há fé que mude isso. Devia ser óbvio mas, se o admitissem, deixava de fazer sentido haver sacerdotes, bispos, rabinos, teólogos e restantes profissionais da religião. Por isso, fazem tudo para que não seja.

Este parece-me ser o papel do ateísmo. Não é eliminar a crença nem convencer os crentes a deixarem de o ser. Se alguém acha que vive melhor acreditando neste deus ou naquele, ou em todos, pois que o faça. A vida é sua e, acerca disso, não deve explicações. O papel destas expressões de ateísmo é confrontar quem afirma que a sua fé é conhecimento, que é perito no inefável, que é doutor do misterioso e que sabe quantos deuses há, como são e o que querem de nós. A fé não justifica tais alegações e é importante apontar que são tretas. Não para as demolir de uma vez por todas nem para acabar em definitivo com a religião, porque a profissão de representante dos deuses é demasiado atraente para que desistam dela. Mas, como raspar os calos, é preciso ir impedindo que cresça demais e se torne incapacitante.

Este post é dedicado ao Alfredo Dinis, um opositor estimado a quem devo muitos textos e alguns momentos agradáveis de convívio em pessoa. Infelizmente, o Alfredo faleceu no passado fim de semana, vítima de leucemia. O que sei da fragilidade humana não me permite a esperança de que o Alfredo ainda persista numa forma capaz de ler o que eu escrevo. No entanto, a minha memória das objecções, contra argumentos e raciocínio do Alfredo continuará a inspirar-me e informar-me nestes assuntos. É isso a alma. O que sobra quando o nosso corpo morre não é uma substância mística ou uma consciência incorpórea. É o conjunto de pensamentos que passámos a outros que, depois, continuam a pensá-los sem nós. Nesse sentido, o Alfredo continua vivo em muita gente. Obrigado, Alfredo.

domingo, setembro 22, 2013

Treta da semana: proibido comentar.

A Comissão Nacional de Eleições (CNE) estipulou que nenhum candidato pode fazer propaganda política pelas “redes sociais” nos dias 28 e 29 de Setembro (1). Esta medida tem sido criticada por não ser prático que a CNE vigie milhares de candidatos às autárquicas para garantir que respeitam esta restrição (2). Não me parece uma crítica pertinente, porque não será mais difícil vigiar o Facebook do que o uso megafones ou a distribuição de panfletos, autocolantes e bonés durante esses dois dias também. O que me preocupa nisto é um problema muito mais fundamental e que, infelizmente, não tenho visto abordarem.

A comunicação "em massa" tradicional, desde o megafone à televisão e jornais, tem características que podem justificar regulação pelos legisladores. É uma forma de comunicação reservada a alguns, pelo investimento que exige, e diferente das formas de expressão pessoal da maioria. Impõe-se à audiência pelo controlo centralizado que o emissor tem sobre a mensagem e a sua apresentação, seja na composição do jornal, na programação do canal de televisão ou no automóvel a berrar as virtudes deste partido ou os vícios daquele. E o seu uso está associado à procura de algum ganho ou vantagem material da parte de quem a ela recorre. Com esta assimetria no acesso e o uso que normalmente lhe dão faz sentido impor restrições legais como a proibição de mensagens publicitárias pagas durante a campanha eleitoral, seja em que meio for (3).

A comunicação pessoal é muito diferente. As cartas e os telefonemas, por exemplo, não são algo que se admita estar sob a alçada do legislador. Nem é por serem mensagens privadas; também não admitiríamos restrições destas ao que podemos conversar com os amigos na esplanada. Queremos o Estado fora das nossas cartas e conversas de café porque são formas generalizadas de comunicar em que participamos voluntariamente e como iguais. O problema principal desta decisão da CNE é assumir implicitamente que as novas tecnologias estão sob a jurisdição dos legisladores como se fossem megafones ou canais de TV. Isto é um perigo.

Se, no dia 28, um candidato escrever “Votem em mim!” na sua página do Facebook em vez de deixar lá a mensagem de véspera, isso só afectará quem for ler a página nesse dia e reparar na data do post. Não é o mesmo que andar aos berros na rua com o megafone ou a abanar cartazes à frente de quem passe. Mas pior do que o ridículo de regular a data em que se pode escrever estas coisas no Facebook é o perigo de furar a barreira que mantém o Estado fora da nossa vida pessoal. Proibir os candidatos de distribuir panfletos ou de comprar anúncios apenas limita actos acessíveis só a alguns e que visam impingir algo a quem não o procura. Mas proibir tweets, posts em blogs ou actualizações no Facebook restringe trocas voluntária de informação entre pares e para fins pessoais. É uma forma de censura que devia ser liminarmente rejeitada.

