domingo, dezembro 30, 2012

Treta da semana: o que é preciso é saúde.

Esta é curtinha porque, na verdade, não há muito a dizer. Fernando Leal da Costa, o secretário de Estado da Saúde, disse ser «importante que a sustentabilidade do SNS comece a ser encarada como obrigação de cada um de nós», que assim devemos fazer «qualquer coisa para reduzir o potencial de um dia sermos doentes» (1). Sem contexto até parece boa ideia. Vamos todos comer de forma mais saudável, praticar exercício, reduzir o stress e fazer exames médicos regulares para prevenir e detectar doenças atempadamente, e tomar todos os medicamentos como o médico manda. A treta é mandarem uma destas quando cortam salários e pensões, fazem contrair a economia, aumentam os despedimentos e cortam os subsídios. O tabaco faz mal e o exercício faz falta mas, se querem apostar na prevenção, talvez fosse melhor começar por garantir que a malta tem que comer.

PS: Pelas minhas contas, esta é a 300ª treta da semana.

1- Público, Ministério da Saúde pede aos portugueses para recorrerem menos aos serviços

Empréstimos.

Ainda a propósito do Artur Baptista da Silva, a Priscila Rêgo apontou o que diz serem três erros na ideia de aliviar a crise da dívida pública cobrando aos Estados taxas de juro como as que o BCE cobra pelos empréstimos aos bancos privados:

«O erro nº1 está em presumir que as operações do BCE podem ser equiparadas a empréstimos da Troika. Não podem. Os empréstimos do BCE são feitos a um dia ou a uma semana, e é isso que justifica a taxa de juro tão baixa»; o «erro nº2, qualquer revisão da taxa efectiva aplicar-se-ia apenas à nova dívida, e não à que já está em stock, pelo que o impacto no orçamento seria sempre muito mais pequeno do que se poderia supor pela mera aplicação mecânica de uma taxa de juro de 0,5% ao stock de dívida actual» e, erro número 3, «a taxa actual já é bastante baixa - pouco mais de 3,2%»(1).

Apesar da Priscila ter alguma razão nestes três pontos, perpetua o erro fundamental de sugerir que o impedimento é económico. Não é. É político.

Os empréstimos do BCE são especiais, mas não só no prazo. Normalmente, os juros de um empréstimo compensam riscos e custos de oportunidade porque o credor não pode aplicar o dinheiro que empresta e arrisca ficar sem ele. Para o BCE, que é quem cria os euros, isto é irrelevante. Nem arrisca o seu dinheiro nem precisa de procurar bons investimentos. Os juros que o BCE cobra servem apenas para controlar a inflação. Por seu lado, os empréstimos que os bancos contraem ao BCE também são especiais. Como a Priscila explicou, são contraídos a prazos de poucos dias, pelo que são inúteis para os Estados e para a maioria dos agentes económicos. Mas os bancos são especiais.

Quando depositamos dinheiro num banco o dinheiro deixa de ser nosso. O banco tem a obrigação de nos pagar quando o pedirmos de volta mas, até lá, pode fazer o que quiser com ele. Isto permite aos bancos criar dinheiro emprestando e voltando a emprestar o mesmo dinheiro. Por exemplo, a Ana deposita €1.000. Esse banco empresta €900 ao Bruno que os paga à Carla que, por sua vez, deposita o dinheiro no banco. Agora, o banco pode emprestar €810 ao David. Com isto, os €1.000 da Ana já vão em €2.710 e ainda com muitas voltas por dar. Há duas restrições a esta multiplicação dos euros. Uma é o limite mínimo de reserva que os bancos têm de guardar, imposto pelos bancos centrais, à volta dos 10%. A outra é o banco precisar de dinheiro em caixa para cobrir os levantamentos. É aqui que os empréstimos a curto prazo são importantes. Todos os dias o banco recebe e devolve dinheiro, mas os valores variam. Se num dia sai mais do que há em reserva, o banco tem de pedir um empréstimo a curto prazo até a coisa estabilizar. Se a taxa de juro desses empréstimos for baixa compensa guardar menos em reserva e conceder mais crédito. Ou seja, a banca cria mais dinheiro. Se a taxa de juro for alta os bancos evitam pedir emprestado guardando mais reservas, o que obriga a conceder menos crédito e reduz a quantidade de dinheiro em circulação. Desta forma (simplificando), o BCE controla a inflação com as taxas de juro. Assim, houve duas coisas importantes que ficaram escondidas na explicação da Priscila. Uma é que, para os bancos, os empréstimos a curto prazo sãp úteis á longo prazo porque permitem multiplicar o dinheiro que os bancos podem usar. A outra é que a taxa de juro do BCE não é determinada por prazos, oportunidades ou riscos, como acontece noutros empréstimos. No caso do BCE o que determina a taxa de juro é simplesmente a política monetária.

Os outros “erros” são mais fáceis de comentar. É verdade que se devo 200 mil milhões a 3,2% e peço 200 mil milhões a 0,5%, os 0,5% só se aplicam à nova dívida. Mas se pagar o primeiro empréstimo com o segundo passo a pagar 0,5% de juros em vez de 3,2%. E se bem que 3,2% seja uma boa taxa de juro em relação ao que o Estado português conseguiria nos mercados de dívida, daí a 0,5% ainda vão uns bons milhares de milhões de euros por ano.

É claro que, havendo mais dinheiro, o dinheiro vale menos e tudo sobe de preço, pelo que emprestar dinheiro a 0.5% aos Estados aumentaria inflação. Se bem que um pouco de inflação seja saudável – o BCE tem como alvo mantê-la a 2% – quando se descontrola é uma desgraça porque deixa de haver confiança na moeda. No entanto, entre 2% de inflação e o dólar do Zimbabwe ainda há uma grande margem de manobra, pelo que, e ao contrário do que muitos economistas querem fazer parecer, esta via da austeridade não é uma inevitabilidade económica. É a escolha política de optar pela contracção da economia e a redução nominal dos salários nos países mais pobres em vez de reduzir o peso das dívidas e as diferenças de competitividade aumentando a inflação e os salários, principalmente nos países mais ricos (que é onde o dinheiro extra iria quase todo parar, eventualmente).

