Treta da semana: o beijinho.
Daniel Cardoso é doutorado em Ciências da Comunicação, activista das sexualidades e uma de muitas pessoas no Facebook que estão zangadas comigo. Tinha planeado neste post gozar com a sua declaração de que «Há aqui um problema grave: o poder de decisão que nós temos sobre os nossos corpos é muito limitado» e com os exemplos que ele deu desse grave problema (1). Quando Cardoso quis «iniciar o processo, pelo SNS, para fazer uma vasectomia», o médico perguntou se Cardoso sabia que o processo era irreversível. Mais tarde, quando exames indicaram que Cardoso poderia ser infértil, o médico disse que era preciso confirmar os exames e considerar terapias e que ser pai era fantástico. Estes exemplos da grave limitação de poder sobre os nossos corpos teriam dado um post divertido. Infelizmente, entretanto Cardoso foi tão enxovalhado por afirmar que obrigar uma criança a «dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho» é «educar para a violência sobre o corpo do outro»(2) que, pelo menos por enquanto, fiquei com menos vontade de gozar com os disparates dele. Assim, este post ficou mais sério do que tinha planeado e será sobre este tema em vez do outro.
Algumas pessoas defenderam Cardoso apontando o perigo dos abusos sexuais. Por exemplo, Paula Cosme Pinto explicou que «O raciocínio é apenas básico, e se pensarmos que a larguíssima maioria dos abusos sexuais com crianças acontecem dentro do seio familiar (quase 90%, diz a OMS), não é difícil chegar a conclusões.»(3) Realmente, não é difícil chegar a conclusões. Mas, se não se compreende o que as estatísticas significam, o mais certo é chegar às conclusões erradas. Que 90% dos abusos sexuais de crianças são perpetrados por familiares caracteriza os abusos sexuais. Não caracteriza os familiares. O que justificaria cautela seria a percentagem de avós que abusam sexualmente dos netos mas essa deve ser menor que 90%.
No entanto, a justificação principal que Cardoso apresenta é a de que não se deve obrigar ninguém a dar beijos se não os quer dar. O problema é que isto descura a diferença entre obrigar uma criança e obrigar um adulto. Também não se deve obrigar um adulto a comer a sopa, a levar vacinas ou a agradecer o chocolate que a avó lhe deu, mas isso é porque, por um lado, obrigar um adulto exige coação e, por outro lado, o adulto é responsável pelas consequências dos seus actos. Com crianças não é assim. A forma mais comum dos pais obrigarem as crianças a fazer algo é simplesmente dizendo-lhes para o fazer. Lava os dentes. Diz “obrigado”. Dá um beijinho à avó. Se fosse com um adulto ninguém diria que isto era «obrigação coerciva». Além disso, não podemos responsabilizar as crianças pelos seus actos. Se não lava os dentes, nem vai à escola, nem leva vacinas porque não a querem obrigar a criança vai sofrer consequências que não são culpa dela. São culpa dos adultos que a deviam ter obrigado.
Isto é verdade também para o beijinho à avó. Uma característica fundamental do adulto é a capacidade de regular o seu comportamento pelo que reconhece que deve fazer em vez de simplesmente pelo que prefere. É por isso que não é aceitável que um adulto a quem uma senhora de idade venha cumprimentar lhe diga eh lá, beijos de velhas é que não, vá lá lambusar outro. Mas o auto-controlo não surge do nada. Exige prática e os pequenos gestos que obrigamos as crianças a fazer são parte do treino. Para que, quando forem adultas, possam assumir o controlo sobre os seus actos e as suas liberdades. Cardoso opõe-se a isto alegando que «é um exemplo que elas vão levar ao longo da vida toda. E esse exemplo diz que se tiveres poder suficiente, podes passar por cima do não do outro.»(4) Mas isto não faz sentido. Nenhuma criança que seja obrigada a comer a sopa se torna num adulto convencido de que os outros têm direito de lhe enfiar colheres de sopa na boca. Ou de lhe lavar os dentes à força, ou de lhe tirar a roupa para lhe dar banho sem a sua autorização. Dizer à criança para dar o beijinho à avó não a ensina que se pode «passar por cima do não do outro.» Ensina-a a ter mais controlo sobre si própria quando isso é necessário para ter consideração pelos outros.
Eu julgo que este problema – que Cardoso, involuntariamente, tão bem ilustra – não é apenas ideológico. É também demográfico. Passar de criança a adulto exige aprender a viver também pelos outros em vez de apenas para si próprio. Dantes não era difícil. Havia irmãos com quem se tinha de partilhar tudo. Era preciso ajudar em casa ou cuidar dos mais novos. Os jovens adultos tentavam formar relações estáveis, o que exige cuidado pelo outro, e ter filhos obriga a sacrificar muito em proveito deles. Hoje há menos oportunidades para aprender a ser adulto, principalmente nas classes sociais mais activas nestas reivindicações. Crianças sem irmãos nem responsabilidades, relações sem investimento nem filhos e muita gente a viver só para si resultam numa sensibilidade excessiva a qualquer contrariedade e um desequilíbrio entre o que presumem como direitos e o que reconhecem como responsabilidades. Penso que isto contribui para verem como “problemas graves” o médico dizer que é bom ser pai ou achar que o beijinho à avó é «educar para a violência sobre o corpo do outro». Mas outro factor relevante parece ser um interesse profissional em empolar problemas da treta. Cardoso menciona um «artigo científico» que publicou «sobre o significado da criança na nossa cultura»(4). Deixo aqui uma parte da conclusão. Julgo que não vou resistir a voltar a este assunto.
«As considerações acima procuraram mostrar como, a partir de um neo-positivismo que continua a investir profundamente a fisicalidade enquanto elemento de veredicção sobre a juventude, os discursos contemporaneamente validados sobre a juventude operaram e operam ainda para a manutenção de estruturas históricas normativas de poder – patriarcal, branco, de classe alta, heterossexual. A crítica queerfeminista mostra o funcionamento dessa retórica, construída em torno de uma visão normalizada da adultície, tomada como teleologia que dá sentido à juventude.»(5)
1- Dia mundial da saúde sexual, Daniel Cardoso
2- YouTube, Daniel Cardoso, nos Prós e Contras
3- Paula Cosme Pinto, O ‘beijo na avozinha’ e o esgoto da hipocrisia da nossa sociedade
4- DN, Daniel Cardoso: "Não usei o exemplo do beijinho ao avô e avó por acaso"
5- Cardoso, D. (2018). Notas sobre a Criança transviada: considerações queerfeministas sobre infâncias. Revista Periódicus, 1(9), 214–233. (texto completo em pdf)