quarta-feira, junho 30, 2010

Liberdades e segurança.

Por várias razões está na moda a ideia de ceder liberdades para ter mais segurança, desde o anonimato na Internet aos chips nas matrículas e garrafas de água nos aviões. Em parte porque enquanto as medidas de segurança parecem ser concretas, a “liberdade” parece um termo vago e abstracto. Coisa de hippies e idealistas. Mas é o contrário. As medidas que se toma pela segurança são claras, como tirar os sapatos no aeroporto, mas raramente é claro que contribuam alguma coisa para a nossa segurança. Não fazemos ideia se algum terrorista vai desistir com medo que o descalcem ou se esta complicação adicional vai tornar ainda menos eficaz a segurança do aeroporto. E a liberdade é o poder de tomarmos as nossas decisões. É difícil ser mais concreto que isso.

Outro aspecto descurado é que a segurança tem um valor meramente instrumental. É um meio de preservar liberdades. E são as liberdades que têm valor intrínseco. Eu não quero uma porta com fechadura pela fechadura em si. Quero-a pela liberdade de decidir quem entra cá em casa, quando entram e que coisas deixo que levem daqui. É por isso irracional ceder liberdades apenas por segurança. Só quando a liberdade de um interfere na liberdade do outro é que precisamos restringir alguma delas. Aí é que podemos aplicar medidas de segurança para evitar que uns tirem liberdade aos outros. As medidas de segurança devem ser uma forma de proteger liberdades. Não são um fim em si mesmo. E há várias alternativas como educação, respeito, reciprocidade e empatia, por exemplo, que também devemos considerar para resolver conflitos entre liberdades individuais.

Outra ideia comum é a de termos de escolher entre segurança e liberdades como a privacidade ou o anonimato. Perceber que a segurança serve para proteger liberdades ajuda a ver que esta ideia é errada. Fechar a porta de casa, deixar o portátil escondido no porta-bagagens e não à mostra no banco da frente, não divulgar a lista de jóias que se tem em casa nem andar com a carteira à vista dá segurança, em grande parte, porque preserva a privacidade. Em geral, quando somos nós a tratar da nossa segurança, a segurança alinha-se bem com as liberdades que protege. A necessidade de trocar umas pela outra surge principalmente quando delegamos a nossa segurança a terceiros.

O que levanta outro problema. Delegar a nossa segurança “ao Estado” ou “à Polícia” é delegá-la a pessoas. Sempre. Pessoas com as quais podemos ter conflitos de liberdades e de quem nos precisamos proteger. E a única diferença entre uma força de segurança e um bando de homens armados está nas limitações que lhes conseguirmos impor. É um erro julgar que não nos precisamos de proteger do Estado, porque pessoas são pessoas. Umas são boas mas outras são más e o poder tende a favorecer estas últimas.

Por isso o papel do Estado na nossa segurança deve ser lidar com os problemas que não conseguimos resolver individualmente e maximizar a capacidade que cada um tem para proteger as suas liberdades. Assim alinha-se a segurança com as liberdades que esta protege. A democracia e os princípios de justiça que temos têm sido afinados neste sentido, desde as liberdades consagradas na constituição aos limites de acção das forças policiais. Se os polícias pudessem revistar quem lhes apetecesse seria mais fácil encontrar armas e objectos roubados, mas à custa das liberdades que queremos protegidas. Por isso limitamos as revistas policiais a casos de suspeita justificada, que basta para resolver os problemas maiores, e a maior parte da segurança fica a cargo de cada um. Conduzir com cuidado, trancar o carro, fechar a porta de casa, não andar com notas de 500€ à vista e assim.

Por isto defendo que é asneira fazer coisas como encher as ruas de câmaras e sistemas de reconhecimento facial, registar todos os acessos à Internet e chamadas telefónicas, proibir comentários anónimos ou obrigar a pôr chips RFID nos automóveis. Isto não são medidas de segurança que ajudem a proteger as nossas liberdades. Isto é ceder liberdades para delegar a nossa segurança a terceiros e acabar com menos segurança por dar a desconhecidos informação e poder sobre nós.

Além disso, enquanto a polícia e a tranca na porta têm o valor instrumental de me proteger de assaltantes ou bisbilhoteiros, a minha privacidade tem um valor intrínseco. Eu não lhe dou valor apenas como meio de fazer maldades às escondidas. A minha privacidade tem valor quando vou passear, quando estou em casa a ler um livro ou sempre que quero fazer algo sem que me estejam a observar e a controlar. Não é coisa que esteja disposto a ceder só para ser mais fácil passar multas.

terça-feira, junho 29, 2010

Consensos.

O consenso entre os biólogos é que a vida na Terra evoluiu durante cerca de quatro mil milhões de anos. Entre os criacionistas evangélicos o consenso é que o universo foi criado há poucos milénios. Os climatólogos concordam que atirar carradas de gases de estufa para a atmosfera faz o planeta aquecer. Os auto-denominados “cépticos” desta física elementar defendem que isso é tudo treta. Os princípios básicos de como identificar e combater infecções são consensuais na medicina, mas entre os acupunctores o consenso é que são bloqueios de energia e na medicina quântica o consenso é outra treta qualquer. Perante isto compreende-se que muitos encolham os ombros e desistam de tentar ver quem tem razão. É tudo opinião, vale tudo o mesmo e não é por haver mais a acreditar numa coisa que têm mais razão do que os outros. Mas há uma diferença importante que pode ajudar.

Muitos destes consensos são superficiais, nos quais pessoas concordam por partirem do princípio que a verdade é aquela mas sem partilharem razões para chegar a essa conclusão. Por exemplo, é consensual entre os crentes de várias religiões que existe um deus mas sem consenso acerca de como concluir tal coisa. Para uns é revelado e para outros prova-se logicamente, como um teorema matemático. Outros defendem que não pode haver razões porque tem de ser uma escolha livre e outros julgam que é uma questão científica, que há evidências objectivas do tal deus ter criado o universo de certa maneira e decidido que actos sexuais é que são normais.

Estes consensos são superficiais e mais pequenos do que aparentam. Os crentes podem concordar que há um deus mas não se entendem acerca de qual é, do que faz ou do que quer de nós. Os astrólogos podem concordar que Júpiter influencia a nossa vida mas cada um interpreta essa influência de forma diferente. O Tarot prevê o futuro mas cada vez que se baralha as cartas sai um futuro diferente. São consensos a fingir, meros pontos de concordância fortuita no meio de uma discórdia sistémica. Estes sintomas indicam que consensos assim não são de fiar. Mas para distinguir o consenso racional da treta consensual o melhor é ir além do sintoma até à causa da diferença.

Um consenso é racional quando inclui não só a hipótese mas também razões suficientes para concluir que a hipótese é verdadeira. É esse o caso do consenso científico. O consenso acerca da carga do electrão não é apenas acerca daquele valor. É acerca dos métodos para o determinar, acerca dos dados recolhidos e de que esses dados justificam a conclusão. Isto é importante não só por tornar o consenso mais profundo e abrangente, incluindo as razões que permitem concordar acerca dos detalhes, mas porque permite construir o consenso de forma incremental.

O consenso acerca de superstições, religiões, banhas da cobra e outras tretas só se consegue à confiança. Se confiamos que há vida depois da morte e que Jesus ressuscitou podemos ser cristãos. Se confiamos que a água tem memória podemos concordar com o homeopata. Mas se não confiamos nisto não há nada de concreto que nos possa persuadir. O consenso científico nasce da desconfiança. Quando se critica hipóteses, se testa modelos e se confirma resultados, precisamente porque não se aceita que sim só porque sim, encontra-se aquelas ideias que não se tem de acreditar por confiança mas por terem resistido a todas as tentativas de desconfiar delas.

A diferença prática é enorme. Pela ênfase nas razões e na dúvida metódica, em poucos séculos a ciência chegou a consenso acerca de imensas coisas. Astronomia, arqueologia, biologia, geologia, milhões de vezes mais informação que as poucas centenas de textos sagrados que os religiosos ainda não sabem interpretar consensualmente. Porque a ciência não invoca os poderes especiais de alegados visionários, não depende da autoridade dos seus fundadores nem pede que tenhamos fé no que nos dizem. Para justificar as suas afirmações explica como descobriu que as coisas são assim.

E o mais fundamental em ciência é a disposição para exigir este tipo de explicação. Tudo o resto vem daí; os dados, as explicações e os métodos para as testar. Infelizmente, só se aprecia a importância desta atitude depois de se aprender um pouco dos seus frutos. Penso que terá sido por isso que a ciência só surgiu tanto tempo depois da superstição. E é por isso que é tão importante que toda a gente aprenda ciência. Pelo menos o suficiente para perceber quando lhes enfiam um barrete.

Mas não vão por mim. Oiçam o que Neil DeGrasse Tyson tem a dizer sobre isto, que vale sempre a pena ouvi-lo.


Via Sandwalk.

segunda-feira, junho 28, 2010

O problema errado.

O Ricardo Schiappa lamentou a oposição à obrigatoriedade do chip RFID nas matrículas. «Esta semana a maioria dos deputados na Assembleia da República mostrou uma maior apetência por ... voltar para uma caverna com dois palitos a tentar fazer fogo no inverno» por recusar as «vantagens óbvias na cobrança de portagens [e] um sem número de outros potenciais benefícios, muito em especial a nível de fiscalização e de segurança rodoviárias» que nos traria este sistema, além de «bloquear o desenvolvimento tecnológico [...] num ponto em que até poderiamos ser pioneiros e vir a exportar tecnologia»(1).

Parece-me improvável que isto nos permitisse exportar tecnologia. A identificação por radio-frequência (RFID) é uma tecnologia já bem estabelecida, bem como a sua aplicação em matrículas e portagens. O máximo que poderíamos esperar seria produzir cá os aparelhos sob licença. Mas sendo o antigo administrador-executivo da empresa pública criada para gerir as portagens nas SCUT agora gestor da Q-Free, a empresa privada norueguesa que vende este equipamento, o mais provável seria ficarmos muito aquém desse máximo e simplesmente importarmos a tecnologia a "preço de amigo" (2).

