sábado, abril 23, 2011

Treta da semana: alternativas.

Não me parece que haja boas opções para ultrapassar esta crise de dívida pública e, principalmente, privada. O Louçã diz que se pode usar fundos daqui e dali, e ele percebe mais disto do que eu, mas suspeito que não temos que chegue para tapar o buraco que os últimos governos escavaram, e ainda menos para o buraco criado pelos bancos, especuladores e “empreendedorismos” do género. Só me oponho à intervenção do FMI e do BCE porque me parece evidente que mais dívidas só vão agravar o problema. O default é inevitável. É preferível admiti-lo agora, enquanto o Estado ainda tem dinheiro para funcionar, negociar e controlar a derrocada, do que depois dos primeiros credores levarem o dinheiro que resta e, além de tesos, estivermos a levar com um “estímulo económico” como o que o FMI tem dado à Irlanda e à Grécia.

Mas no Portal Evangélico descobri outra forma de lidar com o problema. Foi um plano simples, como aliás estas coisas tendem ser, executado no domingo passado:

«Que em cada igreja, em cada casa, seja separado o dia 17 de Abril para um tempo de oração em jejum em favor da nossa Nação, das autoridades, da Igreja, das famílias e das pessoas em particular principalmente àquelas que neste momento mais sentem as dificuldades financeiras que afectam a vida emocional e afectiva pessoal e familiar, como é o caso dos desempregados de longa duração, os reformados e os trabalhadores de menores rendimentos.

Esta é a oração de Davi, pedindo paz para a cidade: “Haja paz dentro de teus muros, e prosperidade dentro dos teus palácios” (Salmos 122:7). Devemos pedir ao Senhor que coloque um muro de protecção em volta de cada lar, e da Igreja. [...E]nquanto as autoridades terrenas têm tentado impedir que os conflitos continuem, a autoridade instituída por Deus na terra, que é a Igreja do Senhor, tem por intermédio da oração e também de acções práticas o poder para impedir que esta destruição continue e aumente repreendendo e resistindo a esses principados.»
(1)

Infelizmente, parece que nem a intervenção do Nosso Senhor Jesus Cristo foi capaz de acalmar os mercados. Não se sabe quantos títulos de dívida pública Deus terá comprado, mas é evidente que não chegou para baixar as taxas de juros. E resta uma questão fundamental. O texto não esclarece se o BCE poderá aceitar euros de milagre como moeda legítima ou se irá processar, por contrafacção, o Criador, o Seu Filho e o Conselheiro Espiritual de ambos.

Este plano mostra também uma diferença entre os cristãos evangélicos e os católicos. Enquanto os primeiros querem negociar uma recapitalização de milhares de milhões de euros em troca de um dia de jejum e rezas, os últimos limitam-se a pedir. E vão mais longe. Nesta sexta-feira, a propósito da celebração do sacrifício de Jesus – torturado e morto pelos nossos pecados num acto inefável de amor e justiça – o Papa aproveitou para pedir, já agora, que Jesus fizesse também «com que morra dentro de nós o homem velho ligado ao egoísmo, ao mal e ao pecado.»(2) Uma excelente ideia, que só peca por não lhes ter ocorrido dois mil anos mais cedo.

É claro que os cristãos que se consideram sofisticados não acreditam que Jesus intervenha nos mercados financeiros ou que altere a maneira de ser das pessoas tirando um egoísmo a este, um mal àquele ou um pecado ao outro. O deus do crente sofisticado age sem intervir no espaço de liberdade de um universo em constante criação e auto-descoberta, numa relação do Outro com o Eu e do Eu com o Outro, em plena dádiva de si e outras coisas que não deixem qualquer vestígio, não vá alguém lembrar-se de testar estas alegações.

Mas, como P. T. Barnum dizia, é preciso haver coisas para todos os gostos. Se as massas associativas se revêem nestes pedidos, intercessões e trocas de favores, é razoável que a sofisticação da crença fique reservada apenas para algumas discussões mais filosóficas.

Pena, pena, é que a treta não pague imposto...

1- Portal Evangélico, CONVOCAÇÃO À IGREJA PARA UM DIA DE ORAÇÃO E JEJUM PELA NAÇÃO
2- Jornal Económico, Papa pede o fim do "homem velho ligado ao egoísmo"

quarta-feira, abril 20, 2011

iSee you...

Segundo o Guardian, desde a actualização para o iOS 4 que cada telemóvel da Apple guarda regularmente as coordenadas do aparelho, marcadas com a data e a hora. Isto fica guardado num ficheiro escondido, mas sem encriptação, pelo que é trivial alguém copiar esta informação de um telemóvel (1). Se andam a ter um caso, não emprestem o vosso iPhone ao cônjuge. Tenham também cuidado com o telemóvel da empresa. E não percam telemóveis, nem deixem que vos roubem nenhum.

Isto é preocupante, principalmente porque não deve ser ilegal. Vem no acordo de licenciamento do iTunes, logo a seguir a uns 40 page down, que «a Apple e os seus parceiros podem recolher, usar, e partilhar dados de localização precisos, incluindo de localização geográfica em tempo real» (2). E a legislação que temos trata a informação como propriedade de quem a regista e não como parte da vida pessoal de cada um. Assim, quando alguém compra um iPhone com o iOS 4, o software não é seu. É da Apple. Como também passa a ser da Apple “e parceiros” a informação acerca de onde a pessoa anda. Se quiser partilhar ou usar à vontade a informação pela qual pagou, a pessoa viola a lei. A Apple, no entanto, pode usar e partilhar como entender a informação acerca das pessoas.

Enquanto se continuar a legislar para que a informação seja um bem comercial, estes problemas só se vão agravar. A informação, seja os bits no nosso telemóvel, o que lemos num livro ou os sítios por onde andamos, tem sempre um aspecto pessoal. É algo que incorporamos na nossa vida e que se torna parte do que sabemos, fazemos e pensamos. Não se pode considerar isto propriedade de outrem sem violar direitos fundamentais daquele que, por força da lei, fica privado de uma parte de si.

