terça-feira, outubro 17, 2023

J'adoube.

É mais fácil apontar defeitos do que propor soluções. Por isso começo pelos defeitos da reacção de Israel. Pretende isolar Gaza até que libertem os reféns, bombardear edifícios usados pelos terroristas e enviar tropas para destruir o Hamas. Isto vai matar muita gente. Infelizmente, das partes atentas ao conflito, que além dos protagonistas incluem eleitores israelitas, o povo de Gaza e a comunidade internacional, o Hamas é a que menos receia a morte de civis palestinos. Seja para recrutamento, financiamento ou reduzir o apoio internacional a Israel, quanto mais crianças palestinas morrerem melhor será para o Hamas. Chamam-lhes mártires e são um dos activos principais destes grupos terroristas. Além disso, a ameaça de bloqueio é politicamente insustentável. Nem a comunidade internacional nem os israelitas vão tolerar que Netanyahu mate civis sem termo numa tentativa fútil de fazer o Hamas ceder. Parece-me que o governo de Israel está a entalar-se num beco de onde só pode sair recuando.

O objectivo de desmantelar o Hamas também me parece mal pensado. O Hamas não é apenas um grupo de terroristas. É um sintoma. Descendente da Irmandade Muçulmana do Egipto, é uma de muitas secreções daquela doença que mantém milhões de mulheres de cara tapada, que arrastou o Afeganistão e o Irão de volta à idade do bronze, que põe bombas em Madrid, mata desenhadores em Paris e de vez em quando tenta assassinar o Salman Rushdie. Destruir o Hamas é coçar as borbulhas sem tratar a infecção. O alívio é muito breve e pode até piorar o problema, pois não vão faltar voluntários para substituir quaisquer baixas.

Não vejo boas opções. Mas as restrições do problema parecem tão fortes que limitam muito a escolha. Neste momento, Israel não pode fazer cedências nem procurar negociar com o Hamas. Seria recompensar o ataque de dia 7 e incentivar novas tentativas. E uma ofensiva vinda de Israel é precisamente o que o Hamas quer. O fundamentalismo impede o pensamento crítico mas é compatível com a manha e o Hamas sabe que nem rockets nem ataques terroristas vão ganhar esta guerra. O propósito de bombardear Israel a partir de zonas densamente povoadas, e todos os outros actos terroristas, é provocar Israel a matar palestinos. A morte de civis palestinos alimenta o ódio, mantém o Hamas no poder, torna a guerra ainda mais santa e, insha'Allah, há de haver virgens para todos. É só vantagens. A longo prazo têm de manter a natalidade acima das perdas mas para isso o Islão sabe convencer as mulheres a colaborar.

Quando todas as jogadas são más o melhor é não jogar. Israel tem apenas de ajeitar as peças. Tem de melhorar a segurança nas fronteiras, identificar e corrigir as falhas de informação que permitiram este ataque de surpresa e procurar mediadores que convençam o Hamas a devolver os reféns. Mas podia deixar o resto na mesma. Ganhava capital diplomático, frustrava os planos do Hamas e poupava imensas vidas. Infelizmente, mesmo em circunstâncias favoráveis há uma tendência para preferir medidas drásticas. Em momentos como este é ainda mais difícil vender soluções racionais. Especialmente com as forças políticas que agora controlam o governo israelita.

Para terminar, aponto também um defeito a este texto. A racionalidade de um acto depende do seu propósito e esta declaração de guerra é irracional apenas se o governo de Israel estiver à procura de um caminho para a paz. É isso que pressuponho porque acho que devia ser esse o objectivo último de qualquer medida para gerir este conflito. Mas o que deve ser nem sempre é.

terça-feira, maio 09, 2023

A Parada.

Tenho seguido com alguma atenção comentadores que se esforçam por justificar e apoiar a invasão russa. O esforço é cada vez maior, por força das circunstâncias. Um desses comentadores, Miguel Castelo Branco, escreveu há um ano sobre «a grandiosa parada militar celebrativa da Vitória que hoje teve lugar na Praça Vermelha, aos pés das muralhas do Kremlin [...] mostrando que a Rússia está segura do seu poderio, agora confirmado nos últimos desenvolvimentos nos campos de batalha.»(1)