Mas é verdade que esta tecnologia pode trazer muitos benefícios. Para uma certa definição de “benefício”. Com um chip RFID na matrícula o automóvel pode ser identificado automaticamente a dezenas de metros de distância. Isto permite automatizar a cobrança de portagens e, como o Ricardo menciona, ajudar a fiscalização. Com leitores RFID nas auto-estradas é possível medir a velocidade média de todos os carros e multar quem ultrapassar o limite legal. Pode-se colocar estes aparelhos em ruas de estacionamento proibido e multar veículos que fiquem lá demasiado tempo. Ou junto aos parquímetros, com o utilizador digitando a matrícula quando paga o estacionamento e a máquina fiscalizando quem fica tempo demais. Os carros da polícia podem ser equipados com leitores RFID e fiscalizar automaticamente todos os automóveis verificando se foram dados como roubados ou se têm o seguro em dia.

Mas estas «soluções tecnológicas» para os problemas de fiscalização criam um problema muito maior. Nós queremos que as leis sejam cumpridas e que o Estado puna os infractores. Mas não queremos que o Estado ande a registar tudo o que fazemos. Não queremos redes de informadores secretos, como nas ditaduras, ou ficheiros acerca de toda a gente para quando dar jeito a quem tiver acesso a eles. Por isso a fiscalização deve ser focada. Se o radar detecta que um automóvel passou o limite de velocidade é a esse que tira a fotografia. Só quando há suspeitas que justifiquem é que se revista, vigia ou regista actividades de alguém. Até as operações de stop devem ser focadas em actividades, dias e zonas mais problemáticas e não para andar simplesmente a registar quem passa.

A solução tecnológica que o Ricardo defende facilita a fiscalização mas inverte este princípio. Em vez do Estado fiscalizar as infracções e os suspeitos passa a guardar dados acerca de todos nós, mesmo sem suspeita nenhuma, para depois vasculhar lá o que quiser. E essas bases de dados de todos os veículos que passam por leitores de RFID não vão servir apenas para apanhar infractores. Vão ajudar funcionários públicos com os cargos certos a conseguir contratos chorudos no sector privado. Vão incentivar a corrupção e facilitar abusos de autoridade, problemas piores que o a cobrança célere de portagens. E vão ser um alvo atraente para muita gente dentro e fora da burocracia estatal, burocracia essa notoriamente incapaz de guardar a privacidade dos outros.

Eu até acho que o RFID é uma solução prática para pagar portagens. Mas deve ser opcional. Não faz sentido o Estado recusar outras formas legais de pagamento na prestação de um serviço público. E se bem que eu também seja um entusiasta da tecnologia e da inovação, penso que temos de ter cuidado quando usamos a tecnologia para dar a uns poder sobre os outros. O Estado não é uma máquina impessoal. É uma data de pessoas com interesses próprios, muitas das quais não hesitarão em usar informação como esta para os seus propósitos. Obrigar a pôr chips nas matrículas cria problemas mais graves do que aqueles que resolve.

1- Ricardo Schiappa, Esquerda Republicana, oppositio neanderthalis

2- Esquerda.net, Assessor do governo passou para a empresa que vende 'chips'
Adenda: a notícia no Expresso. Obrigado ao sxzoeyjbrhg pelo link.

domingo, junho 27, 2010

FIFA 2010

A melhor reportagem sobre o mundial de futebol que vi até agora.



Via Disinformation.

Planeamento.

bem pensado

À entrada do IC-22 a norte de Odivelas, no sentido de Lisboa.

sábado, junho 26, 2010

Treta da semana: Um?! São todos...

É o que terá dito o condutor quando a rádio avisou de um doido em contra-mão naquela autoestrada. E foi o que senti estes dias. Já nem sei se está tudo maluco ou se estou eu a violar o código de estrada de alguma palhaçolândia.

Na terça-feira houve uma “Reportagem TVI”, no noticiário desse canal, sobre «as saídas apresentadas pela medicina informacional»(1). Chamam-lhe reportagem mas dá ideia que o jornalista se formou num curso da Gigashopping. Não há um pingo de análise crítica, não questiona como raio é que «A medicina informacional traduz a informação captada ao nível emocional, orgânico e fisiológico, através de estímulos electromagnéticos, equilibra-a e reenvia-a para o organismo» e nem sequer consegue decidir que metáfora há de usar. «Nesta reportagem, a TVI apresenta-lhe um admirável mundo novo que abre janelas de esperança para quem já não vê a luz ao fundo do túnel.» Às vezes também sinto que escrever sobre estas coisas faz tanto efeito como abrir janelas num túnel...

O protagonista é o Nuno “Dr. House” Nina, formado «em Homeopatia, Medicina Bio-Química, Engenharia de Sistemas Decizionais e Matemáticas»(2) e distribuidor em Portugal do equipamento que usa, o Sistema Inergetix-CoRe (3). Na medicina convencional convencionou-se ser ilegal um médico vender os produtos que recomenda. É picuinhas, a medicina convencional. Julga que pode haver conflitos de interesse se o médico vende o que receita ou se perde dinheiro por admitir limitações ou defeitos no equipamento que usa. Mas tratando-se de medicina informacional nem sequer ocorreu ao “jornalista” dar esta informação.

O Nuno Nina e o sistema CoRe são ambos extraordinários. A “parte informativa” do sistema «Utiliza medicamentos e itens informativos de todas as modalidades de saúde, Ocidental e Oriental – tais como nutrição e suprimentos alimentares, homeopatias, ervas, pontos de acupuntura e meridianos, afirmações e conceitos emocionais, essências florais, cores, chacras e doshas bem como patogenias, toxinas e 2000 partes de órgãos entre outros – para rápida e efetivamente chegar ao cerne dos resultados do cliente e trabalhar com eles de forma bioinformativa.»(3) Julgo que por mais uns euros já vem com um baralho de cartas da Maya e um mini-forno para cozer biscoitos da sorte.

E o Nuno Nina, doutor de homeopatia, «Dedica-se também a investigação terapêutica e à prática da mesma», porque «A sua formação na área da electrónica e informática permite-lhe o desenvolvimento e o redesenho de algumas aplicações, aumentando a capacidade terapêutica das mesmas.» Fabuloso. A investigação em medicina é morosa e exigente. Por exemplo, desde que Charles Laveran identificou o plasmódio da malária em 1880, demorou dezoito anos, e o trabalho de vários investigadores, até Ronald Ross finalmente elucidar o mecanismo de transmissão da doença pelos mosquitos. Mas o Nuno Nina melhora as terapias com a sua formação em informática, e com tal mestria que faz a coisa parecer fácil.

E trata tudo. Tudinho. A reportagem começa pelo depoimento de uma senhora com cancro nos ovários a ser tratada pelo Nuno Nina. Depois vem o «Dom Duarte, o herdeiro da coroa de Portugal», para o Nuno lhe tratar a sinusite. Costumava tratar-se passando uns dias nas termas de Felgueiras mas como isso lhe tirava tempo ao trabalho de herdar a coroa optou por este método mais rápido. E é outro perito em medicina. Na medicina convencional dá uma trabalheira fazer ensaios clínicos com dupla ocultação para evitar os efeitos de placebo e o enviesamento de quem avalia os resultados, testar grupos grandes para ter resultados estatisticamente significativos e confirmar tudo com ensaios independentes.

O nosso herdeiro da coroa, dotado de capacidades acima da média por ter nascido quem é, resolve esses problemas de uma forma mais simples. Aquilo funciona porque há pessoas que se curam sem acreditar no tratamento, explica ele, e ele próprio tinha ido lá sem razão nenhuma para crer que funcionava. Para um plebeu como eu parece insensato escolher um tratamento sem razões para crer que funciona. Mas deve ser por isso que nunca me saiu coroa nenhuma, apesar das caixas de cereais que já comprei.

A “reportagem” não questiona a capacidade do Nuno Nina para tratar tanto o cancro nos ovários como a sinusite. Porque é medicina holística. Na medicina alopática não se vai ao otorrinolaringologista com problemas dos ovários nem se trata da sinusite no ginecologista. Só a banha da cobra trata tudo, como o Nuno Nina explica em entrevistas com a Heloísa Miranda, outra excelente investigadora e jornalista (4). Mas se o barrete no Duarte é bem enfiado, que ele tem dinheiro, tempo livre e um problema inofensivo, cobrar à professora primária para tratar um cancro já merecia que incumbissem desta reportagem um jornalista em vez de um engraxador.

Para terminar num tom mais leve, o site da Inergetix tem um artigo laudatório sobre o “John of God” (5), o médium, vidente, curandeiro e milagreiro João de Deus (6). Além de ilustrar o fundamento científico da medicina informacional, a tradução do nome tem piada. É como falar no grande dramaturgo inglês Guilherme Abanapêra ou o presidente americano Jorge Arbusto.

Obrigado pelos emails com esta notícia. Logo vos mando a factura dos medicamentos homeopáticos para a tensão e do reajuste de aura que vou precisar depois disto...

Adenda: o sistema CoRe é alegadamente reconhecido pelo Papa.

1- TVI 24, «Reportagem TVI»: as saídas apresentadas pela medicina informacional
2- Inergetix, Nuno Nina
3- Inergetix, O Sistema Inergetix-CoRe
4- SAPO, Canal Zen, Nuno Nina. Confesso que só tive pachorra para ver um pedaço do primeiro vídeo. É treta atrás de treta...
5- Inergetix, John of God
6- www.johnofgod.com. Alegadamente, «the most powerful unconscious medium alive today.» Há com cada uma...

sexta-feira, junho 25, 2010

iSeeyou

Quando fazemos uma chamada de telemóvel a operadora regista a antena mais próxima, informação que pode fornecer às autoridades sob decisão judicial. A Apple vai mais longe. Recolhem os dados de localização do GPS de cada iPhone, que determina a posição do aparelho com uma precisão de poucos metros. Fazem-no regularmente, mesmo que não se esteja a fazer chamadas. E reservam o direito de partilhar essa informação com os seus parceiros*.

