sexta-feira, julho 31, 2015

Demarcação.

A defesa do aborto como um direito incondicional exige distinguir, por algum critério, o feto que ainda não conta do feto que já tem direitos. Como os atributos que nos tornam pessoas – personalidade, auto-consciência, capacidade de raciocínio, memória biográfica e afins – só surgem gradualmente após o parto acaba por não haver critérios adequados que sirvam o propósito de colocar a fronteira à volta das dez semanas. Mas este é o problema menor. O erro principal nisto é avaliar o acto ao contrário, derivando direitos antes de deveres.

Dizer que eu tenho o direito de que não me matem em virtude de atributos como auto-consciência e afins é uma simplificação conveniente mas fundamentalmente errada. Se eu estiver fechado numa sala com um leão esfomeado eu não tenho qualquer direito de não ser morto porque falta ao leão o necessário para que seja eticamente imputável e tenha um dever moral de não me matar. Terei o direito de não ser morto se estiver num quarto com uma pessoa armada que, pelos seus atributos, já tem o dever de não me dar tiros. É desse dever que surge o meu direito de não ser morto. Ou seja, o direito à vida não advém automaticamente dos atributos do objecto em si, até porque valores não brotam espontaneamente de meros factos. O direito à vida, ou qualquer outro, deriva da avaliação ética daquele acto cometido por aquele agente sobre aquele sujeito naquelas condições. É por aí que temos de começar.

Para isso temos de considerar factores como as limitações cognitivas do agente, a sua liberdade para escolher entre as várias opções e a relação causal entre a sua escolha e os efeitos que dela resultarem. Vou assumir que os primeiros são constantes e focar apenas os efeitos e a sua relação causal com a decisão, dando alguns exemplos concretos. Vou chamar feto-antes ao feto que ainda não tem os atributos considerados necessários para ter direitos e feto-depois ao que já os tem, assumindo apenas que esses atributos têm algo que ver com a mente mas sem me preocupar com quais sejam em detalhe. O primeiro exemplo será o de retirar ou não os olhos a um feto-antes. O que está em causa são décadas futuras de cegueira ou visão, conforme a opção, e essa grande diferença será claramente efeito da decisão de retirar ou não os olhos. Por isso, avaliando o acto, concluímos que é eticamente inadmissível cegar um feto em qualquer estado de desenvolvimento, seja antes ou depois da linha de demarcação. O método inverso, de começar pelos atributos e direitos do feto, chega à mesma conclusão mas revela já um problema. Apesar do feto-antes não ter quaisquer direitos, se o cegarmos então o feto-depois surgirá cego. Como esse tem o direito de não ser cego não é admissível cegar o primeiro, pois tal afectaria o segundo. O estranho aqui é defender que não é legítimo cegar nenhum dos fetos ao mesmo tempo que se defende que só um deles tem o direito de não ser cego.

No caso do aborto as conclusões divergem. Se começarmos por avaliar o acto concluímos o mesmo que no caso anterior. Matar o feto-antes é inadmissível porque toda aquela vida que seria vivida se não o matássemos não será vivida se o matarmos, e isto claramente por causa da opção de o matar. Mas se começarmos pela atribuição de direitos podemos considerar que, ao contrário da cegueira, a morte só conta na altura em que o feto-antes é morto e como nunca surge sequer um feto com direitos então não há problema. Ou seja, apesar do feto-antes não poder ser cego porque o feto-depois tem o direito de não ser cego, o feto-antes pode ser morto mesmo que o feto-depois tenha o direito de não ser morto porque nunca chega a existir um feto com os atributos necessários para ter direitos.

Consideremos então a possibilidade de retirar ao feto-antes tudo aquilo que, nessa abordagem dos direitos, iria conceder o direito à vida. Seja auto-consciência, raciocínio, memória, o que for. Amputamos uma parte do cérebro em formação e garantimos que esse feto irá crescer fisicamente normal mas num estado vegetativo permanente, desprovido de qualquer atributo de pessoa. Será até uma fonte conveniente de órgãos para doação, se algum parente próximo precisar. Avaliando o acto, a conclusão é a mesma. Há uma diferença enorme entre as duas alternativas. Por um lado, uma vida plena e, por outro, uma vida em estado de vegetal. E essa diferença tem por causa principal a nossa decisão de obliterar parte do cérebro do feto. Por isso, é inadmissível fazer isto a qualquer feto. Mas se começarmos pelos atributos e direitos, concluímos que, tal como no caso do aborto, como nunca chega a surgir nada que possa ter direitos não se viola direitos de ninguém e o acto será admissível. Mesmo sabendo que aquele corpo de vinte anos está ali a babar-se virado para a parede em vez de no cinema com a namorada só porque decidimos amputar-lhe parte do cérebro no início do seu desenvolvimento. Eu proponho que isto está errado. Não proponho que esteja errado por causa deste exemplo, que serve só para ilustrar o problema. Proponho que está errado porque os direitos são reflexo de deveres que resultam da avaliação ética dos actos e, por isso, é um erro tentar avaliar os actos começando por atribuir ou negar direitos*. Os exemplos servem apenas para ilustrar o disparate que daí resulta.

