domingo, agosto 31, 2008

Tudo isto por 10 ou 15%?

Ontem vi o telejornal. Costumo ver as notícias na web, que é mais prático e não tem futebol. Mas ontem fiquei fascinado, quase hipnotizado, com a meia hora de assaltos, rusgas e operações policiais. A cada oportunidade falava-se da vaga de crime violento, do grande aumento da criminalidade perigosa e assim. Entretanto, lá pelo meio, passa em rodapé que a criminalidade violenta tinha aumentado 15% nos últimos seis meses. Segundo o Público foi 10%. E a criminalidade violenta é cerca de 6% do total (1). E segundo o Jornal de Notícias, o que aumentou 15% foi o crime contra o património, enquanto que o crime violento até diminuiu em número, se bem que a Procuradoria Geral da República disse terem aumentado «qualitativamente» (2). Penso que querem dizer que se tornaram mais mediáticos desde que a polícia fuzilou dois assaltantes em directo na televisão.

Para combater este flagelo tem havido grandes operações policiais com centenas de polícias e grande aparato. Com bons resultados. Não pela soqueira e pistola de alarme que apreenderam mas porque apanharam dezenas de condutores bêbados. Se querem aumentar a segurança a primeira coisa é mesmo tirar os bêbados da estada. Em 2000, por exemplo, morreram em Portugal 1357 pessoas por acidentes rodoviários, 525 por suicídio e 97 por homicídio (3).

Salpicaram pelas reportagens algumas especulações acerca do que teria causado a vaga de crimes violentos mas não mencionaram as duas mais óbvias. A falta de qualidade do jornalismo e a apetência do público pelo alarmismo infundado. O candidato deles foi a reforma do Código de Processo Penal porque agora não há prisão preventiva para alguns crimes onde se aplicava antes. Parece-me pouco realista. Bute lá assaltar o Pizza Hut? Bute, que só vamos presos depois do julgamento.

Uma das rusgas que mostraram foi a uma feira, onde apreenderam vários sacos de camisetas e sapatilhas, e duas carrinhas. Ocorreu-me que a azáfama da ASAE nos últimos meses possa ter contribuído para o aumento dos crimes contra o património. O feirante que vende os excedentes das fábricas sem autorização da marca não vai abrir um cabeleireiro ou entrar para a função pública quando lhe apreendem o stock. Aumentam a estatística com a primeira apreensão e, quando o tipo se vir sem dinheiro, sem carrinha e sem coisas para vender, lá vai mais outra para a estatística do crime contra o património. Não digo que deixem de perseguir crimes económicos, mas acho que as leis de regulação comercial devem ser feitas e aplicadas tendo em conta as consequências sociais.

Mas o pior nesta palhaçada são coisas destas: «O Governo criou um grupo de trabalho para estudar a hipótese de colocar um «chip» nas matrículas dos automóveis.[...] Claro, trará mais segurança a Portugal, bem necessita, pois nestes tempos a criminalidade violenta tem disparado em flecha!»(4)

Não sei que crimes violentos o autor deste comentário julga que o chip vai evitar. Nem sequer o carjacking, porque quando a vítima fizer queixa, comprovar ser o dono da viatura e a polícia actualizar a base de dados já o carro foi vendido às peças em Espanha. E desactivar um chip RFID é trivial (5).

É preocupante que as pessoas dêem tão pouco valor à informação. Não protestam contra as patentes absurdas que há por aí nem se importam que as discográficas reclamem ser donas de sequências de números. E até parece que querem que se recolha cada vez mais informação sobre nós. O chip na matrícula permite que um leitor no carro da polícia ou à beira da estrada registe a hora e local de todos os carros que passarem por perto. O chip também servirá para verificar se o seguro está em dia, pelo que a identificação será cruzada com os dados do seguro que incluem nomes e moradas. Vamos ter uma base de dados muito apetitosa para os criminosos.

Estas coisas não dão mais segurança. Dão mais comodidade à polícia, que assim precisa apenas deixar o aparelho na berma umas horas, imprimir as multas e mandar pelo correio. Em troca cedemos a nossa privacidade, o direito de controlar a informação acerca de nós e até a nossa segurança. Estas medidas não só são ineficazes a prevenir os crimes que conhecemos como permitirão crimes que agora nem imaginamos. Mas é garantido que alguém os vai imaginar assim que a oportunidade surgir.

1- Público, 28-8-2008, Governo reconhece aumento da criminalidade violenta mas garante respostas
2- Jornal de Notícias, 28-8-08, Crimes violentos estão piores mas não aumentaram
3- INE, As Causas de Morte em Portugal - 2000 - 2000
4- GlobPT, «chip» nas matrículas dos automóveis?
5- C3 Wiki, RFID-Zapper(EN)

sábado, agosto 30, 2008

O contexto histórico.

A propósito da conversa das sociedades, etnias e direitos. Apanhei agora o final de uma reportagem na SIC sobre uma família de ciganos. Uma miúda casou aos 13 anos com um tipo de 20. Agora tem 15 anos, uma filha com 11 meses e está grávida. Por lei isto é crime sexual, e mesmo sem a lei é uma barbaridade. Mas por cá respeita-se mais as tradições do que as crianças.

A reportagem deu num programa chamado Perdidos e Achados, e penso que era uma repetição.

Treta da Semana: Cristo Rã.

Cristo Rã

Percebo pouco de arte. Tão pouco que nem percebo o que há para perceber. Ou gosto ou não. Mas deixo aos peritos a crítica desta estátua de Martin Kippenberger, «Zuerst die Fuesse» (“Pés Primeiro”), exposta em Bolzano. O post é sobre a reacção.

Franz Pahl, presidente do governo regional, opôs-se à exibição da peça que considerou não ser «uma obra de arte mas uma blasfémia e um pedaço de lixo repugnante que incomoda muitas pessoas» e uma «ofensa grave à população Católica». O Papa enviou-lhe uma carta de solidariedade afirmando que a figura «fere os sentimentos religiosos de tantas pessoas que vêem na cruz o símbolo do amor de Deus» (1).

Não critico o boneco nem a opinião pessoal do Sr. Pahl ou do Sr. Ratzinger, a quem reconheço o direito de se ofenderem com o que bem entenderem. Questiono a legitimidade de falarem em nome do que ofende a «população Católica», que me parece suficientemente diversa para não se ofender toda com a mesma coisa e perfeitamente capaz de decidir, cada um por si, se se ofende ou não. Mas isso deixo passar.

A minha crítica é a quem leva isto a sério. O conselho que dirige o museu votou 6 contra 3 a favor de manter a obra exposta. O superintendente dos museus afirmou a liberdade de expressão na arte. O ministro da cultura disse que os museus com financiamento público não devem «exaltar obras de profanação». Pois eu acho profundamente ofensivo que ponham café ou vinho do porto na mousse de chocolate, que deve saber a chocolate e não a essas coisas. Mas é uma opinião pessoal, uma questão de gosto, e só come quem quer. Não vão perder tempo com isso.

Com a religião tem que ser o mesmo. Há uma forte tradição de levar a religião a sério, e qualquer religião se caracteriza, principalmente, por se levar muito a sério. Por mais ridícula que seja. Mas só podemos conviver em paz se assumirmos a religião como algo estritamente pessoal. Algo que cada um pode ter ou não ter conforme queira e que não diga respeito ao escultor, à direcção do museu ou ao ministro da cultura. Eu não pagava para ver a rã mas isso não é razão para impedir outros de a irem lá ver.

Encarar a religião como um gosto pessoal é importante não só para ateus como eu mas, e talvez principalmente, para os crentes religiosos. Pensem os Católicos o que seria se tivessem que esconder as imagens dos santos para não ofender os Protestantes, deixar de rezar a Jesus para não incomodar os Judeus e acrescentar sempre umas palavras de veneração a Maomé para os Muçulmanos não se chatearem...

