Uma sociedade não é uma pessoa.
A percentagem de diabéticos nos EUA é maior do que na China. Isto é relevante para analisar os custos e benefícios de investir no combate à doença mas cada indivíduo conta o mesmo. O valor moral de fornecer insulina a um diabético não depende das estatísticas da população nem do país onde ele nasceu. Analogamente, maltratar uma mulher é tão mau na Arábia Saudita como em Portugal e censurar alguém é tão grave na China como nos EUA. Um erro, por vezes inconsciente, quando se fala de outras sociedades é “dar um desconto” à gravidade de certos actos por serem comuns nessa cultura. A ignorância ou má educação de quem os comete pode mitigar a sua culpa mas não torna o acto em si menos grave. E quando são cometidos pelo regime nem essa desculpa têm.
Um erro mais sério é considerar o grupo como uma pessoa. Eu acho o racismo um disparate mas reconheço ao racista o direito à sua opinião. Cada um pensa como quiser. Mas isto não se aplica a uma sociedade. Nenhuma sociedade tem o direito de ser racista porque, por um lado, qualquer pessoa tem o direito de não ser discriminada pela cor da pele e, por outro, quando uma sociedade é racista não tem apenas uma opinião. Tem leis racistas, instituições racistas, práticas racistas. É infelizmente comum esta atitude de tratar um país, etnia ou cultura como se tivesse o direito de fazer algo só porque, em média, as pessoas desse grupo aprovam. Até se diz que não devemos impor a nossa cultura à cultura dos outros. Mas não são culturas que se impõem a culturas. São umas pessoas que as impõem a outras pessoas. Se impedirmos que no Irão condenem à morte quem deixar de ser muçulmano não é a nossa cultura a impor-se à deles mas sim evitar que uns imponham a sua a quem não a quer.
É claro que, na prática, não se pode fazer muito. Invadir a China, o Irão ou a Coreia do Norte ia dar mais chatice que proveito, a menos que estes comecem a invadir outros países ou a chacinar muita gente. Além disso, saber que se deve combater algo de errado é diferente de arriscar o pescoço por coisa que nos passa ao lado... Mas podemos dizer mal, apontar o dedo, criticar. Escrever blogs e assim. Adianta pouco a quem sofre estas coisas mas sempre evitamos tapar os olhos com a treta de ser "a cultura deles". E há casos em que não é preciso invadir nada. A misoginia das religiões ocidentais desaparecia depressa se mais gente, especialmente as mulheres crentes, percebesse que a opinião do grupo não é mais que a soma das opiniões dos seus elementos.
Finalmente, o erro de confundir a opinião da maioria com a opinião de quem manda. Não é coincidência que, quanto mais autoritário é o grupo, mais a alegada opinião "do povo" favorece quem está no topo. Na China não se proíbe outros partidos para facilitar a escolha ao eleitor, não se prende manifestantes por incomodarem a sesta às pessoas e não é por questões de higiene que investem tanto na «pureza da internet». Isto são só pegas para agarrar melhor o tacho.
É nisto que penso quando critico religiões, tradições ou nações. Da China à Igreja Católica e da tourada à catequese. Não é para salvar ninguém. Se ajudar alguém, tanto melhor, mas quero principalmente chamar a atenção, a minha e a de quem calhar, que os direitos de cada um não dependem das estatísticas do grupo, que grupos não são pessoas com direito a opinião própria e que aquilo que os líderes do grupo dizem nem sempre corresponde ao que os liderados pensam.
A propósito, concluo citando uma carta que o então Cardeal Ratzinger escreveu aos bispos da Igreja Católica, supostamente em nome e no interesse de todas as mulheres.
«[A] referência a Maria, com as suas disposições de escuta e acolhimento, de humildade, de fidelidade, de louvor e espera, coloca a Igreja na continuidade da história espiritual de Israel. [...] Embora sejam atitudes que deveriam ser típicas de todo o baptizado, na realidade é típico da mulher vivê-las com especial intensidade e naturalidade. Assim, as mulheres desempenham um papel de máxima importância na vida eclesial, lembrando essas disposições a todos os baptizados[...].