Resta o problema dos espermatozóides. Muita gente acha necessário fundamentar a avaliação nos atributos do objecto da acção para evitar ter de proteger os gâmetas, que também têm o potencial de resultar numa vida consciente e com direitos. Além disto ser uma aldrabice, porque se vamos fundamentar a ética conforme o que é mais conveniente então mais vale deitarmos fora a ética e fazermos o que nos dá na gana, é desnecessário porque um factor importante para avaliar um acto é a relação causal entre a escolha e os seus efeitos. Já escrevi sobre isso antes** mas voltarei ao problema num próximo post.

*Um erro que não surge apenas nestes exemplos mas também, historicamente, em todos os casos de escravatura, racismo, genocídios, discriminação e afins, onde se começou igualmente por decidir que um certo grupo não tinha direitos porque lhe faltava certos atributos em vez de pensar nos actos em si e na sua legitimidade. Passa-se o mesmo agora com os direitos dos animais também.
**Várias vezes, mas aqui vai uma relativamente recente: Dawkins, a filosofia, e o aborto.

quinta-feira, julho 30, 2015

Treta da semana (atrasada): Legalizar a tortura.

Ana Sá Lopes, no Jornal i, criticou asperamente as alterações que a coligação PSD/CDS introduziu à legislação sobre o aborto. Lopes diz ser a favor da introdução de uma taxa moderadora no aborto porque «não há, na minha opinião, nenhuma razão lógica para que o acto médico do aborto não fique sujeito às mesmas medidas que qualquer outro acto médico»(1). Concordo com o princípio, que também defendo como critério para avaliar estas medidas. Mas discordo da conclusão. Uma taxa moderadora serve apenas para evitar a utilização desnecessária de um serviço público. É adequada para coisas como as consultas ao médico de família, por exemplo, às quais muita gente gosta de ir só para conversar. Mas é absurdo cobrar taxas moderadoras a grávidas. Esta taxa moderadora pelo aborto é contrária ao princípio de tratar o aborto como qualquer outro acto médico.

Mas este é o problema mais saliente aqui. Qualquer outro acto médico depende de uma apreciação técnica que conclua ser esse o acto mais adequado para resolver aquele problema de saúde. Seja tirar um apêndice, tomar antibióticos ou engessar uma perna. É verdade que no meu corpo quem manda sou eu mas no Serviço Nacional de Saúde devem mandar pessoas que apliquem os tratamentos apenas quando são os mais indicados para tratar os problemas de saúde e que recusem aplicá-los se não forem. A legislação vigente faz do aborto uma excepção ao dispensar qualquer justificação médica. Quem decide é o utente. É de salientar que o referendo perguntava apenas sobre a despenalização do aborto e não sobre se o aborto deveria ser oferecido gratuitamente a todas as grávidas sem qualquer justificação médica. Suspeito que o resultado do referendo teria sido diferente se fosse essa a pergunta, e a forma como este foi transposto para a lei viola o tal princípio razoável de que, sendo o aborto um acto médico legal, devia ser um acto médico como os outros.

Mas, se a lei obriga o SNS a oferecer o aborto como solução para problemas que nada têm que ver com a saúde da grávida – problemas pessoais, financeiros, sociais ou profissionais – então é razoável que se foque esses problemas e se tente procurar, com a grávida, soluções alternativas. Uma razão forte para despenalizar o aborto era a de que retirar a ameaça legal permitiria atacar os factores que levavam as mulheres a abortar e tentar resolver com elas os verdadeiros problemas dos quais o aborto é um sintoma e não uma solução. Infelizmente, mas como era previsível, uma vez passado o referendo a retórica caiu e passou a apregoar-se o aborto como um direito em vez de um problema. Agora nem querem sequer que se discuta a miséria que obriga a mulher a abortar. Se o acto médico do aborto é para ser parecido com os outros, então terá de ser incluído num processo que averigúe qual é realmente o problema e procure a melhor forma de o resolver. Como muitas vezes apontam, presume-se que a mulher não aborta porque lhe apetece mas porque se vê forçada a isso contra a sua vontade. Sendo assim, mais vale eliminar esses constrangimentos do que eliminar o feto.