1- Reuters, 30-8-08, Italian museum defies pope over crucified frog

sexta-feira, agosto 29, 2008

Uma sociedade não é uma pessoa.

A percentagem de diabéticos nos EUA é maior do que na China. Isto é relevante para analisar os custos e benefícios de investir no combate à doença mas cada indivíduo conta o mesmo. O valor moral de fornecer insulina a um diabético não depende das estatísticas da população nem do país onde ele nasceu. Analogamente, maltratar uma mulher é tão mau na Arábia Saudita como em Portugal e censurar alguém é tão grave na China como nos EUA. Um erro, por vezes inconsciente, quando se fala de outras sociedades é “dar um desconto” à gravidade de certos actos por serem comuns nessa cultura. A ignorância ou má educação de quem os comete pode mitigar a sua culpa mas não torna o acto em si menos grave. E quando são cometidos pelo regime nem essa desculpa têm.

Um erro mais sério é considerar o grupo como uma pessoa. Eu acho o racismo um disparate mas reconheço ao racista o direito à sua opinião. Cada um pensa como quiser. Mas isto não se aplica a uma sociedade. Nenhuma sociedade tem o direito de ser racista porque, por um lado, qualquer pessoa tem o direito de não ser discriminada pela cor da pele e, por outro, quando uma sociedade é racista não tem apenas uma opinião. Tem leis racistas, instituições racistas, práticas racistas. É infelizmente comum esta atitude de tratar um país, etnia ou cultura como se tivesse o direito de fazer algo só porque, em média, as pessoas desse grupo aprovam. Até se diz que não devemos impor a nossa cultura à cultura dos outros. Mas não são culturas que se impõem a culturas. São umas pessoas que as impõem a outras pessoas. Se impedirmos que no Irão condenem à morte quem deixar de ser muçulmano não é a nossa cultura a impor-se à deles mas sim evitar que uns imponham a sua a quem não a quer.

É claro que, na prática, não se pode fazer muito. Invadir a China, o Irão ou a Coreia do Norte ia dar mais chatice que proveito, a menos que estes comecem a invadir outros países ou a chacinar muita gente. Além disso, saber que se deve combater algo de errado é diferente de arriscar o pescoço por coisa que nos passa ao lado... Mas podemos dizer mal, apontar o dedo, criticar. Escrever blogs e assim. Adianta pouco a quem sofre estas coisas mas sempre evitamos tapar os olhos com a treta de ser "a cultura deles". E há casos em que não é preciso invadir nada. A misoginia das religiões ocidentais desaparecia depressa se mais gente, especialmente as mulheres crentes, percebesse que a opinião do grupo não é mais que a soma das opiniões dos seus elementos.

Finalmente, o erro de confundir a opinião da maioria com a opinião de quem manda. Não é coincidência que, quanto mais autoritário é o grupo, mais a alegada opinião "do povo" favorece quem está no topo. Na China não se proíbe outros partidos para facilitar a escolha ao eleitor, não se prende manifestantes por incomodarem a sesta às pessoas e não é por questões de higiene que investem tanto na «pureza da internet». Isto são só pegas para agarrar melhor o tacho.

É nisto que penso quando critico religiões, tradições ou nações. Da China à Igreja Católica e da tourada à catequese. Não é para salvar ninguém. Se ajudar alguém, tanto melhor, mas quero principalmente chamar a atenção, a minha e a de quem calhar, que os direitos de cada um não dependem das estatísticas do grupo, que grupos não são pessoas com direito a opinião própria e que aquilo que os líderes do grupo dizem nem sempre corresponde ao que os liderados pensam.

A propósito, concluo citando uma carta que o então Cardeal Ratzinger escreveu aos bispos da Igreja Católica, supostamente em nome e no interesse de todas as mulheres.

«[A] referência a Maria, com as suas disposições de escuta e acolhimento, de humildade, de fidelidade, de louvor e espera, coloca a Igreja na continuidade da história espiritual de Israel. [...] Embora sejam atitudes que deveriam ser típicas de todo o baptizado, na realidade é típico da mulher vivê-las com especial intensidade e naturalidade. Assim, as mulheres desempenham um papel de máxima importância na vida eclesial, lembrando essas disposições a todos os baptizados[...].
Numa tal perspectiva, também se compreende porque o facto de a ordenação sacerdotal ser exclusivamente reservada aos homens não impede às mulheres de terem acesso ao coração da vida cristã. Elas são chamadas a ser modelos e testemunhas insubstituíveis para todos os cristãos de como a Esposa deve responder com amor ao amor do Esposo»
(1)

1- Joseph Ratzinger, 31-5-04, Carta aos Bispos da Igreja Católica Sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo

quinta-feira, agosto 28, 2008

Conversas na Aldeia Global

Fui convidado para participar neste ciclo de palestras e debates organizado pela câmara municipal de Oeiras, convite que aceitei com agrado. Dia 23 de Outubro retomarei a conversa com o Jónatas Machado. Não sei se me vão explodir argumentos na cara mas, se for o caso, espero que não tenham a ver com vacas.

Tenciono também assistir às outras, as que conseguir conforme o tempo permita. Pelos temas e pelos convidados parecem interessantes.

Cartaz AG08

terça-feira, agosto 26, 2008

O cu e as calças.

«A fim de que os leitores deste blogue não aceitem acriticamente os argumentos do Ludwig Krippahl», o Jónatas Machado comentou algumas afirmações que disse que eu proferi (1). Agradeço o esforço e lamento não poder dar à monografia a atenção que merece por ser o triplo do que me permito escrever num post. Focarei apenas o ponto 4 que alega eu ter defendido «a incompetência do designer argumentando com o sistema digestivo das vacas e os seus excrementos.» É, às vezes, a sensação que me dá. Mas não era esse o destinatário do meu argumento, que nem era sobre o intestino da vaca em si. Era sobre a digestão da celulose (2).

Nos mamíferos falta o pedacito de ADN que sintetiza a enzima que digere a celulose. Há em fungos, bactérias e até protozoários mas não em mamíferos. Daí a complicada digestão da vaca, que precisa de bactérias que lhe digiram erva, e a infeliz digestão do coelho que, por guardar as bactérias junto ao ânus, tem que comer ao pequeno almoço o que comera ao jantar. Literalmente. Argumentei que isto não sugere uma criação inteligente. Mesmo como piada seria um humor infantil. Nessa linha, prossegue o Jónatas.

«Esquece porém que esse argumento, levado às últimas consequências, nos obrigaria a comparar o cérebro do Ludwig com o sistema digestivo das vacas e os pensamentos do Ludwig com os excrementos das vacas. E poderíamos ter dúvidas sobre qual funciona melhor, já que para o Ludwig todos seriam um resultado de processos cegos e destituídos de inteligência.»

Num debate devemos interpretar cada argumento da forma mais favorável a quem o profere. Ao contrário de um julgamento, o objectivo não é safar o cliente nem punir o prevaricador. É apurar a verdade, e isso exige boa vontade. Daí o meu dilema. É que não sei se será pior interpretar isto como um insulto fraco ou se assumir que o Jónatas defende que se pensar e digerir forem processos naturais então o pensamento é excremento. Por isso passo à frente.

«[...] os criacionistas têm uma visão mais benigna do cérebro do Ludwig e dos seus pensamentos. As premissas criacionistas partem do princípio de que o Ludwig é um ser racional porque foi criado à imagem e semelhança de um Deus racional.»

Finalmente uma parte que consegue estar errada. Pode não parecer um grande feito mas, no contexto, sobressai pela positiva. É o problema recorrente (3) das explicações à criacionista. O Mats dá outro exemplo num post intitulado «Deus É a Explicação Mais Lógica»(4), onde um vídeo afirma que como o universo teve um início a melhor explicação é que Deus existe. Mas isso nem sequer é explicação.

