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domingo, agosto 03, 2014

Treta da semana (passada): dualismo e materialismo.

A propósito do post sobre o espiritismo, de há umas semanas, o leitor Cláudio Filipe comentou recentemente que eu revelo «uma total ignorância da relação entre a mente e o cérebro.» Passou então a elucidar-me para que eu só fique parcialmente ignorante, esforço que agradeço desde já:

«O problema da relação entre a mente e o cérebro é um problema muito antigo e há séculos que é abordado por filósofos e cientistas. Para simplificar, há duas posições: a posição que diz que a mente é um simples produto do cérebro que é a posição materialista também chamada de produtiva (porque é o cérebro que produz os pensamentos) e a posição que diz que a mente, embora estreitamente relacionada com o cérebro durante a vida do indivíduo, é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio. Diz-se que é a hipótese transmissiva, na medida em que o cérebro não produz os pensamentos, apenas os transmite.»

Depois de enunciar vários nomes de pessoas que favorecem a segunda hipótese, alega que esta explica perfeitamente o efeito de drogas, Alzheimer e lesões cerebrais porque «Se nós tivermos um televisor danificado, as imagens que vamos ver vão sofrer de forma correspondente. […] Mas não é o nosso televisor que produz os programas, ele apenas os transmite. Da mesma forma, o nosso cérebro pode ser apenas um transmissor e não o produtor dos pensamentos.» Se bem que esta hipótese seja atraente pela possibilidade de haver uma mente independente do cérebro e potencialmente livre do triste destino da matéria orgânica, as evidências são-lhe contrárias. Se nós tivermos danos no nervo óptico ou na retina podemos ver pior ou deixar de ver. Isto é o que se espera de estruturas que transmitem a informação. Mas danos no lobo occipital não só eliminam a capacidade de ver cores como também podem fazer perder a capacidade de imaginar cores. Não se trata apenas de olhar para o tomate e vê-lo de cor cinzenta. Trata-se da situação aflitiva de se lembrar que tem cor mas já nem sequer conseguir visualizar mentalmente o vermelho do tomate (1). Outro exemplo de evidências contra a “hipótese transmissiva” é o que acontece depois de uma comisurotomia do corpo caloso, um tratamento drástico para casos extremos de epilepsia que consiste em cortar as fibras nervosas que unem os dois hemisférios do cérebro. Mostrando ao paciente a imagem de um objecto no lado esquerdo do seu campo visual, o paciente não consegue dizer o nome do objecto mas consegue explicar o que é gesticulando com a mão esquerda, desenhá-lo com a mão esquerda ou encontrá-lo pelo tacto com a mão esquerda. Mas só com a mão esquerda. Se a imagem do objecto for apresentada do lado direito do campo visual o paciente já consegue dizer o nome do objecto e encontrá-lo pelo tacto com a mão direita, mas agora não consegue fazê-lo com a mão esquerda. Não se trata de um mero problema de transmissão. Todo o raciocínio está separado nos dois hemisférios e, se bem que só um deles controla a fala, cada um consegue identificar o objecto, perceber o que se pede para fazer e, dentro das suas capacidades, fazê-lo. Exactamente como se cortar o cérebro ao meio dividisse a mente em duas também.

A neuropsicologia já encontrou evidências suficientes para enterrar de vez esta ideia de que a mente é algo independente, com existência própria. Tudo indica que a mente é simplesmente algo que o sistema nervoso faz, tal como a circulação do sangue é algo feito pelo coração e vasos sanguíneos e a respiração é feita pelos pulmões, sangue e células, sem que circulação, respiração ou mente sejam coisas com existência própria. É por isso irónico que digam que esta é que é uma visão materialista e redutora da mente.

O dualismo de substância, a tal hipótese de que a mente «é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio», é uma hipótese inútil porque, no fundo, limita-se a dizer que além da “coisa material” há também uma “coisa pensante”. É um análogo do princípio dormitivo de Moliére mas com o defeito de nem ser a gozar. A hipótese de que a mente é um processo em vez de uma coisa, tal como são a digestão e a corrida, além de ser muito mais útil é menos materialista e menos redutora. É mais útil porque um processo é algo que podemos tentar compreender, e a neuropsicologia avançou mais nesta matéria em poucas décadas do que as teologias todas em vários milénios. É menos materialista porque a tal “substância mental” que Descartes postulou é, no fundo, apenas um tipo diferente de matéria. Não ocupa espaço e pensa mas, de resto, é “coisa” como a matéria, partilhando com esta os atributos principais de persistência e existência autónoma. A hipótese da mente como um processo admite que, além das “coisas”, importa também a sua organização e interacção dinâmica, aspectos que não são materiais em si. E é menos redutora porque permite modelar muito mais detalhes do que simplesmente dizer que temos pensamentos porque a nossa mente é uma substância que pensa, o que é tão redutor que acaba por ser ridículo.

1- Wikipedia, Cerebral achromatopsia, em particular o famoso caso do pintor.
2- Nature News, The split brain: A tale of two halves.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

Biiiip!

Graças a um comentário do sxzoeyjbrhg, no post anterior, fui ter ao blog do Richard Wiseman, onde encontrei este vídeo. É uma boa ilustração da diferença entre objectivo e subjectivo. Essa pouca vergonha que vão ouvir está só na vossa mente. Perversos.



Outro exemplo engraçado de como, dando um pouco de liberdade à imaginação da audiência, se corrompe até as coisas mais inocentes.



Repetindo a questão do Wiseman, será que depois de censuradas estas cenas deixam de ser apropriadas para crianças?

sexta-feira, outubro 31, 2008

Como o conhecimento a priori é empírico.