Realmente, em 2022 a parada do 9 de Maio foi impressionante. A deste ano, nem tanto. Em vez de dezenas de carros de combate modernos veio só um T-34, veterano da segunda guerra, em representação dos seus congéneres. A exibição da força aérea foi cancelada e, à parte dos tradicionais misseis nucleares, no resto do armamento a demonstração também foi mais modesta do que é costume (2). Obviamente, isto chamou a atenção da comunicação social. Que, segundo escreve hoje Castelo Branco, é uma «conspiração dos asnos» porque «A Rússia tem 8000 carros de combate e o seu lugar em tempo de batalha decisiva não são os aquartelamentos, mas na frente a caçar Leopardos, pois é na frente e não em desfiles militares que se decide a guerra»(3). Apesar de esfarrapada, a desculpa não surpreende. Há constrangimentos ideológicos que impedem estes comentadores de admitir que a situação militar russa não permite grandes celebrações. Mas fica por explicar como é que, com uns alegados 8000 carros de combate, não encontram sequer uma dúzia para o desfile.

Aponta também Castelo Branco que «O único carro de combate presente foi o T-34, por sinal o melhor blindado da II Guerra Mundial e vencedor de todas as batalhas, de Moscovo, de Estalinegrado, de Kursk e Berlim». Vencedor de todas as batalhas é exagero. O T-34 já estava em serviço quando Hitler traiu o seu aliado Estaline e invadiu a URSS. Apesar do exército vermelho já ter, em 1941, dois anos de prática a invadir a Polónia, a conquistar o Báltico e a espatifar-se contra os finlandeses, nesse primeiro ano de invasão nem tudo correu de feição aos soviéticos. Pode-se dizer que a operação militar especial de Hitler começou bem melhor do que a de Putin. Felizmente, fez-se justiça e acabou mal. Uma valiosa lição histórica que temo não ter sido bem aprendida pela liderança russa. Caso contrário não teriam ficado surpreendidos por os países ocidentais ajudarem o país invadido (4).

Mas desviei-me do tema. O T-34 foi, realmente, um dos melhores carros de combate do seu tempo. E talvez seja aqui que a Rússia procura recuperar o seu poderio militar. Afinal, estão cada vez mais perto, pois agora até enviam para a frente de batalha carros de combate T-55, um modelo de 1948 (4). Os T-55 já defrontaram carros de combate ocidentais como os que a Ucrânia recebeu recentemente. Foi na guerra do Iraque. Está aqui uma imagem (6) mostrando um Challenger 2 (à esquerda) e um T-55 (à direita). Vale por mil palavras.



1- Facebook, 9 de Maio 2022
2- Sky News, How does Russia's scaled-back 2023 Victory Day parade compare to previous years?
3- Facebook, 9 de Maio 2023
4- Os EUA enviaram 75 mil milhões de dólares de ajuda à Ucrânia. O total enviado para a URSS na segunda guerra equivaleria hoje a 180 mil milhões.
5- Forbes, Russia Sent 70-Year-old T-55 Tanks To Ukraine Without Even Upgrading Them
6-Imagem daqui:John (Twitter)

sábado, abril 15, 2023

Receios.

A inovação tecnológica desperta receios mais ou menos racionais. O comboio a vapor, por exemplo, levou à preocupação justificada com os acidentes mas também à convicção de que as vibrações causavam insanidade (1). A reacção à novidade depende também da disposição de cada um. Como dizia Douglas Adams, o que existe quando nascemos é normal, o que é inventado até termos 35 anos é excitante e o que surge depois disso é contra a ordem natural das coisas. E, obviamente, a tecnologia preocupa quem tem de competir com ela no mercado de trabalho. Nisto os modelos de linguagem como o ChatGPT trazem uma novidade importante. Até agora a inovação tecnológica tirou emprego a muitos mas beneficiou os peritos na nova tecnologia. O tractor substituiu trabalhadores agrícolas mas deu emprego a mecânicos e engenheiros. Os computadores eliminaram muitos postos de trabalho mas criaram emprego para informáticos. Agora é diferente. Modelos como o ChatGPT estão a ficar cada vez melhores a explicar, ensinar, programar, resumir conhecimento e outras tarefas que hoje pagamos a peritos para executar (2). Incluindo peritos em informática e inteligência artificial. Talvez isso tenha contribuído para, agora, alguns desses peritos apontarem a perda de postos de trabalho como um perigo desta tecnologia.