1- Guardian, iPhone keeps record of everywhere you go
2- Apple.com, TERMS AND CONDITIONS

terça-feira, abril 19, 2011

Menos duas ameaças

à indústria cultural. Uma, por cá, é o terrível Luís “Martini-man” Ferreira. Em 2003 fundou o BTuga, um fórum e tracker para a rede BitTorrent, e também distribuía uma versão do cliente modificada para só usar tráfego nacional. Em 2007, os tribunais mandaram encerrar o BTuga devido a uma queixa da AFP e da FEVIP (1). Em 2010, o tribunal de instrução decidiu que não iria prosseguir para julgamento. Agora o tribunal da relação decidiu que afinal vai haver julgamento porque «o arguido utilizou a rede P2P e o protocolo BitTorrent com o único e exclusivo propósito de através do mesmo efectuar ou deixar que fossem efectuadas trocas/partilhas de conteúdos/ficheiros protegidos pelos direitos de autor»(2).

Será interessante ver como isto corre no tribunal. Deixar que sejam efectuadas “trocas/partilhas de conteúdos/ficheiros” não parece ser crime, pois a lei não obriga a impedir que outros façam tal coisa. E provar que ele trocou ficheiros com outras pessoas não é nada fácil. Não basta que ele tenha os ficheiros, porque isso é cópia para uso pessoal, permitida por lei. É preciso descobrir alguém que tenha ficheiros enviados por ele e provar que foi ele quem os enviou. Tecnicamente, não me parece possível. É claro que, legalmente, basta encontrar um juiz que não perceba do assunto e vá na conversa de que o meliante é culpado e merece um castigo pelo grande mal que fez. As provas de que houve mal ou de que foi ele que o fez são irrelevantes.

O mais triste é a futilidade disto. Em 2003 as ligações de banda larga tinham limites ridículos de tráfego internacional. Nessa altura havia vantagem em usar o Bowlfish ou o BTugaRevolution, que filtravam as ligações para só trocar dados entre portugueses*. Quando o BTuga foi fechado, em 2007, já estava obsoleto. Se querem dar uma lição para que nenhum português se atreva a criar um tracker destes, esqueçam. Já não vale a pena. Hoje há dúzias de empresas comerciais, a operar no mundo todo – Rapidshare, Hotfile, Fileshare, Filesonic, etc – que não só permitem “trocas/partilhas” como guardam os ficheiros e enviam um ou dois gigabytes por hora. De graça. É pôr a sacar ao lanche que ao jantar já se tem o filme de alta definição para ver**. E se algum FEVIP fechar uma destas empresas, abrem logo mais duas na Malásia ou na Ucrânia.

Mas algumas ameaças a indústria cultural consegue combater. Ameaças ainda mais perigosas que o “Martini-man”. Os invisuais, por exemplo. Em 1982 e 1985 foram propostas na WIPO e UNESCO alterações à legislação que regula a partilha e distribuição de obras em formatos especiais para pessoas com deficiências. Isto é necessário porque o mercado para edições em Braille, ou equivalente, é tão pequeno que as licenças e a burocracia efectivamente impedem a edição de obras nestes formatos. Passadas quase três décadas, finalmente houve uma decisão. A UE decidiu esperar mais três a cinco anos para ver o que acontece, e depois logo se pensa se é preciso alterar alguma coisa (3). Três a cinco anos que a indústria cultural tem para respirar de alívio, tendo repelido mais uma vez o assalto desses ladrões que querem ler coisas com os dedos e sem pagar licenças.

* Melhor ainda eram os newsgroups da PT, para quem tinha acesso. Descarregava-se muito mais depressa e o tráfego não contava. Ouvi dizer. Eu sei muito pouco destas coisas, se houver aí algum senhor da ASAE a ler isto.
** Segundo consta.

1- Jornal de Notícias, "btuga.pt" foi encerrado pela ASAE
2- Público, Autor do site de partilha BTuga vai a julgamento. Obrigado pelo email com a notícia.
3- Knowledge Ecology International, http://keionline.org/node/1114>15 April European Union proposal: 3 to 5 year delay in negotiations on a copyright treaty for blind persons

domingo, abril 17, 2011

Treta da semana: outra vez este protesto.

Parece que todas as eleições há quem se lembre de “protestar” não votando. Desta vez foi o bastonário da ordem dos advogados, Marinho Pinto, a sugerir uma «greve à democracia» no dia 5 de Junho para envergonhar os políticos «publicamente perante a Europa e o mundo» (1). Além de um dos problemas ser precisamente que os políticos já não têm vergonha na cara, como protesto isto é uma treta. Um protesto tem de deixar claro contra o que é e o que exige em troca. Protestos sem exigências são geralmente fúteis, e este é ainda pior. A ver se o Marinho Pinto percebe isto com um boneco.

O André não quer saber de política e prefere passar o domingo em casa, de pijama. Por isso não vai votar. A Ana está revoltada com os políticos e quer protestar. Por isso não vai votar. Mas o protesto da Ana não serve de nada porque, quando se contar os votos, o dela é igual ao do André. Os votos em branco tanto são de quem protesta como de quem não sabe onde pôr a cruz. Os votos nulos tanto são de quem protesta como de quem se engana ou quer gozar. E a abstenção é a mesma para os que protestam e para os que ficam a dormir a sesta. Não vale a pena protestar contra algo fazendo exactamente o mesmo que fazem aqueles que se estão nas tintas para o assunto. Os políticos e os seus amigos votam de certeza, e basta-lhes isso para ganhar. Se quem está contra fica sossegado em casa eles até agradecem.

Além disso, as eleições não são um acto individual. A escolha é individual, mas a eleição é um processo colectivo, colaborativo, que tenta conciliar as vontades de todos. Recusar dizer sequer o que se prefere não é um protesto. É ficar de fora. O que é uma opção duplamente infeliz porque os indecisos são os eleitores mais valiosos. Os que votam por amor à camisola não ajudam a mudar nada nem contribuem para a qualidade da política. São votos garantidos. Um tipo até pode fazer falcatruas com propriedades e acções e ainda assim ganhar as eleições, se só os adeptos votarem. Mas aqueles que não sabem em quem vão votar podem mudar tudo se forem ás urnas. Basta o pequeno esforço de dar uma olhada nas propostas dos partidos, ver qual será o menos mau, e fazer a cruz num quadradinho.