Além do aborto ser excepcional por ser um acto médico ditado pela vontade do utente, mesmo sem justificação médica, é também excepcional por ser eticamente questionável. Quer se pense que temos o dever de preservar um feto humano às dez semanas ou só a partir das onze, é evidente que a questão não está resolvida. Tanto que se permite aos médicos recusar participar neste acto médico por objecção de consciência, coisa que não se permite na generalidade dos casos. Um médico pode ser contra a pílula ou as transfusões de sangue mas é profissionalmente obrigado a seguir as boas práticas da medicina mesmo contra tais convicções pessoais. Excepto com o aborto porque não só tende a faltar justificação médica para o acto como não há consenso que o aborto seja mesmo um direito da grávida e não uma violação dos direitos do abortado. Neste contexto, faz todo o sentido garantir que a grávida percebe o problema ético e as suas implicações, especialmente sendo ela a única responsável pela decisão final.

Lopes dá um bom exemplo disto. «É como pôr [...] crentes que são contra as transfusões de sangue a fazerem “aconselhamento” junto dos médicos do serviço de urgências.» Pensemos no caso ao contrário. Um paciente com filhos menores recusa uma transfusão de sangue por motivos religiosos e os médicos sabem que isso causará a sua morte, deixando as crianças órfãs. Certamente não será tortura apontar a essa pessoa o conflito entre o seu direito de recusa e o bem estar dos seus filhos. Quando um acto médico suscita dúvidas éticas é razoável que quem toma a decisão o faça consciente destes aspectos da sua escolha.

Se o aborto fosse um acto médico como qualquer outro seria recusado na maior parte dos casos por não haver justificação médica para abortar. Se, por outro lado, vamos usar o SNS para resolver problemas pessoais, profissionais ou sociais, então é evidente que se tem de considerar também esses problemas para tentar identificar o problema certo. E sendo o acto em si eticamente dúbio – é infundada a certeza absoluta que muita gente tem de que o feto até às 10 semanas é totalmente diferente do que é das 11 em diante – é um direito e um dever do utente compreender bem as implicações da sua decisão. Quanto a ser uma tortura, o termo é incorrecto. Ninguém recorre à medicina quando tudo está bem e estes processos podem implicar sofrimento, diálogos desconfortáveis e decisões difíceis. Há casos muito mais trágicos do que uma gravidez indesejada, que nem sequer é propriamente uma doença. Mas diagnosticar o problema, aconselhar o paciente e procurar a melhor solução tem de fazer parte do processo, por muito incómodo que seja fazê-lo. A ideia de que basta deitar fora o feto para que tudo se resolva, sem perguntas ou diálogo, é uma ilusão politicamente atraente mas prejudicial.

1- Jornal i, Legalizar a tortura das mulheres que querem abortar

terça-feira, julho 28, 2015

Treta da semana (atrasada): as passwords.

Tem-se noticiado que um tal “plano B” de Varoufakis incluiria, entre outras coisas, «piraterar passwords de contribuintes»(1) ou «piratear dados dos contribuintes»(2). Com este tipo de jornalismo, não admira que depois o pessoal julgue que Varoufakis «preparou-se para aceder a um programa que não era dele (hacking) para de maneira ardilosa “sacar” dinheiro (pishing) para criar uma banca paralela»(3) e disparates do género. Talvez se os jornalistas tivessem ouvido o que ele disse antes de escreverem as notícias a confusão teria sido menor (4).

O plano de Varoufakis era criar um sistema que permitisse ao Estado grego continuar a pagar prestações sociais, salários e compras mesmo que, como aconteceu, o BCE paralisasse a banca grega para forçar o governo a aceitar quaisquer condições que a troika quisesse impor. Foi, aliás, esse o propósito destes meses de “negociações” em que a Alemanha, principalmente, rejeitou sempre qualquer proposta da Grécia. Era só uma questão de tempo até começarem a vencer os empréstimos da “ajuda” e os gregos ficarem entalados. Para escapar a essa forma previsível de coação, Varoufakis planeou organizar uma base de dados e aplicações que permitissem ao Estado grego atribuir uma linha de crédito a cada contribuinte grego, onde creditaria pensões, salários e outros rendimentos. Cada contribuinte teria então um PIN que lhe permitiria transferir esse crédito para outros e, assim, a economia poderia continuar a funcionar mesmo com os bancos fechados.