Mas penso que o receio mais profundo é do que estes avanços revelam acerca de nós. Nota-se em vários detalhes. Por exemplo, chamam "caixa preta" às redes neuronais sugerindo que não se percebe o seu funcionamento porque não se vê o que está lá dentro. Mas todos os parâmetros e operações de uma rede neuronal estão à vista. O que nos impede de a compreender é ter milhões de operações. Chamar-lhe "caixa preta" disfarça o verdadeiro problema: falta-nos a inteligência necessária para perceber algo tão complexo. A expressão "Inteligência Artificial" também permite um equívoco entre os robôs inteligentes da ficção e processos automáticos que um computador executa. Toda a inteligência artificial que temos está nesta segunda categoria, de soluções automatizadas para problemas que nós resolvemos com inteligência. Mas isto significa que o desempenho assombroso destes métodos, que já aproxima ou ultrapassa humanos em muitas tarefas, resulta de mera álgebra. É triste para quem se apelida de sapiens ser ultrapassado por uma máquina de calcular. Talvez seja melhor imaginar tratar-se de um C3PO ou Terminator, mesmo que isso crie medos ridículos como o das "mentes digitais poderosas"(3).

O receio que as características cognitivas que mais estimamos percam valor nota-se especialmente no esforço para demonstrar que os sistemas de IA não compreendem o que fazem. Isto devia ser tão surpreendente como descobrir que um ábaco não sabe matemática. No ChatGPT, as palavras que escrevemos são representadas por uma sequência de números, o computador faz uma carrada de contas e a sequência de números resultante é mostrada no ecrã como palavras. Nós imaginamos que aquilo significa alguma coisa mas o ChatGPT é só a sequência de contas. Que por vezes dá disparate. Mas o espantoso é que muitas vezes dá a resposta certa. Por exemplo, modelos como este podem criar programas funcionais a partir de descrições em texto (4). Eu admito desconsolo ao ver que capacidades que eu julgava necessárias para programar, como raciocínio computacional e compreensão dos algoritmos, afinal podem ser substituídas por operações algébricas executadas sem inteligência. Mas parece-me inútil fingir que a IA é uma "mente digital" só para me sentir superior quando ela se engana.

Não acho que esta tecnologia vá substituir todos os peritos porque estes métodos só servem para interpolar dentro da distribuição dos exemplos de treino. Como não são bons a extrapolar não conseguirão substituir inovadores como Newton, Darwin ou Turing. Mas para a maioria de nós esta limitação trará pouco consolo. Quase tudo o que quase todos fazemos com o nosso talento e inteligência está dentro da distribuição de exemplos conhecidos e poderá ser reproduzido de forma automática. Além disso, ainda estamos no ZX Spectrum desta tecnologia. Vai haver grandes mudanças nos próximos anos. Especialmente no mercado de trabalho. Nenhuma máquina nos vai tirar o gozo de compreender as coisas ou de as fazer por nós mas a necessidade de comprar trabalho humano, mesmo o trabalho de peritos, vai diminuir drasticamente.

A regulação será necessária como é com qualquer tecnologia. Também não queremos que a electricidade sirva para torturar prisioneiros nem a genética para registar o ADN de todos os cidadãos. Por exemplo, as redes neuronais têm grande potencial para coisas como vigilância e censura, e será preciso restringir esses usos. Mas esta tecnologia não é perigosa em si. São só contas; não é material radioactivo nem robôs assassinos. Por isso o que se deve regular são as aplicações. Um sistema de IA não pode cometer erros a conduzir camiões mas pode enganar-se num jogo de estratégia. O enviesamento tem de ser evitado nos empréstimos bancários mas não é grave se um gerador de imagens desenha barba apenas em rostos masculinos. E o "perigo" que a rede gere algo ofensivo ou qualquercoisofóbico resolve-se desaconselhando o uso por crianças e wokes. Os adultos não precisam de protecção contra coisas feias.

O alarmismo dos peritos que invocam perigos abstractos e "mentes digitais" deve ser encarado com cepticismo. Não só pela natureza destes receios como também porque pessoas diferentes têm interesses diferentes. Por exemplo, se a nossa tolerância ao erro fosse como a de alguns peritos que criticam a IA ninguém usava a Internet e a meteorologia seria crime. A IA deve ser regulada de forma democrática, com a participação de todos e não apenas pelos peritos. Deve-se regular aplicações em função de problemas específicos em vez de regular toda a tecnologia por causa de medos vagos. E deve-se sempre ponderar, a par dos riscos, também os benefícios da tecnologia e a liberdade de cada um decidir se estes compensam os riscos.

1) Atlas Obscura, The Victorian Belief That a Train Ride Could Cause Instant Insanity.
2) Este exemplo ilustra bem o potencial desta tecnologia, compreensivelmente assustadora para alguns: Daniel Tait, Sumplete.
3) Future of life, Pause Giant AI Experiments: An Open Letter.
4) Por exemplo, o Copilot, que é a mesma tecnologia mas treinado especificamente para escrever código.

quinta-feira, março 30, 2023

A carta.