Mesmo que vários partidos pareçam todos a mesma porcaria, é importante votar num. Ao acaso, se tiver de ser. Porque além de escolher os próximos partidos do governo, é nas eleições que mostramos que estão ali pela nossa autoridade, que podemos mudar de ideias e que temos o poder de correr com eles se não fazem o que devem. A pior coisa que se pode fazer é não votar em nenhum. Isso é dizer-lhes para fazerem o que quiserem. É “protestar” com um cheque em branco.

1- Público, Marinho e Pinto incita a “uma greve à democracia”

sábado, abril 16, 2011

O problema não é a ironia...

Há dias o Miguel Panão escreveu um post sobre o “problema do mal”. Na apologética cristã, o problema do mal não é que as pessoas sofram. O problema é apenas compatibilizar doenças, terremotos e o sofrimento dos inocentes com a hipótese de haver um deus omnibonzinho que nos omniama a todos. A razão, sem fé, diria simplesmente para admitir o erro e deitar fora a hipótese. É o que se faz quando as hipóteses não encaixam nos dados. Mas a fé não admite tal coisa e exige o que na apologética cristã chama “reflexão”, “exegese” e “hermenêutica”, e que cá fora se chama “arranjar desculpas”. A virtude dos textos do Miguel Panão é que revelam bem como esta apologética só foge das questões em vez de as responder.

Acerca da dor, do sofrimento e da morte, o Miguel Panão pergunta se serão realmente males: «Se a dor nos torna sensíveis, [s]e o sofrimento nos torna maduros, [s]e a morte nos dá um novo olhar sobre a vida, o que é, efectivamente, um mal natural?»(1) Parece uma reflexão profunda mas, na verdade, é treta. Certamente que o Miguel não cria os seus filhos segundo estas premissas. Se queremos que as crianças desenvolvam compaixão, empatia e respeito pelos outros não lhes vamos causar sofrimento ou mostrar-lhes cenas de tortura e morte. Essa receita é para criar psicopatas. Nem é verdade que o sofrimento nos torne maduros. É o contrário. A maturidade permite-nos lidar com o sofrimento, mas o sofrimento destrói quem não consiga lidar com ele. E sofrer por sofrer não ensina nada a ninguém. Quanto à morte, deixa tristeza e saudade mas não dá nenhum “novo olhar” sobre a vida. As perguntas retóricas do Miguel ilustram bem como é inútil a resposta religiosa. A realidade é que uma criança a morrer de leucemia não aprende nada de valioso e só ensina que o universo se está a marimbar para nós. A teologia não dá resposta a isto. Apenas tenta disfarçar o problema.

Outro exemplo de fachada para esconder questões fundamentais é o “diálogo” inter-religioso. A questão mais saliente na multiplicidade inconsistente de religiões é quem tem razão. É este o problema fundamental. Mas o Miguel Panão finge que não e diz só que é «pela maior profundidade no conhecimento da experiência religiosa do outro que posso, também, aprofundar melhor a minha»(2). Ou seja, cada um ouve as descrições dos umbigos dos outros para melhor apreciar o seu, o que é muito bonito mas não esclarece nada. Por exemplo, continuamos sem saber se adorar a imagem de Jesus na cruz nos salva ou nos condena ao sofrimento eterno por idolatria. Dava jeito esclarecer estes detalhes.

Agora, a Igreja Católica está a organizar o Átrio dos Gentios para discutir com ateus «longe do ateísmo prático da banalização e da ironia»(3). Como se o problema fosse a banalização ou a ironia. Isto são desculpas para, novamente, ignorar os pontos importantes. Em vez de implicar com a forma dos argumentos ateístas ou com a natural banalização de fantasias e superstições, deviam era focar o conteúdo. Novamente, o Miguel Panão dá um bom exemplo.

«Um dos argumentos dos "novos ateus" é que acreditar em Deus é o mesmo que acreditar na Fada dos Dentes. Será? Alister McGrath [...] afirmou [...] que não há muita gente [...] que na fase adulta da sua vida passe a acreditar na Fada dos Dentes [...] enquanto que a conversão à existência de Deus não é assim»(4)

O ponto da analogia é precisamente que acreditar na Fada dos Dentes é ingénuo e incorrecto. É este fundamento consensual que mostra a necessidade de determinar porque é que é incorrecto acreditar nesse ser cuja inexistência ninguém pode provar e que faz parte da cultura humana há tanto tempo, mas ao mesmo tempo se deve acreditar num certo deus só porque ninguém pode provar a sua inexistência e muitos acreditam nele há tanto tempo. Ou o Alister McGrath não percebeu o argumento, o que é improvável, ou então finge que não o percebeu, o que é desonesto e frustrante.

O problema não é a ironia, nem o sarcasmo nem o gozo. O problema é fugirem sistematicamente às questões fundamentais. Vejam, por exemplo, o contraste entre as respostas do Sam Harris e do William Lane Craig. Ao Sam Harris um espectador pergunta como se pode explicar milagres como a hóstia na eucaristia se transformar mesmo em carne, com veias e sangue. Harris explica pacientemente que há muitas histórias assim em muitas religiões e não se pode confirmar nenhuma adequadamente. Ao William Lane Craig outro espectador diz que Deus falou com ele e lhe disse que o amor homossexual é tão belo e legítimo como qualquer outro, e pergunta como explicar isso aos crentes que não aceitam essa revelação divina. Vejam como um dos apologistas católicos cristãos* mais reputados responde a uma questão sobre o problema fundamental de determinar se uma revelação divina é genuína (5).



*Obrigado ao Peace pela correcção.