Escolheram a opção errada. A inflação é má, mas é má para todos enquanto a austeridade afecta quase exclusivamente quem está pior. Os senhores engravatados que chegam de motorista às conferências de imprensa para falar dos sacrifícios que “nós fazemos” sentem muito pouco os despedimentos e os cortes nas escolas públicas, nos serviços de saúde e nas prestações sociais. Mas enquanto convencerem a maioria de que não há alternativa, de que tem mesmo de ser assim e não se pode fazer nada, vão continuar a safar-se tramando os outros.

1- Priscila Rêgo, O que o caso Artur Batista da Silva nos ensina. Obrigado ao Nuno Gaspar pelo link.

sábado, dezembro 29, 2012

Treta da semana (passada): a burla.

Artur Baptista da Silva disse que era economista, professor catedrático e que trabalhava na ONU. Deu entrevistas e foi convidado para programas como este, na SIC:



Só dias depois é que os jornalistas se lembraram de verificar se o Artur era tudo o que dizia ser. Não era nada. Por isso desataram a despejar notícias acerca do Artur, que é um terrível burlão (1) e que até já esteve preso (2). Como se descobrir um burlão ainda fosse notícia.

Eu não sei o que o Artur é, mas bom burlão não é certamente. Não parece ter ganho grande coisa com isto, cometeu o erro crasso de procurar exposição mediática – coisa que um burlão só pode fazer depois de eleito por algum partido – e a burla parece ter sido essencialmente imprimir um cartão de visita e inscrever-se na Academia do Bacalhau(3). De resto bastou dizer “nós na ONU” e esperar que ninguém olhasse bem para o cartão. Mais do que burlar, parece-me que o Artur só queria que lhe dessem ouvidos e, para isso, fez-se parecer importante (4).

Nem me sinto especialmente enganado pelo Artur. Dele só ouvi o que está neste vídeo e pouco me rala se é da ONU. A história do Hypo Real Estate (5) é duvidosa, porque dificilmente o governo alemão terá lucrado com a nacionalização de um banco falido, mas mais inverosímil ainda é a proposta do outro interveniente de que podemos repetir o que se fez em Portugal na década de 60, quando o crescimento ultrapassou os 6%. Nos cinquenta anos que passaram mudou muita coisa. O Artur disse também que 41% da dívida pública se deve à comparticipação portuguesa em projectos da UE. É uma simplificação enganadora mas o número não deve estar muito errado. Se Portugal tiver comparticipado, em média, 15% do financiamento, isto equivale a uns 20 mil milhões de euros de financiamento europeu por ano, o que parece correcto (6). Finalmente, o que ele diz dos juros acerta em cheio. Em 2012 o Estado português pagou quase nove mil milhões de euros só em juros da dívida pública(7). Se se baixasse a taxa de juros para um valor mais próximo dos cerca de 1% que o BCE cobra aos bancos privados reduzia-se o défice em mais de seis mil milhões de euros, quase tanto como o governo prevê conseguir com os aumentos de impostos e cortes nos apoios sociais em 2013 (8). O Artur pode ser aldrabão por alegar qualificações que não tem, mas tem mais razão e faz menos mal do que alguns outros que aparecem nos jornais.

Sinto-me mais enganado pela comunicação social. Não pela asneira de paparem as aldrabices do Artur durante semanas. Não inspira confiança nos critérios com que os jornalistas seleccionam os peritos que nos apresentam mas, de qualquer forma, nas notícias não me fio em argumentos de autoridade. Por isso aí o mal é menor. Mais grave foi o que fizeram depois. Enganaram-se, pronto. Diziam enganámo-nos e acabava aí a história. Em vez disso puseram-se a desenterrar uma data de podres do Artur, o que talvez fosse material adequado para a Caras mas já incomoda ver o homem em todo o lado quando procuro alguma notícia minimamente relevante. Nem percebo o que querem provar com isto. Demonstrar que o Artur tinha um longo passado sórdido de crimes e aldrabices só revela a gravidade de não terem percebido isso logo do início. Pior ainda foi a atitude de alguns, como a TSF (9), de já não permitirem o acesso às entrevistas do Artur. Apresentar um aldrabão como um perito legítimo é negligência, mas esconder a asneira “despublicando” o que publicaram é coisa de aldrabão.

No fundo, a maior burla aqui é a dos media profissionais. Ganham dinheiro alegando-se especialmente competentes para nos proteger das asneiras da publicação amadora. No entanto, nem parecem ser tão competentes quanto alegam nem respeitam os princípios básicos que exigimos dos amadores. Como, por exemplo, admitir os erros sem os “despublicar” para disfarçar. Depois querem convencer-nos de que é importante refrear a comunicação social amadora para garantir a qualidade da informação.

1- DN, RTP, CM, I Online, etc...
2- TSF, Dinheiro Vivo, DN, etc...
3- TSF, Artur Baptista da Silva: Academia do Bacalhau poderá ter sido ponto de partida para contactos e Expresso, O Expresso e Artur Baptista da Silva.
4- Condecoração para Artur Baptista Silva
5- Wikipedia, Hypo Real Estate.
6- QCA III, Fundos Estruturais.
7- AF, Quase todo o IRS vai para pagar juros da dívida.
8- CM, Salários e reformas pagam 2,8 mil milhões
9- TSF, Esclarecimento sobre papel de Artur Baptista da Silva nas Nações Unidas, «por precaução e perante dúvidas ainda por esclarecer, a TSF decidiu retirar de antena e da página na internet os conteúdos relacionados com Artur Baptista da Silva.»

quinta-feira, dezembro 27, 2012

Uma nota sobre a nota, parte 1.

