domingo, outubro 28, 2018

Treta da semana: o beijinho.

Daniel Cardoso é doutorado em Ciências da Comunicação, activista das sexualidades e uma de muitas pessoas no Facebook que estão zangadas comigo. Tinha planeado neste post gozar com a sua declaração de que «Há aqui um problema grave: o poder de decisão que nós temos sobre os nossos corpos é muito limitado» e com os exemplos que ele deu desse grave problema (1). Quando Cardoso quis «iniciar o processo, pelo SNS, para fazer uma vasectomia», o médico perguntou se Cardoso sabia que o processo era irreversível. Mais tarde, quando exames indicaram que Cardoso poderia ser infértil, o médico disse que era preciso confirmar os exames e considerar terapias e que ser pai era fantástico. Estes exemplos da grave limitação de poder sobre os nossos corpos teriam dado um post divertido. Infelizmente, entretanto Cardoso foi tão enxovalhado por afirmar que obrigar uma criança a «dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho» é «educar para a violência sobre o corpo do outro»(2) que, pelo menos por enquanto, fiquei com menos vontade de gozar com os disparates dele. Assim, este post ficou mais sério do que tinha planeado e será sobre este tema em vez do outro.

Algumas pessoas defenderam Cardoso apontando o perigo dos abusos sexuais. Por exemplo, Paula Cosme Pinto explicou que «O raciocínio é apenas básico, e se pensarmos que a larguíssima maioria dos abusos sexuais com crianças acontecem dentro do seio familiar (quase 90%, diz a OMS), não é difícil chegar a conclusões.»(3) Realmente, não é difícil chegar a conclusões. Mas, se não se compreende o que as estatísticas significam, o mais certo é chegar às conclusões erradas. Que 90% dos abusos sexuais de crianças são perpetrados por familiares caracteriza os abusos sexuais. Não caracteriza os familiares. O que justificaria cautela seria a percentagem de avós que abusam sexualmente dos netos mas essa deve ser menor que 90%.

No entanto, a justificação principal que Cardoso apresenta é a de que não se deve obrigar ninguém a dar beijos se não os quer dar. O problema é que isto descura a diferença entre obrigar uma criança e obrigar um adulto. Também não se deve obrigar um adulto a comer a sopa, a levar vacinas ou a agradecer o chocolate que a avó lhe deu, mas isso é porque, por um lado, obrigar um adulto exige coação e, por outro lado, o adulto é responsável pelas consequências dos seus actos. Com crianças não é assim. A forma mais comum dos pais obrigarem as crianças a fazer algo é simplesmente dizendo-lhes para o fazer. Lava os dentes. Diz “obrigado”. Dá um beijinho à avó. Se fosse com um adulto ninguém diria que isto era «obrigação coerciva». Além disso, não podemos responsabilizar as crianças pelos seus actos. Se não lava os dentes, nem vai à escola, nem leva vacinas porque não a querem obrigar a criança vai sofrer consequências que não são culpa dela. São culpa dos adultos que a deviam ter obrigado.

Isto é verdade também para o beijinho à avó. Uma característica fundamental do adulto é a capacidade de regular o seu comportamento pelo que reconhece que deve fazer em vez de simplesmente pelo que prefere. É por isso que não é aceitável que um adulto a quem uma senhora de idade venha cumprimentar lhe diga eh lá, beijos de velhas é que não, vá lá lambusar outro. Mas o auto-controlo não surge do nada. Exige prática e os pequenos gestos que obrigamos as crianças a fazer são parte do treino. Para que, quando forem adultas, possam assumir o controlo sobre os seus actos e as suas liberdades. Cardoso opõe-se a isto alegando que «é um exemplo que elas vão levar ao longo da vida toda. E esse exemplo diz que se tiveres poder suficiente, podes passar por cima do não do outro.»(4) Mas isto não faz sentido. Nenhuma criança que seja obrigada a comer a sopa se torna num adulto convencido de que os outros têm direito de lhe enfiar colheres de sopa na boca. Ou de lhe lavar os dentes à força, ou de lhe tirar a roupa para lhe dar banho sem a sua autorização. Dizer à criança para dar o beijinho à avó não a ensina que se pode «passar por cima do não do outro.» Ensina-a a ter mais controlo sobre si própria quando isso é necessário para ter consideração pelos outros.

Eu julgo que este problema – que Cardoso, involuntariamente, tão bem ilustra – não é apenas ideológico. É também demográfico. Passar de criança a adulto exige aprender a viver também pelos outros em vez de apenas para si próprio. Dantes não era difícil. Havia irmãos com quem se tinha de partilhar tudo. Era preciso ajudar em casa ou cuidar dos mais novos. Os jovens adultos tentavam formar relações estáveis, o que exige cuidado pelo outro, e ter filhos obriga a sacrificar muito em proveito deles. Hoje há menos oportunidades para aprender a ser adulto, principalmente nas classes sociais mais activas nestas reivindicações. Crianças sem irmãos nem responsabilidades, relações sem investimento nem filhos e muita gente a viver só para si resultam numa sensibilidade excessiva a qualquer contrariedade e um desequilíbrio entre o que presumem como direitos e o que reconhecem como responsabilidades. Penso que isto contribui para verem como “problemas graves” o médico dizer que é bom ser pai ou achar que o beijinho à avó é «educar para a violência sobre o corpo do outro». Mas outro factor relevante parece ser um interesse profissional em empolar problemas da treta. Cardoso menciona um «artigo científico» que publicou «sobre o significado da criança na nossa cultura»(4). Deixo aqui uma parte da conclusão. Julgo que não vou resistir a voltar a este assunto.

«As considerações acima procuraram mostrar como, a partir de um neo-positivismo que continua a investir profundamente a fisicalidade enquanto elemento de veredicção sobre a juventude, os discursos contemporaneamente validados sobre a juventude operaram e operam ainda para a manutenção de estruturas históricas normativas de poder – patriarcal, branco, de classe alta, heterossexual. A crítica queerfeminista mostra o funcionamento dessa retórica, construída em torno de uma visão normalizada da adultície, tomada como teleologia que dá sentido à juventude.»(5)

1- Dia mundial da saúde sexual, Daniel Cardoso
2- YouTube, Daniel Cardoso, nos Prós e Contras
3- Paula Cosme Pinto, O ‘beijo na avozinha’ e o esgoto da hipocrisia da nossa sociedade
4- DN, Daniel Cardoso: "Não usei o exemplo do beijinho ao avô e avó por acaso"
5- Cardoso, D. (2018). Notas sobre a Criança transviada: considerações queerfeministas sobre infâncias. Revista Periódicus, 1(9), 214–233. (texto completo em pdf)

domingo, outubro 21, 2018

Conceitos de Deus.

Acerca de como podemos conceber os deuses, António Afonso escreve no seu blog que o argumento do mal pode ser facilmente refutado se «alegar que na minha concepção (particular), Deus são as leis fundamentais da física. Por exemplo, na minha concepção particular, Deus é a gravidade. E claro, eu posso demonstrar que a gravidade existe e faz coisas extraordinárias, logo, na minha concepção particular de Deus, Deus existe.»(1) Realmente, o problema de determinar se existe algo chamado “Deus” pode ser trivialmente resolvido pela afirmativa chamando “Deus” a algo que exista. A minha máquina de lavar roupa, por exemplo. Mas isto não ajuda muito e Afonso também o reconhece, notando que «Partir de concepções particulares para justificar uma crença sobre Deus [pode ser um erro] porque podem ser ignoradas princípios fundamentais». Eu diria que o problema é mais fundamental ainda porque, na verdade, não estamos a mudar qualquer concepção de Deus. Cada concepção de Deus continua a ser o que sempre foi. O que fazemos com este truque é simplesmente apontar a palavra “Deus” para um conceito ou objecto diferente. É um truque recorrente entre apologistas, quando dizem que Deus é amor ou Deus é a verdade, mas isto é só brincar com as palavras porque as questões importantes são se o universo foi criado de propósito por um ser inteligente e se esse criador se rala alguma coisa connosco.