1- Miguel Panão, O problema DSM...
2- Miguel Panão, Reciprocidade no Diálogo Inter-religioso: um exemplo a seguir
3- Zénite, Átrio dos Gentios: longe do ateísmo prático da banalização e da ironia
4- Miguel Panão, Acreditar em Deus ou na Fada dos Dentes ...
5- Obrigado ao Pedro Amaral Couto pela ligação do vídeo.

quarta-feira, abril 13, 2011

Gramm–Leach–Bliley.

Desde que me atrevi a escrever sobre política e economia que me têm criticado por não perceber nada do assunto. O que não é tão inovador como julgam os autores destas críticas. Porque sempre fui criticado, e exactamente da mesma forma, por não perceber de teologia, de astrologia, de reiki, de crianças índigo e uma data de outras coisas. Mas como a economia e a política sempre abordam algo que existe, gostava de descobrir se, e onde, estou enganado. Infelizmente, outro ponto comum a todas estas críticas é a falta de explicações que revelem os erros concretos. Como só dizer “está errado” ajuda pouco, vou tentar dar alvos mais específicos às críticas a ver se me servem de alguma coisa.

Em 1933 os EUA legislaram a separação de negócios entre bancos comerciais, aqueles que guardam as nossas poupanças e emprestam dinheiro para comprar casa, e os bancos de investimento, que arriscam fortunas em valores mobiliários. Esta legislação, o Glass–Steagall Act de 1933, visava proteger o cidadão comum da especulação desregrada que levou tanta gente à ruína na Grande Depressão (1). Assim, nenhuma companhia detentora de bancos podia dedicar-se à alta especulação financeira, e vice-versa. As pessoas sabiam que quando punham o seu dinheiro em poupanças este teria de ser aplicado em investimentos seguros.

O Citigroup formou-se em 1998, quando o Citicorp, um conglomerado de bancos, se fundiu com o grupo Travelers. Como este último incluía companhias de seguros e de investimento, esta fusão violava a lei vigente. Só que Alan Greenspan, director da Reserva Federal, isentou temporariamente o Citigroup do cumprimento da lei até que conseguissem aprovar o Gramm–Leach–Bliley Act, no final de 1999, que revogou a cláusula de separação do Glass–Steagall Act de 1933. A partir daí, a empresa que guardava as poupanças das pessoas também podia ser seguradora, banco de investimento ou qualquer coisa dessas.

Esta legislação facilitou a fusão de instituições financeiras em enormes barris de implosivos e contribuiu para a desgraça de muita gente que julgava o seu dinheiro seguro. Mas, por si só, nem foi das asneiras piores. Seguiram-se aberrações muito mais escandalosas (3). Mas decidi começar por aqui porque foi uma medida emblemática de dois factores importantes.

O primeiro é a influência excessiva – diria mesmo criminosa – que o sector financeiro tem na legislação. O Citigroup violou impunemente a lei durante quase dois anos e acabou por ter a lei que queria. Julgo que não me vão acusar de ignorância por me parecer que cinco mil milhões de dólares por ano em lobbying é uma pressão indevida na regulação da principal potência financeira. Mas este factor é importante para as questões morais de quem deve pagar esta crise. Em grande parte, o que se passou não foi culpa dos contribuintes, nem em benefício destes, e nem sequer resultou de qualquer processo que se pareça com democracia representativa.

O outro factor deve ser mais polémico. Este movimento de liberalização e desregulação, do qual o Gramm–Leach–Bliley é apenas um exemplo, tem-se apoiado na autoridade académica de economistas cujos rendimentos principais vêm de instituições financeiras. E como estes rendimentos, alguns multi-milionários, são directamente proporcionais à veemência com que defendem a desregulação do sector, justifica-se um cepticismo acrescido acerca das suas alegações.

Isto não quer dizer que rejeite tudo. Por exemplo, estou a ler o Economics of Money, Banking, and Financial Markets. Foi escrito pelo Frederic Mishkin, que ganhou dezenas de milhões de dólares das agências financeiras e fechou os olhos a muitos disparates quando esteve no Federal Reserve Bank of New York(4). Mas alguma coisa de economia o homem deve perceber, e não vai aldrabar os conceitos base, as equações e afins. No entanto, o relatório que ele escreveu dois anos antes da banca islandesa desmoronar, Financial Stability in Iceland, afirmando que «the likelyhood of a financial meltdown is very low», foi provavelmente mais influenciado pelos 125 mil dólares que a câmara de comércio islandesa lhe pagou do que por uma análise objectiva dos factos (5).

É por isto que não acredito quando me dizem que taxar menos os ricos e isentar os bancos de impostos, mesmo cortando na educação e saúde, é muito bom para todos só que é complicado demais para explicar porquê. Não é plausível, carece de justificação e é exactamente o tipo de coisas pelas quais os economistas recebem milhões das empresas do ramo. A minha posição é que estas opiniões merecem o mesmo escrutínio que merece o médico que vende os medicamentos que receita ou o aluno que avalia o seu próprio exame.

1- Wikipedia, Glass-Steagall Act
2- Wikipedia, Gramm–Leach–Bliley Act
3- Incluindo um “bailout” à mulher do John Mack, presidente da Morgan Stanley, e a uma amiga dela: The Real Housewives of Wall Street. Já agora, se não leram o livro do Matt Taibbi, “Griftopia: Bubble Machines, Vampire Squids, and the Long Con That Is Breaking America”, leiam.
4- E se ainda não viram o Inside Job, vejam.
5- Mas leiam também a resposta do Mishkin ao documentário. Se bem que seja um pouco fraquinha, tem a ligação para o tal relatório (pdf).

terça-feira, abril 12, 2011

Quero um destes.



Via Boing Boing.

domingo, abril 10, 2011

Treta da semana: experiência pessoal.

A experiência pessoal é muitas vezes apontada como evidência da existência de um deus. Mais especificamente, do deus de quem o alega, com todas as suas idiossincrasias, nascimentos virginais, ressurreições, representantes terrenos e afins. Tanto se fiam nela que o Miguel Panão até me perguntou «como fazes tu a experiência da inexistência de Deus?» (1) Como se o fundamento do ateísmo fosse alguma “experiência da inexistência”.