Segundo um novo parágrafo da política de privacidade da Apple, «Para fornecer serviços de localização em produtos Apple, a Apple e os nossos parceiros e empresas autorizadas podem recolher, usar e partilhar dados de localização precisa, incluindo a localização geográfica em tempo real, do seu computador ou aparelho Apple.» Supostamente esta informação é recolhida anonimamente, mas mesmo um mínimo de informação geográfica pode identificar facilmente uma pessoa (1). E para não dar esta informação podem não instalar o iTunes. Ou não usar coisas da Apple, que vai dar no mesmo.

É verdade que a Apple não é a única empresa a recolher estes dados. O Android da Google, por exemplo, também fornece informação geográfica a aplicações como o Google Maps, se quisermos ver onde estamos. E é prática corrente na Internet usar o endereço IP para determinar a localização aproximada de cada visitante e espetar-lhe com anúncios adequados à sua zona. Ou mais ou menos adequados. Se à partida já é pouco plausível que uma rapariga em Odivelas esteja assim tão ansiosa por me conhecer, chamar-se Sharon faz-me ficar ainda mais céptico.

Mas parece que a Apple está na vanguarda da bisbilhotice institucional. Recolhem a informação quando eles querem e não só quando se usa aplicações e serviços que precisem dela. Partilham-na com quem quiserem, para o que lhes der jeito. E quem não gostar que se lixe.

* Como a Mordor Consulting, Ingsoc, Norsefire Corporation e Latveria AG.

1- Schneier on Security, On the Anonymity of Home/Work Location Pairs, por exemplo.

Mais informação: LA Times, Mashable, BoingBoing e Apple. Obrigado pelo email com esta notícia.

quinta-feira, junho 24, 2010

Haverá cá pior?

Nem de propósito. Parece que enquanto eu escrevia o post de ontem, a gozar com as tretas da ACAPOR e do MAPiNET, a ACAPOR decidiu juntar o fútil ao ridículo e fazer uma denúncia contra a PT por “crime de usurpação” (1). Isto porque a PT é dona da SAPO, a SAPO aloja blogs, alguns desses blogs têm ligações para ficheiros que alguns estrangeiros anónimos colocaram em servidores de empresas estrangeiras como a Rapidshare e a Hotfile, e esses ficheiros codificam filmes sobre os quais a ACAPOR não tem direitos nenhuns.

Este último aspecto é talvez o mais emblemático da “luta contra a pirataria”. A ACAPOR é uma associação de clubes de vídeo. Não fazem filmes, não são autores de coisa nenhuma e nem sequer são os detentores legais de direitos de cópia sobre os filmes. São lojas que alugam DVDs. E alugar DVDs, hoje em dia, é como mudar a palha de colchões ou trocar agulhas de grafonolas. Não interessa a ninguém.

Se vendessem presunção talvez fossem mais longe. A legenda da figura no Público diz que «a indústria dos videoclubes está em crise» (2). A indústria. Não é indústria nenhuma. São sítios onde guardam rodelas de plástico. Melhor ainda, «A denúncia requer que seja deduzida acusação contra algumas empresas nacionais que escolheram aqueles blogues para aí investirem em publicidade à sua marca.» Já agora, processem também todos os clientes dessas empresas que, por lhes dar dinheiro, ajudam a que estas paguem a publicidade nos blogs que têm ligações para ficheiros que cidadãos estrangeiros puseram em servidores operados por outras empresas em violação dos direitos de ainda outras empresas estrangeiras que nada têm que ver com a ACAPOR.

Já agora, aproveitem para fazer também denúncia do carniceiro que matou o boi que bebeu a água que apagou o lume que queimou o pau que bateu no cão que mordeu o gato que comeu o rato que roeu o sebo que unta o cordel...

Via Facebook (acho... se calhar foi FriendFeed, ou o Twitter de alguém... eu sabia que devia ter ficado só pelos blogs) e Jonasnuts

1- ACAPOR, ACAPOR apresenta queixa crime contra PT e empresas que financiam sites piratas
2- Público, Videoclubes processam PT por pirataria

Só para chatear:
Cinema em Casa
Arquivos da Net
Baixa Perfect
Movie Box

Para facilitar o sacanço de hosters como Rapidshare e afins, Jdownloader. Se preferirem o BitTorrent (mais arriscado porque, em teoria, é ilegal distribuir os ficheiros, se bem que na prática é mais provável morrerem atropelados do que serem apanhados), aqui ficam umas dicas do Pirate Bay.

A ver se agora a ACAPOR faz uma queixa crime contra a Google por causa deste post. Depois só falta o nariz vermelho e os sapatos compridos.

quarta-feira, junho 23, 2010

Manifesto.

A União Portuguesa dos Técnicos de Higiene Doméstica e a Associação de Empresas de Limpeza ao Domicílio fundaram um movimento popular espontâneo para representar os muitos cidadãos preocupados com o grassar da pirataria na lide doméstica. O Movimento Anti-Pirataria em Lavatórios, Esfregonas e Toalhas, MAPiLET, pretende assim educar os cidadãos, esclarecer os legisladores, lutar por leis mais eficazes e por uma fiscalização que, finalmente, proteja eficazmente esta indústria essencial ameaçada pela limpeza ilícita.

Infelizmente, é cada vez mais prática corrente entre os portugueses que os membros de cada agregado familiar executem gratuitamente, sem regulação profissional e sem qualquer licenciamento, trabalhos de limpeza que ficariam de outra forma a cargo de técnicos especializados que merecem ser ressarcidos por estes serviços e pelo seu trabalho. Os números, mesmo por alto, mostram a enormidade do problema. Se cada agregado familiar despender nem que seja uma hora por dia em trabalhos domésticos, com cerca de três milhões de famílias em Portugal e uma média salarial de 5€ por hora neste sector, temos uma perda económica de quinze milhões de euros por dia! Isto são mais de cinco mil milhões de euros por ano, ou 2% do PIB português! É evidente que esta situação não pode continuar, pois não só ameaça toda uma classe profissional como rouba ao Estado mais de mil milhões de euros por ano em impostos que ficam por cobrar a esta economia paralela e imoral.

O MAPiLET pretende assim chamar a atenção para este problema e consciencializar os muitos portugueses que, estamos convictos, lavam a sua loiça, roupa e chão sem intenção de prejudicar ninguém mas apenas por mau hábito, porque nunca consideraram o mal que fazem aos profissionais desta área ou porque julgam tratar-se de um “crime sem vítimas”. Que mal terá, perguntará o português médio, que eu lave o prato que sujei? Pois cada prato que lava rouba uma lavadela aos legítimos profissionais da lavagem. Pessoas que, como qualquer trabalhador, merecem receber ou pelo trabalho que fazem ou pelo valor da licença para se fazer trabalho como o que eles poderiam fazer se fossem pagos para isso.

Há também a questão importante do usufruto ilegítimo das ideias alheias. Lavar os copos primeiro, quando a água está limpa, escorrer a esfregona torcendo-a ou lavar a roupa de cor separada da branca são algumas de muitas técnicas importantes das quais tantos tiram partido sem ressarcir os autores. Os autores ou, mais propriamente, os gestores dos direitos de cobrar licenças sobre estas coisas. O consumo não remunerado destas técnicas não só prejudica a economia como é um acto claramente imoral. Há que combater a aceitação social dos piratas que “partilham” estas coisas permitindo que muitos consumam este conhecimento sem respeitar o esforço e o trabalho de quem desenvolveu estas técnicas (ou os seus representantes legais).

Mas o problema não é só de consciencialização. É também um problema de legislação. Porque há grandes interesses financeiros escondidos por trás da limpeza não autorizada. Empresas que vendem aspiradores e máquinas de lavar, detergentes e outros utensílios de limpeza, têm todo o interesse em perpetuar este regime anárquico no qual cada um lava o que quer e limpa o que lhe apetece, chegando até a insinuar na publicidade que quem compra uma esfregona pode limpar o chão as vezes que quiser sem dar satisfações a ninguém.

O MAPiLET faz assim ouvir os inúmeros cidadãos e cidadãs revoltados contra esta situação, e exige do sistema judicial medidas eficazes no combate à pirataria da limpeza. Registos completos da venda de equipamento de limpeza e utensílios multi-usos, como escovas de dentes e sabonetes, que possam ser usados na limpeza doméstica, para permitir identificar os prevaricadores. Um regime de avisos e notificações que, à terceira infracção, corte o fornecimento de material de limpeza aos que se recusem a respeitar estes direitos. Eliminar as lacunas legais que permitem piratear impunemente a higiene doméstica invocando a “privacidade” do lar. E, acima de tudo, acabar com os sites de “dicas” que proliferam na Internet e onde se distribui sem autorização informação proprietária acerca de como lavar chão encerado, abrilhantar talheres ou limpar cortinados.

Estamos certos que com o apoio popular o MAPiLET atingirá os seus objectivos sem que as associações fundadoras se zanguem e se vão embora. Em data a anunciar planeamos provar a todos que se pode limpar com impunidade organizando uma demonstração pública onde varreremos o chão e limparemos vidros de automóveis sem pagar as licenças devidas.

Por lares livres da Pirataria e uma sociedade limpa com justiça, porque combater a Pirataria é um sinal de cultura e Civilização!

terça-feira, junho 22, 2010

Miscelânea Criacionista: a ilusão de design.

we are the champignons

A figura acima (1) mostra cogumelos num “anel de fadas”, um fenómeno que hoje sabemos ser natural mas que, durante muito tempo, foi explicado como sendo uma criação inteligente de seres sobrenaturais. É compreensível. Como um cogumelo não pode saber onde estão os outros nem escolher onde nasce parecia necessário algum ser inteligente que percebesse aquele padrão e planeasse o nascimento dos cogumelos. Não era o mesmo criador dos criacionistas de hoje mas cada cultura atribuía a génese destes círculos intrigantes a entidades míticas equivalentes. Fadas, duendes, espíritos da floresta ou deuses vários.