Uma explicação é uma proposição que, no contexto do que sabemos, permite concluir o que queremos explicar. Por exemplo, que o copo está partido no chão porque caiu. O que sabemos permite concluir que o copo se parte nessas condições, por isso é uma explicação. E é uma boa explicação porque nos dá informação nova e testável acerca do que aconteceu sem invocar coisas das quais nada podemos saber. Em contraste, “Deus existe” não é explicação porque disto nada se conclui acerca do universo. E “Deus criou o universo” parece uma explicação mas é como “Deus partiu o copo”. Demasiado rebuscada por postular o tal Deus do qual nada se sabe e insatisfatória porque nos deixa na mesma acerca do que aconteceu.

O mesmo se passa com a hipótese de eu ser inteligente porque Deus me criou à sua «imagem e semelhança». Não explica nada. Não tenho maneira de saber como Deus é nem inferir o que tenho de semelhante a Ele. Não devem ser os meus testículos, pêlos do nariz, pés, mãos, fígado ou intestino, que parecem atributos pouco divinos. Nem mesmo a minha inteligência, que é uma ferramenta que uso para antecipar acontecimentos, planear acções e resolver problemas. A um Deus omnisciente que existe fora do tempo isto faz tanta falta como ser sócio do Círculo de Leitores. E mesmo assumindo que Deus tem uma inteligência divina qualquer há o problema da minha não ter nada a ver com isso. Esta “explicação” inventa coisas que ninguém pode saber sem adiantar de nada.

Mas há uma coisa na qual o criacionismo desafia a teoria da evolução. É em explicar como quatro mil milhões de anos de modificação e selecção natural de características herdadas foram dar um disparate tão grande...

1- Comentário em Pegas.
2- Miscelânea Criacionista: Design Incompetente.
3- Inferências
4- Mats, 24-8-08, Deus É a Explicação Mais Lógica

segunda-feira, agosto 25, 2008

Treta da Semana (passada): A democracia é só para alguns.

A ideia que a democracia serve melhor umas culturas que outras ataca pela calada e raramente é defendida por quem se apercebe que o faz. Mas porque há demasiado respeito por culturas e tradições (1) e insuficiente compreensão da democracia esta ideia insidiosa é frequente. O Xiquinho deu um exemplo quando explicou porque é que a democracia é menos importante para a China.

«Se perguntares a [um] chinês médio o grau importância que dá à democracia também és capaz ficar surpreendido pois rapidamente chegarás à conclusão que está tudo muito mais interessado no caroço do que nos direitos humanos. Claro que haverá excepções, mas não me parecem ser significativas. Pode parecer estranho mas o conceito de democracia não é absoluto em todo o mundo nem tão pouco garantia automática de liberdade e justiça. Muito menos na China.»(2)

É verdade que países diferentes implementam os detalhes de maneiras diferentes. Parlamentos, ministros, processos de aprovação de leis e assim. Mas o importante não é isso. Como o Xiquinho reconheceu, «os valores de uns e outros são muito diferentes». O fundamento da democracia é o respeito por essas diferenças. A Declaração Universal dos Direitos Humanos mostra-o bem. Delimita uma esfera de direitos que todos podem exercer sem privar outros de direitos iguais e exclui o Estado dessa esfera. Escolher se rezamos e a quem, com quem vivemos, o que pensamos ou dizemos não compete ao Estado mas a cada um de nós. O Estado é como a administração do condomínio. Trata das partes comuns mas não entra em casa das pessoas.

O Estado democrata intervém apenas na gestão dos interesses comuns e na resolução de conflitos. Porque tem que respeitar os valores de cada um a gestão dos interesses comuns é por voto da maioria ou por representantes eleitos. E, pela mesma razão, a resolução de conflitos tem que considerar igualmente todos os valores, mesmo os minoritários. Daí que seja legítimo a maioria decidir quanto se investe em educação ou saúde mas não que 90% votem para escravizar os outros 10%. A democracia não é seguir a vontade da maioria mas sim respeitar o melhor possível os valores de cada um.

Há quem contraponha que isto é apenas individualismo ocidental e que outras culturas podem dar prioridade à família, sociedade ou nação. Mas na nossa espécie todos os valores vêm do indivíduo. É o indivíduo que dá valor à família, à nação ou a si próprio. Se fossemos formigas inteligentes talvez cada formigueiro pensasse colectivamente ou só as rainhas tivessem valores. Mas não somos. Cada um de nós pode pensar por si, ter os seus valores e concordar ou discordar dos outros. Em rigor, nem a cultura nem a sociedade nem a tradição têm valores. Quem tem valores é cada pessoa. É nisso que a democracia se baseia.

É por isso que defendo a democracia como obrigatória e universal. Não obrigatória para as pessoas. Não faz sentido obrigar alguém a ter direitos. E não como forma de governo porque não há uma só forma de governo democrático. Mais que uma forma de governo, a democracia é o limite do poder legítimo de quem governa. É obrigação do Estado exercer o seu poder apenas com a aprovação dos cidadãos, gerir o que é de todos no interesse de todos e impor-se a cada indivíduo só quando necessário para proteger outros de imposição mais grave. Qualquer governo que respeite isto acaba por ser reconhecível como democracia.

Estes limites à legitimidade de obrigar os outros a fazer o que queremos não dependem da cultura, tradição ou posição no Comité Central. São iguais para todos em virtude precisamente da grande diversidade de valores que seguimos. E são transversais aos problemas da pobreza, violência ou guerra civil. O abuso do poder de quem governa é sempre em benefício dos governantes e sempre em prejuízo dos governados.

1- Treta da semana: Culturalismos.
2- Treta da Semana: A Cerimónia.

domingo, agosto 24, 2008

É uma pena.

Os criacionistas não gostam da ideia que a nossa inteligência evoluiu, como outras características, pela adaptação de populações ao seu ambiente. O Mats disse que não está confirmado que a inteligência seja «uma característica física como penas.» Como não explicou o que serão características não-físicas, vou assumir apenas que as físicas resultam da interacção de átomos (ou moléculas, células, tecidos). E o Jónatas Machado deu uma boa razão para considerarmos que a inteligência está nesta categoria, tal como as penas. As penas «só são possíveis porque o DNA contém instruções precisas e altamente complexas para o seu fabrico.»(1) Exactamente como a inteligência. Quem nascer com ADN de pulga ou de beterraba não vai longe nos caminhos do intelecto*.

E há outros indícios. Do traumatismo craniano ao síndroma de Alzheimer, e do álcool à trombose, há muito que mostra a inteligência como indissociável do funcionamento de um cérebro tão físico como qualquer pena. A inteligência que simulamos com computadores, como jogar Xadrez, demonstrar teoremas e identificar pessoas pela voz, é recriada por processos físicos. E em todo o reino animal, do nemátodo ao humano, a correlação entre o sistema nervoso e a inteligência no comportamento é demasiado forte para ser mera coincidência.

A este sólido corpo de evidências contrapõem-se os relatos de quem diz ter sentido sair a alma do corpo e ver coisas fantásticas nunca vistas por mais ninguém. Numa conversa há tempos, um aficcionado de OVNIs e mistérios afins perguntou-me como se explicava que, durante uns dias, lhe tivesse desaparecido o tórus supra-orbital, aquela protuberância óssea que temos sob as sobrancelhas. Eu disse que se explicava da mesma forma que o desaparecimento das minhas orelhas no dia anterior entre as 10:00 e as 11:00 da manhã. O ar ofendido dele mostrou que percebera o problema. O que se tem que explicar aqui é o relato. O alegado facto relatado é uma possível explicação. Talvez as pessoas relatem sair do corpo porque saem mesmo. Mas há explicações alternativas que se ajustam melhor aos dados, especialmente à ausência de confirmação independente das maravilhas relatadas.