Os argumentos do mal incomodam os crentes porque mostram formas de concluir que não é plausível existir um deus competente que se importe com o bem. A ideia é simples. Há actos tão maldosos que qualquer ser capaz de os impedir teria o dever moral de o fazer. Se o Super-Homem existisse, teria a obrigação de usar os seus poderes para impedir a malta do ISIS de cometer as atrocidades que têm cometido. Um deus infinitamente mais poderoso teria uma obrigação ainda maior. Se não o fez ou é ruim ou não existe. Para quem defende a existência desse super super homem este argumento é inconveniente. Mas Afonso comete o mesmo erro que cometem os apologistas desta crença ao julgar que o mais relevante é a refutação de um argumento específico destes. Como aquele que Afonso considera:

«1) Se Deus existe, deve intervir no mundo para prevenir o mal.
2) Deus não intervém no mundo para prevenir o mal.
3) Logo, Deus não existe.»


O problema desta abordagem da refutação de cada argumento isolado é que perde de vista o mais importante. Cada argumento é apenas a expressão de uma linha de inferência. Para refutar o argumento basta invocar premissas que contrariem algum elemento do argumento ou indiquem condições nas quais alguma inferência é inválida. Por exemplo, no caso do argumento que Afonso formulou, podemos negar a primeira premissa alegando que nem todo o mal deve ser prevenido. Há actos maldosos que cabem nas liberdades legítimas do indivíduo. Podemos negar a segunda alegando que há milagres em que Deus intervém e corrige algum mal. E isto pode ser repetido para todos os argumentos exprimindo todas as linhas de inferência que levam à conclusão de que não existe um ser poderosíssimo ralado com a nossa existência. Isto tem de ser feito caso a caso com diferentes desculpas para cada argumento e para cada observação.

Mas o mais importante não é cada linha de inferência individual. É o padrão de inferências consistentes que se reforçam em contraste com as desculpas ad hoc inventadas para tentar atacar cada uma delas. O argumento do mal é relevante apenas como peça desse puzzle, pela forma como encaixa no resto. Sempre que desvendámos algum processo natural descobrimos que não tinha nada que ver com deuses. A justificação que cada crente dá para acreditar no seu deus, pela sua fé, é a mesma que dão outros para acreditar em deuses diferentes. Os milagres que alegadamente demonstram a preocupação dos deuses para connosco só aparecem nos buracos do nosso conhecimento e são cada vez mais pequenos para lá conseguirem caber. E assim por diante. Há muitas formas de chegar à conclusão de que o universo não foi criado de propósito por um ser que se rala connosco e são todas consistentes entre si.

Apesar de ser sempre possível propor premissas que enfraqueçam qualquer argumento isolado, quando olhamos para as refutações teístas encontramos o padrão oposto ao que suporta o ateísmo. Não há consistência. Não se reforçam mutuamente. Alteram o significado da palavra “Deus” conforme dá mais jeito. As premissas invocadas para justificar a fé de uns são contrárias às que invocam para rejeitar as religiões dos outros. O milagre pelo qual Deus salva os sobreviventes do desastre contradiz a justificação dada para não ter salvo os que não sobreviveram. E quando falta desculpa melhor refugiam-se no mistério. É como tentar completar o puzzle fingindo que os buracos fazem parte do desenho. E com mais buracos que desenho.

Este é o problema mais importante das hipóteses teístas, mas não acontece só no teísmo. É um problema comum quando se tenta defender uma tese havendo alternativas com melhor suporte nas evidências. É preciso fragmentar, isolar pedaços, descartar dados inconvenientes e fazer de conta que não há problema em invocar aqui justificações que contradizem as que se invocou ali. Isto é o que faz o criacionismo e a astrologia, as teorias da conspiração, as ideologias políticas extremistas, os que negam o aquecimento global e a generalidade das tretas pseudo-científicas que nos querem impingir. Focam na refutação deste ou daquele argumento invocando as premissas necessárias mas, se dermos um passo atrás e olharmos para o boneco, vemos que não faz sentido nenhum.

1- António Afonso, Uma concepção particular do sujeito

domingo, outubro 14, 2018

Treta da semana: minorias privilegiadas.

João Pais do Amaral, vice-presidente do Partido Nacional Renovador, não gosta que Marcelo Rebelo de Sousa diga ser também presidente dos ciganos portugueses. Não é claro que alternativa haveria. Tanto quanto sei, não há mecanismos legais que permitam ao Presidente da República ser presidente de só alguns portugueses. Mas queixa-se Amaral de que «O PNR já realizou várias tentativas para ser recebido pelo "Presidente de todos os Portugueses" e tem sido sistematicamente ignorado.»(1). Na verdade, é má ideia. Quem não é da extrema direita parece ter muita dificuldade em lidar com estes movimentos e o desconforto leva aos três passos do costume: primeiro ignorar a ver se desaparece; depois tentar reprimir quando começam a ganhar força; e, finalmente, ficar tudo espantado que os extremistas ganharam as eleições. Talvez seja altura de repensar a estratégia. Mas este post não é sobre isso.

O maior problema para Amaral, neste caso, parece ser os ciganos. Segundo escreve:

«Para o PNR não existem minorias privilegiadas. Ou trabalham para pagar as contas, ou roubam e vão para a prisão para pagar a estadia.
Basta de tentar integrar quem quer somente viver com o dinheiro dos contribuintes, basta de RSI,s e prestações afins para quem nada produz!»


É um comentário sucinto mas dá uma boa ideia daquilo que pensam as pessoas desse lado do espectro político. Primeiro, «Ou trabalham para pagar as contas, ou roubam e vão para a prisão para pagar a estadia.» Para Amaral, são as duas possibilidades admissíveis. Se alguém não ganha dinheiro vendendo o seu trabalho, então que roube e depois fazemo-lo sofrer para pagar pelo que fez. Esta visão retributiva da justiça faz ignorar uma opção que me parece muito preferível: dar dinheiro a quem não consegue vender o seu trabalho para que não precise de roubar. Socialmente é melhor, porque mais vale prevenir o roubo do que puni-lo. E, economicamente, faz sentido porque manter pessoas na prisão sai muito caro. A única coisa que se perde é aquela sensação de “toma lá” quando vemos alguém que fez uma coisa má a sofrer por isso. Mas, no computo geral, parece-me um preço perfeitamente aceitável para ter menos roubos e menos gente na prisão.

Depois, «basta de RSI,s e prestações afins para quem nada produz!». Isto faz sentido se imaginarmos que a sociedade é um peso enorme que todos têm de ajudar a carregar. Nessas circunstâncias, não vamos estar a alimentar os preguiçosos que não ajudam e deixam mais peso para os outros. Só que a sociedade moderna não é assim. A sociedade moderna é mais como um autocarro. O sensato é que a pessoa mais qualificada conduza e os outros fiquem nos seus lugares. Não é que os passageiros sejam irrelevantes. Pelo contrário. Afinal, a viagem é por causa deles e são eles que têm de escolher para onde ir. Mas ir tudo a conduzir dá asneira. Conforme a nossa sociedade se torna mais tecnológica e automatizada, mais especializado se torna o trabalho de manter tudo a funcionar e mais pessoas haverá que só podem contribuir com as suas escolhas. O trabalho pago irá ficar para uma minoria cada vez mais pequena de especialistas. Por isso, temos de abandonar a ideia ultrapassada de que só quem produz é que pode beneficiar daquilo que é produzido. O papel principal dos cidadãos será escolher o que se vai produzir. O que não é nada trivial porque, para as coisas funcionarem, exige educação, ética, informação, capacidade para a analisar e calma para pensar. Nada disso é compatível com fome e miséria.

Finalmente, «Para o PNR não existem minorias privilegiadas.» Mas existe uma minoria privilegiada, e é a mesma que sempre existiu. A dos ricos. Por ricos não quero dizer que têm iates ou aviões privados. A distinção relevante, que foi sempre a mais importante, é a que separa quem vive em privação e quem não tem de se preocupar se vai ter abrigo, comida, assistência médica ou um futuro para os filhos. Se bem que, à escala mundial, esses ricos sejam ainda uma minoria, é uma minoria em crescimento e há muitos países em que essa riqueza é tão banal que muitos nem a notam. É claro que, politicamente, dá muito mais jeito jogar com invejas e aquele sentimento mesquinho de injustiça de quem está sempre a olhar para o prato do lado. Mas devia ser óbvio o ridículo da ideia de que os ciganos são uma minoria privilegiada por receberem o RSI.