A explicação correcta é mais prosaica. Os cogumelos brotam de um micélio subterrâneo, uma rede de fibras microscópicas que se espalha a partir do ponto de origem do fungo. Conforme o fungo cresce, o micélio vai envelhecendo e consumindo nutrientes, pelo que a parte com mais vitalidade é sempre a da orla do círculo (2). É esta que produz os cogumelos. Não há aqui fadas nem inteligência. Apenas crescimento, fisiologia e, no fundo, química.

É claro que podemos propor que as fadas não fizeram o círculo mas fizeram o código genético do fungo, ou algo assim. Quando se invoca fadas, magia ou milagres pode-se inventar o que se quiser. Mas é desnecessário. Aquilo que exigia ser explicado por uma intervenção inteligente era a premissa, errada, que o círculo só poderia ser formado por alguém que percebesse e planeasse aquele padrão de cogumelos. Fadas a dançar, por exemplo. Mas a compreensão mais detalhada do processo revelou um mecanismo alternativo que dispensa esse requisito.

A teoria da evolução suplantou o criacionismo porque fez o mesmo para os seres vivos. Ao mostrar como as espécies podem surgir por um processo que não exige a percepção inteligente de cada passo nem o planeamento antecipado do resultado tornou desnecessária a premissa de um designer inteligente. Tal como o fungo não precisa de fadas para fazer um círculo de cogumelos também os primeiros replicadores numa furna qualquer há quatro mil milhões de anos não precisaram de um deus que planeasse o nosso nascimento este tempo depois.

O apelo do deus criador e das fadas bailarinas vem de encher os buracos da ignorância com fantasias improvisadas em vez de hipóteses testadas. Os camponeses medievais viam estes cogumelos e imaginavam fadas; os criacionistas vêem uma mosca e imaginam um criador inteligente*. E por criacionistas não refiro só os da Terra com uns milhares de anos, o homem criado do barro e a mulher da costela que deve ter ficado a mais e que, já que tinha de sair, aproveitaram para fazer alguma coisa.

Neste caso incluo também os criacionistas mais vagos que dizem aceitar a ciência mas que acrescentam sempre um criador para dar “sentido” e “significado” a isto tudo. Especialmente a nós. O universo pode existir há treze mil milhões de anos e ser inimaginavelmente grande. Pode ser mortífero para nós em praticamente todo o lado excepto neste planeta cagagesimal num cantinho insignificante de uma galáxia medíocre. Mas o deus criou deles isto tudo só para nós e fez-nos à sua imagem. E como sabem isto? É evidente. É tão evidente como os cogumelos nascerem de fadas bailarinas.

* E as "teorias" que apresentam sugerem também o consumo de alguns cogumelos.

1- Copiada de Turfgrass Diseases
2- Robert Fogel, Fun Facts about Fungi

segunda-feira, junho 21, 2010

Mats, versão Allah.



(Mais um do Pedro Amaral Couto)

domingo, junho 20, 2010

O que eles querem... (ou porque é que os professores ganham pouco).

Por experiência pessoal, e pelo que vagamente recordo de uma disciplina de sociologia, já tinha a ideia que o dinheiro deixa de ser um incentivo importante para o desempenho profissional quando já se ganha o suficiente para uma vida confortável. A partir daí a realização pessoal, autonomia e o prazer de fazer bem as coisas começam a contar mais. O que não sabia é que mais dinheiro pudesse ser um desincentivo e reduzir o desempenho em certas tarefas.



Estes resultados confirmam que é um disparate restringir a difusão e partilha de obras publicadas só para aumentar os incentivos monetários. Tais medidas apenas melhoram o desempenho das fases menos criativas do processo – cópia e distribuição – reduzindo o incentivo para criar, experimentar e inovar. O objectivo passa a ser maximizar o rendimento dos intermediários em vez de fazer arte e produzir algo de novo.

E que quanto mais a economia assenta na produção especializada e criativa menos sentido faz exigir que as pessoas trabalhem para comer. Isso funcionava com os camponeses e com os operários na revolução industrial, a quem se maximizava a produtividade entre o pau e a cenoura. Mas se já nessa altura era eticamente censurável, hoje é também economicamente ineficiente. Quem vive preocupado com a comida ou sítio para dormir não faz grande coisa. Forçar as pessoas a trabalhar ameaçando-as com pobreza só leva uns a fazer trabalhos pouco úteis e outros a dedicar-se ao crime. Mais sensato é garantir a todos um mínimo de conforto e segurança para cada um encontrar os seus incentivos e contribuir com o que tem de melhor. A ideologia de que só quem trabalha merece uma vida decente choca com a realidade económica: a ameaça prejudica a produtividade, o dinheiro não é o incentivo adequado para o trabalho mais importante e enquanto o contributo que cada um pode dar varia muito de pessoa para pessoa, as necessidades básicas são praticamente as mesmas para todos.

Não quero dizer que eu não goste de dinheiro. Não me importava de trocar de ordenado com o presidente da EDP, que ganha em duas horas o mesmo que eu num mês. Mas ganhar um balúrdio não me fazia ensinar melhor. Os ordenados chorudos de directores, estrelas de cinema e advogados financeiros não são um incentivo ao desempenho. São apenas a consequência de serem eles a decidir quanto ganham. O que não tem mal por si. Se conseguem vender o seu trabalho por milhões, de forma lícita, tanto melhor para eles. Mas estes valores não são custos necessários. Os sete milhões de euros que os administradores da PT ganharam em 2009 (1) não é o preço de administrar uma empresa. É apenas o que meteram ao bolso por poderem escolher os seus salários e bónus.

A minha defesa de coisas como a partilha de ficheiros, limitações à propriedade intelectual e melhor redistribuição de riqueza pode parecer socialista e anti-capitalista. Mas não é bem, porque sou contra o planeamento central da produção que o socialismo defende e totalmente a favor do essencial do capitalismo: a economia emerge das transacções livres de indivíduos que trocam o que têm.

Mas o que temos e criamos interagindo com os outros é muito mais que dinheiro e bens materiais. Coisas como autonomia, excelência, reputação, liberdade, confiança e satisfação pessoal são factores económicos cada vez mais importantes. Tão importantes que podem criar ou extinguir fortunas de um dia para o outro e motivar as maiores descobertas e inovações. Além disso, os monopólios legais e a má distribuição de recursos restringem a participação em transacções, reduzem a produtividade e travam a economia.

Por isso defendo uma economia capitalista liberal apoiada na segurança do socialismo. Se distribuirmos o suficiente para que ninguém fique na miséria ficamos todos mais livres para encontrar o que cada um quer e o motiva a produzir o riqueza. Que não é só monetária. Eu não me importava ter o ordenado do presidente da EDP, mas não trocava de emprego com ele.

Obrigado ao Pedro Amaral Couto pelo link do vídeo.
1- António Manuel Pina, JN, Fome e Fartura

Editado a 22-6 para acrescentar um "faz" no terceiro parágrafo. Obrigado pelo email a avisar.

sexta-feira, junho 18, 2010

Treta da semana: Fundassexualismo.

O fundamentalismo tem um método particular de resolver problemas. Em vez de partir dos dados para a conclusão começa numa opinião inabalável e depois selecciona o que pareça apoiá-la, torcendo factos e atropelando conceitos conforme necessário. Na sexualidade, o fundamentalista presume saber como todos devem praticar (e gozar, se for caso disso) o acto sexual, e enfeita o seu preconceito com justificações a fingir. Como o verdadeiro dom de si mesmo, problemas irrelevantes ou estatísticas aldrabadas, por exemplo.

Nesta linha, o Mats referiu um «Um artigo vital [?*] produzido pelo director da “Human Life International Research”, [...que] demonstra que a homossexualidade está fortemente conectada ao abuso sexual de menores, e que o celibato não é a causa de pedofilia.»(1) Tem estatísticas e tudo. Começa por apontar que Alfred Kinsey «descobriu em 1948 que 37% de todos os homens homossexuais admitiu ter tido relações sexuais com crianças com idades inferiores a 17 anos.» Kinsey foi um pioneiro neste tipo de estudos, mas a metodologia usada em 1948 ficou geralmente aquém dos padrões de agora. E estes dados são irrelevantes sem sabermos a idade que estes homens tinham quando tiveram relações sexuais com menores (sexo entre adolescentes não é pedofilia), o tamanho da amostra ou como foram seleccionados os entrevistados.

Depois aponta que «apenas 2,4% dos homens atraídos por adultos preferem outros homens. Em contraste, cerca de 25-40% dos homens atraídos por crianças preferem rapazes.» Como se isto fosse algo de espantoso ou revelador. Não quero falar pelo Mats, mas a minha preferência sexual por mulheres não se reduz a “algo com vagina e ovários”. Cobre um grande conjunto de aspectos como a forma das pernas, do rosto, o cheiro do cabelo, a voz, o sentido de humor, a maneira de falar e outras coisas que não vou mencionar aqui. Não menosprezando os órgãos sexuais, ainda assim nunca me senti sexualmente atraído por uma mulher pela sua bonita vagina. Foi sempre por outros atributos, atributos que crianças não têm, nem os meninos nem as meninas.

Enquanto a atracção sexual por adultos se concentra em características que distinguem homens e mulheres, quem prefere crianças é atraído por aspectos comuns aos dois sexos porque as crianças pré-pubescentes são parecidas. Por isso não admira – nem quer dizer nada – que a um pedófilo faça pouca diferença se é menino ou menina.

Além disso a prevalência de homossexualidade entre pedófilos não diz nada acerca da prevalência da pedofilia entre homossexuais. Cita o Mats que «Um estudo levado com 229 pedófilos condenados pela lei publicado nos Arquivos do Comportamento Sexual descobriu que “86% dos agressores sexuais contra homens descreveu-se a si mesmo como homossexual ou bissexual.”» Mas a vasta maioria dos agressores são homens em todos os casos, seja a agredir homens, crianças, mulheres ou bichos. Quase todos os violadores são homens, quase todos os assaltos violentos são cometidos por homens, quase todos os homicidas são homens, quase todos os caçadores e toureiros são homens e quase todos os pedófilos são homens. Surpresa seria se os principais agressores sexuais de homens fossem mulheres ou crianças.