Uma carta aberta do instituto Future of Life pede uma moratória à investigação em modelos de aprendizagem automática mais poderosos do que o GPT-4, aquele que a Open AI de momento explora comercialmente (1). Há alguns nomes sonantes entre os signatários mas é fraca a adesão de peritos na área. Como até eu recebi um e-mail a pedir que assinasse esta carta antes de a publicarem, presumo que tenham contactado mesmo muita gente. Mas parece quem nem pessoas da Open AI assinaram, e teriam claro interesse numa moratória à concorrência (2). A explicação, e razão pela qual não assinei, é que a carta faz pouco sentido.

Fundamentam o pedido de moratória afirmando que «Sistemas de IA poderosos só devem ser desenvolvidos depois de termos confiança que os seus efeitos serão positivos e que podemos gerir os seus riscos». Mas só podemos avaliar os riscos depois de compreender bem o potencial e as aplicações de uma tecnologia, e isso exige investigação. É um problema que enfrentamos há séculos porque é intrínseco à ciência. Descobrir coisas tem riscos mas a ignorância não permite perceber nem os riscos nem os benefícios. Isto nota-se até nos exemplos que dão. Alegam que a «sociedade pôs em pausa outras tecnologias com efeitos potencialmente catastróficos para a sociedade», como clonagem humana ou modificação de genes na linha germinal humana. Mas não se suspendeu a tecnologia e muito menos a investigação. Apenas se regula aplicações específicas. A modificação genética humana levanta problemas éticos mas a dos tomateiros, leveduras ou bactérias é menos problemática. E a investigação não parou. Aliás, se tivessem suspendido a investigação em manipulação genética teríamos sofrido um atraso enorme em aplicações como a produção de vacinas e insulina ou técnicas de diagnóstico médico. Uma moratória à investigação é um exagero. Nem com as armas nucleares se faz isso. Regula-se actos específicos como a purificação de urânio mas não se impede os físicos de criarem modelos mais sofisticados do átomo.

Outro problema desta proposta é ter uma minoria de peritos a condicionar o que toda a gente pode usar. Exigem que estes modelos sejam mais «exactos, seguros, interpretáveis, transparentes, robustos, confiáveis e leais» mas a relevância destes requisitos depende do uso que cada pessoa lhes queira dar. Como eu não vou confiar no texto gerado por um modelo estatístico nem me vou ofender ou magoar com as palavras que produza, não quero restringi-lo a ser seguro, exacto, leal ou confiável. Para ter personagens interessantes em jogos de computador, para gerar textos pornográficos, para ter ideias acerca de mundos fantásticos, aprender insultos noutras línguas ou conversar com um amigo imaginário estes requisitos podem não se aplicar. E é cada utilizador que deve avaliar o que quer.

Mesmo que se possa apontar usos prejudiciais, ainda assim é devido respeito pela liberdade de cada um decidir por si, como se faz no caso de religiões, ideologias políticas, superstições e tradições parvas. Não temos peritos a decidir essas coisas pelas pessoas. O mesmo se aplica ao investigador. É verdade que a investigação científica tem valor social e, em média, beneficia-nos a todos. Mas a razão mais importante para permitir que alguém faça investigação é o direito individual de tentar perceber como as coisas funcionam. Não é legítimo limitar os direitos dos utilizadores e dos investigadores só porque alguns peritos invocam a possibilidade vaga de perigos ainda por determinar. Essa limitação só é legítima perante perigos concretos e suficientemente graves. Modelos estatísticos para gerar sequências de palavras parecem estar muito abaixo dessa fasquia.

A carta invoca também perigos para as profissões, que são consequência de qualquer inovação tecnológica e nunca justificaram parar o progresso científico, e o perigo de desenvolver «mentes não humanas», que não tem nada que ver com estes modelos para os quais pedem uma moratória. Não é por minimizar uma função com milhões de parâmetros que se corre o perigo de criar uma mente. A única coisa que me parece razoável nesta carta é exigir mais transparência. Isso já subscrevia se não fosse restrita apenas a modelos estatísticos. Eu gostava que houvesse transparência para eliminar impedimentos à decisão informada. Por exemplo, obrigar fornecedores de software ou serviços baseados em software a divulgar o código fonte para que, colectivamente, os utilizadores pudessem saber o que estes sistemas fazem e discutir os seus riscos e benefícios. Esta medida não exigiria moratórias, melhorava a capacidade de escolha e provavelmente até melhorava a qualidade do software. É como o restaurante ter a cozinha à vista. A proposta de serem os peritos a assegurar-nos de que está tudo conforme os seus critérios não ajuda a resolver este problema. E nem parece bem que seja subscrita pelos peritos.