N'«Uma nota sobre a ciência»(1), o Desidério Murcho faz tal confusão que esta nota sobre a nota acabará maior do que a original. Começa por afirmar que «não há só ciências empíricas como a física ou a biologia. Também há ciências puramente conceptuais, como a matemática.» Não há ciências, no plural. Só há ciência, que é, por um lado, o método de compreender a realidade confrontando o que se pensa com o que se observa e, por outro lado, o conjunto de modelos, hipótese e teorias que esse método produz. Antes do século XX talvez se pudesse dividir este conjunto em pedaços independentes. Quando se pensava que a química orgânica e a química inorgânica eram fundamentalmente diferentes, por exemplo. Mas hoje já não. O método é, como sempre foi, fundamentalmente o mesmo e o corpo de conhecimento está todo interligado. A física e a biologia não são ciências; são partes interligadas da ciência.

Também não há «ciências puramente conceptuais, como a matemática». A matemática é uma linguagem. Como tal, é mais do que só conceptual porque o propósito é descrever coisas que estão além da linguagem. Newton, por exemplo, não inventou o cálculo diferencial e integral só para manipular símbolos. Fê-lo para calcular órbitas, exigindo que fizesse corresponder os símbolos que usou a aspectos da realidade que conhecia empiricamente. Mesmo as noções mais elementares como números e operações algébricas são formalizadas para descrever elementos da nossa experiência. Se lidamos com moedas ou bananas convém que 1+1 seja igual a 2, mas para descrever a adição de rebanhos ou variáveis booleanas dá mais jeito formalizar que 1+1 = 1. A matemática é uma parte importante da ciência porque é uma linguagem rigorosa e excelente para lidar com quantidades mas dizer que «O que há de informativo nas ciências empíricas são as teorias muitíssimo explicativas, e estas baseiam-se na matemática» é como dizer que a poesia de Camões se baseou no Português. Não é mentira, em certo sentido, mas baralha mais do que esclarece.

A seguir, o Desidério afirma que «se formos realmente lúcidos e corajosos, defendemos até o impensável para o dogma empirista: que podemos saber muito sobre a realidade empírica sem fazer uma só observação e sem ter uma só experiência. E esse conhecimento é exactamente o que nos dá a matemática.» Pondo de parte a falácia – se o Desidério achar que discordar dele me torna néscio e cobarde, paciência, é irrelevante para o argumento – vou afirmar exactamente o contrário. Sem uma só experiência ou observação não saberíamos nada da realidade. Nem sequer teríamos ideia desse conceito.

Vamos imaginar que algures existe um génio matemático que nunca teve qualquer experiência e nunca observou nada da realidade. O primeiro obstáculo à tese do Desidério é não haver qualquer razão para esse génio se dedicar à matemática. O que vai contar? O que vai somar ou dividir? Porque há de definir axiomas ou algoritmos? Mesmo ignorando esta dificuldade e assumindo que o génio se dedica à matemática, o segundo obstáculo é que formalismos vai preferir. Por exemplo, matemáticos como Euclides dedicaram-se a explorar o conceito formal de polígono, um conjunto finito de segmentos de recta formando um percurso fechado, mas não perderam tempo com o conjunto de segmentos de recta tal que a maior distância entre dois segmentos seja inferior a um quarto do comprimento do segmento maior, ou os conjuntos de segmentos de recta em que pelo menos metade sejam paralelas. Recorrendo à experiência e observação vemos que o conceito de polígono é mais útil do que estas alternativas, mas «sem fazer uma só observação e sem ter uma só experiência» só por bruxaria é que o génio matemático iria calhar no que interessa em vez ficar atolado nas infinitas alternativas que nada adiantam para descrever este universo a que chamamos realidade.

O terceiro obstáculo é «saber muito sobre a realidade empírica». Vamos admitir que, por milagre, o génio se tinha dedicado precisamente àqueles formalismos matemáticos que nós descobrimos descreverem bem aspectos da realidade, acertando magicamente em todos os axiomas. Mesmo assim, para saber não basta formar uma ideia acertada. É preciso conseguir justificar que essa ideia é correcta. Se eu disser que o número de cabelos do Papa é par e o Desidério disser que é ímpar, um de nós de certeza que acerta. Mas nenhum de nós sabe se o Papa tem um número par ou ímpar de cabelos. Para essa parte que falta é preciso observação. Sem observação, mesmo que se acerte por sorte não se sabe nada.

Para não fazer deste post um lençol tenho de me ficar, por agora, só pelos dois primeiros parágrafos da nota do Desidério. Mas, enquanto escrevo o próximo, pedia ao Desidério que me desse uma definição puramente matemática do conceito de realidade, sem recorrer a qualquer informação vinda de observações ou experiência. Ou, se admitir que a matemática sozinha não nos pode dizer o que é realidade e o que é imaginação, então que explique concretamente o que se pode saber acerca da realidade sem dar à matemática uma semântica fundamentada na experiência. Por exemplo, o que é que E=mc2 diz acerca da realidade se não soubermos o significado dessas letras?

1- Desidério Murcho, Uma nota sobre a ciência.

segunda-feira, dezembro 24, 2012

Treta da semana (passada): designer dos piratas.

Na Suécia, um homem foi condenado pelo design do StudentBay, um fórum, agora defunto, onde se podia partilhar ligações para ficheiros na rede BitTorrent. Em primeira instância tinha sido ilibado por só ter participado na concepção do site mas a acusação recorreu da sentença e agora foi condenado porque, «apesar de ser só um designer, ele devia ter sabido que o propósito do StudentBay era infringir os direitos de cópia das editoras de livros»(1).

Excepto para os defensores mais acérrimos de um copyright totalitário, esta sentença é obviamente absurda. Mesmo que ele soubesse o propósito do site, não faz sentido ser condenado pela infracção dos tais alegados direitos só por ter concebido o aspecto gráfico das páginas. No entanto, esta condenação vem na linha da restante perseguição judicial à partilha para uso pessoal. O prejuízo que se pode atribuir ao designer, individualmente, nunca justificaria privá-lo do direito de conceber um site na Web. Nem sequer se consegue contabilizar quanto dinheiro as editoras perderam por causa daquele design em particular. Mas isto é verdade também para quem cria um fórum como o PirateBay, no qual o StudentBay se baseou. São meios de partilha de ligações e comentários. O alegado impacto nas vendas não surge dos actos de quem funda o site mas sim da interacção de milhares, ou milhões, de utilizadores. Tal como este designer, também os fundadores do PirateBay não foram condenados pelo que eles fizeram mas sim pelo que milhões de outras pessoas fizeram. E o mesmo se aplica a cada pessoa condenada por partilhar ficheiros. Numa rede como o BitTorrent, a distribuição de milhares de cópias por milhares de pessoas não vem do acto de nenhum utilizador em particular mas sim da colaboração desses milhares de pessoas, e não faz sentido culpar um pelos actos dos outros. Mas é isso que os tribunais fazem sempre que condenam alguém que partilha, que gere o site ou, neste caso, que fez as páginas.