O Mats queixa-se de «O facto da imprensa secular recusar-se a investigar a relação entre a homossexualidade e a pedofilia revela que os seus ataques aos católicos não é (sic) baseado na busca da verdade, nem na defesa das crianças, mas sim em mais uma forma dos ateus tirarem proveito da situação.» Isto porque o Mats confunde a atracção sexual por adultos, sexualmente muito diferentes entre si, com a atracção por crianças que diferem apenas nos órgão sexuais e na camisola do Pokemon ou da Kitty. E mesmo que 40% dos pedófilos fossem homossexuais, esticando muito o conceito, ainda assim mais de 90% dos pedófilos são homens. Estes números permitem condenar a generalidade dos homens em absolutamente nada. E os homossexuais em metade disso.

O Bernardo Motta não é evangélico. Mas é católico, e quanto ao sexo tão fundamentalista como o Mats. Para dar um exemplo, acerca da adopção por casais homossexuais escreve que «toda a criança tem o direito a ter uma mãe e um pai»(2). Pois com certeza. A um pai, a uma mãe, a tios porreiros, avós queridos, irmãos brincalhões, amigos, brinquedos, ar puro, jardins para brincar, animais de estimação e o mais que lhe dê felicidade e a ajude a desenvolver-se. Mas a adopção não é para crianças que têm pai, mãe e uma família feliz. É uma solução de recurso para aquelas não têm ninguém e crescem numa instituição. Negar a essas crianças a possibilidade de ter dois pais ou duas mães que lhes dêem amor, carinho e uma família já não é só uma estupidez tacanha. É uma injustiça cruel.

O Mats usa o termo “homossexualismo” para sugerir que um homossexual é um heterossexual com manias. Como se pudéssemos escolher se nos agrada mulheres ou homens. Mas mania é querer privar crianças órfãs de uma família alegando protegê-las do «LGBT "lifestyle"»(2), aldrabar estatísticas para culpar os homossexuais dos crimes dos padres, confundir o sexo consensual entre adultos com a violação de crianças e viver obcecado com a vida sexual dos outros.

* Citando Iñigo Montoya, «You keep using that word. I do not think it means what you think it means.»

1- Mats, 14-6-2010, Artigo Mostra Forte Ligação Entre Homossexualidade e Pedofilia
2- Bernardo Motta, 25-5-2010, Quando é que eles vão entender?

quinta-feira, junho 17, 2010

Fundamentos de neuropsicologia.

Não faço ideia do que seja um “Banana Mango High School”. Só posso dizer que não parece ser nada como as escolas secundárias onde andei. Mas se bem que o meu córtex cerebral tenha ficado perplexo, o sistema límbico não se queixou.



Via 9GAG. Aviso: não sigam o link se tiverem coisas para fazer...

quarta-feira, junho 16, 2010

Ai é assim?...

De vez em quando dou uma aula aos meus filhos. Ou eu sugiro alguns temas para eles escolherem ou eles lembram-se de alguma coisa que lhes interesse, por isso os assuntos são o que calhar. De cobras peçonhentas* aos números de Fibonacci, vale tudo. Esta semana vai ser sobre a história do rock 'n' roll.

Segundo a Wikipedia, uma das primeiras gravações de rock 'n' roll é a música “Crazy About My Baby", do Blind Roosevelt Graves (1). Uma googladela deu-me o link para o mp3 na Amazon por 99 cêntimos. Por princípio não acho razoável ter de pagar por um mp3 de uma música de 1929 cujo autor já morreu há quase meio século. Mas era barato, sem DRM, e na Amazon até sei a minha password de cor. Pareceu-me um bom negócio. Mas um login e um par de clicks mais tarde levo com esta prenda.

FU2!

Eles têm lá o ficheiro, eu tenho a ligação, tratei do pagamento, não há problema de portes e não me parece que essa venda vá arruinar o mega lançamento do último CD do Blind Roosevelt Graves, que além de blind está dead and buried há uma carrada de anos. Mas não me vendem o ficheiro. Algures, num gabinete qualquer, um advogado que percebe tanto de negócio como de música decidiu que mp3 só se vende nos EUA. Porque sim, e pronto.

Além de não ganharem os 99 cêntimos conseguiram pôr-me ainda mais revoltado contra os monopólios sobre bits. O que não foi coisa pouca, considerando o que eu já pensava disto. Acabei por preparar a aula só com clips do YouTube e da Wikipedia, se precisar de mais alguma música não é nas lojas que vou procurar e mesmo que um dia arrumem a casa e se deixem destas tretas eu não me vou esquecer do que têm feito. Fico-me pelo que encontrar à borla e os “gestores de direitos” que vão para o copyright que os pariu.

* Tenho aprendido bastante. Por exemplo, antes desta aula não sabia que peçonha é veneno que se injecta.

1- Wikipedia, First rock and roll record

terça-feira, junho 15, 2010

Lindo.

Para a maioria dos leitores deste blog isto não deve ter nada de especial. Mas se houver aí mais alguém que tenha crescido com esta maquineta, penso que vai achar graça.

Laicidade.

Há dias defendi que o Estado se deve manter separado da religião pela mesma razão que não deve apoiar a astrologia ou o espiritismo. Porque essas coisas são treta. O João Vasco discordou, propondo que a laicidade vem «da experiência histórica da perseguição das minorias religiosas e dos abusos de poder cometidas pela religião» e que «o legislador não deve considerar que a astrologia ou cristianismo são tretas, apenas tem de considerar que sejam o que forem são alheias ao estado que delas deve ficar separado.» (1)

Concordo com a primeira parte mas considero-a irrelevante, neste caso. É verdade que a ideia de separar o Estado da religião surgiu como resposta à violência religiosa. Mas a origem histórica não é necessariamente a justificação mais fundamental ou a mais importante hoje. E se bem que, em abstracto, reconheça o perigo da violência religiosa e do fundamentalismo, não é isso que motiva a minha oposição a práticas concretas na nossa sociedade. Não me oponho às capelanias hospitalares por medo que os padres mandem para a fogueira os doentes que faltem à missa. Tenho até a impressão que estes padres são pessoas decentes que respeitam quem não partilha as suas crenças religiosas. O pior que a religião me infligiu até hoje foram os comentários do Jónatas Machado, e mesmo esses resolve-se bem com javascript e filtros no email.

Concordo com que o Estado não deve considerar a verdade das crenças quando legisla sobre o direito de as ter. A opinião de cada um é do foro pessoal e não diz respeito ao Estado. Mas crença e religião não são o mesmo. Crer é confiar em algo como verdade e, por isso, diz respeito a cada um. Em contraste, as religiões são conjuntos de práticas colectivas, técnicas de culto e alegações acerca da realidade. O católico tem todo o direito de julgar que come Jesus na missa. Mas o Estado deve assumir que as hóstias não se tornam no cadáver de ninguém. Por muita fé que tenha na transubstanciação, quem come uma bolacha não deve ir preso por canibalismo.

Eu proponho que os factos devem importar ao Estado. E podemos pensar o que o Estado deveria fazer se alguma religião se demonstrasse verdadeira. Se rezar com um padre católico curasse mesmo doenças, se regenerasse os membros amputados, se eliminasse o cancro e fizesse isto tudo de forma fiável e reprodutível é evidente que o Estado devia pagar para incluir padres católicos no serviço nacional de saúde. Se a religião funcionasse para resolver estes problemas seria um erro não aproveitar.

Sei que os católicos dizem não crer num deus que cura enfermos ou ressuscita mortos. Isso era antigamente, só para demonstração, mas agora esse deus já não intervém. Seja como for, é improvável que os católicos deixassem de o ser se o seu deus começasse a milagrar. A desculpa do ainda bem que não se prova porque assim podemos ter fé é o que a raposa dizia das uvas, e se este universo tivesse mesmo um deus que ajudasse quem precisa não deixava de haver religião. E, se assim fosse, defendo que o Estado deveria apoiar a religião certa.

Para mim é este o fundamento da laicidade do Estado. O Estado não se deve intrometer na crença de cada um mas crença e religião são coisas diferentes. Se os rituais religiosos fossem uma tecnologia eficaz para manipular o que nos rodeia – como se julgou durante milénios e como muita gente ainda julga – o Estado deveria investir na religião. Como deveria investir na astrologia se esta servisse para prever desastres e no espiritismo se permitisse conversar com Sócrates ou Newton. A razão pela qual não se deve gastar impostos nestas coisas é porque são falsas.

O argumento que o Estado deve ser laico porque não se deve imiscuir nas religiões é um mau argumento porque é circular, fingindo que a definição é a justificação. E o argumento que o Estado deve ser laico porque as religiões eram opressoras e violentas é um mau argumento porque é injusto punir os religiosos de agora pelos pecados das religiões de outrora. Eu prefiro ver a coisa de outra maneira.

Por um lado, o Estado não deve interferir nas crenças porque o Estado serve para resolver problemas colectivos e não questões pessoais como decidir em que coisas cada um deve acreditar. E, por outro lado, o Estado não deve financiar nem incentivar religiões porque não são o que alegam ser. Como muitas outras tretas. O Corão não foi ditado pelo criador do universo, o Joseph Smith não traduziu placas de ouro com óculos mágicos, nenhum deus veio morrer e ressuscitar pelos nossos pecados e o Espírito Santo faz pelo Papa o que o Tarot faz pela Maya.

1- Comentário em A diferença é ser treta.

domingo, junho 13, 2010

Treta da semana: Iridologia.

A medicina, aquela que agora chamam “convencional” como se fosse mera convenção, é uma grande chatice. As maleitas podem ser provocadas por uma data de coisas, como vírus, fungos, bactérias, priões, genes com defeito, traumas, poluentes ou até movimentos repetitivos. Os sintomas variam muito, problemas diferentes podem ter sinais parecidos e o tratamento é muitas vezes difícil e nem sempre eficaz.

