sexta-feira, maio 30, 2008

AAP

Hoje foi constituída a Associação Ateísta Portuguesa. Aqui fica o manifesto, um pouco mais moderado do que muitos de nós escreveríamos em nome individual mas que esperamos ser consensual para ateus dentro e fora da associação.

Na sequência da legalização da Associação Ateísta Portuguesa (AAP), os outorgantes da respectiva escritura saúdam todos os livres-pensadores: ateus, agnósticos e cépticos, que dispensam qualquer deus para viverem e promoverem os valores da liberdade, do humanismo, da tolerância, da solidariedade e da paz.

Os ateus e ateias que integram a AAP, ou a vierem a integrar, aceitam os princípios enunciados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e respeitam a Constituição da República Portuguesa.

O objectivo da AAP é mostrar o mérito do ateísmo enquanto premissa de uma filosofia ética e enquanto mundividência válida. Porque o ser humano é capaz de uma existência ética plena sem especular acerca do sobrenatural, e porque todas as evidências indicam que nenhum deus é real.

A AAP defende também os interesses comuns a todos os que escolhem viver sem religião, defendendo o direito a essa escolha e a laicidade do Estado, e combatendo a discriminação e os preconceitos pessoais e sociais que possam desencorajar quem quiser libertar-se da religião que a sua tradição lhe impôs.

A criação da AAP coincide com uma generalizada ofensiva clerical a que Portugal não ficou imune. Apesar de o ateísmo não se definir pela mera oposição à religião e ao dogmatismo, em nome da liberdade, da igualdade e da defesa dos direitos individuais a AAP denuncia o proselitismo agressivo e a chantagem clerical sobre as sociedades democráticas. O direito de não ter religião, ou de ser contra, é igual ao direito inalienável de crer, deixar de crer ou mudar de crença, sem medos, perseguições ou constrangimentos.

O ateísmo é uma opção filosófica de quem se assume responsável pelos seus actos e pela sua forma de viver, de quem dá valor à sua vida e à dos outros, de quem cultiva a razão e confia no método científico para construir modelos da realidade, e de quem não remete as questões do bem e do mal para seres hipotéticos nem para a esperança de uma existência após a morte. A AAP representa todos os que optem por esta forma de viver e defende a sua liberdade de o fazer.

quinta-feira, maio 29, 2008

Razões para crer. 2- Dois é companhia.

«Convém, agora, fazer uma rápida menção das diversas formas de verdade. As mais numerosas são as verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: esta é a ordem própria da vida quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de carácter filosófico, que o homem alcança através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por último, existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes também na filosofia; estão contidas nas respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às questões últimas.» João Paulo II, Fides et Ratio (1)

No sentido filosófico, o conhecimento é uma crença verdadeira obtida de forma fiável. Num sentido mais pragmático é uma crença que, por ser obtida de forma fiável, julgamos ser verdadeira (2). Este segundo sentido é importante porque, não tendo acesso directo à verdade, na prática não podemos ter a verdade como critério inicial. Qualquer juízo de verdade virá no fim de uma inferência falível e susceptível de erros.

Assim, as “verdades” mencionadas por João Paulo II são apenas crenças que ele julga verdadeiras. As verdades não «assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência». O que tem que assentar num método fiável são as crenças acerca do que é verdade para que sejam conhecimento. João Paulo II propõe três formas de conhecimento: a ciência, que assenta «em evidências imediatas» ou recebe «confirmação da experiência»; a filosofia, que depende da «capacidade especulativa do [nosso] intelecto»; e a teologia contida «nas respostas [das] diversas religiões».

Mas as primeiras são as duas partes do conhecimento. Para formar uma crença por um método fiável precisamos de capacidade especulativa e de confirmação empírica. Precisamos da filosofia e da ciência, e a distinção entre as duas é móvel e ténue. Móvel porque muitos problemas começaram por ser filosóficos e acabaram científicos. Problemas como a composição das estrelas ou a diferença entre ser vivo e inanimado foram abordados primeiro de forma especulativa, argumentando definições e debatendo implicações das ideias, mas eventualmente cristalizaram-se os conceitos e, com a possibilidade de obter dados relevantes, passaram a problemas científicos. É este processo que nos dá conhecimento.

E a distinção é ténue porque os cientistas também fazem filosofia e os filósofos ciência. Em qualquer investigação científica é preciso definir conceitos e argumentar hipóteses especulativas e inferências. E na filosofia é inevitável assentar argumentos em dados empíricos e naquilo que se observa. Até as experiências conceptuais dos filósofos, dos comboios que atropelam escuteiros aos celeiros que só são fachada, têm valor apenas por ser consensual que resultariam se testadas na prática.

A filosofia* e a ciência parecem distintas se virmos apenas os extremos da especulação e teste empírico. Mas na gama intermédia de análise crítica, argumentação, inferência lógica e compreensão de conceitos vemo-las abraçadas, unidas para gerar os meios fiáveis que justificam considerar certas crenças como verdadeiras. Este namoro apaixonado tem sido muito prolífico.

A teologia é o pau de cabeleira. É a tia solteirona, velha chata e meio surda que julga ter sempre razão e só atrapalha. A teologia finge ter uma linha directa para a verdade. Chama-lhe fé, revelação, graça, Espírito Santo, espiritualidade e muitas coisas mas a ideia é sempre a mesma. Quem tem isto, desde que esteja de acordo com a doutrina, tem automaticamente a verdade. Não precisa de justificação nem métodos fiáveis nem nada disso.

Não há «diversas formas da verdade». Há verdades e há tretas. E há poucas tretas maiores que os atalhos para a verdade. Chegar à verdade dá trabalho. É preciso compreender bem o que especulamos ser verdade. É preciso inferir o que distingue as alternativas, verdade ou falsidade. É preciso testar, repetir, confirmar e encaixar cada suposta verdade no puzzle que vamos construindo. E é preciso levar a dúvida para todo o lado porque algumas peças, ou mesmo o puzzle todo, podem estar erradas.

Para a teologia basta a «graça prévia e adjuvante de Deus e os auxílios internos do Espírito Santo, que move o coração e converte-o a Deus, abre os olhos da mente e dá a todos suavidade no consentir e crer na verdade»(3). Plim, já está. Isso é batota. Pior, é treta.

* Aqui devia distinguir entre filosofia a sério e a poesia pretensiosa a que alguns chamam filosofia. Mas isso seria outro desabafo e mais uma série de posts...

1- Encíclicas, João Paulo II, Fides et Ratio
2- Razões para crer. 1- Conhecimento.
3- Concílio Vaticano II – Dei Verbum

quarta-feira, maio 28, 2008

O meu ateísmo.

O leitor Inominável Indizível mencionou um artigo espectacular do João César das Neves, «A Fragilidade de uma Crença»(1). É um espectáculo de contorcionismo. O JCN, com um pé na argola e outro na poça, mesmo assim consegue meter ambos pelas mãos e ainda enfiar um na boca. Até a ler dói. Os disparates são os do costume mas aproveito a deixa para falar de ateísmo. De um ateísmo verdadeiro em vez dos desenhos animados que o JCN critica:

«Recusar Deus é uma crença como as outras. No fundo trata-se de ter fé na ausência divina. Mas esta crença considera-se a si mesma lógica e natural.»

A afirmação é desleixada. Não me parece que o JCN queira dizer que a fé é uma crença como as outras. Mas mesmo ignorando esse detalhe, esta crítica comum é estranha vinda de uma pessoa de fé. É como se eu criticasse a astrologia acusando-a de ser ciência. Às vezes parece que os crentes têm pouca confiança na fé.

O ateísmo descritivo é uma crença como muitas outras. Quando olho para o relógio formo uma crença acerca das horas. Quando espreito pela janela formo uma crença acerca do estado do tempo. Crianças soterradas pelo terremoto na China faz-me formar uma crença acerca do hipotético deus omnipotente que nos ama a todos. Creio que é treta. Porque este ateísmo descreve um aspecto da realidade é tão frágil como os dados que o suportam. Mas como há tantos indícios que o universo não foi criado nem é regido pelo amor de um ser omnipotente acaba por ser uma crença muito robusta. E é só um dos meus ateísmos.

Outro é normativo. Não diz o que é mas exprime o que eu prefiro, o que eu acho bom. E eu acho bom, excelente até, que o universo não tenha deuses. Especialmente como aquele que vem na Bíblia. Todos passamos por uma fase em que procuramos segurança dando a mão a um adulto mas, eventualmente, queremos atravessar a rua sozinhos. Eu gosto de viver num universo em que isso é possível. Sei que isto faz confusão a pessoas como o JCN, para quem o «pior obstáculo do ateísmo é a ausência de finalidade. Para o ateu este universo, sem origem nem orientação, também não tem propósito.» E ainda bem.

As montanhas, os rios, as florestas, os oceanos, a Lua, nada disso tem propósito. Uma pedra que eu apanhe não tem propósito. Até que eu lhe dê um. O propósito não é intrínseco às coisas mas é-lhes dado por seres inteligentes como nós. É uma responsabilidade mas também um privilégio dar propósito às coisas e à nossa vida. O meu ateísmo normativo é esta disposição que me faz regozijar de viver num universo assim, que é 100% natural em vez de ser artifício de Alguém.

Finalmente, tenho um ateísmo prescritivo. São regras que orientam alguns aspectos da minha vida. Viver como se esta vida, a minha e a dos outros, fosse única e preciosa em vez de confiar numa eternidade hipotética de harpas e hossanas. Ser responsável pelo que faço mesmo sem um Polícia extradimensional a anotar cada uma das minhas falhas. Aceitar as coisas boas e as coisas terríveis que a natureza faz porque é sem intenção, sem bondade nem malícia, e tentar fazer delas o melhor que posso.

Digo que são três ateísmos porque é possível ter uns sem os outros. É possível saber que não há deuses mas preferir que houvesse ou não fazer nada disso. Mas no meu caso são três aspectos do mesmo ateísmo. Por isso não considero que o meu ateísmo seja uma crença frágil. Em parte porque é uma crença sólida, bem assente no que observo. E porque é também apreciar o universo pelo que ele é. E porque é ver na falta de um propósito transcendente para a minha existência a oportunidade, e responsabilidade, de lhe dar eu um propósito que seja meu.

1- DN, João César das NevesA Fragilidade de uma Crença

terça-feira, maio 27, 2008

Afinal é sobre peixe...

Sempre gostei desta música mas é a primeira vez que percebo a letra...



Via Sivacracy (onde está a letra a sério...)

