Treta da semana (passada): dualismo e materialismo.
A propósito do post sobre o espiritismo, de há umas semanas, o leitor Cláudio Filipe comentou recentemente que eu revelo «uma total ignorância da relação entre a mente e o cérebro.» Passou então a elucidar-me para que eu só fique parcialmente ignorante, esforço que agradeço desde já:
«O problema da relação entre a mente e o cérebro é um problema muito antigo e há séculos que é abordado por filósofos e cientistas. Para simplificar, há duas posições: a posição que diz que a mente é um simples produto do cérebro que é a posição materialista também chamada de produtiva (porque é o cérebro que produz os pensamentos) e a posição que diz que a mente, embora estreitamente relacionada com o cérebro durante a vida do indivíduo, é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio. Diz-se que é a hipótese transmissiva, na medida em que o cérebro não produz os pensamentos, apenas os transmite.»
Depois de enunciar vários nomes de pessoas que favorecem a segunda hipótese, alega que esta explica perfeitamente o efeito de drogas, Alzheimer e lesões cerebrais porque «Se nós tivermos um televisor danificado, as imagens que vamos ver vão sofrer de forma correspondente. […] Mas não é o nosso televisor que produz os programas, ele apenas os transmite. Da mesma forma, o nosso cérebro pode ser apenas um transmissor e não o produtor dos pensamentos.» Se bem que esta hipótese seja atraente pela possibilidade de haver uma mente independente do cérebro e potencialmente livre do triste destino da matéria orgânica, as evidências são-lhe contrárias. Se nós tivermos danos no nervo óptico ou na retina podemos ver pior ou deixar de ver. Isto é o que se espera de estruturas que transmitem a informação. Mas danos no lobo occipital não só eliminam a capacidade de ver cores como também podem fazer perder a capacidade de imaginar cores. Não se trata apenas de olhar para o tomate e vê-lo de cor cinzenta. Trata-se da situação aflitiva de se lembrar que tem cor mas já nem sequer conseguir visualizar mentalmente o vermelho do tomate (1). Outro exemplo de evidências contra a “hipótese transmissiva” é o que acontece depois de uma comisurotomia do corpo caloso, um tratamento drástico para casos extremos de epilepsia que consiste em cortar as fibras nervosas que unem os dois hemisférios do cérebro. Mostrando ao paciente a imagem de um objecto no lado esquerdo do seu campo visual, o paciente não consegue dizer o nome do objecto mas consegue explicar o que é gesticulando com a mão esquerda, desenhá-lo com a mão esquerda ou encontrá-lo pelo tacto com a mão esquerda. Mas só com a mão esquerda. Se a imagem do objecto for apresentada do lado direito do campo visual o paciente já consegue dizer o nome do objecto e encontrá-lo pelo tacto com a mão direita, mas agora não consegue fazê-lo com a mão esquerda. Não se trata de um mero problema de transmissão. Todo o raciocínio está separado nos dois hemisférios e, se bem que só um deles controla a fala, cada um consegue identificar o objecto, perceber o que se pede para fazer e, dentro das suas capacidades, fazê-lo. Exactamente como se cortar o cérebro ao meio dividisse a mente em duas também.
A neuropsicologia já encontrou evidências suficientes para enterrar de vez esta ideia de que a mente é algo independente, com existência própria. Tudo indica que a mente é simplesmente algo que o sistema nervoso faz, tal como a circulação do sangue é algo feito pelo coração e vasos sanguíneos e a respiração é feita pelos pulmões, sangue e células, sem que circulação, respiração ou mente sejam coisas com existência própria. É por isso irónico que digam que esta é que é uma visão materialista e redutora da mente.
O dualismo de substância, a tal hipótese de que a mente «é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio», é uma hipótese inútil porque, no fundo, limita-se a dizer que além da “coisa material” há também uma “coisa pensante”. É um análogo do princípio dormitivo de Moliére mas com o defeito de nem ser a gozar. A hipótese de que a mente é um processo em vez de uma coisa, tal como são a digestão e a corrida, além de ser muito mais útil é menos materialista e menos redutora. É mais útil porque um processo é algo que podemos tentar compreender, e a neuropsicologia avançou mais nesta matéria em poucas décadas do que as teologias todas em vários milénios. É menos materialista porque a tal “substância mental” que Descartes postulou é, no fundo, apenas um tipo diferente de matéria. Não ocupa espaço e pensa mas, de resto, é “coisa” como a matéria, partilhando com esta os atributos principais de persistência e existência autónoma. A hipótese da mente como um processo admite que, além das “coisas”, importa também a sua organização e interacção dinâmica, aspectos que não são materiais em si. E é menos redutora porque permite modelar muito mais detalhes do que simplesmente dizer que temos pensamentos porque a nossa mente é uma substância que pensa, o que é tão redutor que acaba por ser ridículo.
1- Wikipedia, Cerebral achromatopsia, em particular o famoso caso do pintor.
2- Nature News, The split brain: A tale of two halves.