Mas há outras medicinas. Muitas outras. Alternativas, complementares ou simplesmente tradicionais, resolvem estes problemas complexos fingindo que são simples. Não tão simples que qualquer pessoa os trate sozinha, o que não daria dinheiro, mas o suficiente para que um tipo de batinha branca possa tratar de tudo com umas palavras sonantes e ar de quem sabe o que diz. Para isso atribui-se a causa de todos os males a um conjunto pequeno de factores, conjunto esse que varia conforme o gosto do praticante e da sua vítima. Perdão, do seu paciente. Para uns é tudo culpa da coluna desalinhada, para outros é o yin que não se dá com o yang, ou as energias que estão bloqueadas, umas negativas e outras positivas, vibrações enjeitadas, desequilíbrios espirituais ou o que calhar. Desde que o paciente engula, serve. Isto não só simplifica o tratamento como facilita o diagnóstico e permite identificar doenças fictícias de forma rápida e convincente.

Se bem que alguns iridologistas joguem pelo seguro dizendo que a iridologia não faz diagnósticos mas «apenas aponta órgãos fracos, conhecidos como "órgãos de choque" e realiza um trabalho profilático e multidisciplinar»(1), ao mesmo tempo tentam dar credibilidade à arte invocando uma longa tradição de diagnósticos pela íris: «milhares de anos antes de Cristo, já os chineses e os tibetanos relacionavam as alterações e as marcas dos olhos com as perturbações ou anomalias dos órgãos internos. [...]Porém, a palavra “Augendiagnostik”, que significa precisamente "diagnóstico do olho", surge apenas no século XIX, graças ao médico húngaro Ignatz von Péczely.»(2)

Parece que Péczely, quando era novo, tratou uma coruja que tinha uma pata partida e reparou que ela tinha uma marca na parte inferior de um olho. Descobriu assim, de forma expedita, a relação entre muitos sinais na íris e cerca de 50 partes do corpo e respectivas maleitas. Mas como depressa e bem não há quem, a iridologia não funciona. Em 1976 três eminentes iridiologistas dos EUA concordaram testar o seu método examinando as fotografias dos olhos de 143 pessoas para determinar quais tinham problemas renais. Os pacientes tinham sido testados pelos métodos da medicina “convencional” (i.e. aquela que funciona), e os iridologistas falharam redondamente. Nem sequer foram consistentes entre si, com um declarando que 88% dos saudáveis estavam doentes e outro, mais optimista, concluindo que 78% dos doentes estavam saudáveis (3).

Vários outros testes foram sendo feitos noutros países, sempre com resultados negativos. O que não surpreende. Os padrões da íris são relativamente constantes, como as impressões digitais, enquanto que as doenças vão e vêm. Não parece haver mecanismo nenhum pelo qual um pé torcido ou uma unha encravada possam fazer riscas nos olhos. E se bem que os iridologistas aleguem ver na íris o que se passa no resto do corpo, ninguém sabe dos dados originais que demonstram estas correlações. É que para fazer aqueles diagramas indicando que sítio da íris corresponde ao baço, ombro, ovário, maxilar e dezenas de outras partes do corpo (4), e determinar como diagnosticar problemas em cada um, era preciso muito mais que uma coruja com uma perna partida. A menos que seja tudo invenção, é claro.

A Associação Portuguesa de Iridologia (5) oferece cursos de iridologia, «uma ciência que permite avaliar através da observação das estruturas das fibras e pigmentação da íris dos olhos, perturbações orgânicas, metabólicas, nutricionais, nervosas, hormonais, psíquicas e emocionais.» E «a análise da Íris permite-nos conhecer as polaridades cerebrais, o ponto de stress, a introversão ou extroversão de uma pessoa, tendências e características profissionais, padrões de relaccionamento entre casais, a idade em que ocorreu um trauma e como esse trauma pode estar causando ansiedade, sentimentos de inferioridade e depressão». Realmente fabuloso. Só falta dar a programação da TV e o horário dos autocarros.

Menciona também o Instituto Português da Microsemiótica Oftálmica. O nome promete. Talvez noutra semana...

1- Wikipedia, Iridologia
2- Bem tratar, Iridologia: diagnosticar através dos olhos
3- Stephen Barrett, Iridology Is Nonsense
4- Ver, por exemplo, na Wikipedia: olho esquerdo, olho direito.
5- API (não parece dar para ligar directamente às páginas, por isso sigam “Cursos” e “Saber mais” no da iridologia, ou logo o link “Iridologia”).

sexta-feira, junho 11, 2010

Miscelânea criacionista: ciência infantil.

Os miúdos gostam de perguntar tudo acerca de tudo. E é fácil satisfazer a sua curiosidade com histórias simples, à medida da sua paciência. Mas há um limite para o que se pode simplificar sem tornar falsa a explicação. Que o cacto tem picos para se proteger dos animais é fácil de perceber, mas está errado. O cacto não faz crescer picos de propósito nem lhos deram pensando na necessidade eventual de dissuadir alguma dentada. A explicação correcta é mais complicada. Os cactos herdaram essa característica dos seus pais, e estes dos seus avós. Ao longo de muitas gerações os cactos com menos picos levaram mais dentadas e deixaram menos filhos, e as características de cada cacto de agora foram moldadas pelo que aconteceu às populações de cactos que o precederam.

Por feitio ou deformação profissional custa-me aldrabar as explicações. Por isso infligi aos meus filhos respostas que crianças com dois ou três anos não tinham paciência para ouvir, e muitas vezes me viraram as coisas a meio e foram brincar. Ainda hoje, com nove anos, se queixam às vezes que me “ponho com filosofias”. Mas se bem que os tenha privado da falsa sensação de ser fácil perceber tudo, julgo que lhes ensinei algo mais valioso. Que algumas coisas exigem mais esforço e atenção aos detalhes para as podermos compreender. É uma lição que os criacionistas nunca aprenderam, continuando convencidos de que tudo, dos seres vivos à origem do universo, se pode explicar com histórias da carochinha.

Dois artigos recentes na Science (1,2) relatam a sequenciação parcial e análise do genoma de três neandertais. Dois morreram há 44,500 anos e o outro há 38,100 anos, onde é agora a Croácia. De umas pitadas de osso desfeito conseguiram extrair e amplificar fragmentos de ADN, sequenciá-los e identificar mais de quatro mil milhões de bases de ADN de Neandertal, distinguindo destes fragmentos contaminantes humanos e bacterianos.

Para obter o esboço do genoma de Neandertal compararam estes fragmentos com genomas de humanos modernos e de chimpanzé, descobrindo a que partes correspondia cada pedaço de ADN de Neandertal. Como este proveio apenas de três indivíduos, e estava muito degradado, não era possível inferir muito acerca dos polimorfismos* genéticos nos neandertais. Mas estes investigadores fizeram uma comparação engenhosa. Foram ver nas populações modernas, das quais temos muitos dados, quais as variantes idênticas às sequências que encontraram nos neandertais. O resultado curioso é que 1% a 4% dos genes em populações de humanos fora de África têm variantes de Neandertal que as populações em África não têm. Que haja destas variantes em populações modernas não é estranho, pois temos todos ancestrais comuns com os neandertais. Tanto os africanos como os restantes humanos têm variantes neandertais dos seus genes. Mas é significativo que haja mais destes genes de neandertal em populações fora de África porque, pelos modelos evolutivos que temos, isto sugere que houve cruzamentos entre sapiens sapiens e sapiens neandertalensis, já na Europa e Ásia, muito depois da separação inicial destas linhagens.

A sequenciação de ADN de Neandertal dá muita informação e levanta novas questões. A transferência de genes parece ter sido só dos neandertais para os humanos modernos, o que é de esperar se as populações dos humanos modernos estavam a crescer e as dos neandertais a diminuir. Mas como o ADN foi extraído de indivíduos duma região e tempo em que não teriam contacto com humanos modernos, o resultado pode não ser representativo. Também permitiu encontrar 78 proteínas de humanos modernos para as quais já não existem variantes neandertais, sugerindo que entre estas se encontram factores determinantes das características que distinguem o homo sapiens moderno deste primo-avô extinto. E ajudou a explicar a origem de famílias antigas de genes presentes exclusivamente em populações humanas fora de África. Como os humanos modernos descendem de antepassados África há cerca de cem mil anos, era estranho haver famílias de genes com raízes mais antigas e que não existem em populações africanas. Agora sabemos que algumas destas famílias vieram dos neandertais.

O Marcos Sabino reduz isto a «Afinal, criacionistas tinham razão […] Estudo publicado na Science afirma que os homens modernos tiveram relações sexuais com os chamados neandertais [...]. Não é nada que os criacionistas já não venham a dizer ao tempo.»(3) Como é frequente nas simplificações infantis, está muito longe da verdade. Os criacionistas não tinham razão porque não têm razões para o que defendem. Acreditam pela fé, não por razões, e só acertam em alguma coisa como um relógio parado quando calha ser aquela hora. Além disso, este estudo diz muita coisa que os criacionistas não só nunca disseram como nem sequer imaginaram. As perguntas que levanta, os detalhes que fornece e as hipóteses que permite testar vão muito além de “homens modernos tiveram relações sexuais com neandertais”.

Mais importante ainda, se assumirmos que os seres humanos foram criados por magia por um ser omnipotente o facto de populações fora de África partilharem mais variantes genéticas com os neandertais não permite inferir absolutamente nada. Só com um modelo evolutivo é que esta comparação genética permite tirar conclusões acerca de quem teve relações sexuais com quem, dezenas de milhares de anos antes do universo dos criacionistas ter sequer surgido...

* Os indivíduos de uma população não são todos geneticamente iguais, e muitas partes do genoma existem na população em várias variantes distintas.

1- Green et. al., A draft sequence of the Neandertal genome.
2- Burbano et. al. Targeted investigation of the Neandertal genome by array-based sequence capture
3- Marcos Sabino, Afinal, criacionistas tinham razão… neandertais são tão humanos como eu e tu que até tiveram relações sexuais com os nossos antepassados
E ver também os posts do Carl Zimmer, John Hawks e P.Z. Myers.