O peso das evidências indica que a inteligência é a actividade física de algo como um cérebro, tal como a corrente eléctrica é o movimento de electrões e a temperatura a agitação das moléculas. O problema é a nossa tendência para atribuir coisas aos conceitos. Esta semana um dos meus filhos perguntou-me se as bactérias causavam doenças porque traziam as doenças dentro delas e as deixavam no nosso corpo. Como bactéria e doença são conceitos diferentes ele achou que deviam corresponder a coisas diferentes. Isto não afecta só as crianças. Na história da ciência temos casos como o calórico (a substância do calor), o flogisto (a substância da combustão) ou o éter (a substância por onde a luz se propaga), em que adultos inteligentes e cultos cometeram o mesmo erro. Quando se fala de inteligência, consciência ou emoção há sempre quem assuma que por estes conceitos serem diferentes do conceito de actividade cerebral então as coisas também têm que ser distintas. Não são.

Outro indício importante é a inteligência animal ser composta por mecanismos especializados em vez de ser uma capacidade genérica. Um computador é uma máquina genérica de fazer contas. Quaisquer que sejam. O cérebro humano é muito diferente. Calcular a raiz quadrada de 24551224 exige uma capacidade de computação insignificante comparada a subir escadas a assobiar enquanto se reconhece a cara da avó num quadro meio às escuras. Mas para nós a segunda tarefa é trivial e a primeira laboriosa e mais sujeita a erros. Tal como nenhum pássaro tem penas genéricas mas sim penas especializadas em impermeabilidade, isolamento térmico ou aerodinâmica, também nós temos um grande pacote de inteligências especializadas em controlar os movimentos do corpo, identificar imagens e sons e assim por diante. E linguagem.

Essa foi a nossa sorte. A capacidade de comunicar por símbolos e copiar ideias surgiu empurrada pelas vantagens que trouxe aos nossos antepassados mas ganhou vida própria. Agora não são só os nossos genes que evoluem mas também as nossas ideias, a cultura, que competem entre si para moldar cérebros e criar pessoas. Os genes são praticamente os mesmos de há cem mil anos para cá mas as ideias mudaram muito e, por este mecanismo, a nossa inteligência tem evoluído muito mais rapidamente que os nossos genes.

E aí está outra pena. A teoria da criação por abracadabra é atraente, como a teoria que as bactérias trazem as doenças lá dentro. Mas o nosso cérebro é capaz de muito mais e é pena que cérebros tão capazes sejam infectados por disparates que os impeçam de compreender as suas origens.

*Mas há abóboras que se safam.

1- Comentários em Pegas

sábado, agosto 23, 2008

Está lá?

Cheguei hoje a casa. Antes de retomar a programação habitual dou só um toque ao problema da privacidade e retenção de dados nas telecomunicações. Como seria de esperar, as empresas de telemóveis não se limitam a guardar a informação acerca de onde estamos e a quem ligamos. A informação vale dinheiro e já muitas empresas a vendem. E também dá jeito à policia. Pôr sob escuta quem é suspeito de um crime é mais seguro mas dá mais trabalho. É preciso encontrar suspeitos primeiro. Em contraste, automatizar as escutas com análises estatísticas dos perfis de chamadas pode estragar a vida a muita gente mas dá-nos uma polícia mais descansadinha.

Short Cuts, no London Review of Books, via Schneier on Security.

terça-feira, agosto 19, 2008

Pegas

Se virmos que a figura no espelho tem um autocolante na cabeça facilmente reparamos que está na nossa e o tiramos. Parece trivial mas exige a capacidade de reconhecer que o espelho representa o que nós somos e poucos animais são capazes de o fazer. Até agora, que se saiba, só alguns primatas e as pegas (1).

É fascinante que a inteligência surja de formas tão diversas na natureza. Mas não é de espantar. Também há muitas formas de revestimento da pele, de membros, de comportamentos e metabolismos. Em cada ser vivo combinam-se as características que ajudaram os seus antepassados a reproduzir-se. São tão diversas e tão úteis porque surgem como solução para necessidades também diversas.

Por isso um deus omnipotente ser inteligente faz tanto sentido como um deus omnipotente ter penas. É certo que, da nossa perspectiva, a inteligência é uma grande coisa. Mas se os morcegos tivessem deuses os deles teriam sonar. Deus de peixe sabe nadar. O facto é que a inteligência é apenas mais uma das muitas características que os seres têm porque ajudam a colmatar alguma necessidade. Penas para não ter frio, dentes para morder, cérebros para pensar. Nós e as pegas conseguimos perceber que a imagem no espelho representa o nosso corpo porque um cérebro capaz desse raciocínio ajuda-nos a sobreviver e reproduzir. Mas um ser omnipotente precisa tanto disto como de pêlos no nariz. Se Deus existe, se lhe colarem um autocolante na testa e lhe mostrarem um espelho Ele não vai saber o que fazer. Para que precisa ele de tal capacidade?

O mesmo se passa com as outras características que Lhe atribuem apenas porque as prezamos como humanos. Deus ama, fala, pensa, compadece-se, zanga-se, castiga e uma data de outras coisas que são úteis para macacos tagarelas como nós mas que não servem de nada a um ser eterno e omnipotente.

E mais triste que esta crença incoerente é o que custa querer acreditar que a natureza foi criada de propósito por algo inteligente. Essa luta contra o óbvio impede de ver a riqueza de formas com que a Natureza, sem querer, cria inteligências.

1- BBC, Magpie can 'recognise reflection'

segunda-feira, agosto 18, 2008

Actos e expressão 2: a propriedade intelectual.

Hoje podemos representar muita coisa com sequências de números que espalhamos num instante por todo o mundo. E a comunicação em massa já não está sob o controlo de alguns agentes económicos ou governos que agora querem regular a informação que partilhamos. O desabafo anterior foi por aplicarem á comunicação pessoal regras próprias de actividades comerciais ou profissionais (1). Faz sentido um código deontológico para o jornalismo mas não para conversas de café. E não importa se o café é virtual ou se tem milhões de pessoas. Como já ameacei, agora refilo pela regulação da criatividade com regras adequadas a uma tecnologia ultrapassada. Porque aplicadas ao meio digital estas têm um efeito contrário ao pretendido e limitam a nossa liberdade de expressão, pelo que mesmo que funcionassem seria demasiado a pagar por discos ou cinemas.

As patentes de software ilustram o problema. Quando um inventor tem uma boa ideia não queremos que a guarde para si. Porque as ideias são mais úteis quando são partilhadas, concedemos-lhe um monopólio temporário sobre a aplicação da ideia em troca da descrição detalhada dessa ideia. Mas as patentes de software consideram que o programa, mesmo o código fonte, é a aplicação da ideia. Na verdade, o programa é uma descrição detalhada da ideia, escrita numa linguagem que o computador interpreta, e a aplicação seria executar o programa. Porque é mais fácil regular a distribuição que a utilização dos programas, a sociedade acaba por conceder um monopólio sobre a própria informação que esta concessão pretendia comprar. É pagar ao merceeiro para que ele fique com as nossas compras. E além de ser mau negócio proíbe a comunicação da ideia.

O copyright tem o mesmo problema. A intenção era incentivar o investimento na industria; os direitos de autor vieram mais tarde para equilibrar um pouco a negociação entre estes e os impressores. Mas a industria da cópia teve sempre a fatia maior, o que era razoável porque custa mais convencer investidores a pagar uma fábrica de livros do que convencer poetas a escrever poesia. E como este monopólio não tinha impacto na vida privada era um preço aceitável para garantir a distribuição das obras.