Obrigado a todos que têm participado nesta conversa que me tem ajudado muito a perceber este problema. Deu-me uma ideia mais clara do que pode ser o a priori e até, ao contrário do que eu tinha defendido anteriormente, de como salvar a noção de conhecimento a priori.

Uma verdade a priori será qualquer estado acessível a pela aplicação de regras de transformação preestabelecidas e partindo de um estado inicial. Aqui uso “verdade” num sentido lato que não exige consciência nem a interpretação desses estados como proposições. Desta forma, se programarmos um computador para seguir certas regras a partir de um estado inicial todos os estados resultantes da aplicação dessas regras serão verdades a priori naquele contexto*. A noção de verdade aqui é simplesmente a de coerência com o estado inicial e com as regras de transformação, por isso uma verdade a priori é sempre relativa ao seu contexto. O conhecimento a priori é apenas o conhecimento de verdades a priori. Conhecendo as regras de transformação da álgebra e partindo do estado inicial de 2+2 eu posso conhecer a verdade a priori, neste contexto, que o resultado é igual a quatro porque essa conclusão segue do estado inicial pela aplicação das regras.

Uma consequência importante é que, nesta definição, o a priori é uma categoria ontológica e não epistemológica como o empírico. Assim percebe-se como saber que 2+2=4 é conhecimento a priori mesmo que se descubra que 2+2=4 experimentando com pedras, dedos e palitos e extrapolando daí uma regra geral, empiricamente. É a priori não pela forma como foi conhecido mas por poder resultar de se aplicar certas regras partindo de um estado inicial. Podemos então falar de objectos a priori, como por exemplo todas as jogadas possíveis do Xadrez, mas não de objectos empíricos pois empírica é a forma de conhecer esses objectos e não propriedade dos objectos em si. Posso conhecer as jogadas do Xadrez construindo peças e um tabuleiro e experimentando seguir as regras a ver o que dá.

A noção de a priori como categoria epistemológica, aquilo que se descobre «pensando somente», faria sentido se a nossa mente fosse um homúnculo algures dentro da cabeça assistindo ao que os nossos sentidos mostram e pensando acerca disso. Fechando o teatro cartesiano o homúnculo continuaria a pensar e a obter conhecimento independente da experiência, que seria definida como o que se passa no teatro e não no homúnculo. Mas esta ideia é errada. A nossa mente é gerada por redes de neurónios interligadas do cérebro aos dedos dos pés. Os neurónios interagem, as redes interagem e a consciência emerge como o borbulhar de sais de frutos. Não há uma res cogitans independente a pensar a priori nem uma divisão entre o sentir e o pensar. Está tudo ligado. Mesmo sem sentidos sentimos recordações, sentimos que somos, sentimos que pensamos. A consciência é empírica, e se o conhecimento exige consciência então o conhecimento será sempre empírico. Mesmo que a coisa conhecida seja tal que a sua verdade se possa justificar a priori, seguindo regras a partir de um estado inicial.

Outro aspecto importante é que a priori é a qualidade de ser resultado da aplicação de transformações especificadas a partir de um estado inicial, por isso nem o estado inicial nem as regras de transformação são a priori no contexto do seu sistema. Daí que não se possa fazer matemática ou lógica a priori. Só depois de feitas, depois de se especificar as regras e os axiomas, é que os resultados serão a priori, e até se pode implementar os sistemas em computadores que apliquem as regras mecanicamente.

Em suma, parece-me que o problema era confundir a forma de conhecer com a propriedade de certos objectos de resultar da aplicação de regras. 2+2=4 é a priori porque é o resultado de aplicar certas regras a partir de um certo estado inicial. Mas isto não tem nada que ver com a forma como conhecemos que 2+2=4, nem com o que nos levou a inventar essas regras ou a escolher essas em vez de outras. Quando dizemos “conhecimento a priori” estamos a qualificar a coisa conhecida e não a forma de a conhecer. A forma como conhecemos os resultados e inventamos e escolhemos regras e axiomas é sempre empírica.

PS: A palestra Higher Order Truths about Chmess do Daniel Dennett sugeriu-me algo semelhante, apesar de não ser directamente sobre isto. Não só pelos avisos aos filósofos mas pela distinção entre as verdades a priori e o nosso conhecimento delas.

* Aqui devia distinguir os processos físicos do aspecto conceptual, mas isso dava mais uma carrada de posts e se calhar é impossível. Ao que tudo indica, o conceptual é um tipo de processo físico que ocorre no nosso cérebro.

quarta-feira, outubro 29, 2008

Modelos e experiência.

O Cordeiro Lobo apontou o que me parece ser um problema importante nesta discussão que tenho tido com o Desidério acerca do conhecimento a priori:

«Um objecto não empírico, em que o modelo é o próprio objecto, por exemplo, um qualquer objecto matemático ou relacional, exige as suas regras próprias de experimentação para aquilatar da sua coerência.
A confusão do Krippahl parece-me resultar de que ele concebe a realidade apenas como realidade empírica, sem se aperceber que o próprio pensado, o conhecimento, faz parte da realidade e não é objecto empírico.»


Quando imaginamos um cavalo temos na mente um modelo do cavalo e não um cavalo. E quando imaginamos um plano infinito também não nos cresce um plano infinito na mente. Não é verdade que os objectos matemáticos sejam os modelos mentais que temos deles nem que estes modelos mentais sejam independentes da experiência. São construídos com base na nossa experiência. Imaginamos um plano infinito imaginando algo plano e acrescentando o equivalente mental de reticências nos extremos. Duvido que alguém consiga imaginar um plano mesmo infinito.