O problema é mais grave do que a maioria percebe. Este exemplo é apenas um entre muitos outros, como o atropelo de direitos pessoais para preservar monopólios de copyright, leis de retenção de dados para que possam vasculhar as nossas comunicações se eventualmente der jeito e sistemas para filtrar o acesso a materiais a que os legisladores acham que não devemos aceder. Esta tecnologia surgiu demasiado depressa para desenvolvermos aquela compreensão intuitiva que nos faria saltar a tampa se a CNE proibisse conversas sobre política na véspera de eleições ou a SPA escutasse telefonemas para garantir que não recitamos poesia sem autorização. Como, superficialmente, a Internet se parece com os jornais e a televisão, muitos assumem que deve ser regulada da mesma maneira. Mas a Internet é uma infraestrutura de comunicação que tanto pode ser comércio, publicidade e canal de TV como telefone, carta ou conversa de café. Por isso não podemos aceitar que o Estado regule o que aqui fazemos sem pensar primeiro em que faceta intervém. É aceitável, e desejável, que regule negócios, fiscalize publicidade e estabeleça regras para campanhas eleitorais. Mas é inadmissível que o Estado impeça a troca voluntária de informação para fins pessoais. Seja ficheiros mp3, seja intenções de voto, essa comunicação entre pares deve ser tratada como qualquer telefonema, carta ou conversa presencial e deve ficar fora da jurisdição do Estado. E se não defendermos o direito de usar esta tecnologia vão acabar por usá-la contra nós.

1- Público, CNE atenta ao "subliminar" no dia de reflexão no Facebook
2- Por exemplo, Público, Como vai a CNE controlar os milhares de candidatos nas redes sociais?
3- Meios e Publicidade, Autárquicas: Candidatos não podem fazer publicidade no Facebook

sexta-feira, setembro 13, 2013

Treta da semana: a educação do Raposo.

O Henrique Raposo defendeu recentemente a privatização do ensino em Portugal. Uma justificação foi a de que, por cada aluno nos colégios com contratos de associação, o Estado gasta em média menos 3% do que gasta com cada aluno em escolas públicas. Estranho seria se fosse o contrário, e isto não tem nada que ver com despesismos ou eficiência de gestão. Os privados podem localizar os colégios onde o negócio for mais rentável. O Estado não e, se bem que os governos recentes tenham fechado escolas com menos de 20 alunos (1), há ainda muitas escolas públicas com bastante menos do que a média de 570 alunos das escolas privadas com contrato de associação (2). Além da muita aldrabice que há neste negócio (3), garantir a educação de todas as crianças custa forçosamente mais do que investir só nas regiões mais rentáveis. Um dos grandes problemas do “cheque ensino” é precisamente este de ser muito mais provável haver colégios privados em Cascais do que em Carrazeda de Ansiães.

A outra justificação do Henrique Raposo é a de que «Cerca de 70 por cento das escolas na Holanda são privadas. Ou seja, o sistema público de educação da Holanda é baseado em colégios privados com contratos de associação com o Estado»(4). Isto não é uma treta. São três. Primeiro, a comparação é enganadora porque o sistema de ensino nos Países Baixos é muito diferente do nosso. O Estado supervisiona, financia, controla e autoriza o funcionamento de todas as escolas ao abrigo do sistema público de ensino, mas quem cria e gere as escolas são os governos locais, organizações religiosas e quem mais queira fazê-lo, com a restrição de não poder cobrar propinas e de ter de cumprir as normas estatais (5). Isto não é comparável com a distinção que cá fazemos entre o ensino público e as escolas privadas com fins lucrativos. Aquele “70% de privados” inclui uma grande gama de casos que vai desde escolas religiosas a associações locais e que pouco têm que ver com o negócio das escolas privadas que temos cá.

A segunda treta é a insinuação de que os Países Baixos optaram por este sistema porque é melhor, mais eficiente e lava mais branco. Não foi nada disso, e muita gente lá critica este sistema educativo pelo uso questionável do dinheiro dos impostos e pela sua contribuição para a segregação social. O sistema educativo dos Países Baixos é um legado histórico dos compromissos necessários a formar um país com uma sociedade fragmentada (6), como também aconteceu na Bélgica, outro dos exemplos do Henrique, com 50% das tais “escolas privadas”. Foi o que conseguiram fazer com várias regiões, religiões e grupos que não queriam os seus filhos educados com as ideias dos outros. Se tivessem podido evitá-lo, não teriam optado por esta solução.

