sábado, setembro 30, 2006

Ciência e Naturalismo

Incomoda-me a ideia que a ciência tem que ser naturalista, e que por isso não pode sequer considerar qualquer explicação que não seja natural. Incomoda-me especialmente por vir esta ideia quer dos que se opõem à ciência quer de alguns que deviam compreender melhor a abordagem científica.

Vamos supor que queremos melhorar as colheitas, e que consideramos duas hipóteses. Uma, naturalista, diz que devemos irrigar os campos e usar fertilizante. A outra diz que devemos propiciar os deuses para que providenciem uma colheita abundante. Há uma forma clara de determinar a melhor hipótese: irrigamos e fertilizamos metade das plantações, e na outra metade sacrificamos vacas, rezamos, ou seja o que for que a segunda hipótese indique como propiciando melhor os deuses. No final medimos quanto foi produzido e já sabemos o que funciona melhor.

O método é o mesmo, e é o Universo que determina a melhor alternativa. É pelo Universo ser como é que nós irrigamos os campos em vez de sacrificar vacas, ou levamos o carro avariado ao mecânico em vez de o levar à igreja. A ciência diz-nos que é melhor fazê-lo desta maneira, mas se fosse melhor fazer da outra, também era a ciência que o iria mostrar pela comparação dos resultados.

O problema com o sobrenatural não é ter deuses, demónios, espíritos ou essas coisas que as pessoas inventam. O problema é que, normalmente, uma hipótese sobrenatural não diz nada. Um deus omnipotente que nunca actua quando está a ser testado não pode ser testado cientificamente. Mas não é por causa do naturalismo; um fertilizante químico que nunca actua quando estamos a tentar observá-lo é igualmente impossível de testar. As coisas que a ciência não pode testar são apenas as coisas que não podem ser testadas, ponto final. Chamar-lhes naturais ou sobrenaturais é irrelevante.

Isto para a ciência como método. A ciência como o corpo de conhecimento científico põe de parte espíritos, deuses, e essas coisas que se diz serem sobrenaturais (mas por que é que um deus não pode ser um deus natural?). Mas estes foram excluídos simplesmente porque parecem não existir, e não por limitação do método. A ciência é bem capaz de excluir o Pai Natal, os unicórnios, e as fadas madrinhas, sejam estes naturais ou sobrenaturais.

E se vivêssemos num Universo diferente a ciência poderia dar-nos faculdades de ciência teológica, engenheira dos espíritos, tecnologia da oração, demonologia aplicada, e o que mais fosse. Se os deuses e espíritos existissem e interagissem connosco, não poderíamos ficar pelo primeiro livro sagrado que nos impingissem. Teríamos que comparar diferentes religiões, testar os profetas, confrontar estas hipóteses de forma a encontrar a verdadeira religião. Tudo isso seria ciência.

Em suma, a ciência não está limitada ao natural. O Universo é que veio sem acessórios sobrenaturais, e a ciência apenas nos diz que é assim que as coisas são.

Jónatas Machado, Fé e Ciência

Continuando o comentário ao artigo de Jónatas Machado (JM) de 8 de Setembro no jornal «O Público», proponho que JM erra ao afirmar:

«A querela entre evolucionistas e criacionistas bíblicos não é entre fé e ciência, mas sim entre duas visões do mundo: a bíblica e a naturalista.»

Para ver porque é um erro, vamos supor que encontrávamos um texto escrito por Darwin, no qual este denunciava toda a teoria da evolução como fraude, e afirmava uma fé absoluta no criacionismo bíblico. Tal achado teria algum interesse histórico, mas nenhum efeito na biologia moderna. Ninguém tem fé em Darwin, e a teoria da evolução é suportada pela evidência e pelo seu poder explicativo, e não pelas palavras de ninguém (o lema da Real Sociedade de Londres desde 1660).

Por outro lado, suponhamos encontrar um texto escrito por Jesus, no qual este denunciava o criacionismo como falso, e afirmava que todos os seres vivos tinham surgido por processos naturais, sem intervenção divina. Qualquer criacionista que aceitasse este texto de Jesus teria que deixar de ser criacionista. Ao contrário do que JM defende, o criacionismo bíblico assenta exclusivamente na fé.

Por isso este conflito é entre fé e ciência. A ciência é naturalista apenas porque as evidências indicam um mundo natural, e o criacionismo bíblico não é mais que a fé na interpretação literal de um livro crido como a revelação dum deus criador.

Organismos e Características

Recentemente, o João Miranda perguntou como explicar o altruísmo dos pais e a vida curta de alguns organismos. Os comentários motivaram-me a explicar aqui alguns conceitos que são fundamentais para perceber a teoria da evolução.

Um problema é considerar a sobrevivência do organismo (ou, pior ainda, da espécie) como o propósito da evolução. Por um lado, a evolução não tem propósito, e a selecção natural funciona como uma peneira: os grãos finos passam porque já eram finos, e não se tornam finos com o intuito de passar a peneira. O que somos agora não era o objectivo dos nossos antepassados, mas o resultado do que eles sofreram.

Por outro lado, é a reprodução que interessa. Morrer, para responder ao João Miranda, pode ser uma adaptação. No caso dos salmões, por exemplo, que literalmente se matam para se reproduzir. No caso das abelhas, que morrem para proteger as irmãs. No caso das células de organismos multicelulares, que morrem para proteger a colónia. Porque o mais importante são as características que passam à geração seguinte, e não o indivíduo.

Quando falamos de aptidão ou viabilidade em teoria da evolução, estamos a falar de características (genes, por exemplo) e não de organismos. Um gene humano pode estar presente em indivíduos gordos, magros, altos, baixos, fortes, fracos, homens, mulheres, etc. A aptidão de um gene é a média do sucesso reprodutivo dos portadores desse gene. A aptidão de um indivíduo é irrelevante.

A ordem Hymenoptera dá um bom exemplo. Nesta ordem, que inclui vespas, abelhas, e formigas, o sexo é determinado pelo número de cromossomas. As fêmeas têm duas cópias de cada gene, e os machos apenas uma, tendo metade dos cromossomas. Assim, as filhas partilham 50% dos genes das mãe (os outros 50% vêm do pai), mas as irmãs têm 75% se genes em comum (todos os do pai e, em média, metade dos da mãe). Um gene numa formiga fêmea tem mais vantagens em promover o nascimento de irmãs que de filhas dessa formiga, pois em cada irmã há 75% de probabilidade de estar uma cópia desse gene, e em cada filha apenas 50%. Esta é a principal razão porque nestas espécies a maioria das fêmeas prescinde da reprodução para cuidar das irmãs. Altruísmo? Do ponto de vista do organismo, sim, mas isso é irrelevante. Organismos vão e vêm, e não evoluem. O que evolui é a distribuição de características na população, e é a aptidão das características que temos que considerar para compreender o processo.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Efectuar

Esta treta já há uns tempos que me chateia. Em muitas lojas e supermercados tenho visto frases como “É favor efectuar a saída pelas caixas”, “Não se efectuam trocas de roupa interior”, ou “É favor pedir a factura antes de efectuar o pagamento”. Mas que raio. Porque é que já não se pode sair, trocar, ou pagar como dantes?