Numa tal perspectiva, também se compreende porque o facto de a ordenação sacerdotal ser exclusivamente reservada aos homens não impede às mulheres de terem acesso ao coração da vida cristã. Elas são chamadas a ser modelos e testemunhas insubstituíveis para todos os cristãos de como a Esposa deve responder com amor ao amor do Esposo»(1)
1- Joseph Ratzinger, 31-5-04, Carta aos Bispos da Igreja Católica Sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo
Concordo com tudo. Mas tenho uma ressalva:
ResponderEliminar"Eu acho o racismo um disparate mas reconheço ao racista o direito à sua opinião"
Mesmo uma sociedade com as melhores leis anti-discriminação é composta por pessoas. E as leis, como tu próprio já disseste e muito bem, são elásticas, quando não são mal aplicadas. De modo que penso ser também uma tarefa pública esclarecer os racistas sobre a necessidade urgente de mudar de opinião. Mais não seja porque o racismo é nocivo a qualquer sociedade. As leis só por si não bastam. A maioria das pessoas nem se dá conta de que é racista, e quão racista são argumentos como «o respeito por outras culturas e outras tradições».
Cristy
Eu também me inclino a concordar contigo, Ludwig.
ResponderEliminarMas há um problema que não parece que te apercebas, talvez por viveres na sociedade em que nasceste(?) ou foste criado, e além do mais, com a qual concordas.
O busilis da questão é que ninguém escolhe a sociedade em que nasce e também não é uma coisa que se mude como quem muda de camisa.
Mas eu avanço já que na sociedade em que vivemos, eu identifico a extrema protecção da propriedade privada (e falo da terra e todos os recursos naturais) assim como a sua transmissão por laços sanguíneos (herança) como o maior cancro que mina a sociedade enquanto tal. Para mim é uma violência constatar este facto como uma fatalidade.
Incomoda-me também que a lei imponha que a sociedade tenha que crescer sempre e massivamente, impondo aos seus indivíduos que sejam escravos do trabalho e que trabalhem para essa mesma lógica, quer concordem com ela ou não. Não havendo como fugir a este esquema vicioso, como não identificar esta sociedade como opressora e que atenta contra a minha liberdade?
Tenho eu escolha possível?
Não estou a dizer que em algum país do mundo isto não seja assim, pelo contrário, está presente em todo o lado. Mas espero pelo menos lançar para o debate que não nos podemos deter na luta pela liberdade de expressão e pelos chamados direitos humados até agora acordados, com maior ou menor consenso. A arrogância ocidental contra sociedades do oriente que ainda conservam muitos traços medievais impede-nos de progredir e pensar mais à frente, reflectir sobre os verdadeiros problemas estruturais destes 'estados democráticos'. Se não impede, pelo menos atrasa ou até faz retroceder, como já vem acontecendo por via da competição económica com o gigante chinês.
Esta atitude que critiquei tem um paralelismo com os cristãos europeus quando passam a vida a acusar e de certo modo a escarnecer dos muçulmanos do médio oriente como extremistas e primitivos, não abrindo espaço à reflexão sobre os traços medievais que ainda caracterizam a igreja com que comungam. Se por um lado têm razão comparativamente, por outro, do alto da sua soberba, não vêm que há mais degraus para subir.
Cristy,
ResponderEliminar«penso ser também uma tarefa pública esclarecer os racistas sobre a necessidade urgente de mudar de opinião.»
Se for de uma forma simétrica, sim. Ou seja, persuadir ou esclarecer sem usar algum poder que o visado não tenha. Concordo que na escola se ensine os factos acerca das consequências do racismo e se desmistifique a mitologia das raças superiories e essas tretas. Mas não concordo com proibições legais ou campos de "reeducação" como têm na China, por exemplo.
O direito à opinião não deve ser circunscrito às opiniões que aprovamos (tal como o direito à expressão não deve ser limitado àquilo que tu achas bem ;)
Matarbustos,
ResponderEliminarPossivelmente não estaremos totalmente de acordo quanto à propriedade privada (penso que é importante para resolver conflitos acerca do uso de bens escassos), mas de resto concordo.
Aliás, penso que por aqui até critico muito mais a minha sociedade que as outras. Nas coisas da religião, da liberdade de expressão, do copyright, etc.
Mas calha bem dizeres isso. Ando às voltas com um post mais tramado de escrever já há uns tempos, mas vem a propósito por isso fica para este fim de semana, se o conseguir acabar.