Editado a 12-6 para corrigir um acento de África (obrigado ao Zarolho) e uns "lhes" que estavam mal (obrigado ao Vicente).

quarta-feira, junho 09, 2010

Boa pergunta...



Obrigado ao Pedro Amaral Couto pelo link.

terça-feira, junho 08, 2010

A diferença é ser treta.

Não concordo que o Estado gaste dinheiro a contratar padres para os hospitais, a subsidiar a vinda do Papa ou a pagar professores de religião nas escolas públicas. Mas quando digo isto muitos apontam que o Estado também gasta dinheiro em futebol, cinema e música. Se as pessoas gostam de padres e missas, dizem-me, então o Estado deve investir nisso também.

Não me parece. Admito que preferia menos futebol e mais programas de ciência. Ou de ilusionismo. Ou de praticamente qualquer outra coisa, que o futebol é um bocado seca. E acho que gastar oitocentos mil euros em concertos do Tony Carreira (1) é pior que deitar dinheiro ao lixo. Do lixo sempre podia ir parar a quem tivesse mais necessitado. Mas nestes casos a minha opinião é meramente subjectiva. Objectivamente, a mestria do drible ou da música pirosa é tão legítima como a da astronomia ou dos truques com cartas. Sendo o critério apenas a preferência pessoal, só posso exigir que o Estado não descure ninguém e tenho de aceitar que a fatia maior seja ao gosto da maioria.

Mas artistas e desportistas, como o Tony Carreira, o Cristiano Ronaldo e o Luís de Matos, fazem algo fundamentalmente diferente do que faz a Maia, a Alexandra Solnado e aquela amiga da Júlia Pinheiro que fala em inglês com mortos portugueses. O Tony Carreira pode fazer playback, o Ronaldo fingir que levou uma canelada e o Luís de Matos esconder uma data de coisas na manga, mas toda a gente sabe que é assim. Faz parte do espectáculo e sabê-lo não tira o prazer de os ver actuar. Em contraste, só gosta da Maia, dos livros da Alexandra Solnado ou do pessoal que fala com os mortos quem enfiar o barrete e julgar que aquilo é mesmo verdade. Quem sabe que é tudo inventado não acha piada nenhuma.

E nessas coisas o Estado não deve participar. Não digo que o proíba. Se a TVI quer dar programas de gente que fala com os mortos, que se lixe. Mas astrólogos na RTP1, pagos dos nossos impostos, não está certo. Porque o que leva as pessoas a ver a Cristina Candeias a prognosticar isto e aquilo é a convicção de que ela consegue mesmo ver o futuro na posição dos planetas. E disso não há quaisquer evidências. Nem é preciso provar a negativa, que a Cristina Candeias não prevê o futuro. Basta não haver nada que justifique assumir que aquilo funciona, porque o Estado não deve contribuir para que convençam as pessoas de coisas sem fundamento.

Foi este o problema da missa na Praça do Comércio. Pode haver quem goste de ver o Ratzinger a actuar de vestido branco e sapatinhos encarnados. Eu não acho piada, mas gostos não se discutem. O problema é que a maior parte das pessoas que lá esteve só quis assistir ao espectáculo porque estava convencida que o Joseph Ratzinger é o representante oficial do ser omnipotente que criou o universo, que com um gesto do Joseph Ratzinger esse ser omnipotente abençoa a multidão e que com umas palavras do Joseph Ratzinger altera a substância da hóstia, que deixa de ser água e farinha para se tornar o corpo de um carpinteiro que morreu há dois mil anos (mas, felizmente, sem alterar o sabor). Este espectáculo só pode ser apreciado por quem se convencer de muita coisa que as evidências não justificam.

A assistência “espiritual” nos hospitais e o ensino religioso nas escolas públicas sofrem do mesmo problema. Nestes casos não podemos considerar apenas as preferências das pessoas porque esses juízos de valor que fazem assentam em informação incorrecta ou em premissas infundadas. Mesmo que muita gente goste da Alexandra Solnado não se deve financiar do erário as suas conversas com Jesus. Nem as consultas do professor Mamadu, os prognósticos do Paulo Cardoso, a transubstanciação da hóstia ou o ensino de rezas a pedir favores menino Jesus.

1- I, Tesourinhos das adjudicações directas

segunda-feira, junho 07, 2010

Zangaram-se as comadres.

A ACAPOR demitiu-se do MAPiNET, o “movimento cívico” fundado por associações de empresas para combater a pirataria na Internet:

«Como estão recordados, o MAPiNET nasceu no seio dos clubes de vídeo e de um célebre almoço em Corroios mas, infelizmente, à medida que a associação foi crescendo as prioridades, as necessidades e a velocidade de actuação foi fugindo aos interesses daqueles que realmente precisam de um combate à pirataria sério e eficaz. Os clubes de vídeo, retalhistas que vivem exclusivamente das suas vendas e dos seus alugueres, não têm tempo para levar a cabo conversas e negociações infindáveis com aqueles que só têm a perder com o combate à pirataria.»(1)

Este caso sórdido ilustra bem o que tenho defendido aqui. A partilha de bytes ameaça apenas aqueles intermediários que deixaram de ter utilidade. Como os clubes de vídeo, que não criam nada nem prestam um serviço que interesse. Alugam rodelas de plástico. Servem de prateleira, um sítio onde guardar os filmes até que alguém os queira ver. Obviamente, com ligações de banda larga, a prateleira e as rodelas de plástico de pouco servem. Para descarregar um filme da Internet não é preciso sair de casa, o filme pode ser visto no computador, no iPhone, na PSP ou na televisão e não vem com anúncios nem com o Ratatuille a chamar-nos parvos. Só mesmo proibindo uma data de coisas é que convencem as pessoas a ir à loja deles deles pagar para que lhes emprestem um DVD.

Em vez de se lamuriar e exigir proibições, a ACAPOR devia vender alguma coisa que fosse pelo menos tão boa quanto o que há de graça. Como se tem feito nos cinemas, onde o volume de vendas duplicou entre 1995 e 2009 e a inovação tecnológica faz bater recordes de bilheteira todos os anos (2). Porque o flagelo da pirataria na Internet só afecta quem tenta vender aquilo que não vale a pena comprar.

1- ACAPOR, ACAPOR demite-se da Direcção do MAPiNET e abandona a associação
2- The Numbers, US Movie Market Summary 1995 to 2010

domingo, junho 06, 2010

Treta da semana: com esses meninos não brinco.

Hoje tenho pouco tempo, por isso vai uma rapidinha. Recebi por email a notícia que o Conselho Pontífice para a Cultura vai encetar um “diálogo aberto” entre o Vaticano e os ateus, «criando uma fundação para focar as relações com ateus e agnósticos» (1). À partida a ideia é boa. Quando duas partes discordam faz falta uma conversa franca onde cada uma possa apontar as premissas que rejeita, justificar as suas de forma que a outra aceite e esteja disposta a mudar a sua posição se a justificação contrária for melhor.

Mas o Vaticano tem uma ideia diferente de “diálogo aberto”. Mais habituados à missa que ao debate, querem deixar a conclusão assente logo de início. A iniciativa responde ao desafio do Papa para que a Igreja Católica venha «renovar o diálogo com homens e mulheres que não acreditam mas que querem aproximar-se de Deus». Parece-me que será uma amostra pequena e tendenciosa do universo de ateus e agnósticos. Além disso, o objectivo não é determinar quem tem razão ou sequer encontrar pontos consensuais. É «ajudar as pessoas a sair de uma concepção pobre da crença e promover a compreensão que a teologia tem dignidade científica». Começar por dizer “diálogo aberto” e chegar a isto faz-me lembrar as velhinhas com a revista Despertai debaixo do braço que começam por perguntar “Jovem, gosta de ler?”. O que se segue está para o gosto pela leitura como esta iniciativa está para o diálogo aberto.

Para reforçar que isto é só para quem quer ouvir o sermão e não para quem quer debater, deixam claro que só estão interessados no «ateísmo ou agnosticismo nobre, não no polémico», e que não querem debater com «ateus como [Piergiorgio] Odifreddi na Itália, [Michel] Onfray na França, [Christopher] Hitchens e [Richard] Dawkins». Querem um diálogo aberto mas sem polémica.

Talvez seja um problema de generation gap. O topo da hierarquia da Igreja Católica tem apenas homens do tempo em que se levava o catolicismo tão a sério que ninguém apontava estes disparates. Mas hoje, por muito que lhes custe a admitir, as coisas mudaram. Se organizam um “diálogo aberto” só com fantoches, «para criar uma rede de pessoas agnósticas ou ateístas que aceitem o diálogo e entrar como membros na fundação e, portanto, no nosso dicastério», vão ser é gozados.

Se querem dialogar com os ateus então organizem os debates com aqueles que os ateus consideram resumir melhor a sua posição. Se só escolherem os “ateus nobres” que querem fazer parte da Igreja Católica e aproximar-se desse deus o diálogo vai ser notável apenas pelo caricato da iniciativa.

1- Catholic News Agency, Atheists invited to join Vatican Council for outreach initiative
2- The Independent, Vatican reaches out to atheists – but not you, Richard Dawkins

sábado, junho 05, 2010

O pirata e o pescador.

Quando eram copiados à mão os livros eram raros. Gutenberg facilitou a cópia, muita gente passou a ter acesso a material impresso e muitos governantes começaram a preocupar-se com o que os governados podiam ler. Por isso criaram guildas de editores, concederam direitos exclusivos e policiaram as cópias. E não era para menos. A impressora passou a ser uma arma importante em qualquer revolução.