O problema que enfrentamos neste momento não é a possibilidade de haver um novo ChatGPT que diz menos parvoíces. É a tecnologia concentrar cada vez mais poder de decisão numa minoria cada vez mais pequena pela facilidade com que se monopoliza a informação. Nestas condições, é obviamente má ideia dar a uma minoria de peritos selectos o poder de decidir como vão ser os sistemas a que vamos ter acesso ou até o que se pode investigar. O que precisamos é de garantir o acesso generalizado à informação para que estes juízos de valor, acerca do que queremos que estes sistemas façam, possam ser resolvidos de forma democrática. Os peritos são úteis para resolver problemas técnicos mas não para decidir se suspendemos o uso de ficheiros pdf para voltar a haver ardinas.

1) Future of life, Pause Giant AI Experiments: An Open Letter.
2) Vice, The Open Letter to Stop 'Dangerous' AI Race Is a Huge Mess

quinta-feira, novembro 10, 2022

Mais mulheres.

Há menos mulheres que homens nas tecnologias de informação e comunicação (TIC). Assumindo ser um problema, propõe-se coisas como «banir a ideia de “empregos de raparigas” versus “empregos de rapazes”, promover a importância das disciplinas STEM, educar os jovens sobre as possibilidades de carreira dentro destas áreas, chamar a atenção para as mensagens com preconceito de género» (1). Penso que quem defende isto falha no diagnóstico e subestima a dificuldade de convencer as mulheres a fazer o que outros julgam ser melhor para elas.

O gráfico abaixo mostra a distribuição de inscritos pela primeira vez no primeiro ano de um curso superior em 2021, por área de estudo e sexo. Mais esbatidos estão os valores para os anos de 2016 a 2020 (2). As mulheres são minoria em TIC mas são a maioria na saúde, educação, humanidades, artes e direito. E são a maioria no ensino superior, diferença que tem diminuído mas que ainda é de seis porcento a favor das mulheres. Suspeito que não há muitas mulheres à espera que lhes digam que curso tirar. Por isso, trazer mulheres para as TIC implica convencê-las a desistir de outros cursos que tenham escolhido ou então apanhá-las ainda crianças, antes de decidirem por si. E como se tem de atrair mulheres sem atrair os muitos homens de outras áreas, o que iria estragar as estatísticas, é preciso tomar medidas discriminatórias como prémios (3) ou programas de formação (4) que excluem quem não tem os genitais seleccionados.



O primeiro problema desta empreitada é o diagnóstico errado. Muitas mulheres em jornalismo, sociologia, direito e outras profissões alegam que as mulheres não vão para TIC por causa do sexismo e estereótipos como o dos «“empregos de raparigas” versus “empregos de rapazes”». Mas esta alegação nunca vem na primeira pessoa. Refere sempre mulheres hipotéticas e anónimas, sendo difícil encontrar uma advogada, médica ou escritora que lamente não ter sido engenheira informática ou de telecomunicações por culpa do sexismo e estereótipos. Também não é plausível que as jovens universitárias acreditem que as TIC são só para homens. A racionalização é que são enviesamentos inconscientes que, tal como Deus, sabemos que existem porque não os vemos. Mas nada disto é consistente com os dados. As mulheres estão em maioria em direito e medicina, profissões mais conservadoras que as TIC e que foram dominadas por homens durante séculos, enquanto as TIC, disciplinas recentes vindas da matemática, tinham muito mais igualdade de género antes de despertarem o interesse dos homens. A tese de que o sexismo impede as mulheres de irem especificamente para as TIC quando não as impede de dominar outras disciplinas outrora exclusivas para homens não faz sentido.

A distribuição de géneros pelas áreas dos cursos sugere que trabalhar com máquinas atrai mais homens e trabalhar com pessoas atrai mais mulheres. O pequeno número de mulheres em TIC explica-se mais facilmente por estar no extremo desta gama. Há poucos homens que gostam de passar o dia a olhar para linhas de código, e mulheres ainda menos. Mas apesar de se invocar diferenças entre os sexos para justificar que é preciso mais mulheres em TIC, não é politicamente correcto admitir que essas diferenças possam fazer as mulheres preferir outras profissões. É isto que obriga a presumir que as mulheres precisam de ajuda para escolherem o curso certo.