A transposição cega deste sistema para o meio digital é asneira porque dificulta a distribuição, restringe o acesso às obras, afecta a vida pessoal e mistura a regulação de actos concretos com a proibição de trocar informação em abstracto. O Mário Miguel mencionou a notícia de um “pirata” condenado a pagar setecentas mil libras à Symantec por vender, sem autorização, trinta e cinco mil cópias do PC Anywhere (2). “Pirata” agora tanto é quem monta uma empresa para vender cópias ilegalmente como quem partilha ficheiros em casa sem cobrar nada. É como considerar que cantar no duche é o mesmo que fazer milhões com concertos ao vivo.

Contrariando a tendência recente, procuradorias de vários estados federais alemães declararam que vão ignorar processos movidos contra quem partilhar menos de 3000 euros de conteúdos, cerca de 3000 músicas ou 200 filmes (3). É um passo na direcção certa por tentar distinguir actos com impacto comercial de actos pessoais. Infelizmente, não é legislação feita por representantes eleitos, visa principalmente reduzir os encargos com os processos movidos pelas editoras e ignora o problema principal.

É razoável regular certas actividades económicas para manter o mercado saudável apenas se o que se ganha com a regulação compensar o que se perde por causa das regras. Obrigar quem vende material digital a pagar uma percentagem aos detentores de direitos seria uma regra razoável. O direito de proibir a venda sem licença já tem mais custos que benefícios por limitar a distribuição e exigir mais policiamento. Dar controlo sobre obras derivadas ou sobre a utilização da ideia noutros contextos é um exagero porque além dos custos para a sociedade inibe a inovação, precisamente o contrário do que se quer. E proibir que as pessoas liguem os seus computadores e troquem sequências de números é pôr o disco de plástico à frente dos direitos humanos.

Em suma, a regulação das comunicações digitais deve considerar que já não é preciso pagar a distribuição de ideias e conteúdos, pelo que se justifica reduzir os privilégios que concedemos a quem o faz. E que este é um meio de comunicação pessoal merecedor da mesma protecção que outros como telefones ou cartas. Neste post foquei apenas a distribuição mas parte do argumento aplica-se também ao incentivo da criatividade. A liberdade de expressão é valiosa demais para que se pague com ela músicas ou filmes. Além disso, esta tecnologia estimula mais a criatividade se permitirmos a troca livre de informação do que se a licenciarmos à cobrança. Mas isso fica para a o último episódio da série.

1- Actos e expressão 1: da ameaça ao insulto.
2- Wintech, Pirata Condenado a Indemnizar a Symantec
3- O Miguel Caetano tem a notícia no Remixtures, É permitido partilhar até 3000 músicas e 200 filmes na Alemanha. Eu até soube disto uma semana antes, mas foi por “fontes confidenciais” ;)

sexta-feira, agosto 15, 2008

Spam divino.

O Mats escreveu acerca de um filtro de spam desenvolvido por Alaa Abi-Haidar e Luís Rocha. O filtro (1) baseia-se num modelo da regulação do sistema imunitário de vertebrados (2). Neste modelo, a capacidade do organismo distinguir entre si próprio e invasores emerge da competição entre populações de linfócitos que estimulam (TE) ou reprimem (TR) a resposta do sistema. As referências têm os detalhes mas queria focar o aspecto emergente do mecanismo.

Cada célula reage apenas às condições locais. Um linfócito TE divide-se se encontra o antigénio sozinho ou na companhia de outro TE, aumentando a resposta do sistema. O TR divide-se quando encontra um antigénio na companhia de um TE, inibindo a proliferação do TE e reprimindo a resposta do sistema. Estas populações pendem para uma maioria de TR ou de TE em função da quantidade de antigénio e das quantidades iniciais de cada linfócito. Isto que dá ao nosso sistema imunitário a capacidade de distinguir, na maioria dos casos, entre as nossas células e os agentes infecciosos. Não é um sistema perfeito mas é muito eficaz, e um sistema análogo poderá melhorar os nossos filtros anti-SPAM criando imunidade electrónica a essas pragas. E o interessante é que a propriedade quase inteligente de distinguir o bom e o mau emerge da interacção de agentes, células ou funções, sem qualquer inteligência individual.

O Mats chama a isto «Aprendendo com Deus» (3) porque «os sistemas biológicos não se arquitectaram a si próprios, nem a ciência dentro deles é produto deles mesmos». Eu pedi ao Luís que comentasse esta afirmação do Mats, e ele teve a amabilidade de me escrever: «A minha resposta a este comentário é que quem [o] fez não sabe a diferença entre modelo e realidade. Qualquer modelo é à partida feito por um agente epistémico, por isso, qualquer modelo necessita de ter as suas regras espcificadas pelo modelador. A conclusão de que a realidade será também especificada por um modelador inteligente não pode ser provada ou refutada; necessita de um acto de fé, o que mete a questão fora do âmbito da ciência.»

Sem querer ou de propósito, os criacionistas insistem em confundir o mapa com o território (4). Não há «ciência dentro» do ângulo formado pelos átomos de hidrogénio e o átomo de oxigénio da água, por exemplo. A ciência está em quem quer medir, calcular e compreender porque é que este ângulo tem aquele valor (5). A lagarta come maçã sem saber bioquímica e a chuva chove sem perceber nada do que faz. A ciência é o método pelo qual nós compreendemos os processos.

Eu sou menos generoso que o Luís. A hipótese de um Criador do universo é impossível de refutar, comprovar ou sequer testar. Se só houvesse esta a hipótese não poderíamos concluir nada. Qualquer conclusão seria adivinhar à sorte. Mas há infinitas hipóteses na mesma situação: Deus; a Tia dele; o Supra-Deus que criou Deus; eu, que posso ter criado o universo e depois ter me esquecido, e assim por diante. São todas irrefutáveis e impossíveis de testar. Por isso aceitar uma delas em detrimento das outras é injustificável. Seja por fé seja por um-dó-li-tá. O mais razoável é rejeitá-las todas por omissão até que haja evidências que favoreçam claramente uma delas.

Mas este post é acerca de outra coisa. O objectivo do criacionismo moderno é destruir o “materialismo científico”. «Se virmos a ciência materialista predominante como uma árvore gigante, a nossa estratégia pretende funcionar como uma “cunha” que, mesmo que relativamente pequena, pode rachar o tronco se aplicada nos pontos mais fracos» (6). Isto passa por denegrir o trabalho científico. O Jónatas Machado deu um exemplo com a sua rábula da Mary Schweitzer deixar cair o fóssil ao chão (7) e o Mats quer fazer o mesmo alegando que a ciência está no sistema imunitário.

O sistema imunitário dos vertebrados é interessante porque “aprende” sem qualquer inteligência. Nada neste sistema sugere antecipação inteligente, nem no funcionamento nem na concepção. Pelo contrário; é só geração cega e testes a posteriori. Os genes dos linfócitos são criados ao acaso. Se lhes dá para atacar o nosso corpo são eliminados e se lhes dá para atacar doenças proliferam.

A inteligência está em desvendar e compreender esta complexidade emergente e em abstrair daí modelos que se apliquem a outras situações. Como filtros anti-spam. Os criacionistas querem pôr toda a inteligência no deus deles (e só no deles) e deixar-nos a pasmar boquiabertos. Felizmente ainda há muita gente que prefere pensar que pasmar, senão andávamos a escrever blogs em placas de argila.