Razões para crer. 1- Conhecimento.

Muitos crêem em deuses apenas por fé, o que é indiscutível. A fé é um sentimento privado e não dá um fundamento comum onde assentar argumentos. Uns gostam de baunilha, outros preferem chocolate e não há mais a dizer. Mas precisamente por isto a crença pela fé é pouco persuasiva e no diálogo com quem não partilha a sua fé a teologia cristã alega usar a razão. Ao contrário da fé, do querer crer, a razão é pública, universal e igual para todos. Com isto já se pode conversar. Infelizmente, a teologia parte da «convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé»(1). Não é uma premissa aceitável. Existe um conhecimento que é indivisível e uno mas não tem nada a ver com fé.

É conhecimento uma crença verdadeira e justificada*. Tem que ser crença porque não posso saber que algo é verdade sem acreditar que seja. Isso seria contraditório. E tem que ser verdadeira porque uma crença falsa é engano. Estes dois requisitos são aceites por quase todos. O terceiro é mais polémico mas é consensual que é preciso uma justificação. Se alguém lança um dado e eu, ao calhas, me convenço que saiu 6, mesmo que seja verdade dizemos que acertei sem saber e não que eu sabia o número que saiu. Acertar por acaso não é conhecimento.

O problema é decidir o que justifica chamar conhecimento a uma crença verdadeira. Há muitas alternativas mas vou falar só da que eu prefiro. É conhecimento uma crença verdadeira obtida de forma fiável. Vou ilustrar com um exemplo famoso (2). O Jorge passa de carro por uma zona onde, sem ele saber, é costume construir fachadas de celeiro viradas para a estrada. O Jorge está convencido que são celeiros de verdade e passa por um celeiro encarnado, o único verdadeiro. O Jorge acredita que viu um celeiro encarnado e esta crença é verdadeira. No entanto a forma como obteve esta crença não é fiável naquelas circunstâncias e originou muitas crenças falsas acerca das fachadas que o Jorge acreditou serem celeiros. Por isso o Jorge não tem conhecimento de um celeiro encarnado. O Jorge foi enganado, só que acertou à sorte naquele caso.

Eu rejeito a fé como fonte de conhecimento porque não é fiável. A fé pode ser muita coisa; pode ser confiança, determinação, fidelidade, vontade de acreditar ou até a crença em si. Mas nada disso tende a formar crenças verdadeiras. É tão fácil ter fé numa falsidade como numa verdade. Saliento que não rejeito a fé como fonte de conhecimento por assumir que as crenças religiosas são falsas. Julgo que são, mas até pode haver por aí uma fé que conduza a uma crença verdadeira. Se calhar Shiva existe ou o John Frum era mesmo um deus (3). Mas mesmo assim o crente está como o Jorge. Foi enganado por uma ilusão e só acertou por acaso. Isso não é conhecimento.

Mas o objectivo deste post não é desancar a fé (este é só o primeiro da série, afinal). É apresentar esta noção de conhecimento como ponto de partida para a discussão. Um aspecto importante é que, apesar de só uma crença verdadeira poder ser conhecimento, na prática nunca sabemos definitivamente se algo é verdade. Por isso quando falo de conhecimento normalmente refiro uma crença que se justifica apresentar como verdadeira mas que não posso garantir que o seja. Ou seja, o conhecimento na prática é sempre putativo e provisório.

E um problema de justificar uma crença por um método fiável é que temos que justificar a crença na fiabilidade do método. E para isso precisamos de outro método que cremos fiável, e de justificar essa crença e assim por diante. Parece uma regressão infinita mas tem solução. Para fazer uma escavadora é preciso máquinas especializadas numa fábrica. Para construir a fábrica é preciso escavadoras e para fazer as máquinas é preciso peças feitas por outras máquinas. É um problema análogo que se resolve assentando cada estado num estado anterior menos sofisticado, menos fiável, mas menos exigente. A escavadora originou na pedra lascada ou até antes.

A ciência faz o mesmo. Pelo caminho ficaram os escombros de teorias que se supôs ser conhecimento e eram falsas, mas que serviram de andaimes a teorias mais sofisticadas e a métodos mais fiáveis. As de hoje podem ser falsas também, mas quando o descobrirmos teremos algo melhor. É um processo sem fim que dá trabalho mas que funciona. Funciona melhor que o tal “conhecimento da fé” que faz de conta que uma doutrina sem justificação é necessariamente verdade. Isso é um tiro no escuro. É quase impossível acertar e, mesmo que acerte, será por sorte.

* Isto para conhecer a verdade de proposições. Coisas como andar de bicicleta ou o gosto do café podem ser conhecidas mas não são crenças nem são verdadeiras ou falsas.

A quem gostar destas coisas recomendo os artigos The Analysis of Knowledge e Epistemology na Stanford Encyclopedia of Philosophy.

1- João Paulo II, Fides et Ratio
2- Goldman, Alvin. 1976. "Discrimination and Perceptual Knowledge." The Journal of Philosophy 73, pp. 771-791.
3- Wikipedia, John Frum

segunda-feira, maio 26, 2008

Marte.

Esta noite a Phoenix aterrou (amartou, melhor dizendo) sã e salva. Até já mandou postais e tudo.

Marte

Para celebrar deixo uma graçola que vem só um pouco a propósito mas que encaixa noutras discussões deste blog.

Ciência e Religião

domingo, maio 25, 2008

Profissionalismo.

Há uns dias o jornal Pravda noticiou «mais um escândalo online». Um investigador Russo, Boris Borisov, descobriu que entre 1932 e 1933 morreram nos EUA sete milhões de pessoas à fome por causa da Grande Depressão. Segundo este investigador foi uma tragédia semelhante à que assolou a URSS na mesma altura. A primeira pela política capitalista e a última pela colectivização, mas ambas com este efeito desastroso. Agora o seu artigo na Wikipedia, «The American Famine», foi apagado por causa de inúmeras críticas. Um escândalo.(1)

Eu não costumo ler o Pravda mas gosto de visitar o Dragão de vez em quando. Descobri este caso por intermédio desta análise do Dragão:

«São os paralelismos entre o capitalismo de estado soviético e o capitalismo de donos do estado americano[...]. A diferença não está nos morticínios [...]; está apenas na leitura e interpretação dos fenómenos: no primeiro caso, é claramente um genocídio; no segundo, é, sem sombra de dúvida (e ai de quem alvitre o contrário!) a consequência natural da evolução económica e das leis do mercado.»(2)

Não. No segundo caso é apenas treta. Boris Borisov baseou a sua investigação nos dados de recenseamento dos EUA, o que é razoável. Menos razoável foi a escolha dos dados e a conclusão. Borisov extrapolou a tendência de crescimento demográfico dos EUA antes da Grande Depressão para estimar que em 1940 os EUA deviam ter 141.856 milhões de pessoas. Como a população em 1940 era de apenas 131.409 milhões e só três dos dez milhões em falta se explicavam pela queda na imigração Borisov concluiu que sete milhões tinham morrido oito anos antes.

Se Borisov tivesse calculado o número de mortos pela taxa de mortalidade nos anos em questão em vez de a inferir de uma hipotética natalidade oito anos mais tarde teria obtido resultados diferentes e poupado algum embaraço. A ele e a outros. A figura abaixo mostra a taxa de mortalidade nos EUA entre 1900 e 1950 (referência 3, mortes por mil habitantes). Com uma população de 130 milhões, sete milhões de mortes adicionais em dois anos teria triplicado a taxa de mortalidade. Os dados para 1932 e 1933 estão indicados a encarnado. Mais uma vez, a realidade ficou aquém da treta.

Mortalidade USA

Mas isto demonstra que os bloggers amadores estão ao nível dos jornalistas profissionais. São capazes de demonstrar o mesmo profissionalismo e o mesmo cuidado na averiguação dos factos.

O que, em muitos casos, é pena.

1- Pravda, 19-5-08, Famine killed 7 million people in USA
2- Dragão, 23-5-08, Holohunger
3- U.S. Annual Death Rates per 1,000 Population, 1900–2005

sábado, maio 24, 2008

Treta da Semana: Poupança Magnética.

O leitor Pedro Satanucho pediu-me para falar do Fuel Optimizer, um «um pequeno e poderoso Ressonante Magnético de Neodymium» que se coloca no tubo de combustível do carro. Segundo o vendedor, «O Ressonante Magnético de muito alta frequência de indução focal separa, ordena e Ioniza as moléculas do combustível que esta a passar através do campo magnético, gerando-se uma combustão mais uniforme e completa, uma muito significativa redução da contaminação, um maior aproveitamento da energia e por fim uma grande poupança de combustível.»(1)

Vamos supor que este íman separava, ordenava e ionizava as moléculas. Se o fizesse era como um forno de microondas a ferver tudo à sua volta. Felizmente é só um íman de frigorífico e não faz nada do que dizem fazer. As moléculas de combustível, e as moléculas orgânicas em geral não são ferromagnéticas, pelo que o efeito que este íman tem no combustível é o mesmo que tem na palma da mão.

Apesar deste pequeno defeito foi a traquitana tretológica de poupar combustível que melhor desempenho teve entre as várias testadas pela revista Popular Mechanics (2). Não que tenha tido efeito algum sobre o consumo de combustível mas precisamente porque não teve efeito nenhum. Ao contrário das paletas que supostamente geram vórtices na entrada de ar para melhorar a combustão mas que na verdade aumentam o consumo e reduzem a potência do motor. Ou o Ionizador, um cabo que se liga às velas por meio de uns “capacitores” de borracha que se incendiaram a meio do teste.

A teoria é que os fabricantes de automóveis querem vender-nos motores ineficientes que se estragam depressa, por isso é que não põem ímans no tubo do combustível (3). Está ao nível de outras como as doenças serem todas causadas pelos remédios que a indústria farmacêutica vende ou que os líderes políticos são na verdade extraterrestres disfarçados. Bem, esta última... nunca se sabe....

O facto é que os automóveis modernos estão muito optimizados. Há alguns aparelhos que se pode acrescentar para poupar combustível, mas todos os que funcionam servem para alterar o comportamento do condutor. Luzes de aviso para desligar o carro se está parado, evitar acelerações grandes ou mudar a mudança se as rotações são elevadas, controlar a velocidade e afins. Mesmo assim os ganhos são pequenos, mas a maior fonte de ineficiência é a forma de conduzir. A EPA tem uma lista de aparelhos testados e recomendações para poupar combustível:

"Gas-Saving" Products: Fact or Fuelishness?