Até à Internet ninguém aplicava monopólios sobre a cópia fora do contexto comercial. Sempre fora uma lei para empresas e não se metia na vida das pessoas. Agora, os detentores destes monopólios estão aflitos. A Internet tornou obsoletas a reprodução e distribuição do suporte físico e milhões de pessoas podem ter acesso gratuito a qualquer obra publicada. No entanto, a justificação para não aplicar estas leis a cidadãos privados continua a ser a mesma. Individualmente, o “crime” de partilhar uma canção ou filme é tão irrisório como era há vinte anos o “crime” de copiar uma cassete. O prejuízo de cada acto individual é muito inferior ao prejuízo de proibir, policiar e punir esse acto. O impacto é maior agora porque há mais pessoas a fazê-lo, mas isso é um efeito colectivo. Não é culpa do indivíduo que partilha, do gestor do site nem do web designer.

1- TorrentFreak, Court Sentences Web Designer For Creating Infringing Torrent Site

domingo, dezembro 23, 2012

Disto e daquilo, 4.

Que mal tem?
O Mats afirma que «se Deus não existe, não há forma absoluta na base da qual se distinguir o bem do mal»(1). Eticamente, não há forma absoluta de distinguir se um certo efeito é bom ou mau. Nem mesmo se Deus existir. Isto porque o valor ético de qualquer efeito depende também de outros factores como a consciência de quem o causou e as alternativas. Matar uma criança a tiro é eticamente condenável em muitos casos mas será moralmente neutro se o atirador for um bebé que estava a brincar com uma pistola. Ao contrário do que o Mats afirma dos ateus, eu não defendo que «há coisas que são absolutamente erradas, enquanto há outras que são absolutamente certas». Eticamente, o certo e o errado é sempre relativo ao contexto e a valores subjectivos. O Mats até reconhece a subjectividade dos valores ao citar um texto que questiona como se pode condenar o massacre de crianças «se nós nada mais somos que pó das estrelas […] Que diferença faz para o átomo se ele passa a fazer parte do arranjo X em vez do arranjo Y?» Para o átomo não faz diferença nenhuma. Para fazer diferença é preciso um sujeito que dê mais valor ao átomo estar no arranjo X do que em Y. Os crentes resolvem o problema da subjectividade do valor inventando um tal deus que avalia tudo à sua maneira. Sua, dos crentes, porque o deus é sempre um mero fantoche para os preconceitos do grupo que o inventou. Mas isso, além de treta, é desnecessário, porque se os átomos estão na configuração de um ser humano já configuram o sujeito que precisamos para lhes dar valor. É o próprio. Uma vida humana vale mais do que a de um cogumelo ou de uma barata porque um ser humano dá mais valor à sua vida do que o cogumelo ou a barata conseguem dar às deles. Não é preciso deuses para isto nem adianta de nada inventá-los.

Má analogia
O Carlos Guimarães Pinto propõe, com sarcasmo, que o PCP resolva os seus problemas financeiros aumentando os salários dos funcionários, construindo uma nova sede, acabando com o voluntariado e assim por diante (2). É mais um exemplo da falsa analogia entre a economia toda do país e o pedacinho que corresponde a uma pessoa, família ou, neste caso, partido. Se eu ganhar X e conseguir gastar menos que X sobra-me a diferença. Como o que gasto não afecta o que ganho, a contenção nas despesas melhora as financas. Isto é verdade, em geral, para cada agente económico, individualmente. Mas se consideramos o mercado interno do país, o que se gasta é exactamente o que se ganha porque o rendimento de cada um é sempre despesa de algum outro. Quando o Estado corta pensões e salários não afecta apenas pensionistas e funcionários públicos. Afecta restaurantes, mercearias e supermercados, todos os fornecedores destes, mecânicos, pedreiros e carpinteiros, e todos os fornecedores destes também, e assim por diante. Quanto mais o Estado corta na despesa mais corta nos rendimentos do sector privado, o que acaba por cortar os próprios rendimentos do Estado. É por isso que, em tempos de crise, o Estado deve endividar-se e gastar mais para contrariar a contracção da economia, e é em tempos de crescimento que deve cobrar mais e gastar menos para consolidar as contas. Se apertamos todos o cinto ao mesmo tempo, Estado e privados, os únicos que saem a ganhar são os que estão nas comissões de privatização das empresas públicas. Que, logo por azar, são os que mandam apertar o cinto à gente.

Ensino Superior
Parece que um curso de pós-graduação na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica tem alguns docentes que são a favor da legalização do aborto. Ou, como escreve o Nuno Serras Pereira, «uma série de pessoas gravissimamente responsáveis por uma matança imensamente maior de crianças do que a de Herodes.»(3) Para o Bernardo Motta isto é uma «completa falta de noção de decência, de coerência, de dignidade» porque estão «a leccionar sobre temáticas que interceptam [intersectam?], em muitos aspectos, o Magistério da Igreja Católica»(4). É uma visão estranha do ensino superior. O objectivo é ensinar adultos e formar especialistas em matérias complexas. Seria de esperar que os docentes fossem escolhidos de acordo com a sua experiência, conhecimento e capacidade pedagógica, e que alunos de uma Pós-Graduação em Serviço Social na Saúde Mental(5) tivessem contacto com diferentes opiniões e valores éticos. Certamente que, no exercício da sua profissão, não poderão assumir que todos os portugueses seguem incondicionalmente os dogmas católicos. Mas católicos como o Bernardo e o Nuno querem que a Universidade Católica só tenha professores com opiniões iguais às da Igreja Católica. Por mim, que façam o que bem entenderemm, mas uma instituição que não permita a discussão livre e aberta de opiniões divergentes não merece a designação de universidade.