A Evolução, o Acaso, e o Bitoque

Outro argumento muito usado pelos criacionistas é que as proteínas, células, e seres vivos não podem ter surgido por acaso. Estou perfeitamente de acordo, pois se fosse por acaso não precisávamos da teoria da evolução. Se lanço uma moeda e sai coroa, não perco tempo a tentar perceber porquê. Calhou, e está o caso arrumado.

O problema é que os criacionistas confundem processos naturais com acaso e assumem que aquilo que não acontece por acaso acontece por intervenção divina. O que é estranho. Se a moeda sair coroa cinquenta vezes consecutivas, parece-me que dizer que foi a vontade dos deuses é o mesmo dizer que foi por acaso. São apenas formas diferentes de indicar algo que nem controlamos nem compreendemos.

Não quer dizer que tenhamos que rejeitar a intervenção divina como explicação (tenciono elaborar isto em breve), mas temos de a especificar melhor, pois seja deus ou seja a física que tenha feito a moeda cair cinquenta vezes coroa, só compreendemos o que aconteceu se compreendermos como aconteceu. E apenas a teoria da evolução explica o como. O criacionismo fica-se pelo quem.

Para propagar este mal entendido, os criacionistas fazem contas complicadas com o numero de combinações de aminoácidos numa proteína, e coisas afins, para mostrar como processos naturais estão «longe de explicar a origem da vida e a transformação de moléculas em pessoas» (Jónatas Machado, O Público, 8/9/06).

As contas em si são uma treta merecedora duma entrada dedicada neste blog, mas não tenho tempo para tudo. Por isso vou-me restringir ao maior obstáculo que os criacionistas têm que enfrentar com este argumento.

O bitoque.

Frita-se um tubérculo, um pedaço de bovino, e um ovo de Gallus gallus domesticus. Reduz-se a uma pasta amorfa por masticação. No estômago e no intestino, enzimas e bactérias decompõem-na em moléculas orgânicas simples, inanimadas, e suficientemente pequenas para penetrar na membrana intestinal. E ao fim de umas horas estas moléculas são parte do tecido vivo humano. E isto fazemo-lo desde que começamos a vida como uma única célula (se bem que nem sempre com bitoques, senão enjoava).

Aqui os criacionistas têm duas opções. Uma é defender o milagre da digestão, em que o seu deus está presente em cada intestino para transformar moléculas em pessoas. Mas penso que esta tornaria demasiado óbvio que o criacionismo é uma hipótese inútil. A alternativa é admitir que um processo químico transforma moléculas em pessoas sem intervenção divina. E admitir que processos naturais podem transformar tubérculos e bovinos em humanos. E mesmo quando a probabilidade de tal acontecer por acaso é ridiculamente pequena.

É claro que já começamos com uma célula humana, mas os criacionistas não explicam como essa célula surgiu. Dizem-nos quem a fez, mas não como a fez. Limitam-se a negar a possibilidade de quatro biliões de anos de química e biologia originarem essa célula, sem propor uma explicação alternativa. Mas a transformação de uma célula num humano adulto por processos naturais em poucas décadas mostra como este argumento é fraco. E, como explicação, até o bitoque é melhor.

domingo, setembro 24, 2006

Evolução, Tautologia, e Teorias Testáveis.

Um argumento criacionista engraçado é que a teoria da evolução (TE) é uma tautologia, não pode ser testada nem é refutável, e assim não pode ser científica. A graça é ver este argumento dado pelo mesmo criacionista que diz refutar cientificamente a TE. Como, por exemplo, o Jónatas Machado, que após muitas tentativas de mostrar que as previsões científicas da TE estão mal, afirma que «Na verdade, o evolucionismo é que não faz previsões científicas».

Ora aí está. Um golpe mortal nesta teoria, que não só foi refutada como foi provada irrefutável.

Este argumento é atraente por causa da tal tautologia. Uma tautologia, em sentido lato, é uma afirmação que é necessariamente verdadeira pelo significado dos termos, e a favorita dos criacionistas para demonstrar como a TE não faz sentido é algo como: a TE diz que os mais aptos sobrevivem, mas define os mais aptos como sendo os que sobrevivem, o que é uma tautologia pois é sempre verdade por definição, e por isso a TE é irrefutável e não científica.

Mas as tautologias não são sempre inúteis. Por exemplo, «se o triplo de X é seis, então X é dois» é uma tautologia, pois tem que ser verdade pelo significado de termos como triplo, seis, e dois. Sempre que criamos modelos matemáticos acabamos por depender de tautologias, como: «Se um combóio se desloca a 100Km/h, em duas horas percorre 200Km».

A TE é um conjunto de modelos matemáticos acerca da forma como populações de replicadores vão mudando ao longo do tempo, e na base da TE temos a seguinte tautologia, simplificada para omitir os detalhes quantitativos:

Se numa população de entidades que se replicam:
1) Há herança de algumas características.
2) Há competição por recursos limitados.
3) O sucesso reprodutivo depende, pelo menos em parte, das características herdadas.

Então

4) A cada nova geração será mais provável um aumento na frequência das características relacionadas com maior sucesso reprodutivo, relativamente à frequência das outras características.


Isto é tão tautológico como X ser dois se o seu triplo for seis. Pelo significado dos termos, sempre que 1), 2) e 3) são verdade, 4) é necessariamente verdade.

Pois é verdade que estas tautologias não são testáveis. Nem é testavel a definição de um conceito na teoria. A velocidade é a derivada da posição em função ao tempo. A viabilidade de um genótipo é a fracção de indivíduos com esse genótipo que chega à idade reprodutiva. Não se testa se estes termos são assim ou não, pois isto são definições.

O que é testavel é a hipótese de podermos aplicar a tautologia. Por exemplo, o que é testável em «Se o combóio se desloca a 100km/h percorre 200km em duas horas» é a condição. Será que o combóio se desloca a 100km/h durante duas horas? Se sim, então aplicamos a tautologia e concluímos que percorre 200km. Se não, então temos que usar outra.

Na TE testamos se o objecto é uma população de replicadores nas condições 1), 2), e 3). Um saco de pedras não preenche estas condições. Características não hereditárias não preenchem as condições. Uma espécie em que os organismos nasçam com características ao acaso em vez de as herdarem dos pais não preenche as condições. A TE, tal como outras teorias científicas, contém tautologias e definições, mas é testável porque se aplica a casos bem definidos que podemos testar.

O criacionismo não. Tem uma tautologia: «se um deus omnipotente criou os seres vivos, pode tê-los criado da forma como eles são». Pelo significado de omnipotente, isto é necessariamente verdade. Mas ter uma tautologia não é o problema. O problema é que esta não nos permite determinar se podemos aplicar a teoria da criação ou não. Qualquer que seja o objecto, é sempre possível que tenha sido criado por um ser omnipotente, e é sempre possível que tenha surgido de outra forma qualquer. É por isso que o criacionismo não é falsificável, e é por isso que se reduz a uma mera afirmação de fé num criador omnipotente.

sábado, setembro 23, 2006

Uma Metáfora Melhor.

Aqui há uns dias critiquei a metáfora do DNA como linguagem. Vou agora propor uma metáfora melhor, inspirando-me na metáfora do Richard Dawkins, do DNA como receita.