1- Abi-Haidar e L.M. Rocha, Adaptive Spam Detection Inspired by a Cross-Regulation Model of Immune Dynamics: A Study of Concept Drift.
2- Jorge Carneiro et al, When three is not a crowd: A crossregulation model of the dynamics and repertoire selection of regulatory CD4 T cells, Immunological Reviews, Volume 216, Number 1, April 2007 , pp. 48-68(21) (preprint em pdf).
3- Mats, 6-8-08, Sistema Imunitário e Spam: Aprendendo com Deus
4- O Mapa e o Território
5- London South Bank University, Water molecule
6- The Wedge Strategy, ver também na Wikipedia.
7- Treta da Semana: Fósseis frescos.. Mas entretanto há indícios que o material orgânico nos fósseis pode ser contaminação bacteriana.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Treta da Semana: A Cerimónia.

A China é uma das civilizações mais antigas, tem a escrita mais antiga de todas em uso corrente e é um país imenso. Só etnias minoritárias tem 55 e perfazem 123 milhões de pessoas. Quem já leu as descrições ou instruções dos produtos nas lojas de chineses percebeu a grande diferença entre a nossa lingua e a deles. Por isso talvez a treta desta semana seja um mal-entendido, algo que se perdeu na tradução. Mas suspeito mais da imbecilidade inevitável de seguir uma ideologia sem pensar no que se faz nem prestar contas a ninguém.

Lin e Yang

À esquerda, Lin Miaoke, de nove anos, foi a estrela da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. À direita Yang Peiyi, de sete, foi quem cantou às escondidas enquanto Miaoke fazia playback. Nos ensaios, um membro importante do Partido terá dito que Peiyi tinha uma voz perfeita mas não servia para o papel porque tinha os dentes tortos. Foi assim que puseram uma miúda de sete anos a cantar às escondidas e outra de nove a fingir que cantava e a dar entrevistas. «O principal foi o interesse nacional. A criança no ecrã deveria ser perfeita na imagem, nos sentimentos e na expressão. Quanto à voz, Yang Peiyi era perfeita, na opinião de todos» (1).

Será que é do interesse nacional da China ser conhecida como a República Popular Milli Vanilli?

1- Telegraph, Beijing Olympics: Faking scandal over girl who 'sang' in opening ceremony

terça-feira, agosto 12, 2008

A Resposta ao falhanço do naturalismo ateu.

Um texto de Constâncio Ladainha, criacionista e gertrudista.

O estimado Perspectiva comentou aqui neste blogue um post do De Rerum Natura (1). Vem a propósito porque ambos os blogues são da autoria de naturalistas ateus e, por isso, compreende-se a resposta num ao que está escrito no outro. Não é, de forma alguma, tentativa de protagonismo. E apesar de não ter nada a corrigir ao comentário esclarecedor do Perspectiva, excepto talvez ele ter omitido Gertrudes, a quarta Pessoa Divina e veículo da criação do Pai, como sei que o dogma naturalista dificulta a compreensão da Palavra achei por bem frisar alguns aspectos que me parecem especialmente notáveis.

O mais importante é que a Bíblia, a nossa Fé, e a Revelação, são a via certa para a Resposta. A Verdade é só uma e, por isso, todas as perguntas têm que ter a mesma resposta. A saber, que é assim pela vontade de Deus e por intermédio de Gertrudes. O post original enumerava alguns mistérios da ciência, questões que a ciência não sabe responder mas que têm uma resposta clara e evidente. Passo a citar o excelente comentário do meu caro Perspectiva:

«1. Porque há qualquer coisa em vez do nada?
Porque tudo o que existe foi criado por um Deus infinito[...]
2. Como surgiu a vida?
Ela foi criada pela Palavra de Deus [...]
Quando Deus criou as galinhas [...]
A consciência [...] é um reflexo do facto de termos sido criados à imagem de Deus [...]
O nosso mundo depende [...] da informação que lhe é fornecida por Deus[...]
O tempo é uma criação de um Deus eterno»


E assim por diante. É esta a resposta: Foi Deus. O Mats, que também tem tentado ajudar o Ludwig e outros ateus a compreender os erros do evolucionismo, salientou várias vezes que as ciências naturalistas usam métodos diferentes para abordar problemas diferentes. Ou seja, a fé no naturalismo faz com que perguntas diferentes tenham respostas diferentes. É uma confusão.

E as respostas científicas são contingentes. Só parecem acertar e ter alguma utilidade porque o Universo é assim como é. Mas se não fosse não serviam para nada. Por exemplo, os evolucionistas alegam que os mamíferos não têm guelras porque os seus antepassados comuns mais recentes já não as tinham. É uma história bonita mas só porque não há mamíferos com guelras. Se houvesse golfinhos ou baleias com guelras o disparate seria óbvio e toda a gente veria esta hipótese como ridícula. É por causa desta fragilidade que as ciências têm que a mudar as explicações com tanta frequência, como se a verdade fosse uma num dia e outra no dia seguinte.

Não é. A Verdade é sempre a mesma. Foi Deus, por intermédio de Gertrudes. Se não há golfinhos com guelras é porque Deus não quis. E se houvesse golfinhos com guelras, pois seria porque Deus queria. Esta é uma hipótese que só pode ser verdadeira. Vou explicar melhor com uma analogia. As ciências tentam construir um modelo da realidade usando várias hipóteses como ferramentas. São chaves de fendas, serrotes, martelos e alicates, cada uma para o seu propósito, cada uma usada se servir ou deitada fora se não for adequada. Mas o criacionismo é Verdade. Serve em todo o lado e molda-se perfeitamente à realidade qualquer que esta seja. É como uma bola de plasticina. Haverá ferramenta melhor do que esta?

1- Os dez maiores enigmas da ciência, no De Rerum Natura, e Até um relógio parado, aqui.

segunda-feira, agosto 11, 2008

Pirate Mascalzone!

Demonstrando mais uma vez que os políticos não compreendem esta tecnologia, na Itália mandaram os ISPs bloquear o acesso ao site Pirate Bay (1). Quando forem à praia cheguem-se à beira mar, façam um risco na areia e digam «Daqui não passas!» Terão uma boa ideia do efeito.

O propósito da Internet, desde que era ARPANET, foi sempre resistir a este tipo de impedimentos. Seja por guerra nuclear, por falha de nós intermédios ou, neste caso, por mera estupidez, se não se consegue ligar por um lado liga-se por outro. Em poucos minutos os gestores do Pirate Bay criaram um domínio especialmente para os italianos (http://labaia.org) e mudaram os endereços IP do site, ultrapassando de imediato as medidas de muitos ISPs. Entretanto a notícia do Pirate Bay já está guardada em cache no Google (2), por isso mesmo quem não conseguir aceder ao site pode ler as instruções para ultrapassar o bloqueio. E é simples. Basta usar os servidores de nomes de domínio da Open DNS (3) em vez dos servidores do ISP.

Por um lado isto é preocupante porque o Pirate Bay nem sequer tem conteúdos protegidos por copyright. É um fórum onde as pessoas trocam identificadores e comentários acerca destes conteúdos, e é um tracker que regista quem partilha ficheiros para que os pares se encontrem facilmente. Mas como não podem impedir milhões de pessoas de trocar dados entre si, tentam impedir que falem uns com os outros acerca disso.

Mas por outro lado é ridículo. A única coisa que vão conseguir é aumentar o número de visitas ao Pirate Bay, como fez a Dinamarca em Fevereiro (4).

PS: Isto aconteceu ontem, mas na Wikipedia já está «As a countermeasure they created http://labaia.org so users in Italy could still access the site.» Wikipedia, The Pirate Bay.

1- thepiratebay.org
2- Fascist state censors Pirate Bay (Google cache).
3- Open DNS, Start
4- TorrentFreak, Danish Pirate Bay Block Breaks EU Law

domingo, agosto 10, 2008

Treta da Semana: Dr. Karadzic.

