A teoria da evolução é a forma mais correcta de descrever os mecanismos de origem e modificação das espécies, mas acho que o Ricardo Alves confundiu descrição, norma, e prescrição (1):
«espanta-me que um darwinista como o Ludi não compreenda que existem razões evolutivas básicas para que uma criança seja mais valorizada pelos progenitores do que um feto.»
Claro que compreendo. Na nossa evolução houve uma enorme pressão selectiva favorecendo fortes instintos de protecção do recém nascido. Mas durante este longo período a gestação esteve fora do alcance das nossas decisões voluntárias, pelo que não surgiu na nossa linhagem um instinto de protecção do que muitos chamam um “amontoado de células”. Se fossemos marsupiais ou ovíparos os aspectos emocionais desta discussão seriam muito diferentes.
Mas isto é uma descrição. É o que as coisas são. É como dizer que a maioria dos adultos tem cáries. Não podemos inferir uma norma que diga que é bom ter cáries só porque constatamos que a maioria as tem. Esse é o primeiro erro do Ricardo: confundir o que é com o que é desejável. Uma ética normativa aplicada ao aborto tem que pesar o bem e o mal nos diferentes factores, e não apenas considerar o que as pessoas fazem pela sua natureza. Destes proponho que os três mais importantes são:
1- O valor da vida.
2- O valor da liberdade de acção.
3- O custo de punir.
O primeiro é o valor que toda a vida daquele organismo terá para ele que a vai viver. Não é a vida às 10 semanas pois não o matamos só provisoriamente. É a vida toda porque a morte é permanente. O segundo é o valor da liberdade de usar o nosso corpo como entendemos, mas que nos responsabiliza pelos nossos acto. É um equilíbrio de direitos e deveres. O terceiro é o valor negativo de obrigar, coagir, e punir.
Há outros factores que podemos considerar, mas este referendo cobre o caso em que uma mulher adulta e responsável mata um feto saudável fruto de um acto consensual apenas porque quer. Proponho que nesse caso particular o segundo valor é reduzido pela responsabilidade inerente a qualquer acto voluntário, e que o primeiro é tão alto para o feto como para qualquer um de nós pois em jogo está a sua vida toda. Isto compensa o custo moral de uma lei que permita punir quem o mata.
Se nos afastamos deste caso extremo, se há violação, malformação do feto, se a mãe é menor ou de outra forma não imputável, então o balanço destes valores pode ser diferente, e a melhor opção pode ser outra. E aqui o Ricardo confunde a norma com a prescrição:
«gostaria que algum dos defensores do “não” me assinalasse um sistema jurídico que seja que penalize (ou tenha penalizado) da mesma forma um aborto (e já agora de primeiro trimestre...) e um homicídio.»
Não me parece que haja, e, se houver, deve ser muito mau. A ética, normativa, procura o equilíbrio ideal entre valores contínuos. A lei, prescritiva, cria regras discretas para situações definidas. O Título 1 do código penal Português, «Crimes contra as pessoas», tem nove artigos no capitulo «Crimes contra a vida» e três no capítulo «Crimes contra a vida intra-uterina». O pai matar o filho recém nascido pode ser homicídio qualificado (art. 132º), com pena de 12 a 25 anos de prisão. A mãe matar o filho recém nascido é infanticídio (art. 136º), com pena de 1 a 5 anos de prisão. A lei reconhece que a influência do parto na mãe reduz a sua responsabilidade por este acto.
É claro que cada caso é um caso, e há diferenças subtis e contínuas que não podemos codificar num conjunto de regras. E é por isso que temos os tribunais. Não é um sistema perfeito, mas é melhor que não ter regras nenhumas, e melhor que aplicar a lei como se fossem as regras do Monopólio, sem considerar as particularidades de cada situação.
Muitos criticam a minha posição porque não se aplica a todos os casos, porque a lei distingue situações diferentes, e assim por diante. Espero que isto ajude a esclarecer. Eu tenciono votar «não» porque acho útil uma prescrição como a que temos agora (art 140º):
«2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.
3 - A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos.»
Esta permite que a morte deliberada do feto seja punida, mas não obriga a punição, pois não há pena mínima. O «sim» põe de parte a possibilidade de punir este acto, o que só se justifica se as vidas que eliminamos nunca tiverem valor. Não vejo justificação para negar a protecção da lei a seres como nós, e é ilegítimo fazê-lo por voto de maioria.
1- Ricardo Alves, 7-12-06, Ainda a IVG: investimento, fronteiras, etc.