O outro problema de «trazer mais mulheres» (5) para as TIC é ético. Há poucos homens em ensino e enfermagem mas, não sendo impedidos de ingressar nesses cursos, se não há é porque não querem. Ninguém tenta "trazer" os homens para curso nenhum, nem para o seu bem, nem para promover diversidade genital nem para beneficiar a indústria. Cada homem decide por si. As mulheres não. No caso delas não é uma escolha individual; «é uma questão de igualdade de género mas também é uma questão económica e social» (5). E, como são mulheres, não se pode assumir que saibam o que é melhor para elas. Tem de se insistir que «escolham de entre todo o leque de áreas que existem, porque não há áreas exclusivamente femininas ou masculinas» até escolherem opções que garantam a tal igualdade nas estatísticas. É uma perversão do valor ético da igualdade.

A igualdade que devemos promover é a da liberdade de cada um escolher por si em vez da igualdade dos números. E é uma violação grosseira deste dever pressionar as mulheres em função da suposta conveniência da indústria, de igualdades estatísticas ou por presumir saber melhor que elas o que elas querem. Isto é tão óbvio que não se faz com os homens, e muito menos se aceitaria que uma faculdade de direito ou medicina criasse bolsas exclusivas para homens em nome da igualdade e da diversidade. Mas este truque de criar tachos, comissões e publicidade à custa de um falso problema está a trocar o feminismo justo da mulher como pessoa, com a mesma autonomia e responsabilidade de um homem, por uma caricatura da mulher como vítima indefesa que tem de ser protegida de tudo, desde «mensagens com preconceito de género» até às suas próprias preferências.

1- Experis.pt, Atrair as Mulheres Para a Tecnologia e Reduzir a Desigualdade de Género
2- Dados da DGEEC, Vagas e Inscritos. Há dados desde 2013, mas nos primeiros anos a categorização das áreas é diferente e mesmo tentando fazer a correspondência por cursos ficam uns milhares de alunos sem área identificada, por isso usei só os dados de 2016 em diante.
3- Por exemplo, Medalhas de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência ou Feedzai Women in Science
4- Technovation Challenge Portugal
5- SAPO Tek, “As mulheres criam valor e reforçam áreas TIC que precisam de talento e diversidade”

domingo, novembro 06, 2022

Conversas.

Muitas divergências nas redes sociais acabam em frustração e ataques pessoais. Algumas até em bloqueio. Mas há outras que estimulam conversas produtivas precisamente por os participantes discordarem. Proponho que o factor determinante é o propósito da conversa. É o que queremos com o diálogo que determina se vamos ter frustração ou proveito.

Para dar um exemplo, há tempos João Vasco Gama propôs ser inconsistente apoiar os ucranianos contra a invasão russa sem apoiar os palestinos contra a ocupação israelita (1). Eu discordei porque, apesar de condenar muito que Israel faz, também não consigo apoiar os palestinos. Os vizinhos de Israel há décadas que tentam obliterar esse país, é constante o ódio e o terrorismo contra os judeus e mesmo antes de Israel existir já os palestinos tentaram aliar-se a Hitler para "resolver o problema" dos judeus naquela região. Discordarmos nisto levou a uma troca interessante (para mim) de comentários sobre guerras, genocídios e ocupações até Gama declarar a conversa terminada porque «já expusemos todos os argumentos que consideramos relevantes» e nenhum ia conseguir convencer o outro. Dizendo-se cansado da conversa, exigiu até que me calasse ou continuasse noutro lado.

Parece-me que a causa desta frustração é tentar convencer. Qualquer opinião minimamente ponderada enquadra-se numa rede de premissas, dados e valores. Esta nossa divergência não se limita à Ucrânia e à Palestina. Inclui diferenças políticas, ideológicas, de ponderação de factores históricos, e até da estimativa do que aconteceria aos judeus se os palestinos tivessem maior poder militar. Para um de nós mudar de opinião tem de refazer toda essa rede que lhe dá contexto e isso leva tempo. É possível, mas não é provável que ocorra numa breve troca de comentários no Facebook. Por isso, quem conversa nas redes sociais com o desejo de lhe darem razão ou só conversa com quem já concorde ou vai ficar frustrado.