Se isto fosse feito em qualquer país normal, o ministério das finanças teria acesso fácil aos dados dos contribuintes e à informação necessária para organizar esse sistema. Que não exige bisbilhotar passwords nem piratear coisa nenhuma. Bastaria implementar essa funcionalidade adicional nos servidores das finanças, criar uma aplicação para o telemóvel, e enviar a cada contribuinte um SMS com o PIN e instruções para fazer as suas transferências. Só que, na Grécia, essa informação é gerida e monitorizada por Bruxelas. O ministério grego das finanças não pode aceder aos dados dos contribuintes gregos sem passar por burocratas estrangeiros o que impedia que Varoufakis preparasse este plano de contingência sem a troika saber. Foi apenas por isso que o ministério grego das finanças teve de contornar as protecções do software do próprio ministério para ter acesso à informação que está normalmente acessível a qualquer ministério das finanças em qualquer país que não esteja em regime de colonato. A “pirataria” que ele estava a fazer é igual à “pirataria” que o nosso ministério das finanças faz quando nos manda emails a lembrar que temos contas para pagar. Nada mais do que isso.

Há nesta história dois aspectos claramente merecedores de serem notícia. Um é o poder que o BCE tem sobre qualquer país do Euro, que lhe permite atropelar a democracia e sobrepor-se à vontade dos eleitores a menos que se tome medidas extremas como a de criar um sistema financeiro independente dos bancos. O outro é a ingerência dos credores nas instituições gregas. Só porque compraram a dívida da Grécia aos bancos privados, para salvar os bancos privados, agora até controlam o acesso do ministério das finanças aos dados dos contribuintes. Mas em vez de focar estes problemas sérios e que nos dizem bastante respeito, os jornais e telejornais portugueses propagam um relato absurdo segundo o qual Varoufakis andaria a piratear passwords. Normalmente, prefiro não atribuir ao dolo aquilo que se pode explicar por mera incompetência. Mas neste caso é difícil.

1- TVI 24, Plano secreto de Varoufakis incluia piraterar passwords de contribuintes
2- DN, Plano B de Varoufakis incluía piratear dados dos contribuintes
3- Observador, Gravação áudio. Já pode ouvir Yanis Varoufakis a falar do Plano B
4- Teleconferência (mp4)

domingo, julho 26, 2015

Treta da semana (atrasada): Dragões aos nós.

O Mats tem defendido regularmente a coexistência histórica entre humanos e dinossauros, até agora sempre com fundamentos questionáveis. Mas, desta vez, apresenta evidências sólidas. Nomeadamente, que «Plínio o Velho escreveu sobre dragões» (1). Perante isto, será difícil insistir na ideia, contrária ao registo audiovisual, de que os dinossauros se extinguiram milhões de anos antes do nascimento dos Flintstones.

Esta evidência é sólida, em primeiro lugar, porque foi Plínio o Velho quem a escreveu. Como salienta o artigo que Mats traduziu, Plínio o Velho «foi um autor, naturalista, e filósofo natural [...] e passou a maior parte do seu tempo a estudar, a escrever ou a investigar os fenómenos naturais e geográficos in loco» Ora, como todos sabemos, um naturalista que passe o seu tempo a estudar fenómenos naturais não vai escrever falsidades. A menos que seja Darwin, é claro, que os evolucionistas e as suas «sempre flutuantes opiniões» nunca são de fiar. Por isso, Plínio o Velho nunca iria escrever sobre dragões se os dragões não existissem. É óbvio que não existem mas, como o Mats aponta e muito bem, Plínio o Velho falava de dragões referindo-se a dinossauros. Plínio o Velho é como a Bíblia: é uma fonte infalível e totalmente fiável de informação, mas é preciso que seja correctamente interpretado por pessoas como o Mats.

Em segundo lugar, Plínio o Velho descreveu dragões da Índia, onde Plínio o Velho nunca esteve mas de onde recebia notícias por viajantes que conheciam quem conhecesse a região. O relato de um viajante que tem um conhecido cujo primo viu um dragão nunca será exagerado – por que razão haveriam de exagerar tais histórias? – pelo que, se alegavam existir dragões gigantes que atacavam elefantes, isto é evidência sólida para a existência de dinossauros na Índia nos tempos do Império Romano. Curiosamente, o hinduísmo não parece contar dinossauros entre as suas divindades. Tem vacas, cavalos com penas, elefantes, cágados, bois, ratos, pavões, bodes e cães (2) mas, aparentemente, os hindus acharam que um dinossauro comedor de elefantes não era algo que merecesse sequer ser mencionado neste contexto. Talvez por o hinduismo não ser a Única e Verdadeira Religião™.