1- Mats, Qual é o mal em matar crianças?
2- Carlos Guimarães Pinto, Salvem o PCP, via alguém no Facebook.
3- Logos, UCP escancara as portas a Herodes - por Nuno Serras Pereira.
4- Bernardo Motta, no Facebook.
5- UCP, FCH, Pós-Graduação em Serviço Social na Saúde Mental

domingo, dezembro 16, 2012

Treta da semana (passada): o ridículo.

O João César das Neves, num título ironicamente apropriado, manifesta-se preocupado porque «esta geração muda a milenar definição de matrimónio»(1), um campo «em que se situam as grandes calamidades desta geração». No entanto, acrescenta que isto «não envolve nada de realmente importante» porque «É literalmente uma questão de secretaria.»

O ridículo, parece-me, vem da confusão entre a definição de matrimónio e aquilo que o Estado regula. A pista está até nas próprias palavras do JCN: «Durante milénios, o Estado não casava ninguém, deixando isso ao costume social ou às entidades religiosas. Em Portugal, o casamento civil só surgiu em 1832». O casamento civil. Não o matrimónio, nem o casamento, nem a união de duas almas gémeas que decidem partilhar uma vida. O que o Estado permite é um contrato. O resto é com as pessoas.

Para muitos, o matrimónio é uma união de duas pessoas da mesma religião. Muitos cristãos, muçulmanos ou judeus podem pensar que casar com um ateu ou um religioso de outra equipa seria inaceitável para o seu deus e, por isso, não seria casamento a sério. Estão no seu direito. Mas o Estado não tem nada que ver com isso e, por isso, o casamento civil é cego à religião dos nubentes. O mesmo para a cor da pele, idade ou virgindade. Qualquer pessoa é livre de definir o que entende por matrimónio, se tem de cumprir estas ou aquelas condições para ser legítimo. O que não pode é exigir do Estado uma intromissão nas definições dos outros. Por isso, a legalização do casamento homossexual não é uma grande vitória para os homossexuais. Para alguns pode dar jeito, admito, mas são provavelmente uma minoria pequena da população. A vitória é para todos, porque esta alteração permite cumprir um importante princípio constitucional: tal como o Estado não se mete com a raça, religião ou opinião política de cada um, também não vai discriminar ninguém quanto ao seu sexo ou orientação sexual. Isto não impede o João César das Neves de definir o matrimónio como lhe der na gana. Basta perceber a diferença entre a vida a dois e o contrato de casamento civil.

A analogia com o contrato laboral é mais evidência da confusão entre o matrimónio e a burocracia. «Neste momento, em Portugal, custa mais despedir a criada do que o marido, pois o contrato de casamento é mais frágil do que o de trabalho ou sociedade.» Os contratos são diferentes. O contrato de casamento presume-se simétrico, com os contratantes participando como iguais, enquanto que o contrato laboral é assimétrico. A empregada – a criada, tradicionalmente, não tinha contrato – pode-se despedir simplesmente notificando o empregador com um mês de antecedência mas este, se a quiser despedir, tem de a indemnizar. No casamento ninguém despede ninguém mas, seja como for, a dificuldade principal do divórcio não é burocrática, e esta é novamente a grande confusão do JCN. Se confunde o matrimónio com o contrato, então parece-lhe que facilitar a burocracia do divórcio fragiliza o casamento. Mas isso é treta. A decisão de continuar ou terminar com uma vida a dois é difícil por todas as mudanças que implica, por todo o investimento nessa vida partilhada, pela casa, pelos filhos e tudo o mais. O papel é irrelevante. Nem compete ao Estado decidir quem se divorcia nem, muito menos, tentar preservar casamentos por força da burocracia.

O ridículo, que não é só desta geração, é confundir o matrimónio com o contrato de casamento. O matrimónio é algo pessoal, que cada um tem de ir definindo ao longo da vida como quiser e puder. O casamento civil é uma ferramenta burocrática para regular heranças, propriedades, decisões médicas e o IRS. Confundir estas coisas é tão ridículo como confundir o conforto do lar com o pagamento do IMI.

1- João César das Neves, O ridículo da geração

Factos, valores e raciocínio, parte 2.

O Desidério perguntou «Como pensar correctamente sobre conflitos morais e políticos?»(1). Como a resposta dele não me satisfez (2), aqui vai uma alternativa. Antes de mais, o problema não está tanto no pensar, que cada um faz na sua cabeça e como bem entender, mas na argumentação e diálogo, que só são produtivos se contribuírem para resolver estes conflitos. Para isso, as inferências que cada argumento descreve têm de ser válidas e o argumento deve partir de premissas consensuais porque não será persuasivo se partir de pressupostos que o interlocutor rejeita. Isto é especialmente importante quando se discute valores, porque enquanto com premissas acerca de factos ainda se pode resolver dissensões com algum teste objectivo, quando se trata de valores, como o Desidério escreveu, «não há um tribunal de última instância a que possamos recorrer»(1). Assim, no diálogo sobre conflitos morais e políticos temos de ter o cuidado de assentar argumentos em premissas consensuais. Esse é um dos problemas com o argumento do Desidério, dependente de afirmações como «[é] óbvio que não tem qualquer relevância que os tresloucados realmente sejam tresloucados e não tenham razão.»(1)

Seguindo este critério, vou apresentar dois argumentos contra a certificação estatal da homeopatia partindo de afirmações do próprio Desidério. Uma é que as escolhas das pessoas «têm sempre de ser respeitadas, desde que não prejudiquem terceiros»(3). Se alguém quiser comprar água destilada muito mais cara para tomar gotas quando tem gripe, temos de respeitar essa opção. Se quiser acreditar que a água tem memória e essas tretas, tem todo o direito. No entanto, para que isto seja uma escolha tem de ser uma decisão informada, o que implica que a pessoa não seja induzida em erro. Se o Estado certifica alguém como profissional de saúde, muita gente confiará nisso como indicação de que esse profissional sabe o que faz. Tal como confiamos que a ponte não vai cair, que não vamos ser electrocutados pela torradeira e que a pasta de dentes não está envenenada. Não é por fazermos uma investigação aprofundada dos projectos, montagem e composição de tudo o que usamos, mas porque confiamos na regulação estatal que certifica a qualidade desses bens e serviços. Mas isto só funciona se a certificação do Estado for honesta. Se o Estado autoriza a venda de gato por lebre deixamos de poder confiar na certificação para tomar as nossas decisões. Em casos complexos como o da homeopatia, a consequência é as pessoas ficarem privadas da possibilidade de escolha. Se queremos defender o direito de escolher não podemos pôr o Estado a enganar as pessoas.