Dialogar para convencer também tem o defeito de focar a conversa nas pessoas em vez dos assuntos, o que leva a ataques pessoais, zangas e uma atitude de antagonismo. Até torna difícil terminar o diálogo de forma civilizada, levando a mandar calar o outro ou a bloqueá-lo. Eu prefiro uma abordagem diferente, que não me traz frustração. Dialogar com quem discorda é uma oportunidade para ver um assunto pensado de forma diferente. Mesmo que esse pensamento me pareça errado, o diálogo ajuda a questionar premissas e a tornar ideias mais claras. E numa conversa focada nas ideias em vez dos participantes não importa quem ganha, quem se convence ou quem muda de opinião. Pode-se aproveitar as divergências para ajudar a perceber melhor o assunto em apreço. É por isso que nunca senti esse cansaço que Gama invocou nem a necessidade de mandar calar os meus interlocutores ou de os bloquear.

E isto funciona mesmo que a outra parte não queira colaborar. Há casos, como por exemplo criacionistas, teólogos, anti-vacinas ou aqueles que tentam racionalizar a invasão da Ucrânia, em que o objectivo da outra parte é criar o máximo de confusão para disfarçar os problemas das teses que defende. Mas mesmo assim o diálogo pode ser proveitoso. Por um lado porque a nossa confiança numa posição não deve assentar apenas nas razões a seu favor. Devemos também verificar se não há boas razões para escolher uma alternativa. Por exemplo, quando as melhores justificações que me apresentam para Putin invadir a Ucrânia são dissuadir países de se juntar à NATO ou as «afinidades com as pessoas de língua materna» russa na Ucrânia (2), eu fico mais confiante na minha conclusão de que esta invasão foi um erro trágico motivado por ambição e incompetência. Se o maior ataque à nossa posição equivale a bater latas e atirar poeira ao ar provavelmente estamos no bom caminho.

Por outro lado, a resistência empenhada ajuda a afinar explicações. Por vezes encontro auto-proclamados peritos que escrevem vários parágrafos a dissertar sobre a minha ignorância, e arrogância por discordar deles, mas não conseguem explicar os meus supostos erros. Mesmo não me proclamando perito prefiro não fazer tão triste figura. O diálogo ajuda a tornar as ideias mais claras e, mesmo que aquela pessoa não esteja receptiva a explicações, eventualmente saber explicar será útil. Nunca chegamos à perfeição mas a prática ajuda a ficar mais perto.

Por isso, nas redes sociais, não me preocupo se mudo as ideias dos meus interlocutores. Há muito poucas pessoas cuja opinião individual realmente importa na minha vida e com essas não é nas redes sociais que converso. É verdade que me preocupa a popularidade de algumas opiniões. Vivemos numa democracia e a opinião dominante afecta-nos a todos. Mas isto não se deve a esta ou àquela pessoa em particular. E é também porque a opinião pública importa que é melhor evitar amuos, birras, bloqueios e esses surtos de imaturidade que assolam quem só quer que lhe dêm razão. Dedicar a conversa a explorar os assuntos e a tornar as ideias tão claras quanto possível não só é menos frustrante como também contribui para um debate público mais racional.

1- A conversa estava aqui no Facebook, 7 de Julho de 2022 mas entretanto fui bloqueado portanto não sei se é possível ler sequer o que eu escrevi.
2- Nesta conversa com Paulo Gil no Facebook: 12 de Outubro de 2022
.

domingo, agosto 14, 2022

O género.

Eu não sou do género masculino. Eu sinto-me do género masculino como eu o concebo, e sinto como enquadro os outros nas minhas categorias de género. Mas não existem géneros objectivos. Os géneros são algo que cada um sente acerca de si, acerca dos outros e acerca de como se relaciona com os outros. Sendo subjectivos, variam muito de pessoa para pessoa. Por exemplo, eu sinto-me do género masculino porque nasci com pénis e testículos, e sinto que quem nasceu com vulva e ovários é do género feminino. Isto é apenas uma descrição grosseira porque eu não defini nada disto de forma explícita e deliberada. Estou a tentar exprimir o que sinto. E é óbvio que outras pessoas poderão sentir isto de forma diferente. Por exemplo, em 2020 a actriz Ellen Page declarou ser do género masculino e mudou de nome para Elliot. Claramente, Page tem uma concepção dos géneros diferente da minha, tal como as outras pessoas terão as suas.

Não devia ser necessário mencionar isto, mas o fervor ideológico em torno deste tema obriga-me a deixar explícito que não desejo mal algum a pessoas transgénero. Defendo incondicionalmente a liberdade de viverem, de se exprimirem e de se relacionarem com os outros de acordo com as categorias de género que sentem. E condeno sem reservas quem as coagir, ameaçar ou agredir só porque discorda dessas categorias de género. Mas isto não é apenas para pessoas trans. É um direito humano. Ninguém deve ser obrigado a fingir categorias de género diferentes daquilo que sente ou a exprimir-se e relacionar-se com os outros de forma que não lhe seja natural.