Resumindo, poupa-se combustível mantendo o motor afinado e os pneus à pressão recomendada, fazendo várias viagens curtas de seguida (o motor frio é menos eficiente), não carregando tralha desnecessária no porta bagagens e moderando a velocidade e aceleração. E andando mais a pé e de transportes. O resto é treta.

1- Fuel Optimizer
2- Popular Mechanics, Looking For A Miracle: We Test Automotive 'Fuel Savers'
3- MiniSun Fuel Optimizer

sexta-feira, maio 23, 2008

Da mediocridade.

A leitora Granada chamou-me a atenção para a conotação pejorativa do “medíocre” com que caracterizei a maioria do que se escreve, lê, ouve e vê na comunicação social e na Web (1). Penso que não é culpa da palavra, pois designa mediano, nem bom nem mau. A culpa é talvez do uso politicamente correcto de “medíocre” para designar o que é mau ou das expectativas pouco realistas das pessoas, a maioria das quais se considera acima da média (2). Se alguém disser que metade dos Portugueses tem uma inteligência abaixo da mediana muitos verão ofensa no que é apenas a definição da palavra.

Não há mal em estar na média e é inevitável que a maioria dos actos esteja lá perto, com metade ligeiramente acima e metade ligeiramente abaixo. Não é uma classificação que eu aplique às pessoas em si. Não vejo critérios razoáveis para decidir quem é melhor, pior, ou calcular a qualidade média das pessoas enquanto pessoas. Mas aplica-se bem à maior parte do que fazemos. E a maior parte do que fazemos é medíocre, perto da média. O excepcional é raro por definição.

Como preferimos fazer o que fazemos melhor, os profissionais tendem a ser pessoas com capacidades inatas acima da média para desempenhar a sua profissão. Mas porque o excepcional é raro a diferença, em média, é pequena. Em média os taxistas não são condutores exímios, os professores não são extraordinariamente cultos e os contabilistas não são génios do cálculo. A diversidade dentro de cada grupo é maior que a diferença média aos outros grupos e, por isso, muitos “amadores” superam muitos profissionais. Até em profissões especializadas é fácil reconhecer que a diferença está principalmente na formação e que o dom pessoal é irrelevante, salvo raras excepções. A média é medíocre por definição.

Mas os meios de comunicação de massas apresentam músicos, jornalistas, escritores e realizadores como imunes a esta lei da probabilidade. Nestas profissões o excepcional é a norma e todos estão acima da média. Impossível, é certo, mas esta indústria vende fantasias e controlava quem dizia o quê e a quem. Foi-lhe fácil criar o mito do Autor. Este ser fantástico supostamente cria do nada coisas tão extraordinárias que merecem legislação especial para que a industria as possa vender enquanto contina com elas em sua posse.

E a ilusão era boa. Ninguém pagaria aulas de Francês se lhe proibissem de falar em público, mas a ideia que quem compra um CD com uma sequência de números está proibido de fazer contas com esses números e dar o resultado a outros não levantou protestos. A ausência de um manguito colectivo imediato testemunha a perfeição da ilusão. Muitos até acreditaram que era por serem bens intelectuais que estas coisas tinham que ser “protegidas”. Nem os anos de escola a aprender línguas e ciência nem a cultura que os rodeava fez duvidar que a produção intelectual humana carecesse de “protecção” jurídica.

Mas a ilusão era frágil. Só controlando a comunicação se podia esconder que autor é uma profissão como outra qualquer, com uma pitada de excepcional numa massa inevitavelmente medíocre. Não no sentido pejorativo mas no verdadeiro sentido da palavra. Faz volume sem ser bom nem mau*. Mas conforme o acesso se vai abrindo torna-se evidente que a maioria dos profissionais pagos para criar não são mais dotados que muitos amadores que criam porque lhes apetece.

A Web não tornou a cultura medíocre. A Web mostrou que sempre foi medíocre a maior parte da treta que nos vendiam como cultura.

Há também, como em todas as profissões, uma minoria verdadeiramente má. Mas chamar a essa medíocre é atentar contra a palavra.
1- O culto de comunicar
2- Wikipedia, Lake Wobegon Effect

quinta-feira, maio 22, 2008

Cdesign Proponentsists

Um exemplo eloquente da integridade, competência e incansável luta pela verdade que caracterizam o movimento criacionista.



Via Pharyngula, e mais detalhes na Wikipedia

quarta-feira, maio 21, 2008

O culto de comunicar.

Imaginem que pegava a moda de apagar a televisão ao jantar e as famílias passavam o serão a conversar, os miúdos contavam o que tinham feito na escola, alguém lia um livro em voz alta ou simplesmente falavam do que lhes apetecia. Acabava-se o negócio do Big Brother dos Famosos e das novelas, das reportagens sobre a Maddie e sobre o futebol. É esta a tragédia que assola a Internet, segundo «O Culto do Amadorismo» de Andrew Keen e segundo o anúncio da edição portuguesa deste livro no De Rerum Natura*:

«Os mais prestigiados jornais e revistas da actualidade, a indústria musical e cinematográfica são postos em causa por uma avalanche de conteúdos amadores criados pelos utilizadores das redes digitais.[...] Quando bloggers, podcasters ou videógrafos anónimos podem publicar sem os constrangimentos de padrões profissionais ou filtros editoriais, esbatem-se as fronteiras entre o verdadeiro e o imaginário.»(1)

É realmente trágico. Milhões de pessoas preferem a Wikipedia aos “padrões profissionais” do 24 Horas e do Jornal do Incrível. Perde-se a tradicional reportagem científica escrita por um licenciado em jornalismo que, apesar de não perceber nada do que está a escrever, tem uma cartolina plastificada a dizer “Imprensa” e em vez disso restam só os blogs de investigadores que trabalham na área e que falam do que sabem sem “filtros editoriais”. Pior que tudo, agora as pessoas opinam de graça e estragam o negócio a quem opinava por elas.

Sarcasmo à parte, não vejo que isto seja mau. A maior parte do conteúdo dos jornais, TV e cinema é, e sempre foi, treta. Esta indústria cresceu graças à nossa necessidade compulsiva de comunicar aliada ao controlo dos meios de comunicação. Em poucos segundos já temos a informação que houve um incêndio em certo sítio. Os cinco minutos que se seguem de pessoas a descrever as labaredas e a chorar a perda das suas casas é só conversa. É o equivalente jornalístico do “Está? Olha, estou no supermercado mas vou já para casa, está bem?”. A nossa apetência por conversas da treta dá muito dinheiro a quem conseguir cobrar mas só enquanto precisarmos de intermediário.

A facilidade de comunicar não ameaça o jornalismo sério nem a arte. Os melhores filmes rendem milhões, os melhores músicos enriquecem e os melhores jornais fazem negócio. Com centenas de milhões de pessoas e tudo à distância de um click o que tem valor até rende mais dinheiro oferecido de graça (2). O que está ameaçado é o comércio de conversas da treta e banalidades. Não foi a cultura que mudou. Foi a concorrência que aumentou quando ficou tudo à mesma distância. Mas, por ignorância ou desonestidade, insistem na causa errada:

«Confrontado com uma cultura que enaltece o plágio e a pirataria e enfraquece os media e criadores, Andrew Keen tem a coragem de apontar soluções concretas para enfrentar a onda de arbitrariedade e narcisismo que atravessa a Internet actual.»

Esta cultura não enaltece o plágio. Quem achar que sim que experimente, a ver se recebe ovações ou apupos. “Pirataria” põe a partilha de informação no mesmo saco que a venda de bens contrafeitos e chama roubo a tudo, propositadamente confundindo coisas bem diferentes. E nada disto é novidade. A nossa cultura é, e sempre foi, a informação que partilhamos. A língua, os costumes, a arte, as anedotas, as receitas, as fotocópias, os gravadores de cassetes e os telemóveis, tudo isto nasceu da nossa vontade de partilhar. A Web e a Internet têm sucesso por facilitar aquilo que as pessoas sempre quiseram fazer. Partilhar ideias, partilhar opiniões, partilhar informação e partilhar as coisas de que gostam.

Não está em risco a cultura, nem a arte, nem a excelência nem a verdade. Pelo contrário. Estas sempre beneficiaram da partilha livre de ideias e de informação. O que está em risco é apenas o lucro dos monopólios sobre a mediocridade.

*O post está ambíguo e não sei se foi escrito por alguém do De Rerum Natura se é um comunicado da editora. O que é irónico, dada a crítica à alegada “cultura que enaltece o plágio”...

1- De Rerum Natura, 17-5-08, O Culto do Amadorismo
2- Tech.Blorge, 17-9-07, Why the New York Times Is Free

terça-feira, maio 20, 2008

Darwin e Deus

já têm blogs.

Charles Darwin's blog, onde ele explica, entre outras coisas, as razões para ter regressado.

E Stuff God Hates, onde Ele nos revela as coisas que Lhe desagradam. Como ser crucificado e uma data de outras coisas.

segunda-feira, maio 19, 2008

Piratarias.

Há uns dias descobri no Pirate Bay um torrent engraçado. Alguém foi ver à Wikipedia a lista das músicas que estiveram em primeiro lugar no top de vendas do Reino Unido entre 1952 e 2007 e juntou estas 1106 músicas numa colecção organizada por datas, artistas e títulos. Que agora partilha de graça (1).

Em muitos países isto é tão ilegal como vender DVDs contrafeitos, mas contradiz a imagem do pirata ganancioso lucrando à custa dos outros. Este tipo (é homem de certeza; as mulheres arranjam melhor que fazer) teve o trabalho de procurar e organizar mais de mil músicas só pelo gozo de as partilhar. E é uma colecção impossível de reunir legalmente. Mesmo que se conseguisse as 1106 licenças de distribuição, um pesadelo legal, ninguém ia pagar as centenas de euros por cópia que isto iria custar só em “direitos”.

Não faz sentido que a lei castigue uma coisa destas. Se por um lado o trabalho não é muito útil, por outro pode ter interesse para algumas pessoas e o seu impacto na criatividade artística pode ser positivo por dar a futuros artistas acesso a músicas que de outra forma não ouviriam. Mas não é razoável punir estes actos principalmente porque o custo moral e social do castigo é muito maior que qualquer efeito negativo que o acto tenha.