Quando falamos em ter uma experiência de algo, referimos dois aspectos que importa distinguir. Por um lado os qualia, os elementos subjectivos da experiência. O que sentimos quando nos pisam um dedo ou quando vemos o verde de uma folha. E, por outro lado, a coisa que nos causa essa sensação. A folha verde ou a pisadela em si. Costumamos pensar nestes dois aspectos sempre juntos – daí a expressão “experiência de”, seguida da coisa que colamos à experiência – porque há uma forte correlação entre ambos. Se não houvesse, o nosso sistema nervoso não teria evoluído assim, pois é desta correlação que depende o sucesso dos nossos genes. Mas estes aspectos não são indissociáveis.

Se esfrego os olhos fechados vejo luzes. Ou melhor, sinto que vejo luzes. Não há lá luzes nenhumas. Há apenas a sensação de luzes devido à estimulação dos neurónios da retina. As multidões que acorrem ao “Doutor” Mwasapile, na Tanzânia, para beber a sua tisana milagrosa também “fazem experiência” da eficácia curativa do cházinho. «É tudo uma questão de fé. Se acreditar que isto resulta, resulta mesmo. Vi muitas pessoas lá que ficaram melhor»(2). O homem em Ipu que «incorpora espírito do San e recebe "Mensagem do Além"» também "fez experiência" do espírito de Francisco San Ribeiro de Oliveira, um activista assassinado no mês passado que, segundo o possuído, veio assim pedir justiça pela sua morte (3).

Não duvido que, em muitos casos, o relato da experiência do crente num deus é tão sincero como os relatos das experiências dos crentes no espiritismo, nas mezinhas do Doutor Mwasapile e outras que tal. Mas a fiabilidade das nossas experiências pessoais é muito variável. Depende muito das condições externas e do nosso estado emocional. Na verdade, o enorme progresso do conhecimento, que nos trouxe das cavernas à Internet, foi sempre empurrado pelo progresso nas técnicas para contornar esta limitação, desde a avaliação objectiva dos resultados – problema estranho aos teólogos mas inescapável para quem fabricava utensílios ou construía pirâmides – até aos instrumentos de medição e conceitos como estatísticas e barras de erro.

Além disso, os crentes religiosos abusam da experiência pessoal. Que sintam a presença de alguém quando rezam, aceito como plausível. Que sintam que é Alguém importante, muito superior aos humanos, até pode ser. É coisa que me parece possível sentir. Mas não é plausível que sintam a presença de um deus criador do universo, que é três pessoas numa só substância e que nasceu de uma virgem na Palestina há dois mil anos atrás. Isso é demasiado detalhe para uma mera sensação.

Quando falha a confirmação independente, o mais razoável é assumir que essa experiência de algo é apenas experiência sem o algo. Se oiço um zumbido que outros também ouvem pode ser uma abelha ou algo assim. Mas se só eu oiço então é tinido e o melhor é ir ao médico. O mais provável é que a relação pessoal que os crentes religiosos dizem ter com o seu deus, e que apontam como fundamento para a sua crença, tenha origem no sistema nervoso do crente e não num deus omnipotente. Sentir alguém é uma ilusão fácil, mais ainda quando se deseja intensamente essa experiência. E até pode ser uma coisa boa, para algumas pessoas, mesmo que seja ilusória. No entanto, para bem ou para mal, a experiência pessoal de um deus está mais próxima do que vemos quando esfregamos os olhos fechados do que está do que vemos quando os temos abertos.

1- Comentário em Críticas ao lado do ateísmo, parte 1
2- NY Times, Crowds Come Over Roads and by Helicopters for Tanzanian’s Cure-All Potion. Obrigado pelo email com a notícia. E não percam os vídeos na sua página do Facebook.
3- Blog de Espiritismo, Um caso de todos os dias

sábado, abril 09, 2011

Empreendite crónica.

Quando afirmei, há dias, que «os maiores crimes tendem a ser perpetrados por empresas», o Mats apontou que «Falando no geral, e olhando para a História, o maior criminoso tende a ser o Estado» (1). Em rigor, o Mats tem razão. Segundo a definição jurídica, os Estados cometem muito mais atrocidades do que as empresas. Por outro lado, se nos guiarmos por definições jurídicas, as atrocidades dos Estados normalmente não são consideradas crime. Há limites até para a lei. Seja como for, é mais útil olhar para a diferença fundamental entre um Estado e uma empresa em vez de nos ficarmos por definições legais.

O objectivo de uma empresa é organizar o trabalho de muitos em benefício dos poucos que a controlam. Se eu crio uma empresa e contrato pessoas é para eu ganhar com isso. É claro que tenho de dar algumas contrapartidas aos empregados, senão vão-se embora, mas faço-o em proveito próprio. Se fosse para ajudar os outros criava uma instituição de caridade. Em contraste, um Estado deve organizar o trabalho dos seus funcionários em beneficio de todos os cidadãos do país. O que é algo idealista, admito. Nem é preciso um ditador de má cara e roupa ridícula para dar cabo do plano; mesmo nos países democráticos há sempre quem tente fazer do Estado a sua empresa. E este problema é grave porque a concorrência egocêntrica do mercado livre não é a melhor solução para tudo.

Ganhar dinheiro é uma boa motivação para multiplicar telemóveis, centros comerciais, supermercados e pastelarias. Quando o mercado funciona, a competição entre empresários resulta na melhor relação entre qualidade e preço e cria uma oferta que cobre todos os gostos (de quem tiver dinheiro). Muitos vão à falência, para que sobrem os melhores, mas só joga quem quer, por isso não há nada de injusto ou errado neste sistema. O problema é que não dá para tudo. A procura do lucro não cria serviços de urgência hospitalar, ensino acessível a todos, bombeiros, justiça, segurança e afins. Para isso é preciso trocar a competição egoísta pela colaboração. O tal “serviço público” que, como Deus, é muito falado mas pouco visto.