A terceira treta é mais subtil. O ordenado mínimo nos Países Baixos é de 1469€ (7) e 43% da população tem educação superior (8). O nosso é de 566€, 24% da população tem educação superior e o aumento do nível de educação dos portugueses tem sido muito recente. Em 2003 a diferença era de 18% contra 39%. Não é verdade que o sistema de ensino nos Países Baixos seja “70% privado” no mesmo sentido com que cá distinguimos entre ensino público e privado, nem o escolheram por ser o melhor. Mas, ainda que assim fosse, não poderíamos concluir daí que seria bom para nós. Numa sociedade em que até os mais pobres têm garantias de um nível de vida razoável há mais gente a trabalhar pelo que faz e pelo reconhecimento da sua comunidade. Num país mais miserável o propósito do trabalho ou do negócio é quase sempre só o dinheiro que se ganha. Numa sociedade mais justa e igualitária a maioria não admite aldrabices e corrupção. Numa sociedade em que uns poucos têm quase tudo a aldrabice é mais alvo de inveja que de repúdio. Quando os pais têm mais formação, o sucesso escolar das crianças é mais fácil, o trabalho dos professores mais reconhecido e é mais difícil vender às famílias ensino de má qualidade (9). Quando os pais têm pouca formação, há mais desprezo pelo trabalho dos professores e pela educação em si, que tende a ser avaliada apenas pelo salário futuro do educando. Mesmo que nos Países Baixos fosse boa ideia ter o ensino “70% privado”, ainda assim seria uma péssima ideia copiarmos a receita com o país que temos agora. Aquela modesta poupança de 3% por aluno sairia muito cara em corrupção, na degradação do ensino e por nos condenar a ficar na mesma mais uma geração.

1- DN, Governo quer fechar escolas com menos de 20 alunos
2- Segundo este pdf>, há 53 mil alunos em 96 escolas com contrato de associação.
3- Daniel Oliveira, Colégios privados GPS: uma história exemplar
4- Henrique Raposo, A Holanda tem uma educação inconstitucional, quiçá fascista
5- Wikipedia, Education in the Netherlands
; CEIB, The Netherlands Overview
6- Wikipedia, Pillarization
7- Expatax, What is the minimum wage in the Netherlands in 2013?
8- Eurostat (Escolha “Education” na lista no canto superior direito).
9- Por exemplo, preparando os alunos para os exames nacionais mas não os ensinando a estudar devidamente. Escolas públicas preparam melhor os alunos para terem sucesso no superior

sábado, setembro 07, 2013

Treta da semana: o jejum.

Há quem se oponha a uma intervenção militar na Síria por razões de soberania. O conceito de soberania e o seu fundamento levantam problemas complexos mas, neste caso, penso que há um factor importante que simplifica a questão. A partir do momento em que alguém usa artilharia pesada, tanques e aviões contra civis, deixa de haver um Estado soberano e passa a haver só uma cambada de criminosos. Por isso, rejeito essa objecção.

Outros dizem-se contra uma intervenção por serem contra a guerra. Preferir a paz, evitar a guerra a todo o custo, essas coisas. Eu também prefiro evitar a guerra. Mas depois de cem mil mortos (1) e quase dois milhões de refugiados (2), parece-me que o tempo de prevenir e evitar já passou. A Síria está em guerra. A questão agora é o que fazer quanto a isso.

O uso de armas químicas* deve ser severamente punido. Nem me preocupa muito se terá sido uma das muitas facções anti regime ou uma das, provavelmente também muitas, facções do regime. As armas químicas não servem de muito contra forças militares preparadas mas são perfeitas para matar civis e nem danificam a infraestrutura. Se a comunidade internacional não reprime de forma decisiva este tipo de ataques, em breve vamos ter ditadores por todo o lado a usar disto contra grevistas, manifestantes ou quem lhes apetecer. Parece-me importante que se bombardeie qualquer ditador cujo regime permita estas coisas; muito mais importante do que passar anos a discutir se foi mesmo o Assad quem ordenou estes ataques.