E não é por inferências abstractas que concluímos que temos esses modelos na nossa mente ou que são representações de algo. Sentimo-lo, não o deduzimos de alguns princípios fundamentais. É também por experiência que vamos aperfeiçoando esses modelos. Não se aprende matemática num lampejo de raciocínio a priori. Aprende-se com momentos de confusão, erros, exercícios, exemplos, correcções e assim por diante. Empiricamente.

E nem os génios lá chegam sem depender da experiência a cada passo. Não foi coincidência que a geometria de Euclides se fazia com compassos e fios esticados, ou que os axiomas e demonstrações eram obviamente extrapolados da experiência de desenhar figuras geométricas. A geometria analítica seguiu-se só dois mil anos depois porque foi preciso a experiência acumulada de muitos matemáticos até Descartes aprender e conceber os conceitos que precisava para fazer o que fez.

A confusão do conhecimento a priori parece dever-se a vestígios de platonismo. A divisão da realidade em empírica e não empírica, por exemplo. O que é empírico é o conhecimento, não a realidade. Schaeffer determinou as sequências de jogadas de damas que dão empate ou vitória pondo computadores a experimentar todas as possibilidades. Mas não faz sentido chamar “objecto empírico” ao conjunto das jogadas de damas. A noção que pensar é manipular Ideias no mítico mundo do a priori é outra nódoa platónica. Quando fazemos contas de lápis e papel o que acontece é que as redes neuronais no nosso cérebro reconhecem padrões e recordam algoritmos, somas e tabuadas. Em último caso recorremos à experimentação directa contando pelos dedos. O nosso processo de cálculo é uma sequência de tarefas de reconhecimento de padrões e assenta na nossa experiência. A matemática como raciocínio a priori é um relato romântico de uma realidade mais prosaica, e quem duvidar que verifique empiricamente quanto treino é preciso para se ser um matemático competente.

Não digo que o a priori seja um termo inútil. Designa as partes do processo de conhecimento que podem ser desligadas da experiência e, por isso, deixadas a cargo de máquinas, sistemas formais e assim por diante. Desde que inventámos a matemática que os nossos modelos ultrapassaram o nosso conhecimento, e agora com os computadores isso é cada vez mais evidente. Mas é a capacidade (ainda) misteriosa de criarmos modelos intencionais* que nos dá conhecimento. O que está nos computadores ou nos livros não é conhecimento se não for interpretado por quem os sinta como sendo modelos de algo. E a intencionalidade não se infere a priori. Tem que adquirir pela experiência. Empiricamente.

Se um dia os computadores forem capazes de perceber que os modelos que têm são acerca de algo então terão conhecimento. Mas apenas porque deixarão o a priori e passarão a experimentar.

*Este termo engana mas dá um jeitão. Em filosofia, intencionalidade é a propriedade de ser acerca de algo. O que normalmente chamamos de intenção é intencional, mas também o é a crença, o desejo, e uma data de coisas na nossa consciência ou linguagem que são acerca de outras coisas. Mais sobre isto na Wikipedia»

sexta-feira, maio 11, 2007

De livre vontade.

Temos vontade livre? A resposta é simples. Sim. A pergunta é que é complicada...

Para muitos a pergunta é acerca de uma vontade que é livre por não haver causa que a determine, seja neurónio, gene, educação ou o que for. Se há uma causa para que a vontade seja exercida desta forma, uma causa para este acto, escolha ou decisão, então dizem que não é livre porque é apenas consequência da causa. Assim, quem procura este tipo de vontade livre não aceita que a mente seja uma actividade do cérebro. Isso reduz a vontade a uma cadeia de causa e efeito e essa, dizem, não é livre.

Mas isto não faz sentido porque algo que ocorre sem causa não é vontade. É acaso. Um acto de vontade tem causas. São causas de um tipo especial, a que chamamos razões, mas são causas. Quando decido, de livre vontade, levar o guarda chuva é por causa de prever que vai chover, por causa de não me querer molhar, por causa de não poder ficar em casa. Esta vontade livre sem causas é um conceito incoerente e disparatado. Se me der de repente para andar com o guarda chuva sem que nada cause essa decisão não é um acto de vontade. É parvoíce.

Concordo que não é vontade livre levar o guarda chuva porque um neurónio disparou sem mais nem menos. Mas levar o guarda chuva por julgar que é a melhor opção é um exercício de vontade livre, mesmo que este juízo seja uma actividade dos neurónios, e mesmo que a escolha seja causada por esta actividade. É vontade livre porque o acto é causado por uma razão.

A vontade livre só faz sentido num acto racional. Um doido não tem vontade livre, por muito que seja imprevisível ou que faça coisas sem causa nenhuma. E só faz sentido ao serviço de um objectivo que não é escolhido livremente. Um ser livre de escolher tudo o que sente, pensa, tudo o que se lembra ou prefere, acaba por não ter vontade. A vontade é livre quando há alguma liberdade de agir, mas só é vontade se houver algo que a motive. É de vontade livre que escolho o pequeno almoço porque posso escolher e porque tenho fome. Sem essa motivação não há vontade.

Em suma, a vontade livre é a capacidade de seleccionar racionalmente possibilidades de acordo com a nossa motivação. E a motivação é nossa simplesmente por provir de nós. É a minha fome, a minha paixão, a minha preocupação com tanta treta que há por aí, mesmo sem uma liberdade metafísica de escolher se me preocupo ou se sinto fome.