Hoje sofremos bastante pela confusão entre estes dois sistemas, fomentada pela propaganda dos grandes accionistas do país. Por exemplo, no culto do empreendedorismo. É bom ter restaurantes e jogos para telemóvel, e isso exige que alguém invista dinheiro e trabalho. Mas é errado pensar que quem abre uma pastelaria é um herói salvador da pátria, que merece incentivos fiscais e direitos especiais, enquanto que quem trata doentes num hospital ou ensina crianças é uma despesa a cortar. Uma sociedade saudável precisa de ambos. E uma sociedade com problemas até precisa mais destes últimos. Quando há pouco dinheiro corta-se nos pastéis de nata, não nos hospitais e escolas.

A moda da privatização é outro produto desta confusão. Tudo se privatiza. Escolas, hospitais, e até a cunhagem de moeda. Não as moedas que temos no bolso, que isso é uma pequena fracção da economia, mas o crédito, que é a maior parte da economia e que é inventado pela banca. Foi a desregulação dessa actividade, cada vez mais privatizada, que afundou a economia mundial. O mundo todo passou a ser uma empresa, um meio para lucrar cobrando comissões pela venda de crédito tóxico. Quem o fez sabia que isto não podia durar, que ia dar asneira inevitavelmente. Mas o objectivo de uma empresa é dar dinheiro enquanto dá. Quando já não dá, muda-se de ramo. Ou de empresa. Tratar tudo com empreendedorismo é má ideia.

A “ajuda” externa resulta também da misturar o que se faz a bem de todos com o lucro de uns poucos. A dívida privada em Portugal é mais do dobro da dívida pública (2) e são os bancos que estão mais aflitos (3). Porque os banqueiros criaram montanhas de dívidas para ganhar comissões, afundando as empresas. O que não seria tão mau se deixássemos o mercado livre do capitalismo responsabilizá-los pelas asneiras, mas é péssimo quando o Estado toma parte deste empreendedorismo e lhes vai alimentando o vício do jogo. Depois dos banqueiros já terem levado milhares de milhões de euros em dinheiro público para pagar as asneiras que fizeram, ainda obrigam o Estado a pedir mais oitenta mil milhões.

Agora não há boas soluções. É escolher entre a fome e um prato de merda. Mas o menos mau seria restruturar a dívida, adiando ou falhando alguns dos pagamentos e renegociando o restante. Os bancos amuavam, mas paciência. Melhor isso do que escavar mais oitenta mil milhões de um buraco que não conseguimos tapar e, com isso, sufocar ainda mais a pouca economia que nos resta. Moralmente, não é justo responsabilizar os contribuintes pela dívida privada, mais do dobro da pública. E boa parte da dívida pública foi criada por empreendistas que usaram o Estado para lucrar com negócios dúbios de submarinos, vendas de dívida pública (4), chips de matrículas (5), parcerias público-roubadas e tretas afins. Isso não são dívidas nossas. São deles. Além disso, é justo que parte da austeridade recaia sobre a banca, que é, ao mesmo tempo, o principal responsável pela situação e o principal credor destas dívidas.

Para quem ainda está indeciso se há de votar no Dupond ou no Dupont, deixo aqui uma antevisão do plano deles (6).




1- Menção honrosa
2- Público, Director-geral do FMI diz que o principal problema é o financiamento dos bancos e a dívida privada, via Esquerda Republicana.
3- Esquerda Republicana, A quem beneficia o crime?
4- Ladrões de Bicicletas, 2003: o ano em que o Estado se endividou a mais de 10%
5- Correio da Manhã, Assessor dirige firma de chips
6- Via o FriendFeed do Marcos Marado

quarta-feira, abril 06, 2011

Críticas teístas ao lado do ateísmo (1ª parte).

No “Companhia dos Filósofos”, o Ricardo resumiu uma crítica que o William Lane Craig tentou dirigir ao ateísmo. O argumento do Craig é demasiado extenso para um post, e talvez demasiado aborrecido para mais que um post, mas queria focar um problema que sobressai no resumo do Ricardo (1). Já agora, agradeço ao Ricardo por este resumo, gratidão certamente partilhada por quem tentar ler o original (bocejo) (2).

Craig afirma que não podemos invocar a falta de indícios da existência de Deus para concluir que ele não existe porque esta falta de indícios só seria relevante se, da «entidade que é postulada existir, seria de esperar mais evidencias da sua existência do que aquelas que já dispomos». E, segundo Craig, «cabe ao ateu provar que se Deus existisse forneceria mais indícios da sua existência do que aqueles que temos ao nosso dispor»(2). No entanto, logo a seguir, defende que «No cristianismo o modo primário pelo qual passamos a conhecer Deus não é por indícios mas por meio do trabalho interior do seu Espírito Santo». Parece que só os ateus é que têm de provar. Aos crentes basta afirmar.

Chutar o ónus da prova dá argumentos fracos e, neste caso, desonestos. Eu prefiro não discutir quem tem de provar o quê e, em vez disso, avaliar as hipóteses pelos seus méritos. Ontem tive o prazer de conhecer o João Paiva, co-autor, com o Alfredo Dinis, do livro “Educação, Ciência e Religião”, e vou aproveitar um exemplo dele. Muitos jogadores de futebol rezam quando entram em campo. Se pedem a Deus que os ajude a ganhar, eu, o João Paiva e, provavelmente, o Ricardo, concordamos que estão a fiar-se numa hipótese errada. Dessa hipótese prevê-se que Deus ajude as equipas mais devotas, o que seria evidente nas estatísticas dos jogos. A ausência desses dados esperados justifica rejeitar a hipótese.

O importante aqui, para o argumento do Craig, é que não precisamos provar que Deus interfere nos jogos de futebol. O que está a ser posto à prova é a hipótese e, como a hipótese prevê algo que não ocorre, esta reprova no teste. É isso que acontece a quase todas as hipóteses acerca dos deuses, porque quase todos os religiosos acreditam em deuses minimamente eficazes. Que protegem os casamentos, os barcos de pesca, os caçadores que se fazem ao mato ou as colheitas; que curam (ou causam) doenças; que impedem maus olhados, e que castigam aqueles pecados, e premeiam aquelas virtudes, que cada religião define ao seu gosto. Tudo isso é obviamente refutado pela ausência das evidências esperadas.