Por estas razões, à partida eu seria a favor de destruir os aviões, blindados e artilharia do regime sírio. Não traria a paz. Muitos milhões de sírios certamente querem que haja paz, mas aquela minoria que tem as armas, sejam pró ou contra o regime, parece consistir só de bestas que querem matar gente. Enquanto não se matarem todos uns aos outros não haverá paz. Ainda assim, restringi-los a combater só com armamento ligeiro seria um passo na direcção certa. Infelizmente, há dois problemas grandes.

Um problema é que não há vontade política para uma intervenção militar a sério. Vão mandar meia dúzia de mísseis e, dada a complexa rede de ódios que impera naquela região, nem é claro se isso irá atenuar ou intensificar o conflito. O outro problema é que a Rússia tem muito interesse em manter o regime de Assad. Não só pela base militar em Tartus, mas também para impedir a construção de um gasoduto entre o Catar e a Turquia, o que prejudicaria o negócio da Gazprom na Europa. O risco de conflito entre duas potências nucleares com interesses comerciais antagónicos e tanto dinheiro em jogo aproxima-me do lado do “que se lixem os sírios”.

Em suma, não faço ideia do que será melhor e ainda bem que não sou eu a decidir.

Perante esta angústia de saber que há dezenas de milhares de pessoas a morrer, milhões de refugiados e nenhuma solução para o problema, o Papa Francisco receitou jejum e orações. Uma espécie de homeopatia das relações internacionais. Não serve de nada aos sírios. Como os católicos esclarecidos insistem regularmente, o deus deles não intervém e o dos sírios certamente já recebeu pedidos suficientes para intervir se estivesse para aí virado. Mas o jejum e as orações sempre aliviam a angústia de quem quer ajudar e assim se convence de que fez alguma coisa. O tal efeito placebo.

O perigo destes tratamentos alternativos é substituírem os outros que têm algum efeito. O jejum e as rezas não fazem mal nenhum. Quem se sentir aliviado com isso pois jejue e reze à vontade. Mas não deixem de acrescentar à sensação de terem ajudado o efeito prático de ajudarem mesmo. Por exemplo, com donativos ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (3). Há dois milhões de refugiados sírios, muitos deles crianças, a jejuar mais do que é saudável. Em vez de passarmos fome com eles, preferirão certamente alguma coisa para comer.

* Parece-me estranha a implicação de que os explosivos não são armas químicas. Eu preferia dizer armas tóxicas. Mas para não criar confusão, vergo-me à convenção.

1- Wikipedia, Casualties of the Syrian civil war
2- UNHCR, Syria Regional Refugee Response
3- UNHCR, Donate

Fanatismo.

De vez em quando acusam-me de ser um ateu fanático. Normalmente, defendo-me apontando que escrever opiniões num blog é diferente da violência dos terroristas, da inquisição ou das claques de futebol. Mas agora o Helder Sanches fez-me perceber um aspecto mais fundamental do fanatismo. Se bem que seja preciso ser-se fanático para chegar a tais extremos de violência, também se pode ser fanático sem se ser violento. O Helder escreveu que está farto de «discussões sobre ateísmo por causa de ateus» que ele considera «fanáticos e irracionais»(1). Como discordámos recentemente acerca das afirmações do Dawkins (2), que indignaram o Helder, talvez a crítica também me seja dirigida. Ou talvez não. Seja como for, este “fanáticos e irracionais” ajuda a compreender porque é que o fanatismo é um problema também entre os ateus.

Quando fundamentamos uma opinião em razões, a opinião fica separada do que somos. Mesmo se as razões forem subjectivas. Se alguém se declara benfiquista porque gosta do Benfica, subentende-se que pode mudar de opinião se deixar de gostar do Benfica. O gosto e o afecto pelo Benfica são externos ao seu “eu” e podem mudar sem qualquer crise de identidade. Mas o benfiquista para sempre, até morrer, aconteça o que acontecer, encara o seu “benfiquismo” como parte intrínseca da sua pessoa, independente de quaisquer razões. É o tal fanatismo irracional a que o Helder alude. Ou seja, a diferença fundamental é que o fanático considera que a sua opinião é uma parte imutável e inalienável de si enquanto que quem não é fanático reconhece que a opinião não é a pessoa mas sim algo que a pessoa pode mudar.