Em terceiro lugar, temos o detalhe e o realismo das descrições de Plínio o Velho quando relata a forma como estes dinossauros atacavam os elefantes: «com tal grandiosidade que eles podem facilmente se envolver e se enrolar em torno dum Elefante, e com tudo isto, agarrá-los com um nó. Neste conflicto, eles morrem, tanto um como o outro. O Elefante cai morto como se tivesse sido conquistado, e com o seu enorme peso esmaga o dragão que se encontra envolvido e agarrado a ele.» Plínio o Velho não só descreve com rigor o que hoje sabemos ser o comportamento típico dos predadores mais perigosos, que é enrolar-se à volta da presa, dar um nó e morrer esmagado, como é exactamente assim que imaginamos um dinossauro – um tiranossauro, por exemplo – a atacar um elefante. Enrola, dá nós, caem os dois e morrem.

Perante isto, comenta Mats que «Um animal que seja capaz, sozinho, de atacar um elefante, e matá-lo, tem que ser um animal com um tamanho e/ou força considerável. A alegação evolucionista de que todos os outros animais citados por Plínio são animais reais, mas o dragão é “mitológico”, é difícil de ser logicamente sustentada. A explicação mais económica para estes “dragões” é que eles são os animais que hoje em dia chamamos de “dinossauros”.» Na verdade, é pouco plausível que um mesmo texto tenha referências a animais reais, como um rato, um coelho e um gato sorridente, mas também inclua seres fictícios, como um chapeleiro louco ou uma carta falante da rainha de copas. E também se pode rejeitar a hipótese de um «naturalista, e filósofo natural» que passe «a maior parte do seu tempo a estudar, a escrever ou a investigar os fenómenos naturais» se vá enganar ou ser enganado. Por isso, temos de descartar a obra de Darwin como errada, face aos relatos de Plínio o Velho sobre animais que claramente teriam de ser dinossauros visto que teriam de ter tamanho e-barra-ou força considerável para se enrolarem à volta de elefantes e morrerem esmagados.

1- Mats, Plínio o Velho escreveu sobre dragões
2- Animal Deities

quarta-feira, julho 15, 2015

19 - 1 = 0

A última ronda de “negociações” com a Grécia decorreu normalmente. O Estado grego continuou a ter de lidar, quase exclusivamente, com um tal “eurogrupo” que não tem estatuto oficial, nem regras, nem responsabilidade perante ninguém. E o método de “negociação” seguiu a tradição que se tem enraizado. Ignorar os eleitores gregos, atirar o seu governo ao chão e dar-lhes biqueiradas até dizerem que sim. Para depois retorquir que logo se vê. Mas a tragédia, infelizmente, não será só grega porque os erros políticos que a causaram continuam por corrigir. E não é preciso um oráculo para perceber quem vem a seguir na lista.

Em geral, nenhum país consegue pagar a sua dívida. Nem a Alemanha. Só a vão substituindo por dívida nova conforme os prazos acabam. Em muitos casos isto é garantido por um banco central que pode emprestar sempre, mesmo que os privados não queiram comprar dívida ao país. É assim que o Japão consegue ter uma dívida pública de quase 230% do PIB sem precisar de resgates. O banco central japonês irá rolando essa dívida até ela mirrar com a inflação ou o universo congelar. Mas, por cá, decidiram que o BCE não pode comprar dívida aos Estados e, por isso, estes só podem rolar a dívida nas condições que a banca privada impuser. Por isso, se há chatice “nos mercados”, os países mais fracos ficam em perigo de default. Basta que a banca privada não queira conceder crédito, mesmo que só por uns tempos. Uma justificação para este sistema foi a de que a banca privada iria gerir melhor o risco de crédito dos Estados, o que é obviamente falso. Sempre que a Grécia leiloava títulos de dívida, bancos privados da Alemanha e da França, principalmente, iam atrás do negócio e ninguém quis regular a sua exposição excessiva até o carrossel se partir. Agora há mais restrições à alavancagem mas o problema fundamental permanece.