Outra premissa que suporta esta conclusão é que «não temos mais direito a viver harmoniosamente na nossa própria sociedade do que os outros»(2). Ou seja, que todas as pessoas têm o mesmo direito às suas crenças, sejam correctas ou disparatadas. Isto implica que não seja legítimo ao Estado discriminar crenças só porque uns acreditam numa coisa e outros noutra. Os factos podem justificar discriminação. Na construção civil, por exemplo, há muitas regras para garantir estabilidade e durabilidade às estruturas. Mas as crenças, por si só, não podem ser alvo de regulação estatal sem violar o tal direito que o Desidério defende. Se «não temos mais direito a viver harmoniosamente na nossa própria sociedade do que os outros» e um homeopata tem o direito a uma certificação estatal para vender os seus frasquinhos de água só porque acredita que aquilo cura, sem evidências, então eu também tenho direito a uma certificação estatal para vender gotas da minha água da torneira como cura para a unha encravada, para dar sorte ou como protecção contra vampiros. Se o Estado certifica as tretas de alguns e todos têm direito um tratamento igual das suas tretas e crendices, então o Estado tem de certificar as tretas todas. Parece-me contraproducente.

Tenho mais razões para ser contra a certificação dos homeopatas – e afins – como profissionais de saúde. Mas algumas, aparentemente, partem de valores diferentes daqueles que o Desidério assume. Por exemplo, eu dou valor suficiente à verdade para considerar má ideia que o Estado pregue mentiras às pessoas. Mas, sem «um tribunal de última instância a que possamos recorrer» para determinar quem tem os melhores valores, a forma mais produtiva de tentar persuadir o Desidério é recorrendo aos valores dele. Resumidamente, o direito à escolha implica que o Estado não engane as pessoas e o direito à crença de cada um implica que o Estado não discrimine crendices. Em ambos os casos, isto leva a rejeitar a certificação estatal de actividades como a homeopatia (ou a oração, a astrologia, a pintura, o humor, e assim por diante).

1- Desidério Murcho, Saber pensar sobre problemas morais e políticos.
2- Factos, valores e raciocínio, parte 1.
3-Desidério Murcho, Em defesa da liberdade

domingo, dezembro 09, 2012

Treta da semana (passada): o melhor do universo.

O Mats, aparentemente dotado de sabedoria extra-galáctica, alega que o ADN é «O melhor sistema de armazenamento de informação do universo»(1). No entanto, para suportar a alegação considera apenas a densidade de informação por grama de ADN, cerca de 700 terabytes, e compara-a com a dos discos rígidos que temos neste momento, talvez assumindo serem o segundo melhor sistema de armazenamento de informação do universo:

«uma grama de ADN pode armazenar 700 terabytes de dados. […] Para armazenar o mesmo tipo de dados em discos rígidos – o meio de armazenamento de dados mais denso actualmente – seriam precisos 233 3TB discos, totalizando mais de 151 quilos.»(2)

Para mostrar que tudo neste universo foi criado pelo menino Jesus em seis dias, o Mats afirma que «Nada feito pelos seres humanos se aproxima desta notável eficiência biológica. [...] Quem diria que o ADN pode armazenar informação de modo mais eficiente que nós?» A resposta é simples. Ninguém com dois dedos de testa diria tal disparate.

Mesmo em densidade de informação, o ADN não é assim tão bom. Um metro quadrado de uma fina película polimérica, pesando alguns grama, pode armazenar cerca de mil terabytes (3). Usando padrões de interferência de electrões numa superfície condutora é possível armazenar dezenas de bits por electrão (4), numa relação de bits por massa milhares de vezes superior à do ADN, com uma vintena de átomos por bit.

Além disso, não é só a densidade da informação que conta. O acesso à informação também é importante. No caso do ADN, talvez em breve seja possível sequenciar – “ler” – mil milhões de bases em poucos minutos e por poucas centenas de dólares (5). Isto é extraordinário, como tecnologia de sequenciação. Mas como armazenamento fica muito aquém de um disco rígido comum, que lê essa informação num segundo pelo preço de 0,000003 kilowatt-hora em electricidade.

Mas o Mats não está a falar apenas da nossa tecnologia. A mensagem importante é que «Nada feito pelos seres humanos se aproxima desta notável eficiência biológica». Nas células, o ADN é transcrito em ARN por enzimas naturais e não por máquinas de sequenciação automática. Talvez seja essa a “notável eficiência” que o Mats refere. Se for, pior ainda. A polimerase do ARN é uma enzima muito rápida, transcrevendo o ADN em ARN a uma velocidade de 50 bases por segundo(6). Não é mau, para uma proteína. Mas isto são 50 bits por segundo. Um disco rígido debita informação a uma taxa de mil milhões de bits por segundo. À velocidade «desta notável eficiência biológica» um filme de duas horas em alta definição demoraria uns mil e quinhentos anos a ver. Nem o Manoel de Oliveira aguentava.

Outro aspecto importante é a fiabilidade. A taxa de erro na leitura do ADN para ARN, em sistemas biológicos, é de um em cada dez mil bases lidas. Mais uma vez, para biologia não está nada mal. Mas isto equivale a cerca de um erro de leitura por kilobyte, mil e quatrocentos erros por disquette, setecentos mil por CD, quatro milhões por DVD e mil milhões de erros por disco rígido. Na terminologia informática, um computador com esta «notável eficiência biológica» designa-se por avariado.