Esta campanha para castigar actos inofensivos é que é um mal social. O castigo desproporcional é mais típico dos piratas do que a partilha gratuita a que chamam pirataria. Um anuncio na MTV declara que quem descarrega músicas ilegalmente é «um ladrão vulgar»(2). No Primeiro Congresso sobre Propriedade Intelectual, Valadares Tavares, o presidente do congresso, afirmou ser preciso «estimular os alunos a respeitar a propriedade intelectual» porque «Se um aluno rouba um lápis a outro é condenável, mas se um aluno faz um download ilegal de uma música, por exemplo, então já não é tanto»(3). Estes disparates não convencem ninguém que partilhar música merece castigo mas banalizam o roubo e desvalorizam a lei.

Daqui a uns anos os meus filhos vão andar com leitores portáteis de música e vídeo com milhares de canções e filmes. Vão ligar os aparelhos aos dos amigos e partilhar ficheiros como nós trocávamos cromos ou emprestávamos lápis. Nunca os adolescentes verão isso como um acto criminoso. Mas vão chamar-lhes ladrões e dizer por todo o lado que é crime. Para proteger um negócio obsoleto ensinam a uma geração que a lei é arbitrária, sem sentido e não merece respeito.

1- Every UK Number One (1952 - 2007)
2- Miguel Caetano, 18-5-08, MTV insulta a sua audiência com anúncio antipirataria
3- Propriedade Intelectual: Congresso vai criar Observatório Permanente para acompanhar políticas nesta área, via Remixtures

domingo, maio 18, 2008

Treta da Semana: Encontros Imediatos em Alfena.

Joaquim Fernandes criou, a HOP Filmes produziu, a RTP transmite e os nossos impostos pagaram «uma série documental que oferece uma vista imparcial do fenómeno OVNI em Portugal»(1). Joaquim Fernandes investigou os extraterrestres que visitaram Fátima em 1917 (2) e fundou o CTEC (3), que já foi tema desta rubrica semanal (4) e cujos estudos são a base desta série de programas. O primeiro episódio relata o insólito e dramático caso de um balão que passou sobre Alfena em 1990.

Apoiado por uma musica muito X-Files e em tom de por muito banal que isto seja vou contar como se fosse o fim do mundo, o narrador informa que o CTEC guarda «largas centenas de relatos considerados invulgares pelas testemunhas», demonstrando que não são tão invulgares como as testemunhas julgam. E acrescenta que quase todos são explicados «à luz dos conhecimentos científicos», mas «permanece uma pequena percentagem de situações cuja natureza última resta por identificar com total segurança.» E é assim, logo de inicio, que a ovniologia e o bom senso se despedem. Enquanto este não estranha que em centenas de relatos alguns não sejam resolvidos «com total segurança», aquela vê nisso evidência de coisas do outro mundo.

As testemunhas descrevem o objecto. Era parecido com um balão, uma betoneira, metade de uma pipa com janelinhas e uma cuba de aço inox. Acerca das fotografias, Richard Haines («conselheiro da NASA») concluiu que «o fotógrafo não só viu o objecto como apontou deliberadamente a máquina fotográfica». Não parece grande coisa, mas com musiquinha de fundo e voz de caso sério percebe-se a importância de ter amigos na NASA.

Sobe sobe, OVNI sobe...

Raul Berengel, analista informático do CTEC, concluiu que o OVNI teria «quatro metros e meio, era um objecto que se deslocava muito lentamente, quase ao sabor do vento. [...] Não era rígido. Poder-se-á pensar imediatamente então era um balão.» Isso é que era bom. Segundo o meteorologista entrevistado não era possível «fazer uma correspondência [da fotografia] com os balões sonda que utilizamos» nem poderia ser confundido com os balões sonda usados pela estação aerológica de Lisboa. Movia-se como um balão, tinha forma de balão e era flexível como um balão mas como não correspondia aos balões da estação aerológica de Lisboa não podia nunca ser um balão.

Mas não ficaram por aqui. A investigação exaustiva do fenómeno passou por enviar as fotografias para a NORAD, segundo a qual foi «impossível identificar a fotografia anexa; procurámos entre sete mil artefactos criados pelo homem para usar no espaço: satélites, componentes de foguetões, entre outros...». Ficou assim estabelecido que aquela bola flexível que flutuava lentamente como um balão não era nem um satélite nem componente de um foguetão. Faltou contactar o exército e a marinha dos EUA para eliminar a possibilidade de se tratar de um batalhão de tanques ou de um porta-aviões, deixando assim em aberto duas hipóteses para investigação futura.

Concluindo, o investigador do CTEC Mário Neves resume “ainda não sabemos” em 33 palavras:«a explicação à luz dos conhecimentos científicos não nos permite concluir em relação àquilo que efectivamente foi observado e como tal nós continuamos a catalogar este fenómeno como um fenómeno aéreo não identificado». E segundo Raul Berengel é mesmo essa a ideia: «O objectivo de todo este tipo de investigação e só um. É saber se é um ovni ou não é um ovni. Está identificado ou não está identificado. No caso de Alfena não foi identificado.» Ora bem. E quanto dinheiro é que gastaram para dizer isso em treze episódios de meia hora cada um?

Não tenho nada contra a ovniologia. Parece-me um passatempo inofensivo. Nem me oponho a que a RTP gaste dinheiro em programas de entretenimento. O que me chateia é que passem isto por um documentário científico. Científico era relatar as centenas de casos identificados. Que duzentos confundiram Vénus com naves espaciais, cento e cinquenta confundiram balões com naves espaciais, cem inventaram histórias de naves espaciais depois de umas cervejas e assim por diante. No fim mencionava-se a dúzia de casos como este que parecia um balão mas não se conseguiu ler o número de série na fotografia.

A ciência não explica tudo. Explica só aquilo que os dados permitem explicar. É por isso que a ciência se dedica a obter dados fiáveis e formular hipóteses rigorosas em vez de perder tempo com o diz que disse e dados de má qualidade.

1- RTP, Encontros Imediatos
2- Anomalist Books, ”Heavenly Lights” and “Celestial Secrets”
3- Centro Transdiciplinar de Estudos da Consciência.
4- Treta da Semana: Centro Transdiciplinar de Estudos da Consciência.
Os episódios da série estão disponíveis aqui

sábado, maio 17, 2008

Bom e barato, III.

O TrueCrypt é uma aplicação open source para encriptar ficheiros ou discos rígidos e pen drives. Um volume encriptado com o TrueCrypt parece um ficheiro de lixo; só com este programa e a palavra chave é que se pode aceder aos ficheiros lá guardados. Os ficheiros comportam-se como quaisquer outros, sendo decifrados pelo TrueCrypt em memória conforme forem usados. Além disso pode-se encriptar um volume com duas chaves diferentes, uma mostrando uns ficheiros e outra revelando outros que são indetectáveis para quem desconhece a segunda chave.

A protecção de dados pessoais é importante porque andamos cada vez com mais coisas. Um pendrive ou um computador portátil são fáceis de perder ou roubar. É escusado dar ao ladrão os nossos emails, extractos bancários e fotografias das férias. Em vários países o segurança do aeroporto ou guarda alfandegário pode revistar o computador e se o deixamos a arranjar o técnico tem acesso a tudo. Mesmo quem não tem nada a esconder não devia deixar tudo à mostra por uma questão de princípio. (Via Schneier on Security).

Entre as conferências TED (Technology, Entertainment, Design) há muita coisa interessante. Deixo aqui como exemplo esta da primatóloga Susan Savage-Rumbaugh, que trabalha com bonobos. Penso que quem não aceita que se dê a animais de outras espécies alguns direitos que reconhecemos aos da nossa deverá pelo menos ficar com algumas dúvidas depois destes 17 minutos. (Obrigado ao leitor que me enviou a dica por email)

Finalmente, para não ser tudo tão sério, um bom site para geeks trintões. (Via Krippart)

sexta-feira, maio 16, 2008

Miscelânea Criacionista: O código genético, parte 2.

Em Outubro de 1953, meses depois de Watson e Crick descobrirem a estrutura do ADN, George Gamow propôs que as proteínas eram sintetizadas pelo contacto ordenado de aminoácidos com o ADN. A sequência do ADN determinaria a forma de pequenas bolsas à superfície da molécula e cada uma dessas bolsas atrairia um aminoácido específico, determinando assim a sequência da proteína. A hipótese foi rapidamente refutada mas, com isto, Gamow inventou o código genético. O seu esquema abstraiu da complexidade das reacções químicas uma relação simbólica entre sequências e esta metáfora da síntese de proteínas como o descodificar de uma mensagem facilitou a compreensão do processo. Infelizmente, também baralhou os criacionistas. Ainda hoje confundem a evolução natural destes mecanismos químicos com a forma inteligente como os cientistas os desvendaram.

O entusiasmo com o paradigma do código estimulou a criação de códigos verdadeiramente inteligentes. Rapidamente ficou estabelecido que cada um de vinte aminoácidos diferentes seria especificado por um codão, uma sequência de três nucleótidos no ADN. No final dos anos 50 tinha-se a ideia que o ADN era copiado para ARN ao qual se ligavam moléculas transportando os vários aminoácidos. Estas moléculas de transporte alinhavam-se na sequência certa ligando-se aos seus codões respectivos, o que levantava dois problemas. Primeiro, com 4 nucleótidos (A, C, G, U) há 64 codões diferentes, mas sabia-se de apenas 20 aminoácidos. Segundo, se uma molécula de transporte se ligasse desalinhada alteraria toda a sequência. Imaginem que na sequência ACG-GGU-CGG uma molécula se liga ao primeiro CGG que surge a seguir ao A (A-CGG-UCG-G). Isto alterava as ligações das moléculas que viessem a seguir e a sequência da proteína resultante.

Em 1957 Crick propôs uma solução genial. O código tinha que ser tal que só pudesse ser lido com o alinhamento certo. Por exemplo, se houvesse moléculas de transporte para as sequências AGA e UGA não podia haver nem para GAU nem para AUG. Desta forma o trecho AGA-UGA nunca poderia ser “lido” como A-GAU-GA ou AG-AUG-A porque não haveria moléculas que se encaixassem nos codões GAU nem AUG. Eliminando os codões que poderiam induzir erros, dos 64 só restavam 20. Exactamente o número de aminoácidos diferentes. Foi uma festa. Tinham decifrado o código genético.

A festa durou pouco. O “código” não é “lido” da forma rápida e eficiente que se julgava em 1957, com as moléculas de transporte a ligar-se em paralelo ao ARN. É lido passo a passo por enzimas que percorrem o ARN um codão de cada vez. A cada passo têm que esperar que o aminoácido certo venha parar ao sítio certo pelo movimento aleatório das moléculas em solução. Os criacionistas apregoam a densidade de informação do ADN mas esquecem-se de mencionar que essa informação é “lida” ao ritmo de 15 aminoácidos por segundo. É cinco milhões de vezes mais lento que um disco rígido num computador pessoal.