Outra justificação para ser a banca privada a gerir o crédito dos Estados era a de que os privados teriam medo de falir se arriscassem demais. Mas, ao nacionalizar o prejuízo dos bancos, eliminou-se qualquer incentivo hipotético que a banca teria para ser responsável. Também os efeitos da austeridade punitiva que agora impõem, como aumentar a mortalidade infantil, os suicídios ou a taxa de infecção por HIV (1), não contribuem nada para desincentivar a ganância dos banqueiros ou a corrupção dos políticos. Os cadáveres amontoam-se e o moral hazard fica na mesma. Quanto ao argumento de que os contribuintes alemães e franceses não têm obrigação de pagar estas despesas, é discutível e é irrelevante porque já o fizeram quando os políticos alemães e franceses resgataram os bancos privados. Esses é que ficaram com o dinheiro dos contribuintes. Os gregos só ficaram com mais dívidas.

Como escreve o Pedro Romano, se bem que no sentido contrário ao meu, há aqui um problema de «framing enviesado». Muita gente, como o Pedro, enquadra esta situação num erro grego de endividamento e má negociação. «O “braço de ferro” entre credores e devedores pode ser visto como uma disputa por recursos: os gregos precisam do dinheiro alemão, e a Alemanha não quer emprestar dinheiro à Grécia.» (2) Esta é uma forma completamente errada de descrever a situação. Primeiro, porque não se trata de “emprestar dinheiro à Grécia” no sentido que normalmente damos à expressão. Vamos imaginar que o Pedro deve 200€ a alguém, não tem como pagar e eu compro essa dívida. Depois passo-lhe um papel a dizer “isto vale 200€”, o Pedro entrega-me o papel para eu considerar a dívida inicial saldada e agora fica a dever-me 250€, que é quanto lhe cobro pelo papel. Contabilisticamente, eu emprestei 250€ ao Pedro. É o alegado valor do papel. Mas foi mesmo só contabilisticamente.

Em segundo lugar, de quem é o dinheiro também é questionável. Os bancos alemães e franceses usaram dinheiro dos depositantes para comprar dívida grega em leilão. Depois os governos alemães e franceses usaram dinheiro dos impostos para dar aos bancos alemães e franceses que se afundaram com o negócio. Entretanto, o dinheiro que tinha ido para a Grécia voltou, principalmente para a Alemanha, pelo enorme desequilíbrio nas exportações, razão pela qual a Alemanha também não tinha interesse em regular a concessão de crédito aos PIIGS enquanto tudo corria bem. A economia europeia está tão interligada que dizer que a Grécia precisa do dinheiro alemão é como dizer que Bragança precisa do dinheiro lisboeta. É mais uma verdade contabilística irrelevante porque, sem essas transferências, o sistema desintegra-se e isso é pior para toda a gente.

Mas o problema principal daquele framing é que esta embrulhada não é só por causa dos gregos. É por causa de todos os envolvidos, por igual. Por causa dos banqueiros, dos políticos que não regularam os banqueiros, dos políticos que deram o dinheiro aos banqueiros, dos que criaram um sistema monetário totalmente dependente da banca privada, dos que desrespeitaram os limites do superavit na balança de pagamentos e assim por diante. E é entre todos que isto tem de ser resolvido. Merkel tem razão em dizer que os países europeus têm de ceder soberania, porque a única forma de resolver este problema é com uma união política a sério em vez de uma moeda comum que só sirva para uns exportarem à custa dos outros. Mas os cidadãos têm de permanecer soberanos. É o fundamento da democracia. É por isso que estas coisas têm de ser discutidas em órgãos como o Parlamento Europeu, que representa adequadamente os europeus e é responsável perante estes, e nunca em “eurogrupos” da treta que fazem o que querem à porta fechada. Nem sequer é só pela saúde da economia, porque a União Europeia não é um mero negócio. A União Europeia deve ser um projecto político, social e ético e, para isso, não pode ficar a cargo de um punhado de fanáticos da contagem de feijões.

1 - Kentikelenis, Alexander, et al. "Greece's health crisis: from austerity to denialism." The Lancet 383.9918 (2014): 748-753. (em pdf)
2- Pedro Romano, Era tudo tão, tão, tão previsível

domingo, julho 12, 2015

Treta da semana (atrasada): justiça.