Imaginem uma máquina de fazer bolos. Tem ingredientes e forno, e é controlada por uma fita perfurada. Conforme a fita passa, os furos activam circuitos da máquina e esta mede uma quantidade de farinha, ajusta o termostato, bate as claras, ou faz o que for preciso. E na nossa cozinha futurista temos uma fita mestra com todas as receitas, e copiamos cada receita para fitas mais curtas que colocamos na máquina de fazer bolos. A fita mestra é análoga ao DNA, e as mais curtas são análogas ao RNA.

A analogia é melhor que a da linguagem porque são as propriedades físicas e químicas da fita e do RNA que activam a máquina, em vez de conceitos abstractos duma linguagem independente do material onde está escrita. O análogo biológico da máquina de fazer bolos é o ribossoma, que “cozinha” as proteínas seguindo as marcas na “fita” de RNA.

Outra semelhança importante é o âmbito limitado e específico destas “linguagens”. A fita com a receita apenas especifica coisas como tempos de cozedura e quantidades de ingredientes, que depois vão interagir e se transformar no bolo. O DNA especifica a ordem e número de aminoácidos na proteína, cujas interacções são a vida do organismo. A linguagem humana permite falar da beleza das flores ou combinar um encontro com os amigos, mas nem o DNA nem a fita se parecem com isto.

Isto ajuda a compreender o efeito de alterações aleatórias. Uma mutação no padrão de furos na fita pode mudar 200g de açúcar para 200g de sal, estragando por completo o bolo. Mas pode também mudar os 200g de açúcar para 220g de açúcar, e até melhorar o sabor. Na linguagem humana uma alteração aleatória quase sempre destrói o sentido, mas alterar a fita ou o DNA pode mudar apenas um pouco o resultado final. Isto permite compreender como espécies podem evoluir e adaptar-se pela acumulação gradual de pequenas alterações. Exactamente como um cozinheiro pode aperfeiçoar a receita por tentativa e erro, pondo mais uma pitada de sal, deixando cozer um pouco mais, e assim por diante.

Nunca iríamos escrever uma enciclopédia com o processo de tentativa e erro que usamos para aperfeiçoar uma receita. E aqui reside outra diferença importante: quando descrevemos algo com linguagem há uma relação bidireccional entre a descrição e a coisa descrita. Ao conhecer a descrição sabemos como é a coisa, e ao conhecer a coisa sabemos como a descrever. Escrevemos a enciclopédia porque compreendemos o que estamos a descrever.

Numa receita, ou no DNA, isto não acontece. Só sabemos como vai sair o bolo se o fizermos, e não conseguimos descobrir a receita só por provar o bolo. Enquanto que a enciclopédia exige compreensão, a receita apenas regista os passos do processo. Não é preciso compreender a composição química do bolo para escrever ou seguir uma receita, e uma máquina que fabrica bolos é algo muito diferente duma máquina que compreende enciclopédias.

Neste aspecto, o DNA é também como a receita, e nada como a enciclopédia. O que nos trás por fim à grande diferença entre as duas metáforas. O DNA linguagem implica compreensão, inteligência, propósito e deliberação na sua criação. O DNA linguagem, como uma enciclopédia, não evolui por tentativa e erro. Mas o DNA linguagem é uma má metáfora.

O DNA como fita na máquina de fazer bolos é uma metáfora mais ajustada à realidade. A máquina dos bolos não tem inteligência, a receita pode ser criada por tentativa e erro, e em lado nenhum é preciso o mínimo de compreensão dos processos puramente mecânicos que levam da fita ao bolo.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Jónatas Machado e a Física Nuclear

Esta é a quinta parte da já longa homenagem ao criacionismo Português, cujos argumentos Jónatas Machado resumiu no Jornal «O Público» de 8 de Setembro. Desta vez veremos a alternativa criacionista à Física Nuclear. Já era hora de alguém simplificar esta terrível disciplina, eliminar todas as contas e expressões complicadas, e transformá-la num elegante “foi Deus”.

Mas o mais engraçado desta física criacionista é ser tão obviamente contraditória. Por um lado temos:

«Os criacionistas sugerem que as evidências de decaimento radioactivo acelerado [...] testemunham a ocorrência de um dilúvio global, descrito na Bíblia»

Isto alude à proposta criacionista que o decaimento radioactivo (o tempo de meia vida) não é constante para cada isótopo, mas que, no passado, era mais acelerado, dando azo a erros na datação por este método. Por outro lado, temos este:

«As leis da causalidade, da termodinâmica, da biogénese, das probabilidades, etc., e o princípio antrópico corroboram a criação e não a evolução.»

Aqui o princípio antrópico refere-se à ideia que o Universo está afinado com grande precisão para suster a vida humana. Parte deste argumento é que as forças nucleares não poderiam variar nem uma pequena fracção dos valores que têm. Mais fracas e não haveria fusão do Hidrogénio nas estrelas, e sem estrelas não poderia haver vida. Mais fortes, e as estrelas explodiriam.

O que é curioso é que o decaimento radioactivo depende da força nuclear (mais precisamente, da força nuclear fraca). Ou seja, os criacionistas dizem que uma rocha que aparenta ter um bilião de anos de idade tem, no máximo, uns dez mil anos, porque antigamente o decaimento radioactivo era diferente. Bem diferente; isto equivale a medir um palmo com um erro de dez quilómetros. Ao mesmo tempo defendem que a força que determina o decaimento radioactivo tem que ter exactamente o valor que tem senão as estrelas congelam, ou explodem, e é o fim do mundo. Meus senhores, decidam-se... Então pode mudar ou não pode mudar?

Eu penso que os criacionistas nem se apercebem destas contradições (assumindo que apresentam estes argumentos de boa fé) porque tudo para eles se explica por intervenção divina, o que isola as explicações umas das outras. Os tubarões vivem no mar e têm guelras, porque o criador quis que respirassem debaixo de água. Os golfinhos vivem no mar e têm pulmões, porque o criador achou melhor obriga-los a respirar à superfície. Nos olhos dos invertebrados, as células da retina que detectam a luz estão do lado de onde vem a luz, tendo por trás os vasos sanguíneos que as alimentam e as células nervosas que formam o nervo óptico e transmitem os sinais ao cérebro. O criador achou por bem fazer um trabalho decente quando criou os olhos dos polvos e das lulas. A retina dos vertebrados está ao contrário, com os receptores na parte de traz, os neurónios e vasos sanguíneos a tapar a luz, e um buraco para o nervo óptico poder sair do globo ocular. O criador deve ter achado que tinha piada fazer olhos do avesso.

Este hábito de explicar tudo ad hoc dificulta a discussão com os criacionistas. O que se espera de uma explicação científica é que unifique os fenómenos explicados num corpo de conhecimento interligado e coerente. Mas o que os criacionistas apresentam é uma batelada de afirmações desconexas, muitas contraditórias, e quase todas sem fundamento. Expliquem-me lá, senhores criacionistas, onde estão os dados que demonstram que o decaimento radioactivo era um milhão de vezes mais rápido no tempo de Adão, e por que raio não explodiu o Sol nessa altura se é tão sensível aos valores das forças nucleares?

Já sei, já sei... O primeiro é porque deus quis, e o segundo porque não quis.

terça-feira, setembro 19, 2006

DNA, informação, e o significado das moscas

Pareceu-me, por alguns comentários recentes, que há alguma confusão entre a informação contida numa sequência, o DNA como molécula, e o significado de uma mensagem. Vamos lá ver se desta vez consigo explicar melhor.