Não faltará aqui um pouco de contexto histórico? Quero dizer, a verdade é que muitas sociedades começaram e evoluíram de maneira diferente. O "culture clash" que as comunicações em massa tornaram inevitável é, no fim de tudo, um clash entre pessoas, mais do que um clash entre essa coisa um pouco mais abstracta conhecida como "sociedade". E a história mostra que cada vez que existe encontro de culturas (ou de pessoas, se se preferir), uma vai tentar impor-se sobre a outra. Em épocas passadas por via militar, hoje por via económica.
ResponderEliminarA razão pela qual existem sociedades diferentes é que existem pessoas diferentes. Uma sociedade não é uma pessoa, mas é composta por pessoas. Mas não é só isto: a razão para as sociedades se formarem é que as pessoas em causa têm algo em comum. Historicamente foi isto que manteve as sociedades coesas o suficiente para poderem ser designadas como tal. Por isso não percebo a ideia que tenta transmitir com este post. É uma crítica à ideia do respeito pelas diferenças? Se sim, então está a enveredar pelo mesmo tipo de ideologia (racista) que legitimou a existência de impérios coloniais. É uma crítica ao uso do "respeito pelas diferenças" como um argumento hipócrita para legitimar todo o tipo de crimes e abusos? Então concordamos. Mas é preciso ter em conta que tanto ao nível da pessoa como da sociedade, as diferenças existem. Mais, as pessoas podem ter opiniões divergentes sobre essas diferenças. Por exemplo, é-me inconcebível como é que na China as pessoas suportam os sucessivos limites impostos sobre a mais elementar liberdade de expressão, mas isso não parece ser um problema para os muitos chineses que são orgulhosos do país que têm e onde vivem.
Finalmente, comparem-se os excertos:
"É infelizmente comum esta atitude de tratar um país, etnia ou cultura como se tivesse o direito de fazer algo só porque, em média, as pessoas desse grupo aprovam."
Finalmente, o erro de confundir a opinião da maioria com a opinião de quem manda. Não é coincidência que, quanto mais autoritário é o grupo, mais a alegada opinião "do povo" favorece quem está no topo
Fico confuso ao tentar perceber a ideia que está a tentar transmitir...
"Por exemplo, é-me inconcebível como é que na China as pessoas suportam os sucessivos limites impostos sobre a mais elementar liberdade de expressão, mas isso não parece ser um problema para os muitos chineses que são orgulhosos do país que têm e onde vivem".
ResponderEliminarCaro anónimo,
agora pegue no seu texto e substitua "chineses" por "portugueses" e "China" por "Portugal" até 1974. Já lhe parece menos inconcebível? E não lhe parece que para o país a liberdade de expressão provou ser fudnamental para o desenvolvimento a todos os níveis, mesmo que a maioria tenha demorado muito tempo a percebê-lo (se é que o percebeu)? Porque é que há-de ser diferente na China? Onde, de resto, há muita gente a sofrer consequências menos agradáveis por se emepnhar pelo direito à liberdade de expressão.
Cristy
agora pegue no seu texto e substitua "chineses" por "portugueses" e "China" por "Portugal" até 1974. Já lhe parece menos inconcebível?
ResponderEliminarNão, nem por isso. Corrija-me se estiver enganado, mas no Portugal da ditadura o comum dos mortais não apoiava o regime, nem apoiava o facto de não ter liberdade de expressão.
O ponto que eu estou a tentar fazer é o de que é errado julgar as acções sem contexto, e as diferenças entre as sociedades fazem parte desse contexto! (Note-se que não estou a fazer juízos de valor sobre as acções em si! )
Ignorar este facto foi o que fizeram os britânicos (e não só) durante o período colonial, e resultado foi verem o mundo conforme este era espelhado pela sua própria cultura. Evitar isto implica reconhecer que a cultura/sociedade de cada um não é única e deve-se trabalhar as diferenças a partir daí.
É claro que se deve distinguir entre culturas diferentes e tirania. Mas isto não quer dizer que as diferenças deixem de ser consideradas (e valorizadas) como isso mesmo.
Anónimo,
ResponderEliminar«Não faltará aqui um pouco de contexto histórico?»