Sobra apenas um resquício de crenças abstractas num deus que não deixa rasto. Só que esta hipótese também tem problemas. Afirma existir um deus omnipotente, omnisciente, omnipresente, que nos ama e que criou o universo para um propósito, mas que não deixa qualquer evidência concreta da sua existência. Mas, se não pode haver evidências, também não podemos distinguir esta hipótese de infinitas outras. Por exemplo, pode igualmente ser um deus omni-isso-tudo mas que tenha criado o universo só por que lhe deu para isso, sem propósito nenhum. Pode ser um deus que nos odeia; como não intervém, amar ou odiar dá no mesmo. Ou que se está a borrifar para nós. Pode haver dois deuses em vez de só um. Ou três. Ou três mil quatrocentos e noventa e seis. Há infinitas hipóteses alternativas e todas dizem igualmente nada acerca do que se observa. Portanto, a probabilidade do Craig acertar na verdadeira é infinitésima. E nem adianta de nada, porque, pela hipótese que o Craig defende, esse deus é tal e qual o que seria se não existisse.

Em contraste, a hipótese de não existir qualquer deus é falsificável e, à partida, é até muito arriscada, porque implica que não pode ocorrer nada no universo por intervenção divina. Nada. E esta hipótese tem sido posta à prova contra inúmeras explicações alternativas. Doenças, curas, as espécies, terremotos, montanhas, as órbitas dos planetas, guerras, paz, tempestades, secas e até pragas de sapos e gafanhotos já foram explicados com milhares de deuses diferentes. Em todos os casos a hipótese de nenhum deus ter causado estas coisas prevaleceu. Sempre. Há milhares de milhões de crentes, de criacionistas evangélicos a animistas e hindus, que continuam a fiar-se em hipóteses que os factos já refutaram. E mesmo aquela minoria de crentes que admite ser errado esperar indícios dos deuses vê-se limitada a hipóteses impossíveis de testar. Ou seja, especulações que não dizem nada. Em toda a história do conhecimento humano, nenhuma outra hipótese deu uma cabazada tão grande a tantos concorrentes como esta que o ateísmo deu aos milhares de religiões que os homens inventaram.

É isto que fundamenta o ateísmo. Não são truques com palavras, argumentos vácuos ou o driblar sorrateiro do ónus da prova. É um percurso inexorável, de milhares de anos, em que a hipótese ateísta prevaleceu objectivamente sobre todas as religiões que se foi inventando. É isso que me dá confiança para concluir que o deus do Craig é tão treta como os outros todos que tombaram pelo caminho.

1- Ricardo, Críticas Teístas ao Ateísmo de W. Craig

2- Em Michael Martin, The Cambridge companion to atheism. Quem estiver interessado pode procurar no Rapidshare e afins, que parece fácil de encontrar (segundo ouvi dizer ;)

terça-feira, abril 05, 2011

Menção honrosa.

Dois candidatos que ficaram excluídos da treta da semana passada merecem uma menção breve. Um é a notícia de que o Ronaldo levou para Madrid um saco de areia de Porto Santo. O que o Ronaldo fez é perfeitamente razoável. O presidente da autarquia enalteceu as virtudes da areia, e o Ronaldo lá levou um saco. Foi simpático, e mesmo que tenha acreditado que a areia o ajudaria a recuperar da sua lesão, o Ronaldo dá chutos na bola. Não tem obrigação de verificar o fundamento das alegações que lhe fazem.

Mas um jornalista (ao contrário do que um já me indicou, em comunicação privada) tem essa obrigação, e é uma bela treta afirmar-se da areia de Porto Santo, sem qualquer explicação, que as suas «propriedades são reconhecidas pelas suas capacidades medicinais.»(1) Não só pelo retorcido da frase mas, especialmente, pelas evidências de que carece uma alegação destas. Que capacidades medicinais? Que propriedades? Quem é que reconhece essas capacidades das propriedades? Será o autarca? A avó dele?

O outro eliminado, mas por pouco, foi a decisão da Transocean de recompensar os seus dirigentes com bónus e aumentos salariais pelo seu “ano mais seguro”(2). Estes foram alguns dos responsáveis pela explosão na plataforma Deepwater Horizon, que derramou cinco milhões de barris de petróleo no Golfo do México. É um de muitos efeitos perversos da noção legal de que uma empresa é uma pessoa. Quando há crimes destes – e os maiores crimes tendem a ser perpetrados por empresas – a empresa é castigada com o mesmo efeito das chicotadas com que Xerxes mandou castigar o mar. Mesmo que multem a empresa, os verdadeiros responsáveis dão-se a si mesmos pancadinhas nas costas e resmas de dinheiro. Tomem lá, que é para aprenderem...

1- Expresso (Lusa), Ronaldo leva para Madrid saco de areia de Porto Santo
2- BBC, Transocean gives bonuses after Gulf of Mexico BP spill

domingo, abril 03, 2011

Treta da semana: democracia representativa.

Maria Martin-Prat foi nomeada para dirigir a Unidade D1 da Direcção Geral dos Mercados Internos e Serviços da Comissão Europeia. Esta unidade lida com a legislação de copyright e “direitos” relacionados (1). O problema é que, até recentemente, Maria Martin-Prat foi directora de “Política Legal e Assuntos Regulatórios” da International Federation of Phonographic Industry, trabalhando para a IFPI com uma licença da Comissão Europeia, e em cuja capacidade tem pressionado os legisladores da CE para, entre outras coisas, eliminar da legislação de copyright a excepção que permite a cópia privada. Por exemplo, «a cópia privada não tem razão de ser e devia ser ainda mais limitada do que já é», ou «reconhece-se a necessidade de garantir medidas tecnológicas de protecção total de obras e outros materiais tornados públicos por meio de redes digitais» (2).