A palavra “mosca” tem significado porque se refere às moscas, à ideia de mosca, ou a alguém estar com a mosca. Este significado precisa de um ser inteligente (e que perceba Português) para ser compreendido. Mas a mosca não tem significado. É uma mosca, e não se refere a mais nada. O DNA, como a mosca, não tem significado. É o que é.

A informação, no sentido técnico, é independente do significado que lhe damos. Se temos uma sequência de bits no computador A e queremos reproduzi-la no computador B, A tem que transmitir informação para B. A teoria da informação permite-nos optimizar esta transmissão: se a sequência for estruturada podemos comprimi-la em menos bits; se não tiver qualquer regularidade, temos que a enviar por completo, e não podemos poupar bits. Por isso dizemos que uma sequência irregular (aleatória, num sentido lato e pouco rigoroso) tem mais informação.

Ora esta transmissão não depende do significado que a sequência de bits tem para nós. Os computadores, e a teoria da informação, não querem saber se é uma carta de amor, uma lista de insultos, ou a declaração do IRS. Aliás, grande parte do tráfego de informação digital relaciona-se com protocolos de transmissão, verificação de integridade das mensagens, endereçamento, e muitas outras mensagens que nenhum ser humano vê. Pode-se transmitir ou guardar informação sem que essa informação signifique o que quer que seja.

As propriedades dos objectos também são independentes dos significados que nós inventamos. A palavra “água” não mata a sede, e a água tem as mesmas propriedades físicas e químicas qualquer que seja o seu significado para nós. O significado dos símbolos que descrevem o DNA não afecta os processos em que o DNA participa. Se queremos moscas mutantes, temos que alterar o DNA das moscas; não basta editar o ficheiro de texto onde guardámos a sequência.

Em suma, a quantidade de informação e as propriedades dos sistemas biológicos não dependem do significado dos símbolos que inventamos. O perigo da metáfora do DNA como linguagem é esconder esta independência. Como alterações aleatórias num texto escrito tendem a estragar o seu significado, esta metáfora leva à conclusão que mutações no DNA reduzem a quantidade de informação. Mas é treta.

Imaginem uma população de moscas, todas geneticamente idênticas (um clone, no sentido técnico). Para codificar a informação genética desta população precisamos apenas de codificar esta sequência. Mas se nascerem 10 moscas com mutações diferentes temos que codificar estas alterações além da sequência original partilhada por todas as outras moscas. Ou seja, há mais informação genética na população (que é e o que interessa para a evolução).

O argumento criacionista da informação é um bom exemplo da abordagem criacionista em geral. A conclusão é obviamente absurda, pois as mutações introduzem genes novos na população, aumentando a informação genética. Mas pelo artificio de confundir população com indivíduo, baralhar os conceitos de significado e informação, e apresentar uma metáfora inadequada como se fosse uma boa analogia, conseguem concluir que a maior diversidade genética corresponde menos informação.

segunda-feira, setembro 18, 2006

A Ciência não é um ­"ismo"!

Muitos argumentos criacionistas traçam um paralelo entre a teoria da evolução e o criacionismo. Chamam-lhe evolucionismo, e dizem que é apenas uma crença, uma questão de fé. É um argumento curioso, pois se posições tão contrárias derivam ambas da fé, então é óbvio que a fé não serve para resolver questões como a origem das espécies. Não é novidade, mas é estranho que os criacionistas queiram salientar a incapacidade da fé em resolver questões científicas.

Felizmente, a ciência não é um “­ismo”, como o criacionismo ou o cristianismo. Os “ismos” caracterizam-se pela crença num conjunto de hipóteses, e por isso facilmente se associam à fé. O criacionismo exige que se aceite como verdade que um deus criou os seres vivos, cada um de acordo com o seu tipo, e assim por diante. A ciência não exige que os seus praticantes se agarrem a uma hipótese em particular, o que é evidente na história das ideias científicas.

Há poucos séculos atrás a teoria da criação era o modelo consensual da biologia. Um deus tinha criado os animais, tinha havido um dilúvio, e Noé tinha deixado os animais no monte Ararat. Mas algumas observações começaram a por em causa este modelo. Como teriam chegado as toupeiras marsupiais à Austrália? E aquelas espécies todas diferentes que viviam cada uma na sua ilha no meio do Pacífico? Muitas perguntas como estas levaram a rever a hipótese da criação, e começaram a surgir modelos de evolução. Erasmus Darwin, o avó do famoso Charles, propôs uma teoria de geração segundo a qual as espécies eram geradas pelo poder criador da matéria orgânica e não directamente por um deus. Mais tarde, Lamarck propôs que as espécies evoluíam herdando características adquiridas. Por exemplo, a girafa que mais vezes esticava o pescoço ficava com um pescoço mais comprido e os seus descendentes nasciam já com o pescoço mais comprido.

Quando Charles Darwin publicou "A Origem das Espécies", já a biologia aceitava que as espécies evoluíam, e já se tinha rejeitado o modelo antigo das espécies sempre com a mesma forma. O que Darwin criou (e Wallace, independentemente) não foi a ideia de evolução mas sim do mecanismo pelo qual as espécies evoluem: a girafa não fica com o pescoço mais comprido, mas a girafa com o pescoço mais comprido tem mais filhos.

Mas Darwin tinha um problema. A sua teoria exigia que houvesse numa população girafas com pescoço mais curto e outras com pescoço mais comprido. Ou seja, era necessário haver uma diversidade genética na população para que a selecção natural pudesse operar. Darwin propôs que erros na hereditariedade poderiam gerar esta diversidade, mas nessa altura pensava-se que as características dos pais se misturavam como fluidos contínuos para gerar os filhos, e esse processo de mistura rapidamente eliminaria a diversidade na população.

Esse problema foi resolvido com a redescoberta do trabalho de Mendel. Afinal as características dos pais não se misturam como fluidos, mas sim em pedaços discretos, os genes. Outros problemas também se foram resolvendo. Por exemplo, a geologia na época de Darwin afirmava ser necessário milhões de anos para explicar as formações geológicas, enquanto a física dizia ser impossível o Sol arder tanto tempo. Mas os físicos dessa altura desconheciam a radioactividade, e assumiam que o Sol ardia por processos químicos. Com a descoberta da radioactividade por Becquerel em 1896 o problema resolveu-se.
Este processo continuou por todo o século XX. Diferentes hipóteses, problemas que surgiam, problemas que se resolviam e levantavam novas hipóteses. A teoria da evolução hoje em dia é muito diferente da que Darwin propôs, e o processo não terminou.

E aqui reside a grande diferença entre a ciência e os “ismos”. O criacionismo é a crença num conjunto de respostas, enquanto que a ciência é um processo movido pelas perguntas. O criacionismo é fechado; quem deixar de crer que foi deus que criou os organismos deixa de ser criacionista. A ciência é aberta; eram tão biólogos os que favoreciam o modelo da criação no século XVII como os que favorecem a evolução no século XXI. O criacionismo é uma poça estagnada de crenças. A ciência é uma fonte de novas ideias.

sábado, setembro 16, 2006

Jónatas Machado e a Teoria da Informação

Esta é a quarta parte da série dedicada ao criacionismo, cujos argumentos foram tão bem resumidos pelo artigo de Jónatas Machado (JM) no jornal «O Público» do passado dia 8. Neste episódio veremos o problema da informação:

«Os criacionistas mostram que as mutações acumuladas, além de não criarem informação genética nova, destroem o genoma.»