Esta combinação de motivos e razões é compatível com uma mente biológica. Podia ser a alminha a fazer milagres, mas não precisamos disso. Nem precisamos que tudo o que o cérebro faz seja vontade livre. Um ataque epiléptico causa uma acção que não é razão, por isso esta acção não é por vontade livre. Mas se um pensamento é razão para agir e causa um acto então é um acto de vontade livre. Foi causado pelos neurónios, mas como parte da selecção consciente e racional de alternativas.

Esta vontade livre não só é coerente como é útil ao organismo. Ajuda a sobreviver e reproduzir. À alma imortal de nada serve. Isto mostra que a vontade livre não precisa surgir por milagre nem faz sentido como milagre. É um atributo daqueles que a evolução aproveita. Além de ser útil, há uma gama contínua de vontades e liberdades entre alguns organismos que vivem agora e os seus antepassados. A complexidade das motivações, a capacidade de processar informação, a própria racionalidade, são atributos quantitativos dos quais se pode ter mais ou menos. Um longo período de pequenos incrementos gerou algumas linhagens especialistas nisto. Gostamos de destacar a nossa ao ponto de presumir que somos únicos nisto e fundamentalmente diferentes, mas não é verdade.

O processo que nos gerou foi natural e gradual, por mecanismos conhecidos da evolução. Para explicar a nossa origem não precisamos da feitiçaria dos deuses nem de plantar almas nos nossos antepassados primatas.

sábado, maio 05, 2007

Mente e fisiologia, parte 5: Deus é Amor?

O melhor modelo da mente é materialista. Chamar alma ou espírito é disfarçar a ignorância com a troca de palavras. É a neurologia que descreve em detalhe aspectos da mente que antes nem suspeitávamos. A visão cega, por exemplo. Danos no córtex eliminam a percepção numa parte do campo visual. Mas apesar da cegueira nessa região o paciente consegue «adivinhar» que objectos lá estão porque a estrutura cerebral que identifica o objecto não foi danificada (1). São detalhes como este que o materialismo explica e as alternativas ignoram.

A conclusão: tudo o que somos é actividade da matéria. Físico, mental, emocional ou espiritual, vem tudo de órgãos que evoluíram por processos naturais. Pelas propriedades da matéria. Por aquilo que faz o Sol brilhar, que faz a chuva cair ou me faz digerir uma batata cozida. Não é acaso nem milagre. É física, química, biologia.

A melhor forma de compreender o amor é como parte da nossa evolução e destes processos naturais. E é revelador que o amor seja tão discriminatório. É difícil perder o amor pelos filhos, mas uma amizade só dura enquanto há um benefício recíproco, como um interesse comum ou colaboração. As diferentes formas de amar enquadram-se nas necessidades de um mamífero social inteligente: procurar parceiros, criar os filhos, e conviver em sociedade. Esta propensão para se apaixonar, fazer amigos, cuidar dos filhos, ou ajudar parentes próximos de nada serve a um deus omnipotente.

E o amor é involuntário. Não amamos quando, como, ou quem escolhemos. É mais um mecanismo que nos compele a agir, muitas vezes contra a vontade consciente. É absurdo que um ser omnipotente seja compelido, mas sem compulsão não é amor. Se Deus tem completa liberdade de escolher quando e como ama nunca saberá o que é amar. E se não tem essa liberdade não é Deus.

É claro que os crentes dirão que o amor de Deus é completamente diferente do nosso. Vão usar letras maiúsculas, chamar-lhe Amor Divino, e dizer que está para além do que podemos compreender. Mas então sejam honestos. Digam que Deus é X e que não fazem a mínima ideia do que estão a falar. O amor sabemos como é. E é coisa de humanos, não de deuses.

Finalmente, o ridículo de pensar que alguém criou este universo porque nos ama. Talvez se o universo fosse um pedaço de terra com uma lua e sol a andar à volta, e as estrelas luzinhas pintadas no céu. Mas não este universo. Oitenta mil milhões de galáxias. Mil biliões de estrelas. E só nesta parte que conseguimos ver...

E nada disto tem amor. O Sol liberta num segundo um milhão de vezes mais energia que a explosão de todas as armas nucleares do mundo. E sem se importar se causa chuvas ou secas, cancro ou bronzeado, se faz furacões ou plantas crescer. A Terra não se importa se sofremos ou prosperamos. A chuva não cai onde precisamos. Este universo é cem mil vezes mais velho que a humanidade. Nenhum planeta notou quando aparecemos. Nenhuma galáxia se importa com o que nos acontece. E nenhuma estrela vai dar pela nossa falta quando fundir o carbono e azoto de que somos feitos em elementos mais pesados.

Este universo não se importa. Não se preocupa. Não ama, não odeia, não perdoa nem vinga. Nem sente. Simplesmente é. Se existe deus, não é amor. É uma infinita indiferença.

1- Wikipedia, Blindsight

Série completa:
Mente e fisiologia, parte 1: o dualismo.
Mente e fisiologia, parte 2: Homúnculos.
Mente e fisiologia, parte 3: qualia.
Mente e fisiologia, parte 4: causas.

quarta-feira, maio 02, 2007

Mente e fisiologia, parte 4: causas.

Se rejeito o dualismo e assumo que isto tudo não é mera ilusão só me resta o materialismo. Existe matéria, é na matéria que está a mente, e volto ao problema de como é que a matéria pensa, e sente, e deseja. Vou deixar os detalhes para a neurologia e focar só um problema filosófico: se a neurologia revelar todos os mecanismos do sentir e do pensar o que vamos compreender com isso?

