Ainda a propósito do Artur Baptista da Silva, a Priscila Rêgo apontou o que diz serem três erros na ideia de aliviar a crise da dívida pública cobrando aos Estados taxas de juro como as que o BCE cobra pelos empréstimos aos bancos privados:
«O erro nº1 está em presumir que as operações do BCE podem ser equiparadas a empréstimos da Troika. Não podem. Os empréstimos do BCE são feitos a um dia ou a uma semana, e é isso que justifica a taxa de juro tão baixa»; o «erro nº2, qualquer revisão da taxa efectiva aplicar-se-ia apenas à nova dívida, e não à que já está em stock, pelo que o impacto no orçamento seria sempre muito mais pequeno do que se poderia supor pela mera aplicação mecânica de uma taxa de juro de 0,5% ao stock de dívida actual» e, erro número 3, «a taxa actual já é bastante baixa - pouco mais de 3,2%»(1).
Apesar da Priscila ter alguma razão nestes três pontos, perpetua o erro fundamental de sugerir que o impedimento é económico. Não é. É político.
Os empréstimos do BCE são especiais, mas não só no prazo. Normalmente, os juros de um empréstimo compensam riscos e custos de oportunidade porque o credor não pode aplicar o dinheiro que empresta e arrisca ficar sem ele. Para o BCE, que é quem cria os euros, isto é irrelevante. Nem arrisca o seu dinheiro nem precisa de procurar bons investimentos. Os juros que o BCE cobra servem apenas para controlar a inflação. Por seu lado, os empréstimos que os bancos contraem ao BCE também são especiais. Como a Priscila explicou, são contraídos a prazos de poucos dias, pelo que são inúteis para os Estados e para a maioria dos agentes económicos. Mas os bancos são especiais.
Quando depositamos dinheiro num banco o dinheiro deixa de ser nosso. O banco tem a obrigação de nos pagar quando o pedirmos de volta mas, até lá, pode fazer o que quiser com ele. Isto permite aos bancos criar dinheiro emprestando e voltando a emprestar o mesmo dinheiro. Por exemplo, a Ana deposita €1.000. Esse banco empresta €900 ao Bruno que os paga à Carla que, por sua vez, deposita o dinheiro no banco. Agora, o banco pode emprestar €810 ao David. Com isto, os €1.000 da Ana já vão em €2.710 e ainda com muitas voltas por dar. Há duas restrições a esta multiplicação dos euros. Uma é o limite mínimo de reserva que os bancos têm de guardar, imposto pelos bancos centrais, à volta dos 10%. A outra é o banco precisar de dinheiro em caixa para cobrir os levantamentos. É aqui que os empréstimos a curto prazo são importantes. Todos os dias o banco recebe e devolve dinheiro, mas os valores variam. Se num dia sai mais do que há em reserva, o banco tem de pedir um empréstimo a curto prazo até a coisa estabilizar. Se a taxa de juro desses empréstimos for baixa compensa guardar menos em reserva e conceder mais crédito. Ou seja, a banca cria mais dinheiro. Se a taxa de juro for alta os bancos evitam pedir emprestado guardando mais reservas, o que obriga a conceder menos crédito e reduz a quantidade de dinheiro em circulação. Desta forma (simplificando), o BCE controla a inflação com as taxas de juro. Assim, houve duas coisas importantes que ficaram escondidas na explicação da Priscila. Uma é que, para os bancos, os empréstimos a curto prazo sãp úteis á longo prazo porque permitem multiplicar o dinheiro que os bancos podem usar. A outra é que a taxa de juro do BCE não é determinada por prazos, oportunidades ou riscos, como acontece noutros empréstimos. No caso do BCE o que determina a taxa de juro é simplesmente a política monetária.
Os outros “erros” são mais fáceis de comentar. É verdade que se devo 200 mil milhões a 3,2% e peço 200 mil milhões a 0,5%, os 0,5% só se aplicam à nova dívida. Mas se pagar o primeiro empréstimo com o segundo passo a pagar 0,5% de juros em vez de 3,2%. E se bem que 3,2% seja uma boa taxa de juro em relação ao que o Estado português conseguiria nos mercados de dívida, daí a 0,5% ainda vão uns bons milhares de milhões de euros por ano.
É claro que, havendo mais dinheiro, o dinheiro vale menos e tudo sobe de preço, pelo que emprestar dinheiro a 0.5% aos Estados aumentaria inflação. Se bem que um pouco de inflação seja saudável – o BCE tem como alvo mantê-la a 2% – quando se descontrola é uma desgraça porque deixa de haver confiança na moeda. No entanto, entre 2% de inflação e o dólar do Zimbabwe ainda há uma grande margem de manobra, pelo que, e ao contrário do que muitos economistas querem fazer parecer, esta via da austeridade não é uma inevitabilidade económica. É a escolha política de optar pela contracção da economia e a redução nominal dos salários nos países mais pobres em vez de reduzir o peso das dívidas e as diferenças de competitividade aumentando a inflação e os salários, principalmente nos países mais ricos (que é onde o dinheiro extra iria quase todo parar, eventualmente).
Escolheram a opção errada. A inflação é má, mas é má para todos enquanto a austeridade afecta quase exclusivamente quem está pior. Os senhores engravatados que chegam de motorista às conferências de imprensa para falar dos sacrifícios que “nós fazemos” sentem muito pouco os despedimentos e os cortes nas escolas públicas, nos serviços de saúde e nas prestações sociais. Mas enquanto convencerem a maioria de que não há alternativa, de que tem mesmo de ser assim e não se pode fazer nada, vão continuar a safar-se tramando os outros.
1- Priscila Rêgo, O que o caso Artur Batista da Silva nos ensina. Obrigado ao Nuno Gaspar pelo link.