Além disso o código genético é confuso e nada elegante. A tabela abaixo mostra a correspondência entre os vinte aminoácidos e os seus codões no código padrão (1), mas há 23 variantes conhecidas deste código (2). A maioria têm diferenças pequenas mas alguns incluem aminoácidos adicionais como a selenocisteína e a pirrolisina.

Ala/AGCU, GCC, GCA, GCGLeu/LUUA, UUG, CUU, CUC, CUA, CUG
Arg/RCGU, CGC, CGA, CGG, AGA, AGGLys/KAAA, AAG
Asn/NAAU, AACMet/MAUG
Asp/DGAU, GACPhe/FUUU, UUC
Cys/CUGU, UGCPro/PCCU, CCC, CCA, CCG
Gln/QCAA, CAGSer/SUCU, UCC, UCA, UCG, AGU, AGC
Glu/EGAA, GAGThr/TACU, ACC, ACA, ACG
Gly/GGGU, GGC, GGA, GGGTrp/WUGG
His/HCAU, CACTyr/YUAU, UAC
Ile/IAUU, AUC, AUAVal/VGUU, GUC, GUA, GUG
STARTAUGSTOPUAG, UGA, UAA


Esta confusão surpreendeu os cientistas que procuravam um código inteligente para traduzir ADN em proteínas. Não porque assumissem um Criador inteligente mas pelo entusiasmo com que abraçaram a metáfora da mensagem em código. O “código” verdadeiro não foi optimizado para transmitir mensagens mas sim moldado pela selecção natural que o forçou a minimizar os efeitos das mutações. A redundância faz com que muitas mutações não afectem a sequência da proteína e o padrão das correspondências faz com que as mutações que afectam a proteína tendam a trocar aminoácidos semelhantes. Isto não é particularmente inteligente ou eficiente mas é o reflexo do processo de mutação e selecção que gerou este mecanismo.


Os criacionistas apresentam o código genético como um jardim setecentista, podado e arranjado com cada folha no seu sítio e testemunho de um Jardineiro inteligente. A realidade é diferente. Este código é um emaranhado de ervas daninhas e silvas, caótico, sem ordem aparente mas com a robustez e determinação cega de algo que sobreviveu a milhares de milhões de anos de adversidade.


A minha fonte principal foi o artigo The Invention of the Genetic Code, de Brian Hayes.

1- Wikipedia, The Genetic Code
2- NCBI, The Genetic Codes

quinta-feira, maio 15, 2008

Sei que Deus não existe.

Isto não pretende provar definitivamente o que quer que seja. Eu digo que sei algo quando tenho razões válidas para o aceitar como verdadeiro mesmo sem prova definitiva. Sei que não fui adoptado e que não vou ser despedido hoje, por exemplo. Por “Deus” refiro aqui o deus cristão mas o meu argumento aplica-se igualmente bem a outros, e “existe” é um termo difícil de esmiuçar mas uso-o num sentido relativamente simples. Algo existe se forem verdadeiras todas as proposições que o caracterizam. Por exemplo, existe uma aranha encarnada no tecto do meu quarto se for verdade que é aranha, que é encarnada e que está no tecto do meu quarto. Se uma destas for falsa então não existe uma aranha encarnada no tecto do meu quarto. Em suma, sei que o Deus cristão não existe porque tenho razões para concluir que nem todas as proposições que o caracterizam são verdadeiras.

Algumas parecem claramente falsas. Tudo indica ser impossível que algo imaterial seja consciente. Seria mais fácil ensinar uma mosca a ler; ao menos tem estruturas que permitem processar informação. É contraditório ser omnisciente e livre ou agir quando se existe fora do tempo. A doutrina da trindade não faz sentido nem é razoável aceitar que Deus é Jesus, que nasceu de uma virgem, ressuscitou, salvou todos pelo seu sacrifício e assim por diante. Vejo boas razões para rejeitar muitas das proposições que caracterizam Deus por serem incoerentes ou contrárias às evidências. É principalmente por isso que sei que ele não existe.

Mas os cristãos defendem que o seu deus é excepção e não pode ser conhecido pela ciência. Ou seja, nenhuma das propriedades de Deus pode se inferida daquilo que observamos. Como qualquer diálogo tem que partir de um ponto comum vou começar por este aspecto que, felizmente, me parece suficiente.

Vamos supor que alguém tenta adivinhar os objectos que tenho no meu quarto. Mesmo sem ver o meu quarto acerta facilmente em coisas como almofadas, cama, candeeiro ou livros. São uma inferência razoável daquilo que já observou acerca de quartos em geral. Mas quanto mais sair deste âmbito menos provável é acertar. Adivinhar os títulos dos livros seria muito difícil. Adivinhar que tenho uma fotografia minha com os meus filhos ao colo tirada na casa dos meus pais e presa com um íman a um suporte de metal com ursinhos azuis seria praticamente impossível a menos que tivesse examinado o meu quarto primeiro.

A teologia explica que quartos e almofadas existem no espaço e no tempo enquanto que Deus está totalmente fora desta realidade, mas isso só põe o alvo mais longe. Se eu fosse um extraterrestre de uma dimensão fora do espaço e do tempo seria mais difícil, e não mais fácil, adivinhar os objectos que tenho no quarto. Postular que Deus está fora de tudo o que conhecemos e é uma excepção a qualquer inferência torna impossível determinar as suas propriedades.

E isto é reconhecido por todos, sejam ateus, cristãos ou crentes de qualquer religião. Qualquer cristão rejeita as hipóteses que Deus ditou o Corão, que Deus é um Boddisatva, que Deus é Vishnhu ou Rama ou Odin. Não porque as possa refutar, pois estão todas igualmente fora daquilo que se pode testar. Mas porque são mera especulação e a probabilidade de acertar nisto à sorte é ridiculamente pequena. Eu aplico o mesmo princípio às hipóteses que Deus inspirou a Bíblia, que encarnou em Jesus, que nos deu mandamentos e assim. É tudo pura especulação e vai tão longe do que se justificaria inferir que não merece qualquer confiança. Posso afirmar que isso está errado e que esse deus, definido dessa forma, não existe.

Se os cristãos rejeitam a possibilidade de testar as suas hipóteses alegando que não se pode confrontá-las com a nossa experiência então já sei que são falsas. É a classificação mais prudente para a especulação infundada. Se querem defender que há evidências a favor das suas conclusões então têm que prescindir da alegada imunidade aos factos observáveis e avaliar cada hipótese à luz daquilo que conhecemos. Nesse caso ainda mais razões tenho para rejeitar a maioria delas.

Mas é preciso escolher à partida se vamos jogar este ténis intelectual com rede ou sem rede. Não se pode pôr a rede quando é um a servir e depois tirá-la quando chega a vez do outro.

quarta-feira, maio 14, 2008

Batrachomyomachia.

Um post convidado da autoria do Dr. Aragão Lacerda, palavrólogo. Obrigado ao Francisco Burnay que me ajudou a contactar o ilustre Doutor.

«Physignathus retirou-se da batalha e todos os Bathrakoi teriam sido mortos não tivesse Zeus, olhando lá do alto, dito “O que podemos fazer para os salvar?”»
(Batrachomyomachia, de autor desconhecido mas tradicionalmente atribuída a Homero)

Esta terrível batalha, descrita num belo poema épico, mostra-nos de forma clara como já os antigos Gregos se preocupavam com os problemas da poluição, degradação de habitates naturais e perda de biodiversidade. A história começa, como muitas tragédias, com uma traição. A cobardia do rei Physignathus causa a morte do seu hóspede, o honrado herói Psicharpax, leva os dois povos à guerra e quase extermina os Bathrakoi. Só a intervenção do filho de Cronos salva da extinção os súbitos de Physignathus. E o tema não está evidente apenas na história em si mas, e principalmente, no profundo simbolismo dos termos.

O termo “bathrakoi”, que designa o povo de Physignathus, remete à origem Grega da nossa palavra “batráquio” e ainda hoje reflecte algo da sua riqueza original. Os batráquios são seres metamórficos, transformistas, que perdem a sua liberdade de girino transformando-se em sapos disformes. É uma clara alusão aos malefícios da cientolice. O prurido do cientinhoso comicha-o e consome-o por dentro, rouba-lhe a autonomia e tira-lhe o sangue da guelra. O príncipe transforma-se em sapo. Por outro lado, a raiz romana desta palavra, rana, alude também aos mais diversos significados, como em “ranhoso”, “ó rana da oliveira” e, como nunca deixa de invocar, Ranunculus, o género de plantas perenes herbáceas caracterizado por singelas flores brancas ou amarelas.

Vemos neste simbolismo a luta do humano consigo próprio. Por um lado, a cientinha infecta a alma, leva à traição, à degeneração, à fealdade, à comichão e até à extinção se não for a intervenção salvítica do Divino. Por outro, na natureza e na beleza frágil das flores vemos os valores espirituais espezinhados pela cientolice impiedosa. Esta batalha épica entre bathrakos e mus não é mais que a batalha que hoje travamos para resgatar a pureza do simbolismo espiritual humano aos dejectos arremessados pela correria cega dos cientinhosos tecnorreicos.

A ignorância do simbolismo é a fonte de todo o mal social. Da degeneração moral, do imperalismo capitalista, do ateísmo desenfreado e da falta de respeito pela Pátria e Nação. Cheira-se-lhe o miasma por todo o lado. As rodas dos carros são circulares, mas o círculo simboliza o regresso à origem e a repetição infinita. Daí termos carros com cem mil quilómetros estacionados no mesmo sítio que ocupavam há anos. Na construção civil usa-se o aço para dar resistência ao betão ignorando o simbolismo desta amalgama de carbono e ferro, o primeiro representando cinzas e destruição e o último a guerra, a violência e a morte.

Só restaurando o respeito pelo valor simbólico das coisas se pode corrigir estes males. Fazer rodas em forma de cruz, um símbolo mais auspicioso, ou usar como material de construção folhas de louro e flores de laranjeira. É abrindo a janela à nossa espiritualidade, e a mente à meta-existencia do supra-empírico que os antigos tão bem conheciam, que podemos desabafar, no sentido de tirar do abafo, e livrarmo-nos do cheiro pestilento da tecnorreia desenfreada. Só assim podemos voltar aos tempos áureos do simbolismo e habitar de novo uma Terra plana assente sobre quatro elefantes e uma tartaruga, simbolicamente mais rica que este pobre ateísmo de viver numa esfera de rocha pendurada do nada.

terça-feira, maio 13, 2008

13 de Maio.