Parece trivial. Se sabemos tudo o que os neurónios fazem compreendemos as causas da mente. Mas não, porque temos problemas na percepção de causas. Especificamente, a tendência de ver causas onde não há e apenas ver como causa e efeito certos tipos de relação.

Vou começar pelo primeiro tomando como exemplo uma explicação do forno de microondas. A radiação agita rapidamente as moléculas e «esta agitação ao rubro causa uma tremenda fricção dentro dos alimentos e -- tal como esfregar as mão as faz aquecer – esta fricção produz calor» (1). É um disparate revelador. Revela tal apetência por causas que até aceitamos um relato causal que não explica nada. Afinal, como é que a fricção faz calor? A explicação correcta é que a agitação molecular e a temperatura são a mesma coisa. Nisto não há causa e efeito. Mas esta explicação parece batota. Quem tem a mente deformada pela física sente-se obrigado a aceitá-la pelo peso das evidências, mas que a temperatura seja apenas a agitação das moléculas é uma ideia sensaborona, decepcionante. A explicação da fricção é mais atraente e intuitiva.

Analogamente, defendo que a mente é a actividade dos neurónios. Não há causa e efeito. É decepcionante, mas são a mesma coisa. Pior ainda, além desta relação de identidade nos privar da satisfação de uma causa e um efeito, há ainda um fosso psicológico entre duas percepções de causalidade que não conseguimos conciliar.

Se acontece algo de desagradável o meu modelo materialista diz que esse acontecimento faz o meu cérebro produzir menos serotonina, a falta de serotonina causa uma preponderância de certos padrões de actividade neurológica, e esses padrões de actividade são a minha depressão. Mas eu vejo dois tipos diferentes de causalidade. Por um lado, que o acontecimento desagradável causou a minha depressão. Por outro lado, que a falta de serotonina alterou o meu cérebro. Não consigo ver a falta de serotonina como causa da depressão. Estou-me nas tintas para a serotonina! Se a serotonina não me interessa nunca a sua falta me vai causar transtorno. Intuitivamente, não consigo relacionar uma substância química que não me interessa com uma depressão que me afecta tão profundamente.

Tal como a percepção de cor é diferente da percepção de sabor, também tenho diferentes percepções de causa. Tenho a percepção de causas mecânicas, como a serotonina afectar neurónios. E tenho a percepção de causas intencionais, como estar triste por causa de algo que correu mal. É tão estranho à minha percepção que a serotonina cause depressão como seria estranho uma cor ter sabor.

A mente como actividade do cérebro é uma ideia estranha porque sai do que é intuitivo à nossa percepção, tal como a mecânica quântica, a relatividade, ou até o forno de microondas. Mas isso não é razão para rejeitar esta hipótese, que é a melhor que temos. Nem razão para considerar a mente um Mistério.

Todo estes problemas com cores, sabores, causas e intuições têm uma origem comum. Milhões de anos de evolução que adaptaram o nosso cérebro a um conjunto específico de tarefas. Encontrar comida e parceiro. Criar os filhos. Evitar predadores e vencer competidores. Nada nos preparou para compreender o decaimento radioactivo, a geometria do espaço-tempo, ou a mente como actividade neurológica. Quando nos aventuramos por estas coisas temos que abandonar a compreensão intuitiva e construir os modelos com cuidado, peça a peça, colando tudo com evidências e abanando de vez em quando para fazer cair as partes soltas.

Só assim podemos compreender o amor, se há um deus que é amor, e se o universo foi criado por amor. Mas isso fica para o último episódio.

1- How Do Microwaves Cook?

segunda-feira, abril 30, 2007

Mente e fisiologia, parte 3: qualia.

O subjectivo tem qualidades que percebemos imediatamente. A dor dói, o doce tem aquele sabor, o pensar, recordar, imaginar, desejar. Os filósofos chamam qualia às qualidades que fazem o subjectivo ser como é. Parece ser o maior mistério da mente.

Ninguém que a sinta tem dúvidas acerca duma sensação. Seja pensar ou doer, seja encarnado ou doce, se sentimos sabemos como é. Mas não há descrição que transmita a sensação a quem nunca a teve. A quem nunca viu encarnado não há nada a dizer que faça perceber a sensação de ver encarnado. Thomas Nagel ilustrou isto num exemplo famoso: mesmo sabendo em detalhe todos os processos neurológicos do morcego continuamos sem conhecer a sensação de ser morcego. O Desidério Murcho, no De Rerum Natura, tem um bom resumo deste exemplo e do problema dos qualia (1). Eu gosto mais do exemplo da Mary, do Frank Jackson.

A Mary é uma neurologista hipotética que sabe tudo acerca da percepção visual mas que nunca viu cores. Sempre viveu em sítios a preto e branco. Apesar de saber tudo o que há a saber acerca da neurologia da cor, se a Mary vir uma rosa encarnada vai aprender algo de novo: a sensação de ver essa cor.

Isto demonstra que os qualia são irredutíveis à descrição neurológica, levando muitos filósofos a conceder algo ao dualismo. Até John Searle, um dos meus preferidos. Defende que a consciência é tão natural e materialista como a digestão ou a respiração, mas concede um dualismo pela separação entre a sensação e a descrição dos processos que a produzem. Como muitos outros, diz não ser possível passar de «os neurónios fazem isto» para o que eu sinto. Mas nisto atrevo-me a dizer que ele está enganado. Parece-me que há um mal entendido.

Podemos descrever o motor de combustão a dois níveis diferentes. Ao nível microscópico, pelas propriedades das ligações químicas das moléculas de gasolina e do metal. E ao nível macroscópico, o da termodinâmica, metalurgia, e mecânica do automóvel. Mas estas descrições estão logicamente interligadas. Das propriedades microscópicas é possível deduzir as propriedades macroscópicas, e a descrição macroscópica pode ser reduzida à descrição microscópica.