Radovan Karadzic foi psiquiatra, activista, presidente da Republica Sérvia, genocida, criminoso procurado e, em paralelo com este último, terapeuta de medicina alternativa numa clinica em Belgrado. Deu palestras como perito em «energia quântica humana» e publicou artigos numa revista da especialidade. Como tinha papeis falsos teve que dizer que tinha deixado o diploma de neuropsiquatria com a ex-mulher. Mas não houve problema. A revista apresentou-o como «investigador espiritual»(1).

Se alguém sem qualificações se faz passar por enfermeiro, cirurgião ou até canalizador topam-no num instante. Mas tretas como a medicina alternativa são mais permissivas. Se não há distinção entre o que funciona e o que não funciona qualquer um pode fazê-lo. É claro que depois de estabelecido o negócio vêm dizer que é preciso “regular” a actividade, “certificar” os praticantes e garantir a “qualidade” da prática. Ou seja, querem tachos. Mas continua a não funcionar.

Quando perguntaram à Sra. Chatfield, da sociedade britânica de homeopatas, se havia alguma forma de distinguir entre medicamentos homeopáticos ela respondeu «só pelo rótulo» (2). É que nestas coisas não há mais nada. O ano passado também apanharam por cá um tal Agostinho Coutinho Caridade que se fazia passar por padre. Celebrava casamentos, baptizados, missas e funerais mas não o descobriram por ter falhado a transubstanciação da hóstia ou por a água que benzia não ficar tão benta como a dos outros. Descobriram que o rótulo era falso (3).

Infelizmente, a dependência do rótulo não se limita a casos em que a imitação e o genuíno são o mesmo. O António Raposo foi professor no ensino secundário durante trinta anos, tendo apresentado um certificado falso de licenciatura em economia(4). Segundo os colegas e alunos, sempre desempenhou as suas funções «na perfeição»(5). Chegou até a presidente do conselho executivo, o que não quer dizer muito mas sugere que não era notavelmente menos competente que os seus pares. Aldrabou, mereceu o castigo, mas preocupa-me que a coisa tenha ficado por aí. Porque o que isto nos diz é que o rótulo não é de fiar.

Se o António era incompetente deixaram-no ensinar durante trinta anos sem notar nada. E se o António era competente então admitir professores no ensino secundário só pelo rótulo talvez seja asneira. Possivelmente a correlação entre uma licenciatura e a capacidade de ensinar crianças é muito ténue. E a matéria leccionada no ensino secundário não exige necessariamente formação superior. O problema não é fácil de resolver. Avaliar a qualidade dos professores é uma tarefa complexa. Mas isso não é desculpa para resolver o problema da forma errada só porque é mais simples.

Moral da história, não se fiem no rótulo. Se a única diferença é o que está no papelinho o mais certo é que o resto seja treta.

1- B92, 22-7-08, Karadžić "practiced alternative medicine"
2- Select Committee on Science and Technology, Examination of Witnesses (Questions 520-539)
3- DN Sapo, Falso padre até a casar era burlão
4- Diário IOL, Falso professor condenado a 18 meses de prisão
5-AEIOU, Falso professor apanha 18 meses de pena suspensa

quinta-feira, agosto 07, 2008

Até um relógio parado

está certo duas vezes por dia. O Mats, no seu blog “Darwinismo”, escreveu:

«Não contentes com as já existentes e mutuamente exclusivas teorias naturalistas sobre a origem da vida, os evolucionistas avançam com mais uma para a colecção. (Alguma há-de estar certa!)»(1)

Ora aí está. A “teoria” que o Mats refere é uma hipótese especulativa. Investigadores na universidade de Ulm demonstraram que a superfície do diamante catalisa a formação de moléculas orgânicas complexas em presença de hidrogénio (2). Isto levou-os a propor que este processo terá originado a vida na Terra. É uma hipótese ainda com muito trabalho pela frente.

Mas o Mats tem razão. Os cientistas avançam sempre com muitas hipóteses. Quanto mais melhor. Porque querem encaixá-las umas nas outras e nos factos e precisam de muitas porque as que não encaixam vão fora. E um puzzle tão complexo como a Natureza precisa de muitas peças até que se perceba o boneco. Infelizmente, o mérito é mesmo só das horas. O Mats, como outros criacionistas, desaprova desta coisa de fazer puzzles encaixando muitas peças diferentes. Para eles o puzzle bom só tem uma peça, graças a Deus.

1- Mats, Diamantes e a Origem da Vida
2- Earth Times, We all started out as diamonds in the rough, German scientists say

Printcrime

é o título de uma pequena história escrita por Cory Doctorow. Foi publicada na Nature em 2006, por isso não é novidade. Mas vale a pena ler. E reler.

Printcrime.

Editado: num dos comentários à história encontrei isto. Parece-me que daqui a uns anos vamos ter que pensar ainda mais seriamente se queremos essa treta da propriedade intelectual...

terça-feira, agosto 05, 2008

Crime e castigo à americana.

Em 2001 e 2002, do seu quarto em Londres, Gary McKinnon acedeu a 97 computadores das forças armadas dos EUA e da NASA. McKinnon procurava ficheiros sobre extraterrestres, antigravidade, geração gratuita de energia e outras tretas. E o seu método para cometer o que os americanos chamam «the biggest military hack of all time» foi experimentar palavras-chave que vêm de fábrica em muito equipamento de ligação à Internet. Ou seja, o seu sucesso deveu-se a haver pelo menos 97 computadores nestas redes que ainda tinham as passwords do fabricante.

Os EUA podiam ter despedido os incompetentes que configuraram as redes militares e dado uma medalha ao tipo que mostrou como aquilo estava mal feito (os norte coreanos e os chineses esqueceram-se de os de avisar). Mas para isso era preciso um mínimo de bom senso. Por isso optaram pela alternativa. Pediram a extradição para McKinnon ser julgado nos bons EU da A onde se habilita a 60 anos na cadeia à conta da incompetência americana. Apesar de ter só bisbilhotado e antes do 11 de Setembro, McKinnon é considerado um perigoso terrorista.

Esta semana a justiça do Reino Unido concedeu o pedido de extradição. A menos que o tribunal Europeu dos direitos humanos intervenha, McKinnon vai ser sacrificado numa tentativa inútil de expiar a incompetência americana.

Mais no Guardian, America's cracked code e na Wikipedia, Gary McKinnon. Via Schneier on Security.

domingo, agosto 03, 2008

Bom e barato, VI

Randy Pausch foi professor de informática em Carnegie Mellon e um dos criadores do Alice (1). Em Carnegie Mellon é tradição os professores que se reformam darem uma “última lição” com o que ensinariam se fosse a última coisa que podiam ensinar. A de Pausch foi em Outubro do ano passado, com 47 anos. Não porque se queria reformar mas porque tinha cancro pancreático e apenas alguns meses de vida. Morreu no passado dia 25. É triste mas inspirador, não só a lição mas a forma como lidou com a situação*.

A lição está aqui: Achieving Your Childhood Dreams, e aqui o relato dos últimos meses. Via o blog de borfast e The Lippard Blog.

James Duane é professor na faculdade de direito da Regent University. Nesta palestra, Don’t talk to the police, explica porque nunca devemos dizer nada à polícia se formos suspeitos seja do que for. Georges Bruch, agente da polícia com décadas de experiência em interrogatórios, continua o argumento nesta e dá exactamente o mesmo conselho. O processo penal nos EUA é diferente do nosso mas penso que o mesmo raciocínio se aplica por cá. Segundo o artigo 61º do Código de Processo Penal:

« O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: [...]
c) Não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar»


Via Schneider on security.


Para terminar num tom mais alegre, um site viciante. TV Tropes é um wiki com uma lista enorme de truques de enredo usados em TV, livros, banda desenhada e até jogos de computador. Alguns exemplos: More Dakka, Imperial Stormtrooper Marksmanship Academy, Growing the Beard, Arbitrary Skepticism.

