domingo, novembro 27, 2016

Treta da semana (atrasada): Trump e os ofendidos.

Donald Trump teve sessenta e dois milhões de votos, mais dois milhões de votos que John McCain e Mitt Romney quando perderam para Barack Obama. Obama teve 69 milhões de votos em 2008, 66 milhões em 2012 e, agora, Hillary Clinton teve 64 milhões de votos. Nestas três eleições os Democratas caíram cerca de 7% em proporção aos eleitores, com os Republicanos a manterem a sua fatia aproximadamente constante. A menos de surpresas nas recontagens, esta eleição parece ter sido mais uma derrota dos Democratas do que uma vitória dos Republicanos (1).

Boa parte do problema foi Clinton. Ganhou a candidatura graças ao apoio da cúpula do partido Democrata, dos superdelegados ao comité nacional, e da gente importante que queria afastar Sanders. Mas, ao contrário de Sanders, não ofereceu nada de novo que entusiasmasse eleitores fartos do vira o disco e toca o mesmo. Por outro lado, factores sociais e económicos alteraram a demografia do eleitorado republicano e isto acabou por dar a vitória a Trump mesmo ficando atrás no voto popular. Beneficiou também dos votos de protesto contra Wall Street e contra a crescente desigualdade de rendimentos nos EUA (2). Quem sofre injustiças tem mais vontade de partir tudo do que de optimizar racionalmente os seus benefícios. Isto foi importante na vitória de Trump como já tinha sido no Brexit e como será novamente enquanto não resolvermos as injustiças económicas que ameaçam a nossa democracia.

Mas o aspecto mais saliente da vitória de Trump foi o seu populismo racista e xenófobo. Custou-lhe alguns votos, ao alienar a franja menos insana do eleitorado republicano. Mas, feitas as contas, compensou. Ainda que muitos eleitores não tenham votado em Trump por serem racistas ou xenófobos, o facto é que sessenta e dois milhões de pessoas lhe deram o seu voto apesar dele defender políticas obviamente imorais e perigosas, de deportações em massa a perseguição religiosa. A popularidade destes disparates sugere um erro grave na forma de os combater e eu suspeito que esse erro é a crescente intolerância daqueles que, em nome da igualdade, atropelam a liberdade de pensar de forma diferente. Um mal do qual também sofremos por cá.

Se um barbeiro só atende homens, invadem-lhe a barbearia (3). Se um comentador diz mal dos ciganos, fazem uma petição para o proibir de aparecer na TV (4). Se o dono de um hotel pede a homossexuais para não pernoitarem lá, é caso para a ASAE e exige-se legislação à medida para proibir tais pedidos (5). Esta luta pela igualdade não reconhece a diferença entre o que é incorrecto e o que é legítimo proibir. Além de não respeitar a liberdade de consciência dos outros – mesmo quem erra tem o direito de ser como é e de dizer o que pensa – esta atitude é estúpida. Racismo, misoginia, xenofobia e afins são ideias. São sensações, preferências, disposições íntimas que não se pode combater pela força. O ladrão preso não rouba mas o racista censurado ou coagido continua a ser tão racista quanto era. Vai apenas disfarçar até estar sozinho com o boletim de voto.

Para combater ideias más é preciso persuasão, o que exige vontade de dialogar e respeito pela liberdade de discordar. Infelizmente, muita gente que defende a igualdade de direitos fá-lo sob a impressão errada de que a indignação e a força têm mais virtude do que o diálogo. O problema tem-se agravado com a crescente dependência de negócios de venda de publicidade a que chamam “redes sociais”. Para maximizar o tempo que as pessoas lhes dedicam, estes serviços encorajam, e até automatizam, a filtragem de tudo o que possa desagradar ao utilizador. Muita gente até se gaba com orgulho de “limpar” as suas listas de contactos para se isolar de quem pensa de forma diferente. Se bem que, individualmente, esta intolerância é legítima – cada um tem o direito de decidir onde gasta o seu tempo – a morte do diálogo pela indignação do virtuoso é uma oportunidade perdida de esclarecer, de explicar e de vencer este combate onde ele tem de ser vencido. Na mente do outro. Não se consegue persuadir toda a gente com diálogo. Há muita gente demasiado casmurra. Mas sem diálogo o resultado é ainda pior e, como Trump demonstrou, não é preciso persuadir toda a gente. Basta alguns, no sítio certo.

Pior ainda, quando esta atitude de intolerância se manifesta colectivamente, a tendência é estender o filtro para a coerção e censura. Não basta mudar de canal. É preciso proibir o racista de aparecer na televisão, ou banir o vídeo do YouTube, ou retirar a página da Internet, fechar a barbearia e assim por diante. A mensagem que isto transmite a quem tem opiniões politicamente incorrectas é clara. Só terá liberdade para dizer o que pensa quando estiver no poder quem partilhe dessas opiniões. Isto praticamente força as pessoas a eleger alguém como Trump só para poderem dizer o que lhes vai na mente.

Quem usar o diálogo para opor o racismo, a misoginia e demais formas de discriminação tem a vantagem de ter razão. Ter razão não garante sucesso mas ajuda muito. No diálogo. Na coacção e na repressão tanto faz porque aí só conta a força. Nisso, ter razão não adianta de nada. É esta vantagem que perde quem “desamiga” o intolerante, quem assina a petição para censurar o racista e quem exige leis que proíbam hoteleiros de pedir clientes heterossexuais. Barafustar de indignação pode dar likes mas, se querem mesmo combater estas ideias parvas, têm de deixar de se fazer de ofendidos e começar a falar com as pessoas. E admitir que elas discordem.

E aqui fica a versão TL;DR deste post:


1- CNN, Voter turnout at 20-year low in 2016; ver também aqui as contagens actualizadas e aqui o perfil dos eleitores.
2- Wikipedia, Income inequality in the United States
3- Público, 2015, Activistas invadem barbearia de Lisboa onde só entram homens e cães
4- Petição Pública, Afastar Quintino Aires da TV
5- DN, Hotel no Minho veda entrada a "gays e lésbicas"