Ironicamente, estes exemplos que os criacionistas apresentam em defesa da criação por intervenção divina só suportam a alternativa, de que os sistemas biológicos surgiram por processos naturais de evolução e não por design inteligente. A grande vantagem que o ADN tem em relação a um disco rígido ou um cartão de memória não está no armazenamento de dados. Enquanto um disco rígido acede a um bloco específico em milissegundos e transmite centenas de megabytes em poucos segundos, o ADN é transcrito por tentativa e erro, um pedaço aqui e outro ali, por batalhões de proteínas cegas, com cada uma “lendo” poucos bytes por segundo. A grande vantagem do ADN é que, ao contrário de circuitos electrónicos e discos rígidos, é algo que pode resultar de um processo gradual de evolução a partir de moléculas orgânicas modestas e comuns. Um cartão de memória ou um leitor de DVD não pode resultar da acumulação de características hereditárias sob selecção natural. Estas coisas têm mesmo de ser produzidas sob supervisão de algum ser inteligente. Os sistemas biológicos são muito menos eficientes para certas coisas, como armazenamento de dados, mas são muito mais robustos e autónomos. As células reproduzem-se, alimentam-se, desenvolvem-se e, em conjunto, com o passar das gerações, evoluem. É isso que os sistemas biológicos têm de extraordinário. Mas é precisamente por isso que não precisam de um criador inteligente.

1- Mats, O melhor sistema de armazenamento de informação do universo
2- Traduzido daqui:Harvard cracks DNA storage, crams 700 terabytes of data into a single gram
3- Science news, New Method Of Self-Assembling Nanoscale Elements Could Transform Data Storage Industry
< 4- Stanford News, Reading the fine print takes on a new meaning (fonte: Wikipedia).
5- Science now, DNA Sequencing, Without the Fuss
6- Stryer, Biochemistry. 5th edition, Section 28.1Transcription Is Catalyzed by RNA Polymerase

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Factos, valores e raciocínio, parte 1.

No seguimento da conversa sobre a homeopatia (1), o Desidério tentou descrever como devemos «pensar sobre problemas morais e políticos»(2). A intenção foi boa. A execução é que não. Concordo que o problema principal é não haver «um tribunal de última instância a que possamos recorrer» para determinar os valores correctos. Os valores são critérios de preferência, necessariamente subjectivos, pelo que é inútil argumentar com quem discorda dos nossos valores assumindo como premissa que os nossos são melhores. Infelizmente, o Desidério ignora as suas próprias recomendações. «Um aspecto curioso do cientificismo é a ideia de que tudo o que não é ciência não tem qualquer interesse nem valor cognitivo. Logo, é irrelevante o conhecimento da história e da filosofia, porque essas coisas não são científicas. A ironia é que quem assim pensa depois raciocina sobre questões políticas e morais à toa, sem qualquer conhecimento do que distingue um raciocínio plausível nestas áreas de um raciocínio ingénuo.»(2)

O Desidério considera que um raciocínio moral que descure a história e a filosofia é ingénuo porque o Desidério dá valor à história e à filosofia. Não dando o mesmo valor à astrologia, por exemplo, o Desidério não considera que um raciocínio moral será ingénuo só por ignorar signos e horóscopos. Mas isto resulta dos valores do Desidério. Se à pessoa hipotética que o Desidério critica só importa “o que é ciência”, ela também não julgará ingénuo ignorar a filosofia. Isto não é um problema no raciocínio. É apenas consequência dos seus valores e, sem um “tribunal de última instância” para estes, não se pode classificar um raciocínio de “ingénuo” só por partir de valores diferentes. Além disso, o Desidério critica um espantalho. Qualquer pessoa dá valor a coisas “que não são ciência”, nem seja ir à casa de banho quando está aflito, dormir descansado e não levar pontapés na cara. O Desidério assume um ser inexistente que só dá valor ao “que é ciência” para concluir que é ingénuo ter valores diferentes dos do Desidério e depois afirma que «temos de levar muito a sério o que as pessoas que estão em conflito connosco realmente pensam». Ao contrário dos valores, que são subjectivos, um raciocínio pode ser objectivamente incorrecto. Este é um bom exemplo disso.

Mais à frente, o Desidério agrava a confusão quando invoca Rawls. Uma forma de conceber a justiça é imaginar que estamos a criar leis e regras morais para uma sociedade antes de saber se vamos nascer ricos ou pobres, rapazes ou raparigas, bonitos ou feios, fortes ou fracos e assim por diante. Esta ideia de Rawls é boa porque, atrás deste véu de ignorância, podemos identificar valores consensuais distintos dos que somos tentados a defender quando já sabemos o que nos calhou. Por exemplo, um rico pode achar que não devia pagar tantos impostos mas, se não soubesse se ia nascer numa família rica ou pobre, provavelmente veria com melhores olhos a redistribuição fiscal. No entanto, a abordagem de Rawls não serve quando os próprios valores estão em causa. Quem gosta mais de arriscar irá preferir uma sociedade com menos redistribuição e mais oportunidades de enriquecimento enquanto que alguém avesso ao risco preferirá mais apoio social mesmo à custa de mais impostos. Esta experiência conceptual de Rawls é boa para identificar os nossos valores mais fundamentais e derivar deles regras sociais mas não serve para resolvermos divergências entre esses valores.

É por isso que esta forma de pensar sobre o problema da homeopatia não serve: «eu não sei se serei como sou — sensato, científico e tudo isso — ou um tresloucado. [...] Fazendo este simples exercício torna-se óbvio que não tem qualquer relevância que os tresloucados realmente sejam tresloucados e não tenham razão [e] a minha preocupação [é que todos se sintam] tão bem nessa sociedade quanto possível, sem prejudicar o outro». Isto pode ser óbvio para o Desidério mas não é consensual. O Desidério prefere uma sociedade onde as pessoas se “sintam tão bem quanto possível” mesmo que vivam enganadas. Eu, pelo contrário, dou mais valor à verdade e prefiro uma sociedade que distinga entre verdade e falsidade mesmo que isso seja desconfortável. Principalmente quando se trata do Estado certificar profissões, que é o que estamos a discutir para a homeopatia. Nesse caso parece-me óbvio que importa saber se estão a certificar algo que é verdade ou as parvoíces de algum tresloucado.