O problema filosófico diz que isto não é válido para os qualia. A Mary não pode deduzir a sensação de ver encarnado a partir da descrição microscópica do funcionamento dos neurónios. Mas é um falso problema. Surge de confundir a sensação com uma descrição. Na analogia do motor, a sensação de encarnado não corresponde à descrição macroscópica. Corresponde ao motor. A sensação é a coisa descrita, e não a descrição.

Esta confusão é exacerbada noutra forma de expor o (alegado) problema, separando o relato de terceira pessoa do relato de primeira pessoa. Por exemplo, a Mary diz «os meus neurónios fazem isto e eu sinto que vejo encarnado». Interpretamos a primeira parte da frase como uma descrição dos neurónios, e que é distinta da coisa descrita. Mas na segunda parte, quando a Mary diz «eu sinto», não sabemos se está apenas a descrever ou se está mesmo a sentir. A descrição da sensação é redutível à descrição dos neurónios. Se soubermos tudo sobre o morcego podemos descrever o que ele sente. O que não é redutível à descrição é a sensação. E o morcego, já agora. O que é descrito é mais que a descrição.

Explorar os detalhes num texto curto baralha mais do que explica. Por isso fico por aqui com o apanhado do mais importante. A mente é como a digestão. É um processo natural, fisiológico, de física e química. A sensação é diferente da descrição dos neurónios mas isso não é um mistério. É característica de qualquer descrição ser distinta da coisa descrita. Descrever a digestão da maçã não digere maçãs. Para digerir maçãs é preciso mais do que a descrição. É preciso maçãs, enzimas, estômago, e assim por diante. E para sentir o que é ser morcego ou ver cores é preciso ter mesmo os neurónios a funcionar daquela maneira. Só com conversa não se vai lá.

A questão agora é como a actividade do cérebro é sensação. Ou seja, como é que os neurónios causam mente. Em parte já é uma questão científica para a neuropsicologia ir respondendo. Mas também é uma questão filosófica porque depende da noção de causa. Se tudo correr bem, será o próximo post da série.

1- Desidério Murcho, 19-4-07, Como é ser um morcego?

Episódios anteriores:
Mente e fisiologia, parte 1: o dualismo.
Mente e fisiologia, parte 2: Homúnculos.

domingo, abril 29, 2007

Mente e fisiologia, parte 2: Homúnculos.

O argumento do homúnculo é uma falácia que explica algo por si próprio. É recorrente nos argumentos dualistas. Explica a sensação de ver da seguinte forma: o cérebro processa a informação visual, apresenta-a à alma, e a alma tem a sensação de ver. É como um homenzinho minúsculo que está nos nossos olhos a ver a imagem projectada na retina.

O leitor «Leprechaun» dá um exemplo deste argumento ao propor que o cérebro é análogo a um receptor de rádio (1). Lesões cerebrais afectam a recepção, e é isso que altera o comportamento do corpo; a consciência é imune a estes problemas. É uma hipótese atraente porque parece conciliar os problemas neurológicos com uma alma imortal. É tudo problema de comunicação. O braço não mexe porque não recebe as ordens da alma. O paciente está cego porque o cérebro não transmite a imagem à alma. Mas não explica nada. Como é que se cria consciência? O cérebro passa a informação ao homúnculo e o homúnculo cria a consciência. Muito obrigado... Além disso levanta o problema da interacção entre o homúnculo e o cérebro. Se o homúnculo é imune aos AVCs porque há de sentir dor quando pisam o pé ao corpo?

Além de inútil, a hipótese do cérebro como mero interface entre corpo e a alma é incompatível com muitas observações. A perda de memória exige que seja o homúnculo a esquecer-se das coisas. A dupla consciência do paciente com o cérebro dividido implica que há dois homúnculos a conduzir aquele corpo. O tratamento farmacológico de maníaco-depressivos mostra que o homúnculo é afectado pelo Lítio no sangue.

Falha nos detalhes, e é nos detalhes que as teorias mostram o que valem. Uma lesão na região occipital privou um paciente das cores. Não só deixou de ver cores, mas deixou de conseguir imaginá-las. Uma malformação vascular lesou uma área na parte posterior do cérebro de uma mulher. A paciente perdeu a visão de objectos em movimento. Via perfeitamente o que estava parado, mas qualquer coisa que se movesse tornava-se invisível para ela. Noutro caso, uma mulher sofreu danos cerebrais por inalação de monóxido de carbono e perdeu a capacidade de distinguir linhas horizontais de linhas verticais e não era capaz de identificar objectos a partir de desenhos. No entanto não tinha dificuldade em enfiar um envelope numa ranhura horizontal. Não conseguia distinguir horizontal de vertical mas conseguia orientar um objecto de acordo com a posição da ranhura (2). A teoria da mente no cérebro explica todas estas observações porque podemos identificar no cérebro os sistemas independentes que processam diferentes aspectos da nossa consciência. O homúnculo não encaixa aqui nem a pontapé, porque assume que a consciência é algo uno, indivisível, e imune ao que acontece ao cérebro.

O homúnculo dá uma história bonita. Uma alma imortal que sofre de ressacas mas não de tromboses. Mas é nos detalhes que se vê se a história aguenta. Eu e o «Leprechaun» concordamos que os modelos presentes da consciência vão ter que ser alterados no futuro para acomodar os dados que estão sempre a surgir. Mas o homúnculo tem um futuro tão risonho como a alquimia dos quatro elementos ou o geocentrismo.