Estes protestos do PNR são um disparate. Mas são importantes porque põem à vista preconceitos escondidos por todo o espectro político, especialmente nos extremos. A esquerda é mais benevolente para com os pobres mas também exige da lei a satisfação da vingança por aquilo que considera pecado. Boa parte da esquerda também reserva direitos só para quem trabalha e é visceralmente contra um rendimento universal. E rotular grupos de “privilegiados” conforme a raça ou sexo é bandeira da esquerda identitária, que a extrema direita obviamente aproveita para legitimar o seu racismo. É trágico que a política se esforce tanto por dividir os eleitores em tribos com invejas e exigências em vez de ajudar a perceber o potencial da nossa sociedade, aquilo que é fundamental defender e como podemos colaborar todos para resolver problemas a sério, como as desigualdades económicas a nível mundial que causam tantas guerras e refugiados ou os estragos que estamos a fazer ao clima e ao ambiente. Infelizmente, enquanto os eleitores tiverem mais vontade de votar contra espantalhos do que de perceber o que se passa, isto não se vai corrigir.

1- Facebook, João Pais Do Amaral
2- Facebook, João Pais Do Amaral

sexta-feira, agosto 10, 2018

Treta da semana: direito de vestir.

A Dinamarca proibiu que se ande em público de cara tapada e a primeira multa foi aplicada a uma mulher que usava niqab num centro comercial (1). É uma solução imperfeita para um problema complexo e nem sei se é boa ideia. Mas o argumento de que é inadmissível multar estas mulheres porque têm o direito de se vestir como querem é errado e até me parece hipócrita. Se fossem homens a andar encapuçados pelas ruas duvido que se protestasse tanto contra a proibição.

O primeiro erro é descurar que a liberdade de cada um acaba no dever de respeitar a liberdade dos outros. A liberdade de ocultar o número de telefone tem de respeitar a liberdade de não atender chamadas de desconhecidos. A liberdade de deixar comentários anónimos sujeita-se à liberdade de permitir comentários anónimos. Também a liberdade de andar de cara tapada não se sobrepõe à liberdade de não interagir com encapuçados. No mínimo, deve proibir-se o niqab em qualquer sítio onde trabalhe quem tenha obrigação de atender pessoas, como em escolas, lojas, transportes, hospitais e quase todo o lado.

O segundo erro é assumir que a escolha da indumentária é um exercício de liberdade pessoal. É como julgar que cada trabalhador é livre de escolher se quer ter intervalo para almoço e dias de descanso todas as semanas. Não é. Por isso, é bom que lei retire a liberdade dos trabalhadores “escolherem” trabalhar sem descanso. Estas mulheres também não andam de cara tapada porque lhes apetece. Andam de cara tapada porque uma organização na qual as meteram em criança diz que têm de tapar a cara na rua. E isso sabemos como resolver. Se uma empresa não quer deixar o empregado ausentar-se para fazer um exame, a lei manda a empresa deixar. Se a empresa exige que as empregadas andem de cara tapada, a lei proíbe essa discriminação e proíbe que imponham regras dessas. Seja uma empresa, um clube de futebol, uma associação cultural ou um partido político, nenhuma organização tem legitimidade para mandar as mulheres andar na rua de cara tapada. Uma religião é uma organização como qualquer outra. Talvez devessem multar também quem manda as mulheres tapar a cara.

Há quem reconheça este constrangimento mas desculpando-o por ser cultural. Tal como há raparigas que pintam o cabelo de azul ou andam de calças rasgadas, dirão, há outras que querem andar de niqab. Esta desculpa também é treta. É verdade que as crianças adoptam características da sua cultura mas, se as deixarem, vão escolhendo o que adoptam, vão mudando de ideias e não se consegue prever o que lhes vai agradar mais quando chegarem a adultos. Não é nada natural que uma criança queira andar sempre de cara tapada quando vê pessoas de cara destapada na rua, colegas na escola de cara destapada e outras crianças a brincar no jardim e na praia sem esconder a cara. E é especialmente suspeito que, chegando a adulta, continue a insistir que não pode sair de casa sem tapar a cara. As circunstâncias são fortemente indicativas de maus tratos a menores e devíamos condenar estas práticas como condenamos os casamentos forçados, a retirada das raparigas do sistema de ensino e outras práticas culturais que também visam gerir a vida das raparigas como um recurso da família em vez de respeitar a sua autonomia como pessoas.

Outra desculpa é a religião. Numa carta à Sky News, exigindo a expulsão de Boris Johnson, cem mulheres britânicas «que usam niqab ou burka» descrevem-se assim: «Falamos como mulheres livres capazes de falar por nós próprias e fazer as nossas próprias escolhas. A nossa decisão de usar o niqab ou burka não é fácil, especialmente devido ao ódio que muitas de nós regularmente enfrentam. Ainda assim, fazemo-lo porque acreditamos que é uma forma de ficar mais próximo de Deus»(2). Por um infeliz legado histórico, qualquer aldrabice ou superstição que meta deuses torna-se socialmente mais aceitável. Mas não tem mais mérito por isso. É errado considerar que alguém é “livre e capaz de decidir por si próprio” quando foi burlado. Quem toma medicamentos homeopáticos julgando que curam, paga consultas a astrólogos convencido que prevêem o futuro ou compra autocolantes coloridos para tratar problemas musculares, não está a fazer uma escolha livre e informada. O mesmo acontece às mulheres que julgam haver um deus que não as quer na rua de cara à mostra. É uma burla bastante óbvia para lhes roubar a independência. Experimentem arranjar emprego sem nunca destapar a cara.

Finalmente, numa sociedade como a nossa, andar de niqab ou burka é muito mais do que uma moda. É uma manifestação política semelhante à foice e o martelo, ou a suástica ou o vestido branco com o capuz pontiagudo. Nas sociedades em que as mulheres são animais de estimação não faz diferença que andem de cara tapada, até porque é suposto só andarem pela rua o mínimo indispensável. Mas por cá são pessoas. Têm os mesmos direitos e os mesmos deveres que os homens. As mulheres que andam de niqab na ruas da Europa estão activamente a promover alterações sociais. Estão a promover a segregação cultural, normas acerca do que se pode beber e de quem se pode amar, normas acerca da crença religiosa e muitas outras práticas e valores que os muçulmanos defendem e que, na sua cultura, não são opcionais. Isto é legítimo. Qualquer pessoa deve ser livre de promover os seus valores publicamente e tentar mudar a sociedade, seja exibindo o niqab, a foice e o martelo ou a suástica. Mas essa liberdade acaba nas liberdades dos outros. Por isso, expressões públicas deste tipo devem ser reguladas para não andarmos a levar constantemente com comícios e manifestações a cada esquina. Organizem a parada do niqab e da burka, desfilem pela rua de cara tapada, gritem as palavras de ordem que acharem adequado, reivindiquem o que querem reivindicar mas depois não andem de cara tapada porque, por cá, as mulheres também são pessoas e é legítimo não querer lidar com pessoas encapuçadas, como qualquer mulher muçulmana facilmente admitirá se encontrar pela rua homens de cara tapada.

1- The Guardian, First woman fined in Denmark for wearing full-face veil
2- Sky News, 100 women who wear niqab or burka demand Boris Johnson be kicked out of Conservative Party

sábado, agosto 04, 2018

O direito de ofender.

Presume-se por cá que o Estado não deve coagir o pensamento a ninguém. Isso é para a Coreia do Norte ou o Irão. Mas a liberdade de pensamento exige a liberdade de partilhar o que se pensa. Isto não implica liberdade para burlar, ameaçar, caluniar ou devassar a privacidade de terceiros, mas só se pode pensar livremente se ninguém filtrar as ideias que se encontra. Na prática, isto quer dizer que o Estado não pode censurar opiniões só porque alguém não gosta delas. E é aqui que muitos se engasgam. Cada vez há mais gente a querer censurar o que lhe incomoda e a segunda razão mais invocada para isso é a de que ninguém tem o direito de ofender (1).

Em rigor, isto está correcto. Ninguém tem o direito de ofender. Mas, em rigor, isto não quer dizer o que os proponentes julgam. Um direito é um dever que outros têm para connosco. Dizer que as crianças têm direito à educação é dizer que alguém as deve educar. O direito à vida é o dever de não nos matarem, o direito à justiça é o dever de nos julgarem de forma justa e assim por diante. Portanto, o meu direito de ofender, se houvesse tal coisa, seria o dever dos outros se ofenderem comigo. O que é obviamente absurdo. O direito aqui em causa é somente o direito de cada um se ofender com o que quiser e o dever, correspondente, de o deixarem ofender-se como queira.