Há quase 100 anos, neste mesmo dia, um acontecimento mudou a vida de muitos milhões de pessoas. A 13 de Maio de 1913, Igor Ivanovich Sikorsky pilotou o S-21 Russky Vityaz, o primeiro avião quadrimotor de sempre e que ele próprio concebera. Foi o percursor dos bombardeamentos estratégicos e da aviação comercial moderna. Para bem ou para mal, a criação de aviões de grande porte teve consequências profundas para a nossa civilização.

Todos os anos um milhão e meio de crentes comungam em Fátima. São movidos pela fé e pela crença que a mãe do seu deus veio ali dar uma mensagem de importância suprema. Para quem não acredita a mensagem é críptica e inconsequente, mas estas coisas são assim mesmo. São só para quem tem fé.

E todos os dias três milhões de pessoas e centenas de milhares de toneladas de carga voam por todo o mundo. São movidas pelo trabalho de pessoas como Sikorsky, mas a maioria nem sequer ouviu falar deste pioneiro da aviação. Não faz diferença. Os aviões funcionam bem sem fé.

segunda-feira, maio 12, 2008

Fundamentos.

No Companhia dos Filósofos o Bruno escreveu um post interessante sobre ciência e religião (1). Estou de acordo que a ciência também tenta «responder às tais grandes questões da nossa existência» e concordo que a questão fundamental no debate entre ciência e religião é se o universo se deve a «algo ou alguém?», se a causa é um mecanismo ou uma pessoa.

Mas o Bruno vira subtilmente o argumento quando afirma, mais adiante, que a «grande questão [é] o tipo de fundamento que estamos dispostos a procurar: pessoal ou impessoal». Não pode ser. A questão é o fundamento em si e não a nossa disposição. Não devemos confundir o que é com o que gostaríamos que fosse. Além disso, “procurar” tem aqui dois sentidos muito diferentes.

A religião procura o fundamento da realidade como o corredor de maratona procura a meta. Com dedicação e esforço, ou por gosto, mas sempre com aquele resultado em vista e o trajecto traçado. Não volta atrás, não explora alternativas nem reconsidera premissas. É movida pela firme convicção que a meta está ali e o que importa é chegar lá. A ciência procura como um detective. Tem suspeitas em vez de fé, tem sempre caminhos por percorrer e o resultado só se sabe no fim. Move-se pela necessidade de esclarecer cada dúvida. Parece-me que enquanto não conhecermos o fundamento último do universo é insensato escolher uma direcção e desatar a correr sem olhar para trás.

Talvez por este uso ambíguo de “procurar”, o Bruno limita a ciência ao materialismo, como se a ciência também corresse só em frente:

«Enquanto numa visão materialista este fundamento último se reduz a um algo que podemos conhecer cientificamente, as grandes religiões monoteístas procuram e acreditam num Deus que é Alguém e não uma coisa, e que não é, portanto, totalmente cognoscível pelo método da ciência. Tentar aplicar a Deus o método científico não resulta, tal como não resulta utilizar o método científico para me relacionar com um amigo (a menos que queira também reduzi-lo a uma caixa de acção reacção)»

O materialismo é o principal suspeito. Pessoalmente, considero-o mesmo culpado de fundamentar o universo. Mas não é o único suspeito e se houver evidências que é inocente a ciência procurará noutros lados como já fez no passado. Por confundir o materialismo com a ciência, ou o suspeito com a investigação, o Bruno conclui que a ciência não nos ajuda numa relação com um amigo «a menos que queira também reduzi-lo a uma caixa de acção reacção». Não é verdade.

Podemos estudar psicologia, arqueologia ou primatas sem reduzir tudo a meros mecanismos desprovidos de intenção. O essencial para a ciência é a experimentação, e essa também é fundamental nas relações humanas. Desde que nascemos que fazemos experiências com os outros. Cada sorriso, cada birra, cada carinho e exigência dá-nos dados para reformular hipóteses. Não são hipóteses formais mas qualquer ser humano privado destes resultados experimentais não vai conseguir sequer formar modelos intuitivos que permitam relacionar-se com os outros.

Concordo que a questão importante é o tipo de fundamento que o universo tem mas não confio nas religiões para o descobrir porque assumem que já o conhecem em grande detalhe. Sabem pormenores acerca dos seus deuses que nem os deuses desconfiam. Mesmo que este fundamento seja um deus pessoal é a ciência que o vai encontrar. É a única que procura em vez de julgar que encontrou. Finalmente, é a experiência que nos ensina a relacionarmo-nos com outros. Tanto que as religiões projectam nos seus deuses o que aprendem com humanos. O deus pessoal é humano, criado à nossa imagem. Ama, condena, castiga, regozija, aprova, reprova, descansa ao Sábado e até gosta de ouvir louvores.

Antes de podermos desenvolver uma relação com o hipotético criador do universo temos que aprender algo acerca dele. Temos que o tornar objecto de ciência. Mas antes disso há que determinar se o universo de formou por algo, por alguém ou por outra coisa qualquer que ainda não imaginámos. Não vejo em nenhuma fase desta investigação um papel útil para as religiões

1- Bruno, 30-4-08, O fundamento último da existência: algo ou alguém?

domingo, maio 11, 2008

Milagre da medicina veterinária.

Hoje os miúdos vieram acordar-nos às sete da manhã numa grande excitação, em contraste com as vezes que nos acordam às sete da manhã só porque lhes apetece. A nossa porquinha da Índia, que já há uns tempos parecia estar um bocado gorda, teve três crias. Há umas semanas ainda tínhamos duas porquinhas. Infelizmente, a outra sempre foi doente e acabou por morrer. Mas não pode ter sido responsável porque os vários veterinários que a examinaram garantiram ser também fêmea.

Trata-se pois de um milagre, um Mistério insondável que a medicina (veterinária) nunca poderá explicar. Como as pessoas alegadamente diagnosticadas por médicos infalíveis, que sofrem anos de uma doença incurável e depois se curam por milagre.

Mas se apanho o santo milagreiro que fez isto vai ouvir das boas...

sábado, maio 10, 2008

Associação Ateísta Portuguesa, continuação.

Hoje almocei com algumas das pessoas que estão a formar a AAP e o consenso é que a associação tentará representar todos os ateus ou, pelo menos, a grande maioria. É uma intenção que subscrevo e apoio. Não sei se vamos conseguir mas se isso fosse razão para não tentar ainda hoje usava fraldas (não uso, para quem não sabe, e normalmente safo-me bem). Mas escrevo este post principalmente por duas razões. Primeiro, para assegurar (ou desiludir) os leitores que o encontro com o Luís Grave Rodrigues não deixou ninguém incapacitado para blogar. E, segundo, para esclarecer o sentido desta associação, que é o contrário do que alguns julgam ser.

Os crentes religiosos procuram uma religião que os guie e lhes diga como viver enquanto crentes. O sentido é da associação, tradição e comunidade religiosa para o indivíduo. O ateu, seja porque razão o for, assume individualmente a responsabilidade pela forma como vive a sua vida. Uma associação não lhe vai dizer como ser ateu. Isso já o ateu sabe. Mas muitos fazem uma confusão semelhante à que baralha as leis humanas com as leis da Natureza e faz pensar que há um Legislador. As nossas leis são normativas; funcionam da lei para o legislado dizendo o que este último deve fazer. Mas as leis da Natureza são descritivas e formam-se no sentido inverso. A Natureza faz o que faz e nós limitamo-nos a descrever o que quer que isso seja.

Analogamente, não queremos uma associação ateísta para dizer aos ateus como ser ateu. Não é legislação nem religião; o seu sentido é o oposto. Queremos uma associação que descreva o que os ateus são e que mostre as preocupações e interesses de quem é ateu. E daqui vem a maior dificuldade. Enquanto os crentes se associam facilmente porque cada crente sente necessidade da sua religião, os ateus não sentem necessidade de se associar porque já têm todo o ateísmo que precisam. Os benefícios da associação são só indirectos, a longo prazo e mais a nível social que individual, beneficiando todos os ateus sejam sócios ou não.

Os crentes que interpretem esta associação como fanatismo ateu podem ficar descansados. Não queremos uma igreja ateísta que ponha todos os ateus na mesma linha. Queremos apenas algo que explique à sociedade o que nós somos. E os ateus que não sentirem necessidade de se associar para ser ateus têm razão. A associação é que precisa deles para poder representá-los correctamente. Mas todos os ateus têm a ganhar se a sociedade compreender e reconhecer a legitimidade deste modo de vida.

sexta-feira, maio 09, 2008

Treta da Semana: Digo o que quero.

A liberdade de expressão não pode ser apenas o direito de se dizer o que se pensa. Porque a comunicação é sempre a dois, tem que incluir o direito de não ser incomodado com opiniões que não se quer conhecer. Enviar SPAM, fazer discursos no autocarro, encher caixas de correio com papelada que ninguém pediu ou andar na rua a opinar de megafone não são exercícios de direito. São abusos e falta de respeito pelos direitos dos outros. Mas nem todos reconhecem que o direito de falar não implica a obrigação de ouvir:

«Em relação a espaços públicos, sejam eles fóruns, blogs, páginas pessoais ou outros, parece-me mais do que evidente que cada pessoa deve comentar ou intervir onde muito bem lhe agradar e como lhe aprouver. Não vejo mesmo o que pode ser discutido a este respeito, trata-se afinal da tão apregoada e incensada liberdade de expressão e mais ainda na Net, onde ela atinge de facto o seu expoente máximo.»(1)

Em relação a espaços públicos, sejam esplanadas, praias ou ruas é evidente que se deve respeitar o espaço pessoal de cada um. Não sentar à mesa de estranhos e meter conversa se não nos querem lá e não encostar a toalha à de um desconhecido só porque a praia é pública. E como a liberdade na Internet é para todos também aqui é preciso respeito mútuo. Todos têm o direito à sua toalha virtual, seja blog, página ou outro fórum, e todos têm a obrigação de respeitar a toalha alheia. Infelizmente, confundem o dever de respeitar com os mecanismos de último recurso para impedir os piores abusos:

«Depois, nos blogs basta activar a moderação dos comentários para filtrar tudo aquilo que seja inconveniente, ofensivo ou simplesmente desagrade ao respectivo dono. Além disso, é também fácil impedir o acesso aos indesejáveis, através do bloqueio ou eliminação de nicks.»(1)

Se alguém me perseguir todos os dias pela rua, pelos transportes públicos e restaurantes a bombardear-me com opiniões contra a minha vontade posso recorrer à lei para que o impeça. Mas este recurso não substitui o dever de me deixarem em paz, mesmo em locais públicos. Apagar comentários e bloquear o acesso são sintomas de que algo já está a correr mal, como seria se precisássemos de um polícia para expulsar da praia quem pisasse as toalhas dos outros. E um blog pessoal, como o nome indica, não é um espaço público. O espaço público é a Internet. Os blogs são aquelas parcelas de espaço pessoal fundamentais na partilha do espaço público. São toalhas de praia, mesas de café e assentos de autocarro.