A justiça portuguesa está finalmente a progredir no sentido de proteger um dos direitos humanos mais fundamentais. Refiro-me, naturalmente, ao direito de proibir terceiros de divulgar ligações para sites na Web onde alguém partilhe descrições numéricas de obras comercialmente disponíveis mas sujeitas a monopólios legais de distribuição. Na defesa deste direito humano básico, a Polícia Judiciária e o Ministério Público conseguiram descobrir que o site WarezTuga estava alojado na Roménia e, numa colaboração internacional, fizeram com que encerrasse. Podemos agora dormir todos mais descansados, seguros de que, do milhão de sítios onde os portugueses podem encontrar episódios do Breaking Bad, já só sobram uns 999.999. Enquanto não aparecerem mais. Os mais cínicos – e há-os sempre – poderão criticar esta acção das nossas forças de investigação policial como uma má aplicação de recursos. Admito que poderiam ter razão se Portugal fosse um país qualquer. Se, por exemplo, houvesse por cá problemas com burlas financeiras ou corrupção, crimes no combate aos quais a investigação policial pudesse beneficiar mais a sociedade. Mas não é o caso. Nem Zeinal Bava guarda qualquer memória de problemas desses.

No entanto, há ainda um longo caminho a percorrer. Paulo Santos, o presidente da FEVIP, está naturalmente desiludido porque as investigações ainda não revelaram quem são os culpados deste terrível crime de facilitação de downloads: «Se fosse um caso de terrorismo ou pedofilia, teriam tido sucesso e teriam conseguido identificar os donos do site. Como era pirataria, o processo não teve sucesso, apesar de termos fornecidos elementos suficientes para se fazer a investigação» (1). Isto é incompreensível. É certo que violar crianças ou rebentar pessoas com bombas são coisas más. Ninguém defende que não se deva investigar essas infracções. Mas é errado dar prioridade a esse tipo de delitos em detrimento do combate ao download ilegal, um crime que pode pôr em causa uma fatia nunca devidamente estimada do lucro de alguns distribuidores.

O problema não está só na formação de quem faz cumprir a lei e que não compreende a gravidade de se permitir o descarregamento não autorizado de filmes ou séries de TV. A própria legislação está muito aquém do ideal. Por exemplo, tanto quanto sei, ainda é legal mencionar publicamente que sites como www.yourserie.com ou www.tumovie.net permitem descarregar material ilícito, pondo assim – impunemente – muita gente em perigo de conseguir ver aquele episódio que perdeu na televisão ou o filme que não foi ver ao cinema. Este enorme buraco na lei tem de ser tapado. A liberdade de expressão e o direito de acesso à cultura são coisas muito bonitas mas é em teoria. Na prática, temos de considerar também o dever universal de maximizar o lucro dos negociantes da distribuição e, acima de tudo, o perigo que é «tornar indiscriminado o acesso a conteúdos até agora protegidos», como há tempos mencionou, e bem, o Secretário de Estado da Cultura Barreto Xavier (2). Que raio de sociedade teríamos se até os pobres pudessem ver filmes?

1- Exame Informática, Wareztuga: foi a indústria do cinema que fechou o maior site pirata de Portugal
2- Público, A cópia privada

sexta-feira, julho 03, 2015

Treta da semana (atrasada): o casamento, os deveres e a função pública.

Estava indeciso entre escrever sobre a confusão que Orlando Braga fez do meu post de há dias (1) ou sobre a confusão de post que João César das Neves escreveu sobre o casamento homossexual (2). Braga é menos famoso mas tem o mesmo condão de criar, no leitor, uma atracção irresistível entre a palma da mão e a testa. Sem conseguir decidir qual o pior dos dois, optei por um medley de disparates.

No outro post, descartei a alegação de que «a distância que vai do mais apto dos símios para o mais estúpido dos homens é infinitamente superior à que dista entre o mais evoluído dos primatas e o mais básico ser vivo»(3). Braga escreveu que isto é “uma evidência” e caracterizou assim o meu raciocínio: «eu conheço o mundo oculto que me revelou que essa evidência está errada: o ADN revelou-me a verdade!»(1) Não foi bem isso que eu pensei. O ADN dá-nos uma medida conveniente de distância evolutiva e, nessa, eu e o chimpanzé estamos equidistantes da aranha. Mas não é só o ADN que sugere que o chimpanzé e eu estamos mais próximos. A nossa anatomia é semelhante mas muito diferente da da aranha e partilhamos capacidades para resolver problemas, sentir afecto, aprender, comunicar e interagir em sociedade que nos afastam a ambos da aranha. Há muita coisa que eu e o chimpanzé partilhamos que a aranha não tem, mas tudo o que a aranha partilha com o chimpanzé partilha também comigo. Por todas as medidas, estou muito mais próximo do chimpanzé do que este está da aranha. Alguns religiosos dirão que há um diferença grande por causa da alma mas até nisso estou do lado dos bichos. É que, tanto quanto sei, nunca tive tal coisa.