Antes de continuar a exegese do texto do Helder, queria fazer um desvio por dois pontos que, apesar de tangenciais, me parecem merecer alguma consideração. O primeiro é que o fanatismo não depende do entusiasmo com que se defende uma posição. Ambos os benfiquistas se podem levantar e gritar com o mesmo júbilo quando o Benfica marca golo, mesmo que um seja fanático e o outro não. O fanatismo está apenas naquela confusão entre pessoa e opinião que surge por se descurar as razões. Ninguém é fanático só por gostar muito de alguma coisa. O segundo ponto é que, apesar do fanático considerar que o seu “ismo” faz parte do seu ser, na verdade nunca faz. O fanático também é capaz de mudar de ideias e só será fanático enquanto não perceber que tem essa capacidade. Um disparate recente do Gonçalo Portocarrero de Almada ilustra este ponto. O Gonçalo exige que o casamento civil seja indissolúvel para que os ateus tenham os mesmos direitos que os católicos. A justificação é que o casamento católico mantém os católicos casados mesmo que já não queiram, um “direito” que o ateu não tem (3). O erro do Gonçalo é assumir que o católico não pode deixar de ser católico. É a tal confusão entre opinião e pessoa que caracteriza o fanatismo. Na verdade, o casamento do católico é tão rescindível como o do ateu. Ambos duram até que as pessoas envolvidas mudem de ideias.

Voltando ao post do Helder, aceito a ideia de que o fanatismo é um problema tanto entre ateus como entre crentes. No caso dos ateus, e dos crentes de cá, não é um problema tão grave como as chacinas e barbaridades que os fanáticos violentos fazem em nome das suas religiões, tradições e ideologias políticas noutros países. Ainda assim, a dificuldade em distinguir entre pessoas e opiniões dificulta muito o diálogo. Por exemplo, o Helder critica os “novos-ateus” porque «consideram-se hoje superiores aos crentes, em inteligência, em moral, em cidadania», afirmando que é «uma atitude desinteressante com a qual não quero ser sequer confundido». Eu considero que assumir que os deuses são fictícios e que somos responsáveis pelo que fazemos é eticamente preferível e objectivamente mais correcto do que acreditar que vivemos sob o jugo de seres sobrenaturais e que temos de nos portar bem para evitar um castigo na outra vida. Não sendo fanático, não considero que ter uma opinião diferente da minha seja intolerância ou um ataque pessoal nem considero que a minha opinião ser mais correcta do que as alternativas implique que eu seja melhor do que os outros. As opiniões são uma coisa, as pessoas são outra. Mas o Helder parece ter sucumbido ao fanatismo. Teme ser confundido com uma atitude, sente-se indignado com as opiniões das quais discorda e assume que quem acha que tem razão necessariamente se considera superior aos outros.

O fanatismo é um problema também entre os ateus. As afirmações recentes do Dawkins sobre os muçulmanos e os prémios Nobel deram um exemplo disso. Não é que o Dawkins seja fanático. Ninguém é fanático só porque diz o que pensa, por muito provocatório que seja. O problema é que, tal como entre os crentes, também entre os ateus há muita gente que, por fanatismo, não consegue discutir certas coisas sem ficar com as cuecas entaladas no rego.

1- Helder Sanches, Humanista.
2- Treta da semana: isso não se diz...
3- Casamento civil indissolúvel, já!

domingo, setembro 01, 2013

Treta da semana: quarenta horas.

A maioria de direita aprovou o aumento do horário de trabalho da função pública de trinta e cinco para quarenta horas semanais. É apenas mais uma medida para degradar a função pública, mas a reacção que tenho visto a esta medida é preocupante porque evidencia a facilidade com que a propaganda deste governo engana as pessoas e as consequências dessa aldrabice. A justificação de que é justo aumentar o horário de trabalho na função pública porque assim se aproximam as condições de trabalho dos dois sectores é falaciosa. Como qualquer falácia, parece fazer sentido, mas só até se olhar para os detalhes.

A alegada aproximação entre o público e o privado só considera as piores condições no privado. Ninguém quer médicos de família a ganhar 80€ por consulta ou administradores com o salário do Zeinal Bava. Quer-se uma equiparação apenas à cauda inferior. O limite de 40 horas semanais, que no sector privado é o máximo permitido por lei, no sector público será o limite mínimo também. Ao contrário do que acontece no sector privado, no público ninguém acha mal o empregador aumentar o horário de trabalho sem compensar os trabalhadores. A comparação também ignora diferenças importantes de desgaste e exigência. Trabalhar numa loja de perfumes não é o mesmo que ensinar crianças, tratar doentes ou atender contribuintes furiosos numa repartição de finanças. A própria ideia de procurar justiça com estas comparações é absurda. Quanto se ganha e trabalha na Jerónimo Martins permite avaliar se a Jerónimo Martins é um empregador justo, mas é irrelevante para decidir quão justas são as condições na TAP e ainda menos para decidir como devem ser as condições de trabalho de polícias, enfermeiros e professores. Infelizmente, pessoas na miséria e assustadas com o futuro facilmente se convencem com este argumento falacioso de cortar no público para o equiparar ao privado.