1- São modelos, senhor...

2- Estes exemplos foram tirados das páginas 256 e 257 do livro Fundamentals of Human Neuropsychology, de Bryan Kolb e Ian Q. Whishaw. É um livro algo denso e técnico, mas tem centenas de páginas de dados concretos que refutam qualquer homúnculo.

Episódios anteriores:
Mente e fisiologia, parte 1: o dualismo.

sexta-feira, abril 27, 2007

São modelos, senhor...

O leitor que assina «Leprechaun» afirma:

«enquanto considerarmos a consciência como [...] mero subproduto da matéria altamente organizada, neste caso o cérebro, tudo aquilo que observarmos... por muito anómalo que seja [...] será interpretado nessa base filosófica que ainda enferma a ciência actual.»

Os modelos surgem milagrosamente no avental do cientista, meros frutos dos pressupostos que ele enuncia e imunes às evidências. Já me cansa repetir que esta história está ao contrário. Vou ver se resolvo isto com um post; não elimina a ideia mas sempre fico com uma coisa à mão para copiar e colar. Talvez mande fazer um carimbo...

É verdade que os modelos científicos são rígidos e limitam a interpretação das observações. Mas são tão rígidos que se partem quando as observações não encaixam. Consideremos a consciência como mero subproduto da matéria pouco organizada, neste caso as unhas. Esta hipótese é tão científica como a do cérebro, apenas noutra parte do corpo. Mas não se encaixa qualquer observação nesta «base filosófica». Corto as unhas, não perco a consciência, e vejo logo que o modelo é treta.

Um modelo cientifico não é uma «base filosófica» que permita interpretar tudo e mais alguma coisa. É um conjunto de afirmações precisas que só pode corresponder a um cenário bem definido. Afirmar que a massa do protão é 938.272 MeV não dá margem para anomalias. Ou é aquilo, ou está errado.

Os modelos são rígidos, mas a ciência progride porque não se prende a um modelo. Não anda milhares de anos a tocar o mesmo disco riscado. Arremessa os modelos contra as observações, parte quase todos, cria novos modelos e repete enquanto houver financiamento. E os modelos que sobrevivem não são menos frágeis. Estão é encastrados na realidade e apoiados nas evidências, e só por isso é que ainda não se partiram.

O modelo do cérebro consciente será refutado se alguém mostrar que pensa sem actividade cerebral. E não só, porque este modelo não é apenas uma afirmação vaga. É o modelo do córtex visual, do papel do hipocampo na formação de memórias, da regulação de comportamentos pelo córtex pré-frontal, dos efeitos da norepinefrina na depressão clínica e muitos outros detalhes. É um modelo que sobreviveu ao massacre de inúmeros modelos alternativos. Não por ser uma «base filosófica», não por interpretar tudo o que calhar ou por ser poesia vaga. Este modelo sobreviveu porque concorda com a realidade ao pormenor.

E vai-se partir. A ciência exige cada vez mais dele e vai revelando as suas falhas. Partes do modelo serão substituídas e daqui a uns anos teremos modelos bem diferentes para o funcionamento do cérebro. É este o processo. Os modelos que este processo produz não são edifícios construídos sobre os pressupostos que nós escolhemos. Pelo contrário, são as pequenas pepitas que sobram depois da realidade desbastar o lixo que é a maior parte dos pressupostos que inventamos.

quinta-feira, abril 26, 2007

Mente e fisiologia, parte 1: o dualismo.

«Expliquem-me o Amor». Antigamente Deus manifestava-se na trovoada e na lepra. Hoje estas são descargas eléctricas e micobactérias, e é superstição acreditar que provêem directamente de Deus. Aquilo que se compreende só pode ter uma ligação vaga e ténue a Deus, mais por abstracção teológica que por fé a valer.

Como a sensação de amar é ainda misteriosa parece razoável dizer que Deus é Amor. Só que o mistério não é ser amor, é ser sensação. O papel do amor na nossa reprodução e sobrevivência é claro, tão claro como o papel do espirro na desobstrução das vias respiratórias. O mistério, em ambos os casos, é que os sentimos. Sentimos amor e sentimos comichão no nariz antes de espirrar, mas como é que um corpo feito de células e matéria sente e tem consciência? Esse é o mistério que quero abordar.

Esta série de posts vai ter pouco a ver com a religião, mas tenciono voltar, no final, ao Deus como amor. Entretanto, começo pelo dualismo, a hipótese que é uma mente imaterial que pensa e sente. Descartes chamou-lhe a coisa pensante (em latim parece mais sério, res cogitans).

O dualismo troca um problema por três. Continua sem explicar como é que se sente, e agora tem também que explicar como é que a mente imaterial afecta a matéria e como é a matéria afecta a mente. Como é que o meu braço mexe quando eu quero e sinto dor quando me pisam o pé?

Descartes resolveu os dois últimos problemas recorrendo a Deus. Quando alguém me pisa, Deus cria uma dor na minha mente. Quando a mente quer mexer o braço, Deus vai e mexe-o. Dá pouco descanso a Deus, mas concorda com o dogma religioso e permite a vida depois da morte, o que é muito importante para a Igreja. Por isso foi aceite por todos na altura. Mente de um lado, corpo do outro, Deus pelo meio, e nada de misturas. Mas o problema inicial ficou por resolver. Como explicação, era melhor encolher os ombros e dizer «sei lá».