Mas a confusão mais pertinente de Braga foi acerca dos direitos. Eu defendi que os direitos são consequência de deveres e que, por isso, se vários sujeitos têm o mesmo direito é porque alguém tem o mesmo dever para com todos (3). Braga, talvez por ler apenas uma em cada três palavras dos textos que critica, assumiu este disparate: «parte-se do princípio segundo o qual “igualdade de direitos” significa “igualdade de deveres” — o que é um absurdo: basta verificar, por exemplo, que uma criança não tem direitos proporcionais ou simétricos aos seus deveres.» Não é por terem deveres iguais que os meus filhos têm os mesmos direitos cá em casa. A mais pequena só tem quatro anos e os mais velhos têm catorze, pelo que têm deveres diferentes. Mas eu e a mãe temos os mesmos deveres para com os três e, por isso, os três têm igual direito a comida, educação, carinho, segurança, saúde e afins. Os direitos deles não são iguais por causa dos deveres deles. São iguais por causa dos nossos.

Esta perspectiva é importante para perceber outro disparate, desta vez de Neves: «todos os cidadãos estavam na mesma circunstância perante a lei, pois nenhum […] podia casar com alguém do mesmo sexo [...] Não estava, portanto, em causa qualquer disparidade de direitos entre cidadãos.»(2) É trivial percebermos que este argumento é inválido se substituirmos “nenhum podia casar com alguém do mesmo sexo” por, por exemplo, “nenhum podia casar com alguém de outra raça”. Mas, apesar de ser obviamente inválido, é mais difícil perceber exactamente onde está o problema porque, formulado como Neves o formula, aparenta respeitar um princípio de igualdade de direitos. E o problema está aí. Os direitos não são o fundamental nem um bom ponto de partida. O fundamental são os deveres.

Muita gente julgará que eu tenho o direito de não sofrer discriminação em função da minha raça, sexo ou credo, e que este direito me é inerente, sem depender de mais ninguém. Isto é falso. É perfeitamente legítimo que alguém se recuse a ter relações sexuais comigo por causa do meu sexo, que não queira constituir família comigo por causa da minha raça ou que evite conversar comigo por eu ser ateu. Eu não tenho um direito genérico de não sofrer discriminação. O que existe é, da parte de terceiros que tenham deveres para comigo, muitas vezes o dever de não discriminar por estas razões. Por exemplo, se eu for atropelado, o condutor têm o dever de chamar a ambulância e os médicos o dever de me assistir independentemente do meu sexo, raça ou credo. Uma discriminação destas, neste caso, violaria os meus direitos mas apenas porque violaria um dever que teriam para comigo. É o que acontece com contratos de trabalho, transacções comerciais, candidaturas a cargos eleitos e assim por diante. Nestes casos eu tenho o direito de não ser discriminado pela raça ou sexo porque há, da outra parte, um dever de não discriminar.

É isto que se passa também com o casamento homossexual. O fundamental não são direitos abstractos das pessoas mas sim os deveres concretos de quem concebe, implementa e faz cumprir a legislação. E esses deveres incluem o de não discriminar ninguém quanto à sua raça, credo ou sexo. São deveres tão importantes que até os incluímos na Constituição. É nesse contexto que a regra “só pode casar com alguém de sexo diferente” é tão violadora dos deveres desses agentes – e, por isso, dos direitos dos sujeitos – como seriam as regras “só pode casar com alguém da mesma raça” ou “não pode casar com alguém de religião diferente”. O legislador, o juiz, o polícia e o notário têm todos o dever de não fazer distinção quanto ao sexo no exercício das suas profissões, tal como têm o dever de não distinguir raças ou credos, e é desse dever de tratar todos por igual que surge a igualdade de direitos nestas matérias. Uma lei que proíba o casamento de duas pessoas do mesmo sexo viola os direitos dessas pessoas porque os agentes do Estado têm o dever moral, profissional e constitucional de não discriminar desta forma as pessoas a quem aplicam a lei. E é só isto. Toda conversa da santidade do matrimónio, tradição, biologia da reprodução ou significado do casamento é irrelevante porque a única coisa aqui em causa são os deveres profissionais de funcionários públicos. Mais nada.

1- Perspectivas, Igualdade para todos, para que nós sejamos superiores
2- DN, A frágil civilização
3- Treta da semana (atrasada): direitos e racionais.