Uma causa deste problema é o recurso ao anonimato e aos pseudónimos para fugir ao dever de respeitar os outros e para dizerem o que nunca diriam em pessoa. Quando lerem comentários nos blogs imaginem que era mesmo um debate público e que essa pessoa se levantava diante de todos e usava da palavra para dizer aquilo. Hão de notar que os comentários que mais destoariam são quase sempre anónimos.

E isto é fruto de mais uma infeliz confusão. Muitos pensam que o anonimato dá mais liberdade de expressão mas enganam-se. A liberdade é poder exprimir a minha opinião como sendo uma opinião minha. Fazê-lo escondido atrás de uma máscara é prescindir de uma parte importante dessa liberdade, e fazê-lo sem respeito pelos outros é privá-los de outra.

1- Leprechaun, em comentário ao post O Método

quinta-feira, maio 08, 2008

Como meter o pé na argola.

Há umas semanas fui convidado para ir ao programa «As Tardes da Júlia», na TVI, que ia ser sobre o ateísmo. Só que calhava no dia 24 e eu tinha o debate em Braga na noite de 23, por isso declinei o convite. Dos arredores de Valença do Minho, tentei assistir à emissão em directo. Aguentei pouco. A conversa, em vez de ser sobre o ateísmo, foi a falar mal de quem ia à igreja, da Bíblia e do padre que lá estava, o Joaquim Carreira das Neves. Entre criacionismos e outras tretas já me tinha passado o trauma daqueles dez minutos. Mas ontem o Luís publicou o post «Como crucificar um padre»(1). Como vou almoçar com ele no Sábado se calhar devia publicar isto só no Domingo. Mas não resisto. Treta é treta.

O Luís violou logo à partida os três mandamentos do discurso ao vivo. Não imitar os velhos dos marretas, não chamar idiotas à audiência e nunca, nunca, atacar o padre simpático com décadas de experiência a falar em público. Mas aconteceu, paciência. Não é a participação dele no programa que eu quero criticar. Vou-me cingir à alegada crucifixão do padre.

«[O] padre Carreira das Neves demonstra bem como não há nada melhor do que uma boa dose de irracionalidade encasquetada na cabeça para levar qualquer «pessoa de fé» a dizer na mesma frase uma coisa e o seu contrário. Por exemplo, começa este homem de Deus por negar a política da Igreja Católica contra o uso do preservativo. Para depois, dizer que não vê qualquer inconveniente para o seu uso, que defende incondicionalmente. Haverá alguma consequência disciplinar para isso? É que o padre carreira das neves é professor de teologia numa Universidade!»(1)

O padre tem uma irracionalidade encasquetada na cabeça porque não vê inconvenientes no uso do preservativo e não é despedido por causa disso. Isto preocupa-me. É que eu estou na mesma situação. E além do raciocínio dúbio não é verdade que o padre tenha negado a política da Igreja. Pelo que ouvi no vídeo, o padre apenas disse que não tinha conhecimento da Igreja mandar queimar preservativos em África.

Mais adiante, o Luís escreve que «o bom padre mete os pés pelas mãos: começa uma frase a dizer que é «contra o aborto» porque é «pela vida», para meia dúzia de segundos depois acabar a dizer que afinal e em certos casos… é a favor do aborto!». Esta afirmação é desonesta. Os “certos casos” foi a gravidez ectópica, com a qual o Luís tentou entalar o padre. A gravidez ectópica põe em perigo a vida da mulher e, ao contrário do que o Luís esperava, o padre disse que se justificava abortar nestas condições. Não há incoerência entre ser pela vida e aceitar o aborto quando a vida da mãe está em risco. O problema aqui foi apenas que o padre não deu a resposta que o Luís gostava que ele tivesse dado.

Eu concordo com o Luís em muita coisa. Concordo que a fé é irracional e não existem deuses. Concordo com as críticas aos dogmas da Igreja, e faço-as aqui também. Concordo que é treta dizer que a fé transcende a razão e concordo que a teologia é uma batota intelectual. Se transcendemos a razão, como diz Dennett, então Deus é uma sandes de presunto porque sem razão vale tudo. E reconheço ao Luís o direito de escrever o que quiser no blog dele. Até, por muito que me custe, o direito de salpicar os posts com frases em bold!.

Mas tenho que condenar estes ataques irracionais às pessoas. No Sábado logo se vê se levo na cabeça, mas hoje o veredicto só pode ser este. Pelas normas vigentes neste blog, Luís, declaro esse teu post uma treta.

E veio mesmo a calhar, agora que estamos a discutir a formação da Associação Ateísta Portuguesa. Quando cada um fala por si não há problema, até porque estes despiques são divertidos (se não houver post no Sábado já sabem que me enganei). Mas para mim tem que ficar claro que ninguém vai escrever uma coisa daquelas em meu nome. Espero que se consiga uma associação que represente realmente o que os ateus têm em comum e não apenas a versão favorita de alguns. Senão lá se vão os seis euros...

1- Luís Grave Rodrigues, 7-5-08, Como crucificar um padre

0:005h: Editado por leitores mais exigentes terem apontado a ambiguidade das alusões ao espiritismo. E uma gralha no título...

quarta-feira, maio 07, 2008

Evolução: A selecção natural.

A sobrevivência do mais apto traz à mente a chita a caçar a gazela, com a chita obviamente mais apta e a gazela o sacrifício à cruel selecção. É uma metáfora muito mal compreendida. No que toca à selecção natural, as chitas e as gazelas até estão a colaborar. Melhor dizendo, as características das chitas que caçam gazelas cooperam com as características das gazelas que escapam, eliminando as características das gazelas apanhadas e das chitas que morrem à fome. Mas é melhor explicar.

Primeiro, as ideias fundamentais. A evolução é a variação das características na população e a selecção natural é apenas um dos mecanismos que as faz variar. Mas este mecanismo é complexo e poderoso porque opera na relação de quatro níveis de organização: o gene, o organismo, a população e o ecossistema. A selecção natural guia a evolução da população agindo sobre cada organismo* mas o que persiste são as características herdadas pela cópia dos genes.

Cada chita e gazela é uma equipa de genes. São estas equipas que participam nas eliminatórias. Mas a competição não é ganha por equipas. A cada geração as equipas desfazem-se, cópias dos genes formam novas equipas e o que perdura são as características transmitidas pela replicação do ADN**. A competição, na realidade, é entre características, e a evolução é a variação da distribuição destas características na população. Como há um número limitado de cópias de cada gene de chita, mais cópias de genes para músculos rápidos implica menos cópias de genes para músculos lentos. Nesta competição, os genes das gazelas rápidas prejudicam os genes de chita para músculos lentos e, por isso, beneficiam os genes de chita para músculos rápidos.

Um gene sozinho não faz nada, e só prevalecem na competição com outras variantes os genes que formam boas equipas. Mas o interessante é que a variante (o alelo) que torna o músculo da chita mais rápido não forma equipa apenas com outros genes da chita, os que fazem articulações flexíveis, dentes afiados e assim por diante. De uma forma menos directa mas igualmente relevante, forma equipa com os genes para a rapidez da gazela que o ajudam a eliminar os genes que fazem chitas mais lentas.

A evolução ocorre na população, quem compete por lugares na próxima geração são os genes e as eliminatórias são entre equipas de genes que colaboram para vencer outros genes. Estas equipas correspondem aproximadamente a organismos, mas não totalmente, o que faz uma grande diferença. Os genes de fungos e algas fazem equipa nos líquenes. Os genes das mitocôndrias juntam-se aos genes das nossas células, os genes dos pais fazem parceria com as suas cópias nos filhos e os genes das formigas colaboram no formigueiro. Do cérebro humano ao endoesporo e do vírus ao cachalote há uma imensidão de produtos da colaboração de genes obrigados a trabalhar em equipa pela eliminação implacável dos genes menos aptos.

E tudo isto sem pinga de inteligência. Só tempo e a paciência característica da matéria inconsciente. Copiam-se uns, perdem-se muitos e repete-se, repete-se, repete-se enquanto o Sol durar. Há quem diga que isto rouba sentido à nossa existência. Disparate. Como se um sopro no barro rivalizasse a magnificência deste processo. Os genes da minha equipa venceram milhões de torneios sem uma única derrota. São de origem humilde mas chegaram cá pelo seu mérito, sem milagres nem favores de Ninguém.

É pena que tantos se esforcem por não perceber a selecção natural. A pensar na dentada da chita passa-lhes despercebida a rede de colaborações que liga todo o ecossistema, todas as espécies presentes e passadas e que gerou até uma espécie capaz de compreender este processo. Quando se esforça. Infelizmente, uma boa parte dessa espécie usa o cérebro, que demorou quatro mil milhões de anos a aperfeiçoar, só para viver no engano e enganar os outros.

* Ou grupos de organismos em casos excepcionais como parasitas num hospedeiro ou populações que colonizam ilhas.
** E mais uma data de coisas como ARN, proteínas, membranas celulares, organelos... mas isto tem que caber num post.

terça-feira, maio 06, 2008

Nós, chimpanzés e vírus.

O leitor J.H. recomendou este vídeo que agradeço e recomendo também. É de notar o contraste com a “interessante teoria” que o abacate faz bem às grávidas porque se pode desenhar bébés lá dentro (1).



1- Este não é a gozar

segunda-feira, maio 05, 2008

O método.

Na terra do Dragão diz-se muito mal do método científico. Cientóino, no dialecto local. No mundo real o método científico é muito discutido porque qualquer definição detalhada levanta problemas. A amplitude e complexidade das matérias que a ciência estuda dificultam a descoberta dos detalhes comuns a todas as áreas. Mas na terra do Dragão o problema é o fundamento do método ser evidente e claro. Lá, evidências e clareza são punidas. Alguns até criticam o “método” com aspas para evitar a acusação de inteligibilidade, um ilícito quase tão grave.