Em primeiro lugar, temos o problema do sentido em que se usa a palavra “informação”. JM ilustrou bem este problema num comentário neste blog:

«Assim como a informação contida nos livros não se confunde com as páginas [...] também a informação contida no DNA não se confunde com os ácidos nucleicos [...] A mesma pressupõe uma linguagem que dê sentido às sequências (de nucleótidos e demais informação não linear) e lhes faça corresponder operações celulares específicas.»

Isto está errado. Não há uma linguagem que faz corresponder ao Oxigénio e ao Hidrogénio a operação de se juntar para formar água. O que se passa é que as moléculas destes gases reagem espontaneamente em certas condições. Este é exactamente o caso com o DNA, o RNA, as proteínas, e tudo o que acontece dentro das células. São reacções mais complexas, que se encadeiam em grandes redes de processos químicos, mas que se regem pelos mesmos princípios que regem a combustão, a formação de gotas de óleo na água, a dissolução do açúcar na limonada, ou qualquer outro processo deste tipo.

É certo que se fala muitas vezes do código do DNA, do DNA como a linguagem da vida, e outras metáforas. Mas é como os glóbulos vermelhos a falar uns com os outros nos desenhos animados «Era Uma Vez a Vida». É uma forma engraçada de explicar conceitos básicos, mas claramente inadequada a uma análise mais rigorosa. Vamos então pôr de parte esta metáfora infeliz. Estamos a falar de moléculas, e não de textos escritos ou de glóbulos vermelhos que falam.

Pela definição de Ralph Hartley, a quantidade de informação numa sequência é tanto maior quanto mais símbolos diferentes possa ter e quanto mais longa for a sequência. Por isso o DNA tem mais informação quanto mais nucleótidos tiver, ou seja, quanto mais longo for. É bem conhecido que mutações podem alongar o DNA, quando um acidente na cópia faz com que um trecho seja repetido. Assim podemos ver que a informação, neste sentido, aumenta facilmente com as mutações.

É claro que podemos dizer que duplicar trechos não aumenta de informação, pois são apenas cópias do que já lá estava. O que nos trás às medida de informação de Shannon e Kolmogorov. Simplificando, a informação contida numa sequência é tanto maior quanto mais “desordenada” for a sequência. Isto é abusar da teoria, mas não quero tornar a discussão demasiado técnica, por isso vou apelar à intuição do leitor para explicar por exemplos. Imagine uma sequência de 30 As:

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

Isto podia ser escrito de uma maneira mais simples. Por exemplo:

30xA

Ou seja, a sequência de 30 símbolos na verdade tem apenas a informação duma sequência de 4 símbolos. Em geral, quanto mais estruturada e organizada a sequência, mais fácil é de a comprimir em sequências menores, e por isso menos informação ela tem. Uma sequência sem ordem nem estrutura nenhuma, como por exemplo:

AjdljAkSyEFekdHRpJxjwlJqalYaEEoTpCYlsUWlkalkf

não pode ser facilmente abreviada. A consequência disto é que as mutações aleatórias na verdade aumentam a quantidade de informação no DNA, aumento este que serve para alimentar o processo de selecção natural, pelo qual muitas sequências são eliminadas por não beneficiarem os organismos.
Outro problema no argumento que JM apresenta é, mais uma vez, confundir indivíduos com populações. Como JM elaborou num comentário:

« Na verdade, a criação de novas espécies é o resultado de perdas de informação,[...]. Dentro da categoria Caninus Familiaris [sic] existem 400 subespécies de caninos, embora todos eles com menos informação genética do que os seus ascendentes.[...]. Pensemos, por exemplo, num cão Chihuahua totalmente “careca”. [...] Embora se esteja aqui perante um caso de adaptação, a verdade é que se está perante perda de informação genética.»

O exemplo que JM escolheu é particularmente infeliz. No Chihuahua há dois tipos de pelagem: pêlo curto e pêlo comprido. O que era no lobo ancestral apenas um fenótipo, tornou-se pela evolução em dois fenótipos diferentes. Todo este exemplo dos cães demonstra um ganho nítido de informação. Inicialmente havia uma espécie, um ancestral recente do lobo cinzento. Hoje em dia há ainda o lobo cinzento (Canis lupus), e a sub-espécie do cão doméstico (Canis lupus familiaris). Como JM diz, e muito bem, as 400 raças diferentes são sub-espécies, e pertencem todas à mesma espécie. Ora o que JM parece dizer é que só se perdeu informação quando uma espécie como o lobo cinzento evoluiu para o lobo cinzento mais todas as 400 raças de cães domésticos. Parece-me que o que JM fez foi, inadvertidamente, dar um excelente exemplo de como a evolução pode aumentar a quantidade de informação presente numa população de organismos. O erro aqui foi (mais uma vez) o de confundir o processo de transformação de populações, que é a evolução, com aquilo que se passa isoladamente com indivíduos (e.g. o coitado do Chihuahua careca).

Outro ponto importante é que a mutação não é um processo dirigido, mas pode ser revertido por outra mutação. Se A sofre mutação e fica B, B pode sofrer mutação e ficar A novamente. Se uma mutação acrescenta um trecho ao DNA, outra pode apagá-lo. Qualquer que seja a definição que usemos, se uma mutação diminui a informação, a mutação contrária aumenta-a. Por isso é obviamente falsa a afirmação que a mutação apenas diminui a informação.

Em suma, quando virem este argumento criacionista da informação, lembrem-se de três coisas:

1- Nem os glóbulos vermelhos falam, nem o DNA é uma linguagem. Pode ficar giro nos desenhos animados ou alguns livros menos rigorosos, mas não é verdade.

2- A evolução é um processo de populações. Se numa população alguns indivíduos perdem o pêlo, o que interessa é que agora na população passou a haver dois tipos de pelagem em vez de apenas um. Ou seja, mais informação.

3- As mutações são reversíveis. Se muda para um lado também pode mudar para o outro, e por isso é absurdo dizer-se que só podem reduzir a informação.

Jónatas Machado e a Paleontologia

A terceira parte desta homenagem ao criacionismo, exemplificado pelas criticas de Jónatas Machado (JM) publicadas no passado dia 8 no jornal «O Público». Desta vez, sobre o registo fóssil:

«[...] a grande quantidade de "fósseis vivos" e a existência de biliões de fósseis nos cinco continentes testemunham a ocorrência de um dilúvio global, descrito na Bíblia e em muitas narrativas da antiguidade. Se milhões de espécies animais tivessem evoluído ao longo de milhões de anos, deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios e não apenas a mão-cheia de exemplos altamente controversos (v.g. Archaeopteryx) com que nos deparamos.»

Aqui vemos condensados dois grandes favoritos do criacionismo: um dilúvio como a origem do registo fóssil, e a ausência de fósseis de formas intermédias. Mais uma vez, argumentos que dependem duma análise superficial dos problemas, e duma ignorância profunda dos detalhes.