Mas muitas sociedades foram ficando mais democráticas. Nem todas, nem totalmente, e não sem alguns retrocessos, mas em muitas percebeu-se que a censura era mau negócio. O sistema de controlo foi então adaptado para tornar ideias e informação algo que pudesse ter dono. Para incentivar a inovação, diziam, mas o efeito não foi tão claro. Quando os EUA declararam independência deixaram de respeitar as patentes e os direitos de cópia dos britânicos, acelerando o desenvolvimento e industrialização da nova nação. Mas no final do século XIX, já preocupados com o uso que outros davam às suas inovações, assinaram o tratado de Berne. A indústria cinematográfica também começou por fugir às patentes do Edison mas, mais tarde, pressionou que se acrescentasse à lei o “trabalho por contrato”, considerando que uma empresa é a autora legal das obras criadas pelos empregados*. E hoje esta indústria defende o controlo da informação com tal afinco que parece ter regressado à censura original**.

Apesar de, ao contrário do que se esperaria pela tese do incentivo, a exigência de direitos exclusivos e de propriedade intelectual muitas vezes só surgir depois da inovação, eventualmente as empresas querem uma arma para combater a inovação dos concorrentes e essa pressão sistemática tem inchado os monopólios. Aumentou a sua duração, o seu âmbito e a sua interferência na vida privada. Os direitos de cópia sobre material impresso passaram a cobrir discos, filmes, transmissões de rádio e ficheiros de computador. As patentes hoje incluem ADN e comprar coisas com um click (1). E o “incentivo” à criação de obras estende-se por cinquenta anos após a morte do autor, período durante o qual não se espera grande criatividade.

No tempo de Gutenberg havia poucos livros mas muito peixe no mar. O peixe no mar era até metáfora para qualquer coisa inesgotável. Já não é. Com o avanço da tecnologia fomos pescando cada vez mais e ameaçando esgotar o peixe do mar. No final da década de 1960 chegou-se a pescar, por ano, oitocentas mil toneladas de bacalhau no noroeste do Atlântico. No início da década de 1990 a população de bacalhau tinha colapsado nessa região (2). E como o bacalhau demora entre 4 a 8 anos a atingir a maturidade, mesmo ao fim de vinte anos ainda está muito longe de recuperar.

Gutenberg tem pouco que ver com o bacalhau, julgo eu, mas há um contraste interessante entre a pesca e a cópia. Enquanto a tecnologia foi tornando a informação cada vez mais abundante, mais fácil de copiar e distribuir, mais a lei tentou restringir o uso dessa tecnologia. Hoje querem que a lei torne tão difícil copiar um ficheiro quanto era copiar um livro no tempo de Gutenberg, quando é algo trivial e que só torna a informação mais acessível.

Em contraste, a pesca descontrolada ameaça um recurso finito e cada vez mais escasso, mas a lei pouco faz. A legislação internacional tem mais buracos que as redes de pesca (3,4), é muitas vezes descurada e, mesmo no papel, as medidas tendem a ser insuficientes. Parece que anda tudo mais preocupado com a possibilidade de alguém ouvir música de graça do que com o colapso das reservas de peixe, um resultado inevitável se deixarmos as coisas andar como estão.

Este contraste seria estranho se a lei fosse feita para benefício da maioria. Mas tanto a propriedade intelectual como a regulação das pescas são assuntos tratados entre países, fora do processo legislativo normal, e que acabam por ser guiados pelos interesses imediatos daqueles cujo negócio é pegar em algo que já existe e cobrá-lo a quem o quiser. Se for algo que todos podem ter querem proibir o acesso para aumentar a cobrança. Se for algo em risco de se esgotar querem apanhar o máximo, e o mais depressa possível, antes que outro o esgote.

Mas é irónico que o pirata seja aquele que multiplica a informação e a torna mais acessível, porque quando o faz viola a lei, mas não seja o outro que escraviza a lei para roubar o que é de todos.

*Na legislação dos EUA é mesmo assim porque a Constituição só permite a atribuição de direitos iniciais aos autores das obras. Por isso a lei tem de dizer que o autor da obra é a empresa em vez da pessoa que a criou. O que demonstra que na lei, com um pouco de imaginação tudo se consegue. Wikipedia, Work for hire.

** Por exemplo, o resultado de um processo contra uma comunidade online na Holanda, onde se determinou ser ilegal sequer dizer onde se pode encontrar filmes para descarregar (1) Publishing Locations Of Pirate Movies Is The Same As Hosting Them (TorrentFreak)

1- Wikipedia, 1 Click
2- Wikipedia, Overfishing
3- BBC, Ports 'failing to halt illegal fishing'
4- BBC, Hooking the high seas' fishing 'pirates'

sexta-feira, junho 04, 2010

Esta foi sorte...

Hoje reparei no email diário do Sitemeter que estava a menos de 100 visitas de chegar às quinhentas mil. Fui então à página do contador e vi que estava no 499,999. Carreguei umas vezes no refresh e, pim:

Wheeehee!

Segundo o IP, o visitante número 500,000 está na Bélgica e apareceu aqui às 13:18h. Se quiser, pode receber o prémio acusando-se nos comentários (é uma assinatura gratuita deste blog).

Já agora, o primeiro post que escrevi foi no dia 4 de Junho de 2006. Faz quatro anos hoje. E esta, hein?

Obrigado a todos pela agradável conversa.

quarta-feira, junho 02, 2010

Bondade.

Os cristãos sabem que Jesus é bondoso porque conhecem os seus actos. Ou, mais correctamente, porque leram relatos escritos por quem presumem ter ouvido contar o que Jesus tinha feito. Mas na fé isso é o mesmo. Até se testemunha o que nunca se viu. E não são todos os actos. Curar leprosos e ressuscitar Lázaro está bem mas transformar água em vinho é só um truque de dúbio valor moral. E mandar os demónios do gadareno para dentro de dois mil porcos que depois se faz afogar (1) é mais a superstição cruel de um ignorante do que a bondade sublime de um ser omnisciente.

Por isso os cristãos têm de interpretar, contextualizar, relativizar os relatos quanto à cultura em que Jesus se encontrava, e à cultura de quem os escreveu, e escolher cuidadosamente o que vão apontar como bom. A fiabilidade do método é discutível mas deixa claro que não se pode concluir que alguém é bondoso sem ter, primeiro, uma ideia de como age quem é bondoso e, em segundo lugar, indícios que é mesmo assim que esse alguém age. Nem que seja preciso seleccionar uns exemplos bons e ignorar os muitos exemplos maus.

O problema de concluir que Deus é bondoso, o alter-ego extra-corpóreo de Jesus, é que desse não temos nada que permita inferir tal coisa. Os exemplos do antigo testamento sugerem muito pouca bondade, e o sofrimento desnecessário dos inocentes contradiz cabalmente a hipótese. Não é que seja a razão mais forte para rejeitar a existência de deuses, até porque só contradiz a hipótese de haver deuses benevolentes. Não diz nada acerca de deuses indiferentes ou com sentido de humor doentio. A razão principal para rejeitar a existência de qualquer deus é todas as religiões, sem excepção, serem exactamente o que se espera de fantasias levadas demasiado a sério. Fé, exigências de respeitinho e acusações de intolerância quando alguém discorda, maiúsculas a torto e a direito como se a ortografia desse razão ao que a semântica refuta, e nada de evidências. Como qualquer crente religioso concorda para as religiões que não a dele.

Mas o problema do mal é importante porque mostra como defender o absurdo face a evidências contraditórias nos pode custar os valores mais elementares. Se está uma criança a afogar-se à minha frente e me basta puxá-la para a salvar não tem nada de bondoso ficar a olhar, cheio de pena mas sem intervir enquanto ela morre. Isto não é um dilema moral complicado. É um exemplo claro em que não ajudar é uma falha carácter e não um sinal de bondade.

Mas como esta conclusão contradiz a hipótese do tal deus omnipotente e infinitamente bondoso, que se esperaria ver salvar muitas crianças e prevenir uma data de outros males, os teólogos têm de rejeitar o óbvio para defender o injustificável.

Escreve o Alfredo Dinis que o problema do mal não permite tirar conclusões acerca desse deus porque «a questão da prova é bem mais complexa do que se pensa à primeira vista» (2). Não é uma questão de “prova” nem tem nada de complexo. Se um tipo fica a ver uma criança a afogar-se quando a pode salvar é um facínora. Não é preciso uma prova complexa para concluir que essa pessoa nem sequer é decente, quanto mais infinitamente benevolente.

E o Alfredo continua, deslizando o problema por um declive de perguntas: «O planeta está cheio de seres humanos que correm permanentemente o risco de sofrer e de morrer. Deveria Deus intervir sempre ou só em alguns casos? Se só em alguns, em quais? Deveria Deus impedir as pessoas de morrerem, tornando-as imortais? […] qualquer um de nós faria tudo para salvar as crianças. Mas se fosse um adulto, não faríamos tudo igualmente? E se fosse um adulto criminoso, um serial killer fugido à polícia?»

A ideia parece ser que não sabemos quando um deus benevolente deveria intervir. Mas este é o ponto crucial da questão. Se sabemos o que é a bondade então sabemos que há casos em que se deve intervir por bondade. Não para ajudar o assassino mas para socorrer a vítima. Não para proibir que andem de mota mas pelo menos para chamar o 112 se alguém se estampa. Se um deus bondoso existe e a nossa noção de bondade está correcta abundam os exemplos em que se esperaria que tivesse intervido e nunca interveio. Não para resolver todos os problemas mas para socorrer alguns que claramente o mereciam.

Para defender a sua hipótese acerca desse deus o Alfredo alega, na prática, que não sabemos o que é a bondade. Que nem conseguimos distinguir o auxílio à criança do auxílio ao assassino. Mas é desumano e perigoso ignorar a nossa empatia e intuição, que gritam o contrário. É um passo necessário para criar bombistas, inquisidores e torturadores. E é contraditório, porque se não se consegue identificar as situações em que um ser bondoso deve agir também não se pode determinar quem é bondoso. Nem este deus, nem o seu avatar, nem santos nem ninguém.

1- Ver, e.g., Lucas 8: 26-37. De notar que os gadarenos não ficaram muito satisfeitos por ficar assim sem os dois mil porcos.
2- Comentários em A apresentação na FMUP.