O contexto histórico é essencial para compreendermos como as coisas ficaram da forma que estão. Porque é que a China tem um regime comunista autoritário, Portugal uma república democrata, etc.
Mas é irrelevante para nos dizer como as coisas deviam estar. As questões de direitos humanos não se resolvem pelo contexto histórico, e é precisamente esse um dos meus pontos. Por muita tradição que haja em bater em crianças ou prender quem discorda do regime essas não se tornam em coisas boas mas são sempre igualmente condenáveis.
«Fico confuso ao tentar perceber a ideia que está a tentar transmitir...»
Três coisas:
1- Os direitos do indivíduo não são função do contexto histórico ou das estatísticas da sociedade.
2- A opinião média de um grupo não conta como uma opinião pessoal porque o grupo não é uma pessoa e a média esconde uma grande diversidade de opiniões.
3- Aquilo que parece ser a opinião de um grupo muitas vezes é uma fachada criada por quem tem poder nesse grupo, fazendo crer que a maioria pensa uma coisa quando na verdade pensa outra.
Anónimo,
ResponderEliminar«Note-se que não estou a fazer juízos de valor sobre as acções em si!»
Pois é precisamente isso que eu estou a fazer quando digo que é errado discriminar mulheres ou censurar opiniões, por exemplo.
Se quer apenas ver como as coisas são o contexto histórico vai-lhe dizer quase tudo. Se quer saber se estão bem ou mal o contexto histórico não lhe adianta de nada...
"no Portugal da ditadura o comum dos mortais não apoiava o regime, nem apoiava o facto de não ter liberdade de expressão."
ResponderEliminarCom sabe? E como sabe que o comum dos mortais na China apoia o regime e o facto de não ter liberdade de expressão? Em que investigações se baseia para o afirmar?
Cristy
OK, começo a perceber a sua ideia. E concordo com os três pontos que lista, enquanto estivermos a falar de direitos humanos (que deve ser o que refere por «direitos do indivíduo»). Mas o problema é que é muito fácil estender o alcance desse argumento para além disso. Por exemplo, no caso do casamento da miúda de 13 anos, não há (a meu ver) história ou qualquer outra coisa que o justifique. Mas o que é que sucede quando isso começa a ser usado como (mais um) argumento para justificar a ostracização de toda a comunidade cigana?
ResponderEliminarMas [o contexto histórico] é irrelevante para nos dizer como as coisas deviam estar.
Talvez (embora o estado ideal das coisas dependa da história de quem o está a propor), mas pode ajudar a encontrar soluções por via pacífica, em vez de soluções «à americana», passo a expressão. E é precisamente por isso que para além do estar certo ou estar errado, é necessário entender (ou tentar entender) o porquê das coisas.
Anónimo,
ResponderEliminar«Por exemplo, no caso do casamento da miúda de 13 anos, não há (a meu ver) história ou qualquer outra coisa que o justifique. Mas o que é que sucede quando isso começa a ser usado como (mais um) argumento para justificar a ostracização de toda a comunidade cigana?»
É o que está a acontecer. Se permitimos que um homem de 20 anos case com uma miúda cigana de 13 e a engravide estamos a ostracizar a miuda cigana negando-lhe a protecção legal que outras miúdas daquela idade teriam. Um dos meus pontos é que o grave é fazer isto às pessoas. As "comunidades" são meras abstracções.
«embora o estado ideal das coisas dependa da história de quem o está a propor»
É uma boa maneira de distinguir um "deve ser" de um mero "eu quero que seja". Veja por exemplo a declaração universal dos direitos humanos. Não se chama universal por toda a gente concordar mas precisamente por tentar ser independente de considerações históricas ou geográficas.
«pode ajudar a encontrar soluções por via pacífica, em vez de soluções «à americana»
As recentes soluções americanas têm sido, sobretudo, soluções para o problema dos políticos americanos no poder se aguentarem lá mais uns anos. É importante não as confundir com soluções para os problemas dos outros...
Mas estou de acordo que é importante compreender os factos e os mecanismos se queremos implementar soluções na prática. E isso é extremamente complicado. Por isso eu dedico-me apenas à tarefa mais simples de apontar o que está mal sem dizer como o corrigir :)
O que critíco sobretudo é quem me diz que não está assim tão mal por ser tradição, cultura, nação ou o que for. Não interessa. É mau na mesma.