O primeiro argumento é essencialmente que um grande dilúvio matou os animais e plantas, enterrando-os a níveis diferentes conforme o sitio onde viviam, a capacidade que tinham para fugir da àgua, o seu tamanho e forma, e assim por diante. Assim as baleias e os golfinhos ficaram em camadas superiores, os dinossaurios não conseguiram escapar tão bem e ficaram mais abaixo, e os desgraçados dos trilobites ficaram enterrados lá no fundo.

Mas agora os detalhes. Os trilobites são abundantes no registo fóssil em estratos inferiores. Os peixes teleósteos são muito comuns em estratos superiores (cerca de metade das espécies de vertebrados hoje em dia são peixes teleósteos). Mas nunca se misturam. Não há uma única sardinha fossilizada ao pé de um trilobite. Os criacionistas dirão que os peixes fugiram e os trilobites acabaram por ficar enterrados na lama ou o que seja, mas todos todos todos? Incrível, especialmente quando consideramos que fósseis de corais são frequentes tanto nos estratos contém trilobites como nos que contém peixes teleósteos. Ou que os fósseis das toupeiras estão mais acima que a maioria dos fósseis de peixes. É estranho que num dilúvio as toupeiras tenham sido entre as últimas a afogar-se e a ficar enterradas.
Pior ainda é que os fósseis não são apenas aqueles esqueletos enormes que vemos nos museus. São dentes, escamas, pólen, folhas, patas de insecto, pedaços de casca de ovo, e até fezes (coprólitos). O que JM propõe é que um dilúvio separou todos os fragmentos, fezes, e até pegadas de todos os animais e plantas de acordo com a sua espécie, sem uma única excepção.

JM também afirma que “deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios”, mas não explica o que quer dizer com “intermédios”. A evolução opera sobre populações, mas os fósseis são vestígios de indivíduos. Com indivíduos, um será intermédio entre outros dois se for descendente directo de um, e antepassado do outro, como o meu pai é intermédio entre mim e o meu avô.

Se escolhermos ao acaso três membros de uma família, com tios, primos, avós, tios-avós, e assim por diante, muito raramente vamos ter um avô, o pai, e o filho. O mais provável é encontrar primos, sobrinhos, e relações mais afastadas, pois essas são muito mais numerosas que relações de descendência directa. Se em vez de uma família tivermos milhões de indivíduos de inúmeras espécies, e em vez de meia dúzia de gerações considerarmos dezenas de milhões de anos, a probabilidade de encontrar ao acaso verdadeiros intermédios é praticamente nula.

Por outro lado, talvez JM queira dizer que são intermédios num sentido mais lato, de estarem em gerações intermédias e relativamente próximos de um descendente directo que tenha vivido nessa altura, mas sem ser necessariamente esse descendente directo em particular. Mas se é isso que quer dizer, então temos muitos casos de fósseis intermédios.

Mas o grande truque deste argumento é que o criacionista pode sempre aplicá-lo. Se tivermos dois fósseis, um mais antigo e outro mais recente na evolução de uma espécie, o criacionista pode dizer que falta um fóssil intermédio. Se encontrarmos um terceiro fóssil com características intermédias, o criacionista agora diz que faltam dois, pois agora há duas “lacunas” onde antes havia apenas uma. Esta característica pode tornar o argumento persuasivo num debate, mas torna-o completamente inútil na procura de explicações.

Em suma, o que JM propõe em substituição da paleontologia, tal como as suas propostas para revolucionar a biologia molecular e a genética, fica aquém duma explicação para o grande número de detalhes importantes que conhecemos, e que são explicados pela ciência moderna.

quinta-feira, setembro 14, 2006

O Homem segundo a Religião

Esta treta ocorreu-me recentemente, daquelas coisas que fazem click na cabeça. Em geral, nas religiões Ocidentais a nossa espécie é vista como algo especial, separado do resto do reino animal por alguma propriedade única. Somos o animal racional.

Mas o que é ser racional? Não deve ser pensar, aprender, ou ter inteligência, porque isso muitos animais também fazem. Principalmente nos primatas, há claras evidências que animais não humanos concebem planos complexos, antecipam acontecimentos, e assim por diante.

Racional, para ser algo único à nossa espécie neste planeta deve querer dizer ter razões. Nós somos capazes de dar e exigir razões para fundamentar uma afirmação. Gritar «Vem aí uma àguia!» até os macacos Colobus conseguem. Mas perguntar «Como é que sabes?», uma das perguntas favoritas dos meus filhos, é aparentemente uma capacidade única dos humanos.

O curioso (e irónico) é que é precisamente esta capacidade que as religiões normalmente querem suprimir. Chamam-lhe fé. Como se fosse um acto, como se fosse uma coisa e não apenas a ausência do daquilo que nos distingue como humanos: perguntar por que razão havemos de aceitar algo como verdade.

Jónatas Machado e a Genética de Populações

Esta é a segunda parte da série dedicada às criticas que Jónatas Machado (JM) tece à teoria da evolução e a várias disciplinas científicas modernas. Pessoalmente, não tenho nada contra JM, mas parece-me ser um exemplo paradigmático dos defensores do criacionismo, por isso decidi homenageá-lo como representante desse grupo, felizmente ainda raro em Portugal.

No texto publicado no dia 8 no jornal «O Público», JM afirma:

«Os criacionistas não confundem variação adaptativa e especiação (que todos podem ver) com evolução (que nunca ninguém viu)»

Esta é uma afirmação curiosa se tivermos em conta que evolução é a variação das frequências dos genes numa população ao longo das gerações. Ou seja, aquilo que JM chama «variação adaptativa e especiação» são exemplos de evolução. Penso que é por não quererem confundir evolução com evolução que os criacionistas acabam por ficar tão confusos.

Mas vejamos esta afirmação no contexto do que JM escreve mais atrás:

«Os criacionistas não disputam os resultados das observações científicas feitas no presente. Todavia, o passado distante não é observável nem repetível.»

Talvez o que JM quer dizer é que apenas devemos aceitar aqueles aspectos da evolução que conseguimos observar no presente e repetir, e que devemos recusar tudo no que pretende explicar o passado. Mas há duas falhas graves neste argumento.

Primeiro, JM levanta o problema de não conseguirmos observar nem repetir o passado. Eu observei que os meus filhos nasceram, e o nascimento de um ser humano é algo repetível e observável no presente. Mas pelo argumento de JM eu nunca podia inferir que a minha avó nasceu, porque o seu nascimento não é nem observável nem repetível. Isto é absurdo. O que importa é que o processo de nascimento é observável e repetível, e por isso posso usá-lo para explicar a origem da minha avó, mesmo que o seu nascimento em particular não seja nem observável nem repetível.

A evolução é um caso análogo, pois a especiação, que é o nascimento de uma nova espécie, é observável e repetível como processo. O nascimento da minha avó, ou de uma espécie há centenas de milhões de anos, já não é observável nem repetível. Mas é legítimo explicar estes acontecimentos pelos processos que observamos repetidamente no presente. E isto é essencialmente o que a genética de populações nos diz, que a evolução não é mais que o acumular destas variações, adaptações, e especiações, tal como a minha família, por muitas gerações que tenha, é uma longa sequência de nascimentos.