É esta senhora que agora vai representar os nossos interesses em negociações com os representantes das indústrias da cópia. Os seus amigos e ex-colegas, portanto. E dessas negociações, como as do ACTA, vão surgir as próximas leis que vão ditar o que podemos ou não fazer com as nossas ligações à Internet, os CDs que compramos e os nossos computadores.

Em teoria, numa democracia é imoral desrespeitar as leis. Isto porque, em teoria, numa democracia a legislação é criada pelos representantes do povo, eleitos democraticamente, e respeitando sempre os direitos fundamentais dos cidadãos. Nessas circunstâncias, a desobediência civil legítima terá de ser um acto de protesto público, que vise chamar a atenção para algum problema na lei, e não apenas um desrespeitar privado em proveito próprio.

Mas o que se passa com a legislação do copyright não tem nada que ver com o processo democrático de criação de leis. Nem garante os direitos fundamentais de privacidade, liberdade de comunicação e acesso à cultura, nem é uma legislação criada pelos nossos representantes, zelando pelo nosso interesse. É excretada em negociatas entre as empresas que vivem destes monopólios e os seus empregados, pagos por nós, a fazer de conta que nos representam.

Há duas razões para não violar a lei partilhando filmes e músicas. Uma é que se pode arranjar chatices. É muito improvável – é mais arriscado atravessar a rua do que partilhar ficheiros – mas pode dar problemas. A outra razão é ser desnecessário porque se encontra quase tudo em serviços de armazenamento como o Rapisdhare, Fileserve, Hotfile, Megaupload, entre outros. Enquanto que partilhar é claramente ilegal, descarregar sem partilhar, se bem que mais egoísta, está ainda numa zona cinzenta da lei, ao abrigo da tal cópia privada que esta senhora quer eliminar. Além disso, é muito difícil provar que alguém descarrega ficheiros se não os partilhar.

O que não é razão é a imoralidade de desrespeitar esta lei. Outras leis, certamente, mas esta não. Neste caso, é a lei que é imoral, produto de um processo opaco, viciado e sem participação das pessoas que afecta. E uma lei que não merece respeito, mesmo que ninguém lhe ligue, só por isso já tem um efeito nefasto na sociedade. Há muitas leis que são boas. Precisamos delas, precisamos que as respeitem, e casos como este, que fazem da legislação um teatro de marionetas, corroem o respeito pela justiça em geral. Respeito que já é pouco e um bem cada vez mais precioso.

Via TorrentFreak.

1- Europa.eu, European Commission, Internal Market, Copyright
2- Knowledge Ecology International, Maria Martin-Prat reported to replace Tilman Lueder as head of unit for copyright at European Commission.

sexta-feira, abril 01, 2011

Aproveitando a tradição,

vou responder hoje a algumas perguntas que o Jónatas Machado me fez, a meio dos seus monólogos sobre as importantes descobertas científicas dos criacionistas.

«Se a evolução é o resultado de milhões de anos de predação, dor, sofrimento e morte, e o ser humano é um mero acidente cósmico, porque é que nos devemos comportar eticamente?»

A ética não deriva das minhas origens. Não depende das razões que os meus pais tiveram para me conceber, menos ainda do que levou os meus avós a reproduzir-se, e o que possa ter acontecido a um antepassado há milhares ou milhões de anos atrás é irrelevante. O dever de avaliar o meu comportamento interpela-me porque percebo que o que faço afecta os outros.

«Que ética se tem em vista?»

É uma boa pergunta, e a resposta é difícil. Mas é claro que não podemos delegar a terceiros – seja a livros, sacerdotes ou deuses – a tarefa de criar uma resposta à altura. Caso contrário, teremos apenas ordens e não ética.

«Se a ética é uma mera convenção social, e se na natureza o mais forte domina o mais fraco, o que há de errado em dizer que pode ser moral apedrejar crianças, maltratar mulheres e matar inocentes?»

Uma convenção social não precisa seguir a natureza. Os outros animais não circulam pela direita nem elegem representantes de quatro em quatro anos. E a ética não precisa ser apenas uma convenção social. Mesmo que seja uma convenção social, tem de responder adequadamente à interpelação desta nossa capacidade de sentir o que fazemos aos outros. Para isso não é qualquer convenção que serve.

«Se não existe uma ética universal e se são possíveis várias éticas universais, o que impede de existir uma ética de exploração, opressão e escravização?»

A ética não impede nem obriga. Não é como a força da gravidade ou a termodinâmica. É sempre, pela sua natureza, um guia opcional. No entanto, é fácil ver que a exploração, a opressão e a escravização não resolvem o problema que nos surge quando percebemos que podemos fazer mal aos outros. São a rejeição desse problema, e a rejeição da ética. Parafraseando o Marcelo, pode-se fazer, mas devia ser proibido.

«Como conciliar a ideia de que não existe uma única ética universal acima das convenções sociais com a ideia de que muitas coisas serão necessariamente imorais em qualquer ética?»

Basta admitir que alguns problemas éticos podem ter várias soluções. Afinal, isso é comum noutros contextos. Um polinómio pode ter várias raízes, o bacalhau pode ser cozinhado de várias maneiras e pode haver vários sistemas eleitorais aceitáveis. O que não quer dizer que qualquer número seja raiz daquele polinómio, se possa cozinhar bacalhau de qualquer maneira ou que todos os sistemas eleitorais sirvam. E nem tudo será legítimo como sistema ético.

«Se a matéria e a energia são tudo o que existem»

Não são. Até mesmo as coisas que são feitas de matéria são mais do que apenas a matéria da qual são feitas. Se não fosse assim, uma colher seria o mesmo que uma árvore ou um oceano. Por isso, quando dizemos que algo existe não nos podemos ficar apenas pela matéria.

«como é que o Ludwig sabe que existem coisas imorais»

As coisas, em si, não são morais nem imorais. A moralidade é um conjunto de regras que um sujeito deriva de um fundamento ético. Não é algo que apareça nas coisas como o orvalho ou as caganitas de pombo. Portanto, a distinção entre moralidade e imoralidade não pode ser descoberta nas coisas. Tem de ser decidida pelos sujeitos.