Esta propaganda também aproveita, e reforça, a tendência preocupante de inverter certos valores sociais. Por alguma razão, preza-se mais profissões que prejudicam os interesses colectivos do que as que garantem serviços essenciais. O Zeinal Bava é um gestor excelente, mas é excelente a maximizar a diferença entre o que os clientes da PT pagam à empresa e o que a empresa paga ao seus trabalhadores. É isso que beneficia os accionistas e justifica o salário dele. Mas, do ponto de vista social, o ideal seria seria baixar os preços e aumentar os salários até eliminar essa diferença. Seria como ter os trabalhadores a servir directamente os clientes sem o accionista no meio a tirar a sua fatia. Se bem que o mercado não funcione assim, não se justifica enaltecer esta capacidade de lucrar com a compra de trabalho abaixo do preço do seu produto e desprezar como parasitas quem limpa ruas, educa crianças, trata doentes e prende criminosos só porque o faz “à custa do Estado”. Ou seja, sem o accionista no meio. Os bombeiros são um exemplo trágico deste absurdo. Três dos cinco bombeiros mortos este Verão eram voluntários, com 21, 23 e 24 anos de idade. Para a nossa sociedade, não vale a pena pagar profissionais a tempo inteiro durante o ano todo se só precisamos deles no Verão. Sai mais barato treinar voluntários em part-time e chorar um bocadinho quando alguns morrem do que pagar-lhes salários e formação adequada dos nossos impostos.

Mas talvez o mais triste, pelo efeito e pela ironia, é como as pessoas são enganadas acerca da “eficiência” que isto nos traz. Quando pensamos na eficiência do ensino público pensamos em melhor educação. Na saúde, em melhores tratamentos e prevenção de doenças. Na segurança, em menos criminalidade. Na justiça, em resoluções mais céleres e mais igualdade. Em geral, um serviço público mais eficiente será um com melhores resultados, menos corrupção, menos burocracia mesquinha e incompetência. Mas a eficiência que este governo nos vende é estritamente económica, definida pelo dinheiro que se ganha em função do dinheiro que se investe. Nisso, a função pública é sempre ineficiente. Tem sempre custos em vez de investimento. Mas cortar na função pública vai dar serviços piores, mais corrupção, mais incompetência e injustiças, e é precisamente esse o objectivo dos defensores da “eficiência”. Os que têm os contactos certos com o Sr. Ministro, o Sr. Adjunto ou o Sr. Secretário. Os que gerem as privatizações. Os que querem vender serviços que o Estado fornece, e até querem que os Estado lhes pague por isso. Quanto mais se degrada o sistema de ensino mais rentáveis se tornam os colégios privados e mais facilmente se aprova coisas como o “Cheque Ensino”, para os ricos terem desconto nos colégios onde os pobres nunca conseguirão ter os filhos. O mesmo com a saúde e as clínicas privadas, e até com a justiça, que quanto mais tortuosa e injusta for melhor será para os advogados e quem tiver dinheiro para os contratar.

A ironia é que quem trabalha no privado e acha justo cortar na função pública está a contribuir para degradar as suas próprias condições de trabalho porque o mercado de trabalho está interligado. As empresas privadas têm de oferecer condições semelhantes às que o Estado oferece para atraírem candidatos com o mesmo perfil e qualificações. Mas se o Estado deixa de contratar, reduz o número de funcionários, corta nos salários e aumenta o horário de trabalho, o sector privado pode oferecer bastante menos. Este é mais um passo na espiral recessiva da austeridade. O Estado corta, as empresas cortam, as pessoas empobrecem e a receita fiscal diminui. O défice continua o mesmo, a maioria fica mais pobre e só quem tem muito dinheiro é que sai a ganhar porque o seu dinheiro passa a valer mais. A seguir pode-se novamente invocar que os funcionários públicos continuam a ganhar mais, que têm mais direitos adquiridos e regalias, e que é preciso dar mais uma volta ao parafuso para espremer mais um bocado.