Sendo a ofensa uma opção do ofendido, não se devia incomodar mais ninguém com isso. Mas muitos acham que sim. À direita, o motivo é claro. Respeitinho. Respeito pela bandeira, respeito pela nação, respeito por Jesus e pelo senhor de Comba Dão. Mas à esquerda é mais complicado. Superficialmente, a preocupação é com a sensibilidade das pessoas. Mas só de algumas. Não de quem se ofende com a homossexualidade, porque esses são retrógrados. Nem de quem se ofende com a imigração, porque esses são fascistas. Nem de quem se ofende por lhe chamarem fascista porque esses também são fascistas. Na verdade, a esquerda está-se nas tintas para a sensibilidade da maioria das pessoas, na maioria dos casos. O que está correcto. Mas há duas excepções, por razões diferentes. Uma são as mulheres em tudo o que seja sexual. A justificação é a de que as mulheres são tão sensíveis a comentários sexuais ou acerca do seu corpo que não lhes podemos imputar a responsabilidade de gerir as suas emoções nesses casos. Esta concepção vitoriana da sensibilidade feminina é um tema fascinante mas fica fora deste post porque a liberdade de expressão só faz sentido na troca de ideias entre adultos capazes. Não concordo que se exclua as mulheres deste grupo alegando incapacidade para lidar com certos comentários nem me parece que o feminismo da Emily Davison fosse o que as estrelas de Hollywood e jovens universitárias agora fazem dele. Mas isso é outro assunto e Agosto ainda está a começar. Uma coisa de cada vez.

Mais relevante para este post é a segunda excepção à indiferença natural da esquerda às faltas de respeito e heresias. Há certas minorias – étnicas, religiosas e de expressão sexual – que não se deve ofender. Se o problema da ofensa fosse a sensibilidade dos ofendidos seria mais grave ofender grupos maiores. Por cá, seria pior ofender católicos do que muçulmanos porque haveria muito mais gente ofendida e muito mais sensibilidades feridas. Seria pior ofender portugueses nativos do que imigrantes e seria pior ofender brancos do que outra cor qualquer. Mas não é. As ofensas proibidas são as que ofendem minorias. E só algumas. Se alguém disser que os bioquímicos são parasitas da sociedade e só vivem à custa do Estado, a esquerda não vai condenar a ofensa. Condenável será se disserem isto de imigrantes ou certos grupos étnicos. Porque o problema que a esquerda vê na ofensa não é a ofensa em si nem sequer os sentimentos dos ofendidos. É a possibilidade de terceiros pensarem coisas que a esquerda não quer que pensem. Dizer que os bioquímicos são parasitas da sociedade não é como dizer o mesmo de ciganos ou refugiados porque só nestes casos se perpetua estereótipos, incita ao ódio, agrava a discriminação e essas coisas. Parece fazer sentido. Até pensarmos um pouco. Proibir que se diga certas coisas para evitar que outros as pensem não é limitar só a liberdade de expressão. É limitar a liberdade de pensamento.

No fundo, aquilo que a esquerda quer com a repressão da ofensa é o mesmo que a direita quer com a imposição do respeitinho. É controlar as ideias que as pessoas encontram para condicionar o que pensam. O problema de desrespeitarem a bandeira não é o sofrimento do pano. É que depois outros vêem isso, perdem o respeito pela Nação e foi assim que ficámos sem as colónias. Tem de ser crime (2). Passa-se o mesmo com o discurso de ódio ou a informação que possa aviltar alguém pela sua raça ou origem (3). Não se pode deixar que digam estas coisas porque ainda fica alguém a pensar como não deve. Até o problema das notícias falsas querem resolver da mesma maneira. Em vez de encorajar as pessoas a pensar antes de carregar no “partilha” querem pôr o Facebook a policiar o que lemos para ninguém ter ideias más.

Há ideias melhores que outras. Há ideias más que devem ser combatidas. Pelo diálogo, pela troça, até pelo insulto. Se alguém tem merda na cabeça, pois escrevam-no com todas as letras e cada um que pense disso o que quiser. Mas não é legítimo combater ideias proibindo as pessoas de pensar. Censurar a ofensa, o desrespeito, a heresia, o discurso de ódio e essas tretas serve para limitar a liberdade de pensar. E sempre que se legisla nesse sentido, por muito boas intenções que digam ter, põe-se o Estado a coagir o pensamento aos cidadãos.

1- A mais invocada, por uma margem deprimente, é “tu queres é andar aí a ofender os outros”. Não sei se é por ter tido azar com quem tenho encontrado, mas é preocupante a infantilidade do diálogo e a perda daquilo a que Oscar Wilde chamava a “capacidade de lidar graciosamente com ideias”. Já recomendei este vídeo uma vez mas recomendo de novo. Se tiverem tempo vejam tudo; se não tiverem, oiçam só o Stephen Fry a falar sobre isto às 1:30:15
2- Artigo 322º do código penal: «Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a Bandeira ou o Hino Nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.»
3- Lei n.º 93/2017, «Artigo 4.º, Proibição de discriminação; É proibida qualquer forma de discriminação, definida como tal na presente lei [...] A adoção de ato em que, publicamente ou com a intenção de ampla divulgação, seja emitida uma declaração ou transmitida uma informação em virtude da qual uma pessoa ou grupo de pessoas seja ameaçado, insultado ou aviltado em razão de qualquer um dos fatores indicados no artigo 1.º»

quinta-feira, agosto 02, 2018

Treta da semana: incêndios terroristas de geo-engenharia.

Durante a minha ausência, certamente se interrogaram acerca da relação entre os incêndios, a pedofilia e Bruxelas. Não se preocupem mais com isso. Já estou de volta para esclarecer tudo.

Segundo fontes fidedignas que conhecem uma pessoa que foi agente da Mossad (melhor ainda do que ter um amigo na NASA), há pessoas poderosas que querem criar uma Nova Ordem Mundial e juntar todo o mundo num só país, com um só governo. Não é claro porquê. Para quem tem poder e dinheiro dá muito jeito mover capital entre países com níveis de vida diferentes enquanto os trabalhadores ficam presos à sua terra. Só assim podem vender caro num lado o que foi produzido por tuta-e-meia no outro e ainda tratar dos impostos num terceiro país que não lhes cobre nada. Mas a Nova Ordem Mundial é liderada por Nazis e Swiss Octogon Templars, descendentes de atlantes e faraós, pelo devem ter lá as suas razões para querer um só país (1).

Para perceber o que isto tem que ver com incêndios, pedofilia, e Bruxelas é preciso primeiro conhecer a operação Gládio. Ostensivamente, é um termo informal para operações de resistência clandestinas que foram organizadas pela NATO para a eventualidade de invasão soviética (2). Mas, na verdade, é a operação secreta pela qual a NATO controla todo o terrorismo mundial (3). Desta forma, a NATO conduz ataques terroristas para culpar organizações como os Taliban ou o ISIS, que não fazem nada senão ficar com os louros. Bela vida, a de terrorista fajuto. O quartel-general da NATO, e centro de comando da operação Gládio, fica em Bruxelas, que é também onde se desmantelou grandes redes de pedofilia, «o mecanismo principal de controlo da Matriz Global de Controlo»(4). Para criar um governo mundial é preciso começar pelo mais fundamental em qualquer governo. Ou seja, violar crianças. Tudo o resto tem de assentar nessa fundação e, como vêem, está tudo interligado. A NATO gere a operação Gládio em Bruxelas onde pedófilos lançam os alicerces do novo governo mundial. Mas como nem só de pedofilia vive uma ditadura, é também preciso terrorismo incendiário e geo-engenharia.

Um governo mundial só é possível se as pessoas acreditarem no aquecimento global. Porquê, não percebi. Mas é assim. E, para isso, não basta a temperatura aumentar. É fácil os nazis e os templários suíços aumentarem a temperatura porque controlam engenheiros «capazes de fabricar qualquer estado de tempo que desejem»(5). Mas ninguém vai acreditar no aquecimento global só por ver a temperatura aumentar. É preciso incêndios. E a melhor forma de provocar incêndios sem ninguém suspeitar da NATO é a NATO usar aviões especialmente equipados com raios laser que só a NATO tem (6). Se passasse alguém no mato com um isqueiro e uma garrafa de gasolina toda a gente desconfiava da NATO. Óbvio. Quem mais poderia ser? Mas usando aviões secretos e raios laser a NATO fica livre de qualquer suspeita. Ou ficaria, se não fossem os argutos detectives da Internet e os seus conhecidos na Mossad.