A base do método científico é a distinção objectiva entre sucesso e fracasso. Este fundamento vai além da ciência, se bem que se aplique de formas diferentes a outras actividades. É uma realidade inescapável no pára-quedismo ao passo que na poesia não serve de muito. E na demagogia é mesmo um empecilho. Mas se queremos conhecimento temos que o distinguir do erro. Ninguém aprende a andar de bicicleta sem saber a diferença entre equilibrar-se e cair.

O exegeta do ciclismo tem uma abordagem diferente. Após trabalhar textos sobre a fenomenologia do selim (ou do sentar sem ele) e a problemática da existência afunilada pelo horizonte do pedal, pondera o Sentido intemporal da bicicleta na abrangência plena da sua identidade, ipsidade e alteridade. De preferência em Alemão. A bicicleta, dirá, não se usa nem se acredita. Vive-se. Convicto da sua prodigiosa capacidade ciclista, e estatelado no meio da via, troça então dos cliclistóinos que se desviam para não o atropelar. Enfim, fica a narrativa para quem a quiser desconstruir e passo ao que me interessa.

O problema é a moda de fingir que as coisas não são como são. Sabem que não se enfia os dedos no casquilho da lâmpada mas afirmam, com ar sério, que cada um tem as suas verdades e que o conhecimento é subjectivo, que há várias realidades e essas coisas. Depois espalham estas opiniões por redes de computadores que só funcionam graças ao tal método e à aplicação de regras objectivas e bem definidas, aparentemente inconscientes da contradição. Aparentemente. Porque, se repararem, entram sempre pela porta e não tentam atravessar paredes. Mera coincidência, dirão, visto não haver realidade objectiva. Mas a estatística desmente-os.

A democracia moderna depende da ciência, da tecnologia e da participação informada dos cidadãos. Decisões acerca da investigação em células embrionárias, da modificação genética de organismos ou do aquecimento global têm que ser tomadas democraticamente porque implicam juízos de valor, mas são também questões objectivas que não se resolvem por demagogia. O vale-tudismo e a douta ignorância são uma irresponsbilidade por remeterem a discussão para concursos de prosa e disparate sonante.

Não há muito a fazer. É um direito que lhes reconheço e que estou disposto a defender. Mas, de vez em quando, é preciso tirar-lhes o capachinho e dar uma boa gargalhada para mostrar a treta que aquilo é. É preciso, e dá gozo.

Bom e barato, II.

Stanford Encyclopedia of Philosophy, com artigos aprofundados sobre quase tudo em filosofia.

Dicionário Escolar de Filosofia, em Português, especialmente útil para alunos do ensino secundário.

Também útil em Português é o dicionário online da Texto Editores e Priberam, Língua Portuguesa Online.

Finalmente (por hoje), o Projecto Gutenberg, com acesso a cerca de uma centena de milhar de livros gratuitos. A maioria está em Inglês, mas tem alguns na nossa língua.

A informação sobre o Dicionário Escolar de Filosofia veio deste post do Desidério no De Rerum Natura, e obrigado ao ardoRic por me lembrar do projecto Gutenberg.

Editado às 15:00h, corrigi a gralha no "Portugês". Obrigado Joaninha.

sábado, maio 03, 2008

Uma sexta na quinta dimensão.

Ontem andei a passear pelos comentários do Dragoscópio. Sítio estranho. Todas as portas vão dar ao mesmo quarto, ninguém sabe onde é para cima nem para baixo e há uma dúzia de pessoas iguais, a maioria assinando «zazie», todas a falar ao mesmo tempo. Mas tudo muito simpático e bem ensaiado. Os insultos saem com a fluidez de muito treino mas parecem frescos e feitos especialmente para o insultado. Dão a agradável sensação de um atendimento personalizado. E os ataques pessoais são mesmo pessoais. Salvo raras excepções, não atacam a profissão, as ideias, nem sequer o que se escreve. Ali é a pessoa que importa. O anfitrião até dedicou um post aos alemães por minha causa(1). É tocante.

E relaxante. Naquela caixa de comentários apercebi-me do stress que é escrever. Se a ideia é mesmo esta, se é clara, se estou a considerar as objecções do outro, que outras objecções pode suscitar e assim por diante. São preocupações que o hábito disfarça mas que estão sempre presentes. Excepto no Dragoscópio. Lá ninguém se importa com o que eu escrevo e acolhem tudo da mesma maneira. É um peso que sai dos ombros. Bem haja a todos.

Infelizmente, não pode ser todos os dias porque aquilo é viciante. Mas foi um bom descanso e já me deu ideias para uns posts. Vou continuar a visitar de vez em quando e até passar lá um bocado sempre que tiver saudades de preservativos na mioleira e outras especialidades da casa.

1- Dragão, 3-5-08, Bunker, sweet bunker.

sexta-feira, maio 02, 2008

Este não é a gozar

mas é como se fosse...



Este design não é meramente inteligente:

«Every whole food has a pattern that resembles a body organ. This could only be achieved by intellectual design.» (Página do video).

Aquilo do aipo e dos ossos serem 23% sódio penso que se refere à mulher de Lot.

Outros links:
GodTube
Blow the Trumpet

Via Pharyngula

Treta da Semana: O Princípio Antrópico.

É uma treta engraçada que baralha muita gente. De todo o universo, eu habito logo no sítio com as condições necessárias para eu sobreviver. Fantástico. Não vivo chamuscado no Sol, espremido em Júpiter, sufocado na Lua, congelado em Plutão ou esborrachado num buraco negro. Sorte? Mão de Deus? Não. É a lógica trivial que faz com que o tipo que não tem emprego esteja desempregado. Se eu existo tem de haver condições que permitam a minha existência.

Chama-se princípio antrópico fraco, não por ter defeito mas por confusão. Quando observamos algo devemos considerar que estamos cá para o observar e admitir que estes factores possam estar relacionados. Inicialmente, foi formulado para contrapor a teoria do estado estacionário. Esta defendia que não podemos assumir que vivemos numa época privilegiada e, por isso, o universo tinha que ser sempre como é agora. O princípio antrópico permite rejeitar esta premissa. Se cá estamos tem de haver condições para cá estarmos e se a única época que o permite é esta é nesta que temos de existir.

Este “ter de” fez a confusão que levou ao principio antrópico forte: porque nós existimos o universo tem de ter sido criado de forma a permitir a nossa existência. Mas quem não tem emprego tem de estar desempregado apenas no sentido da conclusão seguir da premissa. Nada o obriga ao desemprego nem implica que esteja predestinado a estar desempregado.

Há uns tempos o Timshel escreveu que «O mais poderoso argumento do ateísmo contra o princípio antrópico e a existência de uma intencionalidade transcendental que presidiria à existência do Universo e da vida (nomeadamente da vida humana) é que, num sistema em que o tempo e o espaço sejam infinitos, tudo pode acontecer (até este nosso mundo).»(1)

O principio antrópico fraco é razoável, mas diz apenas que a probabilidade condicional do universo permitir a nossa existência sabendo que existimos é de 100%. E o princípio antrópico forte é treta. Confunde a probabilidade condicional com a probabilidade, à partida, de existirmos e é daí que infere que o universo teve que ser criado à nossa medida. É usado como argumento para uma criação inteligente mas é como o desempregado concluir que um deus criou o universo só para lhe tirar o emprego. Compreende-se por frustração ou desespero mas não se justifica pela razão.

Podemos usar o princípio antrópico fraco para explicar porque é que este universo é assim. Se não fosse não estávamos cá. E esta explicação precisa que existam outros universos diferentes do nosso, o tal «tudo pode acontecer» do Timshel. Mas o raciocínio é simplesmente que se houver infinitos universos o princípio antrópico fraco explica que este é assim porque se não fosse estaríamos noutro. Não é daqui que se infere a existência de outros universos; isso tem que vir de outras teorias. E nada disto sugere que possam ocorrer milagres neste.

Em suma, o princípio antrópico é um favorito dos crentes, especialmente dos criacionistas, mas invocam sempre o errado. Quando uma coisa acontece podemos inferir com confiança que é possível acontecer. Isto até é um argumento contra os milagres. Mas é insensato quando algo acontece inferir que o universo foi feito de propósito para que isso acontecesse.

1- Timshel, 13-4-08, A propósito da Ressurreição

quinta-feira, maio 01, 2008

O fim dos processos?

A RIAA, a associação americana de companhias discográficas*, tem ameaçado milhares de pessoas com processos por partilha de ficheiros. A maioria não arrisca e cede à extorsão, pelo que muito poucos vão a tribunal. Mas parece que se vai acabar o negócio.

Contratada pela RIAA, a MediadSentry identifica ficheiros em partilha nas redes P2P e a RIAA usa esta informação para agir contra as pessoas que pagam aquelas ligações à Internet. Isto tem sido contestado por várias razões, desde não haver indícios que quem paga a ligação ser quem partilha os ficheiros até à legitimidade da MediadSentry reunir esta informação sem ter licença para este tipo de investigação. Mas esta semana surgiu um problema legal maior.

No caso Atlantic v. Howell, no Arizona, o tribunal federal rejeitou a tese da RIAA que basta disponibilizar os ficheiros numa rede de partilha para infringir o copyright. A infracção, segundo a lei, exige a transferência não autorizada dos ficheiros, por isso o tribunal indeferiu a pretensão da RIAA. Além disso as únicas transferências de que a RIAA tem evidências são entre o acusado e a Mediadefender, a quem a RIAA autorizou a descarregar os ficheiros como parte da investigação. Esta decisão afecta toda a estratégia legal da RIAA porque só conseguem saber que ficheiros estão disponíveis e não quantos são realmente transferidos, e sem essa evidência não têm bases legais para os processos.

Segundo Ray Beckerman, do Recording Industry vs The People, o mais provável é que os accionistas das discográficas forcem a RIAA a desistir rapidamente desta táctica para evitar mais embaraços. Pior que processar os fãs só mesmo processar os fãs e perder.

Mais detalhes em Recording Industry vs The People, ZeroPaid, EFF e Remixtures.

*Oube lá, exclama a Abobrinha, por que raio precisam as companhias discográficas de uma associação? Pois. Mas é assim...

Editado às 23:34. O original dava a ideia que o juíz também rejeitado os ficheiros descarregados pela MediaSentry como evidência de cópia ou distribuição. Mais sobre isto no Patry Copyright Blog.

Morto. Ou pior...


Via Sivacracy.

Refutando o tectonicismo.

Porque ninguém estava lá para ver.



Obrigado ao Pedro Amaral Couto pelo achado.