O outro problema no argumento de JM é a premissa implícita que para que o criacionismo seja aceitável basta apontar erros na teoria da evolução. Por muito arriscado e falível que seja explicar acontecimentos passados com base no que se observa no presente, é ainda mais arriscado e falível explicá-los com base em histórias escritas por pessoas que também não os observaram. O que é que os antigos Hebreus sabiam acerca dos trilobites e dinossáurios que nós não sabemos hoje em dia?

Em conclusão, e apesar da tentativa de JM de nos persuadir do contrário, a genética de populações explica a origem e evolução das espécies duma forma bastante mais fiável que a interpretação bíblica.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Jónatas Machado e a Biologia Molecular

No passado dia 8, Jónatas Machado (JM) escreveu no jornal «O Público» um artigo em defesa do criacionismo, a propósito da aparente abertura do Papa Bento XVI a esta doutrina. Quero dedicar algumas entradas deste blog ao esforço interdisciplinar deste professor de direito e constitucionalista, e à sua critica de disciplinas tão diversas como a biologia molecular, a paleontologia e a geologia.

No seu artigo no jornal «O Público», JM apresenta uma série de argumentos padrão do movimento criacionista, todos baseados em mal-entendidos (assumindo que são apresentados de boa fé). Em primeiro lugar, JM mostra-se preocupado que o Papa vá a “reboque de teólogos e cientistas, cujas posições estão em constante mutação”. Mudar de opinião pode ser mal visto em teologia, mas em ciência é fundamental Afinal, é esse o objectivo da ciência: mudar a nossa opinião de forma a que esteja sempre o mais possível de acordo com os factos. Como ninguém conhece todos os factos, qualquer cientista (eu diria mesmo qualquer pessoa intelectualmente honesta) tem que estar preparado para mudar a sua opinião se confrontado com factos que a contradigam.

Outro termo revelador que JM usa é “evolucionistas”. A teoria da evolução é uma ferramenta conceptual, algo que nos ajuda a compreender e prever aspectos da natureza. Chamar “evolutionista” a quem a usa desta forma é como chamar “gravitacionista” aos arquitectos e engenheiros civis porque incluem a gravidade nos seus cálculos. Ao contrario do criacionismo, nem o “evolucionismo” nem o “gravitacionismo” são doutrinas. São teorias, ferramentas para aplicar onde aplicável, modificar conforme necessário, e talvez até rejeitar se um dia se revelarem incompatíveis com os factos. Ao contrário dos criacionistas, os cientistas mudam de opinião quando que se justifica.

Mas o que quero abordar aqui é principalmente esta afirmação de JM:

«Os evolucionistas interpretam a existência de semelhanças genéticas como evidência de um ancestral comum, ao passo que os criacionistas as interpretam como evidência de um Criador comum.»

Este é um dos truques do criacionismo, apresentar o problema como uma mera divergência de interpretações dos mesmos factos. E para qualquer pessoa que desconheça os factos pode até fazer sentido. Há semelhanças e diferenças, uns dizem que é porque o deus deles assim o quis, outros dizem que os organismos evoluíram assim. Mas os factos não se restringem á mera presença de semelhanças e diferenças. O mais revelador é o padrão das semelhanças e diferenças, e é nos detalhes que se distinguem as boas explicações das más desculpas.

Consideremos a hipótese de JM, que um deus criou todos os organismos. Neste caso é natural que um rato, um morcego, e um pardal tenham semelhanças e diferenças nos seus genes. O morcego e o pardal têm asas, o morcego e o rato são mamíferos, e assim por diante. E seria de esperar que as diferenças sejam maiores entre o rato e o pardal do que entre o morcego e qualquer um dos outros dois. O morcego talvez seja mais parecido com o rato, ou talvez mais como o pardal, mas seria de esperar que estivesse algures entre o rato e o pardal.

Segundo a teoria da evolução isto não pode acontecer. Entre o rato e o pardal apenas estão os seus antepassados, e ninguém da geração presente. Se o morcego estiver mais próximo do rato (que é o caso), terá que haver tantas diferenças entre o pardal e o morcego como entre o pardal e o rato. O pardal é como um primo afastado e o morcego e o rato como irmãos, e por isso a relação de parentesco entre o rato e o pardal é a mesma que a relação entre o morcego e o pardal.

Temos assim uma grande diferença entre a forma como as duas hipóteses podem interpretar os factos observados. Segundo a hipótese que partilhamos todos um ancestral comum, as espécies modernas formam uma geração da enorme árvore de família que une todos os seres vivos, e por isso nunca pode haver os tais casos intermédios. As espécies modernas têm que se relacionar todas como primos mais ou menos afastados. Isto é uma afirmação extremamente arriscada, mas daquelas que caracterizam uma boa explicação científica. E é precisamente isso que observamos em milhares de espécies estudadas.

A hipótese criacionista, que postula uma criação independente, é incapaz de explicar esta relação que se observa nas diferenças e semelhanças entre os genes de todos os organismos. Pode afirmar que o alegado criador quis criar os genes todos tal e qual como se esperaria se descendessem de um ancestral comum, mas por ser compatível com qualquer observação a hipótese criacionista torna-se inútil como explicação.
Há outro pormenor importante que favorece a teoria da evolução. Os nossos genes são como que receitas para criar proteínas. Os genes e as proteínas são moléculas complexas formadas por moléculas mais pequenas encadeadas em longas sequências, e cada sequência de três destas moléculas no gene especifica uma na proteína. Por exemplo, para a receita genética especificar uma alanina na proteína, no gene podemos ter GCC, GCA, GCG, ou GCT. Qualquer uma destas quatro sequências especifica uma alanina na proteína correspondente.

Se um organismo tiver a sequência GCC e outro organismo a sequência GCA, ambos produzem a mesma proteína apesar de terem uma diferença no gene. Estas sequências são chamadas sinónimas, pois estão escritas de forma diferente mas “querem dizer” o mesmo. Segundo a hipótese criacionista, seria de esperar um número aproximadamente igual de diferenças sinónimas e não sinónimas. Os genes do coelho e do rabanete teriam sido criados por um ser inteligente de forma a dar origem a organismos diferentes, mas o criador podia também ter incluído algumas diferenças sem consequência.

Segundo a teoria da evolução, estas diferenças resultam da acumulação de mutações (não inteligentes) ao longo de muitas gerações. Se uma mutação for sinónima, por exemplo se muda um GCC para GCA, não tem qualquer efeito no organismo, e pode facilmente persistir nas gerações seguintes. Por outro lado, se a mutação não for sinónima é muito provável que seja prejudicial, porque um organismo é algo muito complexo, e altera-lo ao acaso vai provavelmente estragar alguma coisa. Estas mutações serão rapidamente eliminadas por selecção natural. Só muito raramente é que uma mutação não sinónima é neutra ou benéfica para o organismo é passada para as gerações seguintes.

Este mecanismo faz nos prever que serão sinónimas a maioria das diferenças entre os genes das espécies que sobreviveram até hoje, pois as mutações sinónimas as que mais facilmente sobrevivem à selecção natural. E, de facto, as diferenças sinónimas são cerca de mil vezes mais comuns que as diferenças não sinónimas. Mais significativo ainda, quanto mais importante o gene para a sobrevivência do organismo maior a proporção de diferenças sinónimas em relação às que não são sinónimas.
Mais uma vez a teoria da evolução explica perfeitamente as observações, ao passo que o criacionismo apenas nos deixa pasmados com um criador supostamente inteligente que investiu 99.9% do trabalho em diferenças inconsequentes.