Isto não é só especulação. Há evidências sólidas. A tragédia recente na Grécia foi comprovadamente um ataque das forças terroristas e pedófilas da NATO, controladas a partir de Bruxelas, com o intuito de pôr os nazis a controlar o governo mundial. A prova disso está nas fotos de carros carbonizados. «O que poderia ter causado os danos invulgares de ruas cheias de automóveis queimados ao pé de árvores e edifícios que permaneciam ilesos se não AED (Armas de Energia Dirigida)?»(7). Realmente, o que poderia? Uma possibilidade seria a de os carros conterem materiais inflamáveis, como gasolina, plásticos e borrachas, e bastar que algo lhes pegue fogo para que ardam completamente. Parvoíce. A única explicação plausível é que os pilotos terroristas e incendiários da NATO, enquanto disparam lasers para as florestas, gostam também de mandar uns disparos contra os carros para se divertirem e deixarem pistas.

Relendo o texto que escrevi admito que há aqui coisas que podem parecer pouco credíveis. É um dos muitos efeitos das chemtrails que são usadas para a geo-engenharia do estado do tempo (8). Sempre que houver aviões a deixar rasto evitem sair à rua sem o chapéu de folha de alumínio.

1- The Millennium Report, The Power Structure of the New World Order
2- Wikipedia, Operation Gladio
3- The Millennium Report, GLADIO: “The SWORD” Used By The North Atlantic Terrorist Organization Worldwide
4- The Millennium Report, Pizzagate, que refere State of the Nation, Pedogae. 5- The Millennium Report, CALIFORNIA FIRESTORMS: Who’s geoengineering the statewide conflagration and why?
6- State of the Nation, 500 Trillion Watt Laser Created In California (Video)
7- The Millennium Report, FALSE FLAG ATTACK: Greece Targeted With Geoengineered Wildfire Terrorism (Photos)
8- The Millennium Report, Government Finally Admits Chemical Geoengineering Via Chemtrail Operations

domingo, maio 20, 2018

Treta da semana (atrasada): autodeterminação.

Foi aprovada na Assembleia da República, se bem que com reservas do PR, a lei do «direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à protecção das características sexuais de cada pessoa» (1). Concordo com as duas últimas partes. Não se deve alterar características de ninguém sem consentimento informado ou imperativo médico. Espero que a circuncisão de crianças passe a ser punida com a severidade que merece. E cada um deve ser livre de se exprimir como quiser. Era bom que esta lei eliminasse a obrigação do nome próprio corresponder ao sexo (2). É discriminatório, só por causa do sexo, proibir alguém de adoptar um nome que é permitido a milhões de outras pessoas. Mas o «direito à autodeterminação da identidade de género» é uma trapalhada, bem como o resto desta lei.

O género é uma construção social que emerge das diferenças na forma como mulheres e homens se relacionam. É por essas diferenças, colectivas, que homens e mulheres são segregados em prisões e balneários. Não é para um indivíduo poder escolher o chuveiro cor de rosa ou o azul. É por respeito pela liberdade dos outros decidirem como o categorizam e como se relacionam com ele. É por isso que vestir-me de mulher e pintar os lábios não obriga as senhoras a aceitar que eu tome duche no balneário delas. Porque, se bem que eu mande na minha expressão de género, não mando no que os outros pensam de mim e é isso que, socialmente, constrói o meu género.

As inconsistências na lei mostram que quem a escreveu também suspeitou haver diferença entre a liberdade de expressão e a autoridade para mandar na opinião dos outros. Apesar de alegar que assegura «O exercício do direito à autodeterminação da identidade de género», apenas permite esse exercício uma vez. Depois, só «mediante autorização judicial»(1). É muito estranho. Um direito à autodeterminação devia incluir o direito de mudar de ideias, seja na filiação partidária, na religião, clube desportivo, local de residência ou curso superior. Segundo defende Rita Paulos no site Capazes, o género é excepção «Para evitar os abusos da lei»(3). Exacto. É claramente abusivo que uma pessoa possa mudar o registo do sexo a gosto para condicionar o género no qual os outros a terão de classificar. Mas isto é abuso logo à primeira vez.

A confusão entre a liberdade de expressão e o poder legal de alterar o registo do sexo leva a outra inconsistência nesta lei. A lei de 2011, que esta substitui, permitia alterar o registo do sexo mediante parecer médico. Isto faz sentido porque o sexo é caracterizado por um conjunto complexo de atributos como estrutura óssea, órgãos genitais, níveis hormonais e até diferenças neurológicas. Só no cérebro há centenas de genes que são expressos de forma consistentemente diferente entre homens e mulheres (4). Como as diferenças entre sexos tendem a ocorrer em conjunto, a maioria das pessoas sente-se confortável com o sexo que lhe atribuíram à nascença. Mas há quem nasça com genitais de um sexo e cérebro do outro e, como o cérebro é o órgão mais importante que temos, esses casos justificam que se corrija atribuição do sexo. Era essa decisão que a lei anterior delegava nos médicos. A nova lei descarta o parecer médico porque proclama um direito à autodeterminação de género que, sem explicar como, abrange também o sexo. Como o disparate do registo do sexo ser ao gosto do freguês é demasiado evidente, esta lei só reconhece o direito à autodeterminação a alguém «cuja identidade de género não corresponda ao sexo atribuído à nascença» (1). Isto levanta dois problemas. Primeiro, sem parecer médico, é o conservador quem tem de verificar se o requerente cumpre este requisito, podendo o requerente recorrer ao presidente do Instituto dos Registos e Notariado se a decisão lhe for desfavorável. Ou seja, apurar se alguém realmente se identifica com certo género deixou de ser um problema para médicos e psicólogos e passa a ser resolvido pelos notários. É o progresso. E o segundo problema é ainda pior. Se bem que o sexo seja uma categoria biológica complexa, pelo menos pode ser definido com objectividade pela anatomia, fisiologia e genética. O género não. Não há qualquer critério objectivo para aferir se alguém realmente se identifica com um género. A roupa que veste? Se tem pêlos na cara? A profissão? Se tem voz fina ou grossa? Esta lei dá aos burocratas uma tarefa impossível de cumprir.

Finalmente, há a trapalhada da discriminação. Proibir a discriminação tem problemas fundamentais que merecem mais atenção, mas isso terá de ficar para quando eu tiver mais tempo. Quanto a esta lei, proibir «qualquer discriminação, direta ou indireta, em função do exercício do direito à identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais»(1) é demasiado vago. Não se percebe onde termina o âmbito desta proibição nem que efeitos terá a alteração da menção do sexo no cartão de cidadão. Proibir a discriminação pela identidade e expressão de género parece-me ser incompatível com o funcionamento de agências de moda, a produção de filmes ou de peças de teatro. Sancionar quem se recusar a usar farda ou criticar penteados, roupa ou maquilhagem também é discriminar em função da expressão de género. Proibir que se discrimine quem recusar alterar características sexuais torna ilegais critérios comuns de exclusão em provas desportivas femininas, como níveis hormonais, e até pode obrigar o sistema prisional a encarcerar pessoas com pénis em prisões femininas mediante uma decisão favorável do notário.

Esta é uma lei irreflectida, atabalhoada, que confunde género com sexo e invoca um direito de autodeterminação tão absurdo que a própria lei acaba por não poder reconhecer. Só uma vez, para não haver abusos, e só com o aval do notário. Isto não tem nada que ver com a liberdade de cada um escolher o género com o qual se identifica. Para isso bastava permitir a qualquer pessoa adoptar qualquer nome. Mas esta lei não serve para resolver problemas. Serve apenas para ganhar pontos de politicamente correcto e impingir uma ideologia identitária absurda.

1- Parlamento, DECRETO N.º 203/XIII
2- IRN, Composição do nome
3- Rita Paulos, Uma lei de autodeterminação
4- Trabzuni et. atl, Widespread sex differences in gene expression and splicing in the adult human brain

domingo, maio 06, 2018

Treta da semana (atrasada): humildade.