Finalmente, o Desidério alega que «no caso da homeopatia [e] no caso do ensino do criacionismo aos filhos dos criacionistas [não] há conflitos inequívocos de interesses. De uma parte há apenas um interesse vago em excluir da nossa sociedade pessoas de um certo tipo.» Não é verdade. Vender água da torneira como cura ou ensinar disparates a crianças criam conflitos inequívocos entre os interesses de quem o faz e os interesses de quem é enganado. Quanto à treta da exclusão, é outro espantalho. O que está em causa é apenas a sensatez de pôr o Estado a certificar crenças como as da homeopatia ou do criacionismo.

O raciocínio do Desidério não serve para pensar em problemas morais e políticos. Não parte das premissas certas, ataca espantalhos, tem inferências inválidas e contradiz-se, ora chamando ingénuo a quem não dá valor à filosofia do Desidério, ora dizendo que é «é completamente irrelevante o que nós achamos que [os outros] deviam preferir». Mas a pergunta é boa. «Como pensar correctamente sobre conflitos morais e políticos?» Como este post já vai longo e ando atrasado com outras tretas, agora tenho de ficar por aqui. Mas na segunda parte, daqui a uns posts, tentarei responder a esta pergunta.

1- A incompreensão profunda das diferenças cruciais. 2- Desidério Murcho, Saber pensar sobre problemas morais e políticos.

domingo, dezembro 02, 2012

Treta da semana (passada): desinformação.

Segundo o Pinto Balsemão, é necessário limitar a “desinformação” na Internet, onde há informações relevantes mas onde também, «misturado com isto tudo, há rumores que nunca são confirmados». Além disso, «As redes sociais vieram agravar este fenómeno”» (1). Achei curioso. O Pinto Balsemão é o presidente da Impresa, detentora de revistas como a Caras (2) e a Activa (3), além da SIC, onde a Maya deita cartas, o que sugere muito pouca exigência e rigor na informação. Defende também que «sejam colocados limites a essa desinformação» e pergunta «Até que ponto devemos ser tolerantes com a intolerância?»

A primeira parte é a hipocrisia costumeira de uma indústria habituada aos monopólios. Era fácil fazer dinheiro com publicações da treta vendendo opiniões escritas à pressa com fotografias de stock para dar cor. Hoje faz-se isso nos blogs, que são de borla e aos montes. O mercado dos posts em revista e televisão está a contrair, prejudicando a empresa do Pinto Balsemão. Mesmo no conteúdo de qualidade, o gratuito tira cada vez mais negócio ao pago. Se bem que seja necessário pagar a um profissional para produzir regularmente, e por encomenda, material de qualidade, há muitos amadores com capacidade e vontade para criar, mesmo que esporadicamente, conteúdos de valor sem cobrar nada por isso. Com milhões desses a um click de distância é difícil competir. Veja-se, por exemplo, o que a Wikipedia tem feito ao negócio das enciclopédias. Quando Pinto Balsemão diz “limitar a desinformação” o que quer dizer é restringir a publicação amadora para limitar a concorrência que esta lhe faz.

A conversa da intolerância tem, basicamente, o mesmo objectivo. «Até que ponto devemos ser tolerantes com a intolerância?» Até ao ponto em que se torne intolerável. Aquém disso, tolera-se. Se alguém for intolerante aos meus posts, tolero perfeitamente que não os leia. Se quiser criticar, escarnecer, troçar ou insultar, que fique à vontade. Tanto me faz. A intolerância só é intolerável se nos impõe algo que não podemos evitar. A censura, por exemplo, é uma forma intolerável de intolerância. Logo por azar, é essa que o Pinto Balsemão defende. «Os cidadãos “que defendem a liberdade de expressão” poderão ser levados a exigir que “sejam colocados limites a essa desinformação”». Queixa-se de que «há dificuldade em saber quem é quem» e defende que «os meios ditos tradicionais mantenham as suas funções de mensageiro de filtrador, de veiculador de opiniões e de ‘aguilhão’ da opinião pública». Ou seja, quer limitar a liberdade de expressão e o direito à manifestação anónima só para combater a tal “desinformação”. Quer impedir que se diga por aí o que ele não quer que se diga. Essa intolerância é que é intolerável.

É verdade que a tecnologia moderna ampliou muito a nossa liberdade de expressão e que essa liberdade exige alguma sensatez para usar de forma proveitosa. Daí se terem agravado problemas antigos como o rumor e a difamação, e terem surgido problemas novos como o dos melgas que enchem caixas de comentários com divagações ininteligíveis ou ladainhas repetitivas. Mas a mesma tecnologia que agrava esses problemas dá a cada um de nós as ferramentas para os resolver. É fácil testar o fundamento dos rumores, desmentir difamações e ignorar ou filtrar o ruído. Em vez de estarmos dependentes do tal “mensageiro filtrador e veiculador de opiniões” do Pinto Balsemão, com um pouco de conhecimento e espírito crítico cada um safa-se bem por si sem precisar que censurem o que quer que seja.

Mas este, é claro, acaba por ser o problema fundamental. A carreira de pessoas como o Pinto Balsemão, quer na política quer à frente de empresas como a que ele lidera agora, seria muito mais difícil com um público informado, céptico e proficiente a topar-lhes a treta. O melhor é colocar já “limites à desinformação” não vá o pessoal aprender a distinguir entre o que é verdade e o que se vende como o sendo.

1- I Online, Pinto Balsemão admite que será necessário "limitar desinformação" da Internet
2- Por exemplo, Irmã de Penélope Cruz pode estar grávida Também pode não estar. Não querem dar azo a rumores infundados.
3- Por exemplo, Kim Kardashian confessa inveja de irmã Kendall Jenner, «Kim Kardashian escreveu, no twitter, que tem inveja relativamente à meia-irmã, Kendall Jenner, que acabou de fazer capa da Vogue Austrália». Claramente, é preciso acabar com esta coisa das redes sociais e deixar as notícias a cargo de profissionais competentes que saibam escolher o que é importante sabermos.