Em suma, é fácil argumentar que algo tão vago como “semelhanças genéticas” pode ser interpretado de inúmeras maneiras. Pode ser evolução, um deus, vários deuses, extraterrestres, ou até o Monstro do Espaguete Voador . Mas quando consideramos os detalhes, a teoria da evolução é claramente melhor que as alternativas para explicar a complexidade de observações da genética e da biologia molecular.

Os interessados podem encontrar aqui muito material acerca deste tema:

Theobald, Douglas L. "29+ Evidences for Macroevolution: The Scientific Case for Common Descent." The Talk.Origins Archive. Vers. 2.83. 2004. 12 Jan, 2004

E aqui um texto que eu escrevi acerca do ensino do criacionismo em Portugal.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Direitos, cópias e computadores

A protecção conferida pelos direitos de autor depende de duas distinções. Uma é a distinção entre a ideia e a sua expressão material. Por exemplo, a protecção da imagem do rato Mickey cobre apenas a imagem, como expressão material daquele personagem, e não a ideia em si. Não é uma violação de direitos de autor descrever detalhadamente o rato Mickey ou dar a alguém as instruções necessárias para reproduzir a imagem. Esta distinção entre ideia e expressão material é necessária para se poder conferir direitos de autor sobre uma obra sem extremos de censura que violariam direitos mais fundamentais.

Igualmente importante é a distinção entre obras diferentes. Uma coisa é um desenho do rato Mickey, outra é o romance Romeu e Julieta. Esta distinção é essencial não só para atribuir a autores diferentes direitos sobre obras diferentes, mas especialmente para distinguir o que é protegido do que é de domínio público. Faça o que fizer, nunca poderei ter direitos de autor sobre as obras de Shakespeare; essas já pertencem a todos e não podem ser removidas do domínio público.

Com conteúdo digital estas distinções são impossíveis de fazer, porque um ficheiro de computador é apenas uma sequência de valores numéricos. Cada byte é um valor entre 0 e 255, e cada ficheiro uma sequência de bytes; tudo o resto que vemos e ouvimos no computador são apenas formas arbitrárias de interpretar e transformar essas sequências de números. Esta natureza arbitrária da codificação numérica e as suas propriedades matemáticas tornam impossível distinguir a ideia da sua expressão ou distinguir expressões de ideias diferentes.

Por exemplo, há quem diga que o nome “HAL”, na novela “2001: Odisseia no espaço” de Arthur C. Clarke, é derivado da sigla “IBM”, substituindo cada letra pela anterior no alfabeto. Mesmo que fosse essa a intenção de Clarke, a IBM não iria processa-lo porque “HAL” e “IBM” são diferentes. Há uma forma natural de interpretar conjuntos de letras que distingue claramente “HAL” de “IBM”. Mas “HAL” e “IBM” não existem no computador; quando vemos estas letras no ecrã estamos a ver um padrão de cores criado pelo monitor a partir dos valores que estão a ser fornecidos pela placa gráfica. Lá dentro são sequências de números.

Se usarmos o código ASCII para codificar letras, “HAL” é 110, 101, 114, e “IBM” é 111, 102, 115. Mas é uma convenção meramente arbitrária que faz corresponder o 110 ao “H”. Podia igualmente ser o 111, e com outra codificação podíamos representar “HAL” no computador da mesma forma como se representa “IBM” em ASCII. Não há nenhuma forma natural de representar “H” numericamente que nos permitisse distinguir o “H” representado por um 110 do “H” representado pelo 111.

Para estender a lei de direitos de autor ao conteúdo digital temos que especificar as sequência numéricas que correspondem a uma obra. O texto de “2001: Odisseia no espaço” pode ser codificado em ASCII, e a lei podia dizer que essa sequência numérica estava protegida pelos direitos de autor sobre esta obra. Mas isto permitia que qualquer pessoa difundisse a obra usando outra codificação que gerasse uma sequência diferente.

A alternativa, aplicada hoje em dia, é considerar coberta pelos direitos de autor qualquer sequência numérica que possa ser usada para codificar a obra protegida. Mas isso abrange todas as sequências e todo o tipo de informação acerca da obra. Por exemplo, podíamos descrever o texto de “2001: Odisseia no Espaço” indicando, para cada letra, em que posições se encontra. Para o “A” teríamos uma lista de números indicando onde aparece “A” no texto, para o “B” outra lista, e assim por diante. Ou criar uma lista de todas as palavras diferentes no texto e, para cada uma, em que posições se encontra. Sem computadores isto seria irrelevante; nenhum tribunal iria considerar uma lista de números com as posições de cada letra uma cópia de “2001: Odisseia no Espaço”. Mas para proteger por direitos de cópia qualquer representação digital desta obra tem que se cobrir todas as formas de transmitir informação detalhada acerca da obra.

Outro problema surge ao distinguir representações de coisas diferentes. Por ser completamente arbitrária, qualquer codificação numérica pode representar qualquer ideia. Matematicamente, é sempre possível converter uma sequência numérica noutra qualquer, e por isso não faz sentido dizer que uma certa sequência representa uma coisa e não outra. A mesma sequência numérica que, interpretada de uma forma, codifica uma imagem do rato Mickey, interpretada de outra forma codifica o texto de “Romeu e Julieta”.

Um exemplo muito relevante hoje em dia é o dos ficheiros mp3. Para o utilizador comum, um ficheiro mp3 parece ser uma coisa como um disco ou cassete, algo com sons guardados lá dentro que podemos “pôr a tocar”. Mas na verdade o ficheiro mp3 é, como qualquer ficheiro de computador, uma sequência de números. Interpreta-la como codificando sons é uma decisão arbitrária. Se abrirmos um ficheiro mp3 no Windows e desligarmos o som podemos vê-lo como codificando uma animação silenciosa (no Windows Media Player, por exemplo).

E mesmo quando interpretado da forma mais comum, como um ficheiro “de sons”, não é tão simples como parece. A codificação mp3 consiste em aproximar uma função de uma variável (neste caso, a intensidade do som em função do tempo) combinando funções trigonométricas (senos e cosenos, para os que ainda se lembram do liceu). O ficheiro mp3 contém parâmetros (amplitude, fase, e frequência) para as funções trigonométricas que são somadas para criar a função desejada.

Quando se diz que um determinado ficheiro mp3 está sob a protecção dos direitos de autor referentes a uma música, está-se a considerar como obra uma sequência de números que pode ser interpretada como codificando qualquer outra coisa e que mesmo quando interpretada de acordo com o algoritmo mp3 contém apenas parâmetros de funções trigonométricas. Nenhum matemático pode ser dono de direitos sobre sequências de números, e até hoje funções trigonométricas foram sempre do domínio público. Será razoável permitir que músicos se apropriem da matemática?

É duplamente injusto estender ao conteúdo digital os direitos de exclusividade de cópia e transmissão. Por um lado porque temos que os aplicar a informação abstracta, o que obriga a censurar toda e qualquer forma de transmitir informação acerca duma obra só para limitar a reprodução da obra. Por outro lado por ser impossível distinguir o que é protegido do que é de uso livre.