Há umas semanas estive à conversa com José Maria Pimentel, autor do podcast Quarenta e Cinco Graus (1). Recomendo uma visita porque também tem entrevistas com pessoas que sabem o que dizem. Foi uma conversa entusiasmante e, como arrisca quem me dá corda, mais longa do que estava previsto. Apesar disso, não deu para falar de tudo. Um tema que tocámos de raspão mas que merece mais atenção foi a humildade, a que chamei “batom intelectual”.

A humildade combina a compreensão dos limites da nossa competência com a disposição para restringir o que fazemos ao que cabe nesses limites. O que, geralmente, é uma virtude. Se vir um acidente ligo para o 112 e aguardo que chegue alguém competente para assistir os sinistrados. Não vou inventar tratamentos. Não vou medicar os meus filhos, nem reparar o elevador nem substituir os travões do carro. É óbvia a virtude de reconhecer os limites da minha competência quando passar esses limites possa prejudicar alguém. Mas a humildade nem sempre é virtude.

Num diálogo crítico, a humildade só atrapalha. Se eu encontrar um texto sobre astrologia, ou teologia, ou sobre o paradoxo filosófico da ressurreição, e me parecer que aquilo é treta, é verdade que estarei a formar uma opinião fora dos limites da minha competência. Mas se, por sair desses limites, eu formar uma opinião errada, o silêncio humilde só vai esconder o erro e proteger a minha vaidade. Continuarei com uma opinião errada. Por isso, quem se interessa pela verdade nunca deve limitar a expressão das suas opiniões àquilo em que é competente. Deve mostrar o que pensa sem batom, pinturas ou disfarces. Assim, se errar, pode depois corrigir.

Há outra razão, ainda mais forte, para afastar a humildade do diálogo racional. Dialogar com humildade torna-nos susceptíveis à aldrabice de fazer parecer que o tema em causa é muito complexo e exige competências especiais. Eu estudo astrologia há mais de vinte anos, diz o perito, por isso eu é que sei o suficiente para opinar. A teologia é um exemplo saliente disto. Há aspectos da teologia que são realmente complexos. Interpretar o grande número de textos escritos acerca dos deuses não é tarefa simples. Mas há um ponto central na teologia que é muito mais simples do que o pintam. É a questão factual de existir um criador inteligente de todo o universo. Não há qualquer indício de que tal coisa exista e por muita teologice que alguém faça esse aspecto crucial não muda. Nestes casos, desligar a humildade ajuda a desmascarar o bluff.

Admito que a humildade talvez ajude a contrariar o nosso enviesamento natural quando pensamos sobre algo. É um problema cognitivo conhecido (2) e devemos ter em atenção que, geralmente, é mais fácil procurar razões para persistir nas nossas crenças do que mudar de opinião mesmo que seja o mais racional. Ser humilde pode ajudar a combater esta tendência por nos retirar confiança nas nossas próprias opiniões. Mas isso justifica ser humilde quando pensamos e pensar deve ser feito com tempo, com calma e sossego, e antes de encetar um diálogo. Depois de ter uma opinião formada e nos dispormos a pô-la à prova em confronto com opiniões contrárias, é altura de arrumar a humildade no armário e dizer as coisas de forma clara, sem disfarces nem ressalvas. Se é para testar, testa-se a sério.

Assim, se alguma vez vos parecer que eu sou pouco humilde na forma como apresento as minhas opiniões, já sabem. É mesmo isso. Aqui, escrevo sem batom nem disfarces.

1- Quarenta e Cinco Graus
2- Motivated Reasoning

quinta-feira, março 29, 2018

Treta da semana (atrasada): o ideal.

Em resposta ao problema da ineficácia do seu deus (1), Miguel Panão questiona «a visão de Deus que alguns ateus têm», nomeadamente eu, e que caracteriza assim: «Quem não duvida da inexistência de Deus tem de colocar algum ideal no Seu lugar e o único disponível é o ser humano.»(1) “Questionar” é um truque comum para fugir ao problema desse Deus, alegadamente omnipotente, nada fazer quando acontecem coisas como, por exemplo, dezenas de crianças morrerem num incêndio. “Questionam” se isso não será um acto inefável de suprema bondade incompreensível para meros humanos. Mas se Deus for incompreensível também não podemos saber se é bom, problema que Panão reconhece quando enuncia coisas boas que o seu deus terá feito: «Curou os cegos, libertou muito dos males interiores, elevou a dignidade da mulher, inspirou milhões a viver de um modo simples». Curar cegos e garantir igualdade de direitos entre homens e mulheres são coisas boas que se esperaria de um deus decente mas, infelizmente para Panão, o desempenho do seu deus nestas tarefas foi muito fraco. Mesmo acreditando que terá curado cegos, teriam sido poucos e só num cantinho obscuro do império romano. O impacto na saúde pública foi insignificante. A Palestina do século I também não foi um marco significativo no progresso para a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Quanto ao resto, não me parece ser corroborado pela história do cristianismo. No entanto, o ideal de Panão parece ser o mesmo que o meu.

Mas antes de falar desse ideal quero fazer um desvio. Panão diz que o meu ateísmo «não duvida da inexistência de Deus» para sugerir que o ateísmo está ideologicamente tão comprometido quanto o teísmo. E é verdade que não tenho dúvidas de que esse personagem é tão fictício quanto Zeus ou o Harry Potter. É uma atitude pragmática. Há tantas evidências de que o Harry Potter é um personagem fictício que não é preciso exigir mais. Só perante indícios sólidos da existência de feiticeiros ou de Hogwarts é que se justificaria ter dúvidas ou até mudar de ideias. Com o deus de Panão é o mesmo. As evidências que tenho permitem-me concluir sem quaisquer dúvidas que esse deus não existe, mesmo estando disposto a mudar de ideias se tal se justificar. Porque, em matérias de facto, o que me importa é ajustar as minhas crenças à realidade. Panão certamente faz o mesmo acerca de quase tudo. Também não duvida de que Harry Potter e Zeus sejam fictícios e também muda de ideias quando se justifica. Ninguém conseguiria ser viver de outra forma. Mas a nossa atitude é fundamentalmente diferente porque ele tem fé e eu não.

A fé é uma atitude excepcional que se aplica apenas num contexto restrito. Dentro desse, a crença deixa de valer pela correspondência à realidade e passa a valer por se conformar a um dogma pré-concebido. O crente, mesmo reconhecendo virtude em admitir erros e mudar de ideias acerca de quase tudo, no que toca à crença religiosa vê virtude em nunca mudar, aconteça o que acontecer. É daqui que vem a crise de fé, quando o crente percebe que aquilo em que exigem que acredite é absurdo mas sente-se obrigado a acreditar à mesma. E é daqui que jorra o contorcionismo demagógico que tenta justificar o injustificável. Porque é que o deus de Panão deixou aquelas crianças morrerem queimadas em Kemerovo? Não pode ser porque Panão estava enganado acerca da sua existência. Tem de ser para inspirar «milhões a viver de um modo simples, fraterno e informado pelo amor como dom-total-de-si-mesmo» ou coisa do género. É isto que nos separa. Panão até tem mais dúvidas do que eu. É tão óbvio que não existem deuses que nenhum crente esclarecido consegue evitar ter dúvidas. Mas, nisto, Panão não se deixa guiar pelas evidências. Só se guia pela fé e a fé não o deixa admitir que o seu deus é a fingir.

O ideal, no entanto, é o mesmo. Panão diz que eu troco o ideal divino por um ideal humano mas está enganado. O deus dele é um ideal humano. Nós vivemos numa bolha de espaço-tempo com treze mil milhões de anos de idade e pelo menos vinte e seis mil milhões de anos luz de diâmetro. Talvez muito mais do que isso e talvez seja apenas uma de infinitas bolhas numa espuma eterna de espaço-tempo. Se algum ser criou isto não foi o deus de Abraão, que deu mandamentos a Moisés e lhe abriu o Mar Vermelho, que inspirou Isaías e Daniel e encarnou como filho de Maria, putativo de José, para nos salvar a todos. Esse faria sentido como criador de um universo minúsculo, descartável, de um planeta com estrelinhas à volta criado em seis dias e um de folga. Uma coisa à escala humana, como o seu criador. Panão comete um erro básico de interpretação dos textos. Esopo não escreveu histórias sobre animais. Escreveu sobre pessoas. A história da Carochinha também não é sobre problemas de insectos e roedores. É sobre problemas humanos. O Rei Leão não troca ideais humanos por ideais felinos. É tudo sobre pessoas. O erro de Panão, e de muitos crentes, é julgar que as histórias da sua religião são sobre o criador divino do universo. Não são. Esse é só mais um personagem e essas histórias são também sobre pessoas. São sobre problemas humanos, ideais humanos e ideias humanas acerca de como resolver os primeiros e aproximar os segundos. Mas isto a fé não permite compreender.