O único defeito do site é o tempo que nos faz desperdiçar...

* Eu sei que isto parece mal num post com este título. Mas penso que ele preferiria ser celebrado pela sua vida do que lamentado pela sua morte.

1- www.alice.org

sábado, agosto 02, 2008

O custo do CD

Bernardo Macambira foi condenado a quatro meses de prisão «devido à apreensão de um CD pirata» (1) que terá usado para tocar música numa discoteca. Um CD de música custa entre dez e vinte euros e uma discoteca paga em média cerca de mil euros por mês pela licença de tocar músicas, metade à Sociedade Portuguesa de Autores (2) e metade à Passmúsica pelos direitos conexos (3). Tendo em conta o que a discoteca já paga e o valor do alegado prejuízo que o condenado causara, a pena parece injusta e a própria ilegalidade do acto questionável. Mas quero focar outro aspecto.

O propósito destas leis é incentivar e proteger a criatividade artística porque isso beneficia a sociedade. Mas consideremos o custo ao erário desta protecção e incentivo. Do Bernardo Macambira recolhemos a multa de 435€ (1) mas custa ao estado 40 euros por dia enquanto estiver encarcerado (2), uma despesa líquida de 4400 euros. Se ele ganhava aproximadamente o que eu ganho, pagaria cerca de 1000€ em impostos e segurança social por mês se estivesse a trabalhar. Mais quatro mil euros que não recebemos. E quatro meses de cadeia vão certamente reduzir o seu rendimento, e os impostos que pagará, nos meses seguintes. Numa estimativa conservadora o custo directo de o prender é 10,000€ só em despesas e perda de impostos. A isto aínda acresce o custo do processo em si, da fiscalização ao julgamento, e o impacto económico de pôr na prisão quem estava a trabalhar.

Assim, para punir 10€ de prejuízo os contribuintes pagam mais de mil vezes esse valor. E em benefício de quem já estava a receber mil euros por mês pela licença de passar música na discoteca.

Eu proponho uma alteração ao processo. Visando incentivar a criatividade artística, proponho soltar o Bernardo; multar as discográficas em 10,000€, o valor do prejuízo que queriam causar; juntar esta quantia aos 10,000€ poupados por não prender o Bernardo e contribuir os 20,000€ para bolsas de estudo a jovens músicos ou melhor educação musical nas escolas. Seria um investimento mais rentável do que gastar tanto dinheiro a proteger um negócio inútil.

1- IOL, Bernardo Macambira preso por pirataria
2- SPA, tabelas
3- Passmusica. O site é horrível. Têm que esperar que carregue o lixo todo e depois ir a tarifários para ver os preços.
4- Correio da Manhã, Presos Custam Menos 25€/Dia

sexta-feira, agosto 01, 2008

Treta da Semana: o cliente é sempre ladrão.

Antigamente o cliente tinha sempre razão. Agora processam os fãs, “protegem” os CDs para instalar coisas que não queremos e não nos deixar ouvir a música como quisermos (1). As músicas compradas online vem com sistemas de “gestão de direitos” para eles gerirem os nossos direitos por nós. E se a loja fecha temos que comprar tudo outra vez (2).

Os DVDs também nos “protegem” de ver na Europa um filme comprado nos Estados Unidos (3). A premissa é sempre que os clientes são ladrões. O site da FEVIP, e os DVDs que compramos por cá, fazem questão de passar filmes a acusar-nos de ladroagem ou, pior, com um rato a chamar-nos idiotas (4).

O software que compramos vem com dezenas de páginas de “licença” a dizer o que não podemos fazer e o que nos fazem se o fizermos. Acho. Como todos, eu também não leio os EULA. Mas, por norma, estamos proibidos sequer de descobrir o que é que o programa faz ao nosso PC. Nada de bisbilhotar.

Os jogos vêm com sistemas de protecção diabólica (5) e obrigam a deixar o DVD a rodopiar no leitor só para o estragar mais depressa, e pagamos dezenas de euros por uma rodela de plástico. Dizem que o dinheiro é pela licença de utilização, mas um risco na rodela e são mais umas dezenas de euros para uma “licença” nova. Não há protecção contra riscos, mas está tudo protegido contra o cliente que o comprou. Ladrão. E a moda agora já nem é só no digital. Do campo pequeno à costa são cinco módulos mas para a FCT são só quatro. Quando pico um bilhete de quatro módulos o motorista pergunta sempre “Para onde vai?” Compreendo. Devo ter cara de ladrão.

No tempo das disquetes dizia-se que o software original era mais seguro. As cópias podiam ter vírus. Hoje o melhor é deixar o original no pacote e usar a versão pirata- Não “gere direitos”, permite fazer cópias pelo seguro e não pede activações, verificações e afins. Instala-se e funciona. O software original primeiro quer garantias que não somos ladrões. Os filmes sacados da Internet não têm ratinhos idiotas no inicio, mas os DVDs comprados na loja obrigam a gramar idiotices e insultos antes de mostrar o filme pelo qual pagámos. E a música sacada em mp3 toca em todo o lado, sem licenças, incompatibilidads ou “gestão de direitos”.

A semana passada pensei que isto tinha mudado. Sins of a Solar Empire (6) é um jogo de estratégia como eu gosto. Além disso não tem sistemas de protecção e quando fui ver o preço ao site tinha a opção para comprar por download directo. Um click, 25 euros, e tinha o jogo. Foi preciso instalar um programa de distribuição (7), mas isso pode facilitar a vida a quem não se quer preocupar com actualizações ou outros detalhes. E como permite fazer cópias de segurança dos jogos instalados, comprei e descarreguei o jogo.

Mas quando o tentei instalar no PC que usamos para jogos descobri que para recuperar a cópia de segurança também é preciso “validar” o instalador com uma ligação à Internet. Que aquele computador não tem. Após umas voltas descobri que o arquivo é apenas um zip com extensão diferente e cifrado com uma palavra passe que é o nome do utilizador (deve ser mesmo só para chatear). Mas é uma imagem do jogo como está instalado e uns ficheiros à parte com a informação do registo, bibliotecas no sistema e coisas dessas. Vinte e cinco euros, um giga de download e uma carga de trabalhos para pôr aquilo a funcionar onde quero. Felizmente há o Pirate Bay (8).

O problema não é competirem com o gratuito. O problema é serem chatos como o raio. Não me custa dar o preço de um jantar por um jogo que me vai entreter dezenas de horas (se vou ter tempo para o jogar é outro problema...). Mas custa-me esbarrar com obstáculos idiotas ou exigências disparatadas apenas porque assumem que sou ladrão. Ainda por cima sabendo que se não lhes pagar tenho todo o proveito sem nenhuma chatice.

A maior ameaça à economia de informação não é a quebra dos monopólios. É tornarem o comércio, que era uma troca voluntária para beneficio mutuo, em algo mais parecido com cobrança de impostos ou rusga policial. Os videos da FEVIP dizem que «combater a pirataria é um dever cívico». Treta. Dever cívico é não aceitar que vendam carros que só andam à quarta feira ou televisores que só funcionam na cozinha. É exigir que quando pagamos por algo o possamos usar como entendemos. E é não lhes comprar mais porcaria nenhuma enquanto não respeitarem os clientes.

1- Wikipedia, Sony BMG CD copy prevention scandal
2- Miguel Caetano, Remixtures, Yahoo reembolsa clientes que compraram música com DRM
3- About.com, DVD Region Codes - What You Need To Know
4- FEVIP. Façam refresh no site para ver outro filme. Há 3 diferentes, passam ao acaso.
5- Boing-Boing, Anti-copying malware installs itself with dozens of games
6- www.sinsofasolarempire.com
7- Wikipedia, Impulse
8- Pirate Bay