E a evidência refuta cabalmente o dualismo. O álcool no sangue baralha os pensamentos. Lesões, AVCs, ou doença de Alzheimer tiram-nos memórias, traços de personalidade, ou mesmo a fala. Não é razoável que uma mente eterna e imaterial seja afectada desta forma, ou que Deus lhe destrua partes sempre que um vaso sanguíneo se rompe no cérebro.

Vou focar apenas dois exemplos das muitas evidências contra o dualismo. Primeiro, o cérebro dividido pelo corte do corpo caloso, um feixe de fibras nervosas que une os dois hemisférios. Cortar o corpo caloso impede que os impulsos de um ataque epiléptico se propaguem ao cérebro todo. Tratou-se assim alguns casos casos graves de epilepsia. Mas também impede a passagem de informação, dividindo a mente em duas. É pouco perceptível porque a fala é controlada por um só hemisfério, tipicamente o direito, mas por vezes nota-se comportamentos antagónicos nos dois lados do corpo. Por exemplo, uma mão leva o cigarro à boca e a outra tira-o, repetidamente.

E testes específicos revelam a divisão da consciência. Sem ver, o paciente tacteia um objecto comum, como uma chave ou caneta, e é capaz de seleccionar esse objecto, só pelo tacto, de entre um conjunto de objectos diferentes. Mas apenas se usar a mesma mão. Se primeiro tactear o objecto com uma mão e tentar seleccioná-lo com a outra já não consegue. Ambos os hemisférios compreendem a tarefa e conseguem desempenha-la, mas cada hemisfério controla uma mão e não comunicam entre si. São duas consciências independentes.

Todos os testes feitos a estes pacientes dão o mesmo resultado: são duas mentes diferentes, cada uma controlando metade do corpo, mas só uma com o dom da fala.

O segundo exemplo é a negligência contralateral*, na qual uma lesão cerebral destrói a representação de um lado, tipicamente o esquerdo. Para o paciente o lado esquerdo não existe. Não mexe o lado esquerdo do corpo, não veste essa parte, não come a comida do lado esquerdo do prato, é incapaz de raciocinar sobre esse lado e mesmo quando recorda algo omite o lado esquerdo. Por exemplo, desenha todos os números do relógio no lado direito do círculo.

Estes casos, e muitos outros, mostram que a nossa mente não é una e indivisível. É um conjunto de sistemas independentes e indissociáveis do funcionamento do cérebro. O primeiro passo para compreender o mistério do sentir é rejeitar o dualismo. Seja no amor ou no espirro, a mente não é mais que a actividade do corpo.

*Contralateral neglect. Não sei se esta tradução é Português ou Brasileiro.
Mais informação sobre esta condição aqui, onde podem ver o tal desenho do relógio.
Sobre o cérebro dividido, um texto do Michael Gazzaniga, um dos primeiros a investigar estes casos, e esta notícia de um estudo que encontra casos de lateralização mesmo sem cortar o corpo caloso.

sábado, fevereiro 03, 2007

Algoritmos e Consciência.

Nisto da mente e corpo há uma longa tradição de dualismo, a ideia de duas substâncias, uma física e a outra pensante. É atraente porque torna a mente algo independente do corpo. A sua encarnação mais recente é ver a mente como software a correr no hardware do corpo, a consciência como um algoritmo.

O termo «algoritmo» vem do nome do matemático árabe Al-Khowarizmi, que no século IX publicou um tratado sobre a resolução de equações. Aquilo que aprendemos na escola: mudar de sinal quando passa para o outro lado, o que multiplica passa a dividir, até isolar a incógnita de um lado da igualdade. Podemos estender o conceito a outras coisas, por exemplo ao algoritmo para bombear sangue, ou mesmo o algoritmo da consciência. Mas o algoritmo não é o processo; é a descrição do processo. Vejamos a diferença.

O algoritmo de bombear sangue é qualquer coisa como relaxar o átrio e o ventrículo, contrair o átrio, fechar a válvula tricúspida, e assim por diante. Mas é o coração que bombeia o sangue, não o algoritmo. Para curar um doente cardíaco precisamos de uma máquina capaz de fazer o que o algoritmo descreve, seja um coração transplantado ou um coração mecânico. Um algoritmo novo não cura ninguém.

Um dia vamos compreender o algoritmo da consciência como compreendemos o de bombear sangue, e poderemos construir máquinas conscientes como hoje fazemos corações mecânicos. Mas o que bombeia ou pensa são as máquinas; o algoritmo apenas descreve o processo. Não faz sentido separar o processo de consciência da máquina que o executa, por muito atraente que seja a ideia.

É atraente imaginar que eu sou um programa a correr no meu cérebro. Quando o cérebro estiver degradado eu posso transferir o programa para outro cérebro e continuar a existir aí. É a versão moderna da alma imortal. E é o mesmo disparate numa embalagem mais atraente. Quando substituo a bomba do poço por uma nova é disparate dizer que transferi o “bombear” de uma máquina para a outra. O bombear, tal como a consciência, é a acção da máquina. Não é uma coisa, nem faz sentido dizer que se transfere seja para onde for.

Dois clones perfeitos do António, que pensem da mesma maneira, com as mesmas memórias e ambos convencidíssimos que são o António, não são o António a viver em dois corpos. São dois Antónios. Um cérebro que funcione mal e às vezes pense que é a Ana, outras a Cassilda, e outras o Gervásio, não são três pessoas a habitar o mesmo corpo. É esquizofrénico.

A consciência é uma acção. O ser consciente é a máquina que executa a acção, seja uma máquina biológica ou outra qualquer. Era bom se o dualismo fosse verdade, mas não é. Nem sequer é falso. Simplesmente não faz sentido.