1- Há esperança sem Deus?
2- Miguel Panão, A baixa fasquia de Deus

domingo, março 25, 2018

Treta da semana (atrasada): as quotas.

Este ano entra em vigor uma lei que impõe quotas de género na direcção de empresas públicas e empresas cotadas em bolsa. Visa obrigar a que haja mais mulheres nestes cargos. É uma má solução e um precedente perigoso.

No ensino superior, alunos provenientes de famílias pobres estão sub-representados. Uma criança nascida num bairro de lata ou numa aldeia pobre do interior dificilmente irá tirar um curso superior. Esta injustiça corrige-se mitigando os efeitos injustos da pobreza. É preciso subsidiar transportes e refeições, melhorar o ensino básico gratuito e acabar com as propinas, por exemplo. Impor quotas para candidatos pobres não iria resolver o problema e só iria criar uma nova injustiça ao preterir candidatos com melhor desempenho académico em favor de alunos mal preparados. Os sistemas de quotas são agnósticos às causas e servem apenas para disfarçar estatísticas.

Outro defeito da imposição de quotas é ignorar a diferença entre factores ilegítimos e legítimos. A desigualdade de género nas profissões é muito comum. Nas lojas de centros comerciais praticamente só trabalham mulheres. Nas entregas ao domicílio praticamente só trabalham homens. Isto deve-se a diferenças de preferências individuais mas também pode dever-se a preconceitos ou estereótipos. Uma rapariga quer entregar pizzas mas o pai diz que é um trabalho perigoso demais para ela, ou um rapaz quer trabalhar numa loja de roupa mas a mãe diz que isso é trabalho para mulheres. Pode acontecer, mas impor quotas para reprimir estes estereótipos e preconceitos seria análogo a impor quotas para contrariar a influência que os pais têm na religião dos filhos, nos seus valores pessoais ou quaisquer crenças. O poder coercivo do Estado não deve servir para isto. O Estado deve garantir que todas as pessoas são livres de escolher a sua religião, profissão e valores independentemente da opinião dos pais ou amigos mas não é legítimo legislar para forçar alguém a ter esta ou aquela opinião.

Admito que ninguém exige quotas para pobres no ensino superior ou para mulheres nas entregas ao domicílio. Mas é importante estabelecer consenso onde o há antes de discutir o que é polémico. Apesar da Constituição proibir o Estado de discriminar em função da região de origem, no ensino público superior 7% das vagas são reservadas para candidatos da Madeira e dos Açores. Isto pode parecer razoável porque o Estado já discrimina contra estas regiões na oferta educativa, que é maior no continente. No entanto, esta medida sofre de um problema comum a este tipo de solução. Os candidatos das regiões autónomas não são equivalentes. Uns têm bom desempenho académico mas poucos recursos para estudar no continente, sendo prejudicados pela desigualdade na oferta educativa sem beneficiar das quotas porque não precisariam delas para serem admitidos. Por outro lado, candidatos com fraco desempenho mas com mais dinheiro não são prejudicados pela falta de oferta local de cursos onde não conseguiriam entrar mas são beneficiados pelas quotas que os põem à frente de outros com melhores notas. É como se, atropelado um madeirense, bastasse levar qualquer madeirense para o hospital porque são todos a mesma coisa. É uma ideia tão errada que nem serve como aproximação grosseira. Trata-se de um mero truque político para disfarçar um problema sem o tentar resolver.

As quotas de género na administração de empresas sofrem de todos estes defeitos. A discriminação sexual ilegítima nos contratos de trabalho já é sancionada por legislação específica. Por exemplo, o artigo 24º do Código do Trabalho proíbe a discriminação sexual, religiosa e outras em situações específicas como acesso ao emprego, promoção e formação profissional. As quotas surgiram porque proibir a discriminação ilegítima não levou mulheres à administração de empresas, tal como não leva mulheres para a construção civil. As quotas não servem para corrigir qualquer injustiça para a qual sejam a solução adequada. Servem apenas para manipular estatísticas e nem têm benefícios para além daquela pequena minoria de mulheres directamente beneficiadas*. A imposição de quotas também trata todas as mulheres como se fossem a mesma coisa, não distinguindo entre aquelas a quem neguem promoção por discriminação e as outras que não chegam ao topo por haver candidatos melhores. Simplesmente impõem uma percentagem igual em todos os casos.

Pior do que isto, a imposição destas quotas exige leis discriminatórias. São como as quotas de género que havia no casamento. Conforme as situações, fazem um homem e uma mulher terem direitos legais diferentes. Isto viola um dever fundamental do Estado, que é não discriminar pelo sexo. A justificação para estas quotas é o combate a estereótipos e preconceitos. Ou seja, visam forçar as pessoas a mudar opiniões que, mesmo que discordemos delas, são tão legítimas como qualquer crença religiosa ou preferência pessoal. E este é o aspecto mais preocupante destas leis. Há uma diferença clara entre um regime legítimo e um regime autoritário. Num regime legítimo, o poder do Estado está limitado pelo dever de respeitar os indivíduos. Por exemplo, não pode discriminar pelo sexo, tem de garantir as liberdades de crença, opinião e expressão e tem de deixar cada um viver a sua vida como melhor entender exigindo apenas que não prive terceiros dessa liberdade. Só um regime autoritário é que usa o poder coercivo do Estado para impor opiniões e ideologias. E é isso, explicitamente, que querem fazer com esta lei. A intenção pode ser boa. Conheço quem defenda estas quotas e não são pessoas más. Mas o princípio é imoral e perigoso. É inadmissível usar o poder do Estado para forçar pessoas a pensar como alguém quer que elas pensem ou para violar deveres fundamentais como o de não criar leis que discriminem as pessoas pelo sexo. Ignorar estes limites só porque é ideologicamente conveniente e politicamente vantajoso é um erro que história do século XX nos devia ter ensinado a evitar.

* Este é um tema complexo que deve dar para vários posts, mas um efeito na Dinamarca foi uma redução no número de empresas afectadas porque as empresas mudaram os seus estatutos para fugir a esta imposição. Passaram de 452 quando as quotas foram introduzidas para 257 cinco anos mais tarde. Também não há efeitos detectáveis no desempenho das empresas nem na progressão na carreira de mulheres não directamente afectadas pelas quotas. Ver, por exemplo:
Norway’s female boardroom quotas: what has been the effect?
Evidence From Norway Shows Gender Quotas Don’t Work For Women
Ten years on from Norway’s quota for women on corporate boards

sábado, março 24, 2018

Treta da semana (atrasada): sim, mas não assim.

A propósito da disparatada licenciatura em “medicina” tradicional chinesa, David Marçal e Carlos Fiolhais apontaram «a falta de provas científicas» e de «fundamentação científica» dessa disciplina e que «É por causa da medicina baseada na ciência que hoje vivemos mais e melhor.» Esta «medicina científica» é melhor que a outra que «usa uma linguagem pré-científica»(1). Miguel Guimarães, bastonário da ordem dos médicos, fez o mesmo: «Em vez de [defenderem] a ciência com base na investigação e na metodologia científicas [, defendem que] a saúde e a ciência não necessitam de ter valor científico.» Com muito «validar cientificamente», «base científica», «fundamentação científica», «metodologia científica» e afins, conclui que «Sem validação científica, devidamente comprovada, é a saúde das pessoas que fica em sério risco.»(2).