Infelizmente, a subjectividade das categorias de género choca com os objectivos políticos de quem quer impor umas aos outros. Uma vez mencionei esta subjectividade num grupo de Facebook e a administradora acusou-me de “violência simbólica”. Para me castigar, decidiu referir-se a mim com pronomes femininos para eu sentir o terrível sofrimento que a minha tese estaria a causar. Não teve o efeito desejado. Mas vamos supor que em vez desta infantilidade alguém sinceramente me categorizava no género feminino. Nem seria muito descabido. Eu não sei conduzir, não ligo ao futebol, não cumpri o serviço militar e não sei caçar. Por outro lado, tenho muita experiência a mudar fraldas, a dar banho a bebés, a cantar para adormecerem e a coser peluches lesionados. Quem conceber os géneros em função destes estereótipos em vez dos genitais pode bem achar que eu sou mais mulher que homem. É-me indiferente. Estou satisfeito com o que sou e não me ralo com as categorias dos outros. E esta talvez seja a maior diferença entre pessoas como eu e pessoas como Page, porque alguém que se submete a cirurgias e tratamentos hormonais para alterar o aspecto do seu corpo provavelmente nem está bem consigo nem é indiferente ao que os outros pensam.

É aqui que surge o argumento da empatia: as pessoas transgénero sofrem tanto que temos o dever de fingir que pensamos nelas no género que elas preferem. Mas ter empatia e pena não implica o dever de ser hipócrita. Elliot Page tem todo o direito de dizer-se a si e a mim no género masculino e colocar Ellen Page no género feminino, de acordo com os géneros como Page os concebe. Mas eu tenho o mesmo direito de sentir que Elliot e Ellen estão ambas no género feminino, como eu o concebo, e que é diferente do masculino em que me categorizo, e ambos diferentes dos que Page concebe. Lamento que Page não se sinta bem com o seu corpo mas isso nada tem que ver com a liberdade de termos categorias de género diferentes. Além disso, esta abordagem da “empatia” é prejudicial porque não distingue entre o normal e o patológico. Que uma pessoa de um sexo sinta que o seu género é outro não é doença nem merece pena. É um sentimento subjectivo. Mas amputar partes saudáveis do corpo, tomar hormonas só para mudar a aparência e viver obcecado com os pronomes que os outros usam são sintomas de patologia. É um erro grave fingir que isto é tudo normal e saudável, ao ponto de se dar hormonas a crianças para impedir a puberdade. Isto não é empatia e até devia ser crime.

À direita, os mais conservadores querem impor categorias de género baseadas no sexo alegando que o sexo é objectivo. Se bem que as características sexuais sejam objectivas, é subjectivo se as usamos para conceber os géneros. Eu uso, mas é legítimo não o fazer. E à esquerda querem dar a certas pessoas o poder de ditar aos outros como categorizar os géneros. Assumem que uma pessoa é objectivamente de um género se disser que é desse género. Mas quando Page diz ser do género masculino está a referir-se a esse género como Page o concebe. Isso não tem nada que ver com o meu conceito de género masculino, que é diferente do de Page. Cada pessoa sente estas coisas de forma diferente e ninguém consegue definir objectivamente o que é ser masculino ou feminino. Portanto, se alguém se referir a mim como “a Ludwig” não está a dizer nada acerca do meu género como eu o concebo. Está apenas a exprimir-se de acordo com as suas categorias de género, que nada têm que ver com as minhas. Não há por isso qualquer justificação para ser eu a ditar-lhe que pronomes pode usar ou como me deve categorizar.

Se admitirmos que as categorias de género são subjectivas todos os problemas parvos que se tem inventado desaparecem. Quando é necessário objectividade, ignora-se o género. Exames à próstata são para quem tem próstata, seja de que género for. No desporto, tal como as categorias de peso dependem do que está na balança e não do atleta se sentir esbelto ou rechonchudo, também as provas femininas devem ser para atletas do sexo feminino seja qual for o seu género. Resta o problema real de quem sofre demasiado com o seu corpo e com que os outros pensam, mas esse é um problema de saúde para os médicos resolverem. Nós temos é de resistir a qualquer tentativa de nos impor conceitos de género ou restringir como os exprimimos. O que cada um sente é consigo e mais ninguém tem legitimidade para mandar nisso.