Eu concordo que as “medicinas” tradicionais são uma treta perigosa e que não têm nada de científico. Mas esta abordagem está errada. Não apenas por se pôr jeito de críticas demagógicas como a de Leonor Nazaré, que denuncia o «paradigma científico […] do materialismo positivista», alega que «investigação científica séria e independente [...] propõe alternativas ao paradigma materialista da ciência» e outros disparates difíceis de desmontar quando se defende a ciência como fonte autoritária de conhecimento (3). Marçal, Fiolhais, Guimarẽs e, infelizmente, muita gente que tenta defender a ciência, erram porque invertem a direcção da relação causal. Dizer que a medicina é fiável por ser científica é como dizer que o atleta foi mais rápido porque lhe deram a medalha de ouro. É o contrário.

O teorema do “nenhum almoço grátis”, de Wolpert, Macready e Schaffer, diz, aproximadamente, que todos os métodos para tirar conclusões a partir de um conjunto finito de dados terão o mesmo desempenho, em média, se aplicados a todos os conjuntos de dados matematicamente possíveis (4). Ou seja, a priori, não há um método científico que seja melhor que qualquer outra coisa. Podia bem ser que a melhor forma de prever e manipular a realidade fosse lendo as folhas do chá, rezando ou lançando búzios. Pode haver um universo paralelo no qual a medicina tradicional chinesa é que funciona e a nossa ciência só dá respostas falsas. Acontece que a realidade em que vivemos não permite tudo o que é matematicamente possível e, nesta realidade, os métodos para tirar conclusões e fazer previsões não têm todos o mesmo desempenho.

É importante perceber que a diferença entre um método que funciona e um que não funciona é mera consequência da estrutura da realidade que estamos a descobrir. Não é característica intrínseca dos métodos. Por isso, aquilo a que chamamos “método científico” não é uma autoridade a priori de virtude epistémica e conhecimento. É um conjunto de técnicas que vamos aperfeiçoando para aproveitar as regularidades da realidade que nos calhou.

É por isso falso dizer-se que a medicina a sério é mais fiável porque é científica. O correcto é dizer que esta medicina é científica porque a sua metodologia foi aperfeiçoada para ser fiável. Muitos truques que compõem o método científico servem para combater a nossa tendência para a ilusão e o auto-engano. Não podemos fiar-nos nas respostas dos pacientes quando perguntamos se o medicamento funciona. Temos de os enganar, dando a uns comprimidos falsos para medir a diferença, porque todos desejam que o medicamento funcione. Quem avalia as respostas também não pode saber qual é o comprimido verdadeiro porque, se souber, será tentado a viciar o resultado. Mesmo acautelando tudo isto com ensaios duplamente cegos, temos de esperar por confirmação independente porque somos demasiado espertos para fazer ciência de forma fiável. E temos de recorrer a truques da estatística para não tomarmos como significantes resultados que são mero acaso. O que torna o método fiável é ser aplicado com atenção à forma como a realidade funciona, em particular a parte da realidade que somos nós, as nossas limitações e os nossos enviesamentos. O método não é fiável por ser científico. É científico porque é fiável.

Isto é muito importante quando se defende a ciência. Não só porque dar a entender o contrário é transmitir uma ideia falsa, o que é contraproducente, como também porque perceber que a ciência é produto da procura contínua por métodos mais fiáveis permite descartar tretas como a das “outras formas de conhecimento”, os espantalhos do “cientificismo” e do positivismo lógico, o falso conflito entre filosofia e ciência e tantos outros disparates que dependem da defesa – errada – da ciência como autoridade última que dita o que é válido e o que não é. Se percebermos que “ciência” é simplesmente o rótulo que colamos ao conjunto de métodos que se revelaram, até hoje, melhores do que as alternativas que já experimentámos, esses ataques perdem eficácia.

Assim, proponho aos defensores da ciência que descartem definitivamente a argumentação fácil, mas incorrecta, que se apoia em “provas científicas”, “validação científica”, “base científica” e afins. Não justifica nada e só induz em erro. É melhor explicar porque é que os métodos que a ciência vai adoptando são mais fiáveis do que as alternativas descartadas. No caso da medicina tradicional isso até é fácil. Antigamente, ninguém conseguia averiguar se as explicações que propunham estavam correctas. Especulavam acerca de humores, de yin e yang, de meridianos e da influência dos astros mas faltava-lhes os instrumentos e o conhecimento para ver quem tinha razão. Como é inevitável nesses casos, quase ninguém tinha razão e os restantes tinham pouca e só por sorte. Não se pode compreender infecções antes de inventar microscópios. É isso que interessa explicar. Ser científico ou não é uma mera consequência disto e não justifica nada.

1- Público, Terapias alternativas: quando as portarias substituem as provas.
2- Público, O ministro da “medicina tradicional chinesa”
3- Público, Biopolítica
4- Wikipedia, No free lunch in search and optimization

domingo, fevereiro 18, 2018

Treta da semana (atrasada): a entrevista.

Até recentemente, o meu interesse pelas polémicas da política identitária, igualdade de género, “diversidade” e afins foi um interesse impessoal, fruto de um fascínio genérico por tretas. Em Dezembro isto mudou. Fui convidado por colegas do departamento onde trabalho a participar numa iniciativa pedagógica dirigida exclusivamente a raparigas (1). Recusei, por me parecer imoral organizar uma actividade destas excluindo crianças conforme o seu sexo. E até me senti no dever de alertar para a possibilidade de isto não ser legal. Admito que não sei se a lei permite fazer uma coisa destas numa instituição pública de ensino mas, se permitir, não devia. Não tenho problemas em manifestar discordância acerca destas coisas, porque Portugal ainda está longe da intolerância que há noutros países, mas é sempre desconfortável sentir conflitos entre a ética e o dever profissional. E o episódio mostrou-me que estas políticas já não são algo distante. Chegaram ao meu quintal e receio que isto ainda possa piorar antes de melhorar.

A entrevista de Cathy Newman a Jordan Peterson impressionou-me por coincidir tão bem com várias experiências que tenho tido ao discutir estes temas com defensores da igualdade estatística. Não é vulgar encontrar tudo numa só pessoa, mas Newman conseguiu destilar na perfeição as inconsistências, as deturpações, a cegueira ideológica e a demagogia desonesta que tenho encontrado espalhadas por vários interlocutores. E Peterson foi uma descoberta curiosa. Cristão existencialista de direita, aparentemente fã da psicanálise de Freud e Jung, tem muita coisa que deveria afastar-nos. Na verdade, apesar de gostar das palestras que tenho visto dele, o livro não me parece tão bom. É demasiado místico e metafórico para o meu gosto. Mas ambos vemos a ética como assente na responsabilidade pessoal e no dever de cada um respeitar a liberdade de cada um dos outros. A aplicação consistente deste princípio dá-nos muita coisa em comum, como a compreensão de que o propósito da vida é precisamente a construção de propósito na vida e não tretas como a felicidade; o respeito pelo direito dos outros pensarem e dizerem o que pensam mesmo quando discordamos da sua opinião; o respeito pelo direito de cada um ser único e diferente dos demais; e a rejeição cabal da pseudo-ética identitária que presume avaliar indivíduos pelo grupo e por estatísticas. Não há injustiça nenhuma em haver poucos homens em enfermagem ou poucas mulheres em informática. Injustiça é impedir uma criança de participar num curso de informática só porque nasceu com testículos em vez de ovários. Desconfio que é por isto ser tão óbvio que quem defende o contrário se vê forçado ao contorcionismo demagógico que Newman demonstra.

Já vos deixo com a entrevista, que vale bem a pena. Não é por acaso que tem mais de sete milhões de visualizações quando os restantes vídeos da Channel 4 News andam pelos milhares ou dezenas de milhares. Mas, antes, gostava de chamar a atenção para alguns truques recorrentes. Newman passa grande parte do tempo a dizer “So you’re saying…” seguido de algo completamente diferente do que Peterson está a dizer. Pede a Peterson que justifique a diferença média de salários entre homens e mulheres mas quando ele aponta diferenças médias entre homens e mulheres diz que discorda disso porque as mulheres são todas diferentes. Pois são, mas também não ganham todas o mesmo salário. Passa o tempo a correr com a baliza de um lado para o outro.

É também fascinante a trajectória da conversa sobre a igualdade no trabalho. Newman começa por defender que as mulheres são impedidas de progredir. Peterson aponta que as pessoas que chegam ao topo têm de ser obsessivamente empenhadas na carreira e extremamente competitivas, algo que é menos raro nos homens. Newman acaba por admitir ter chegado ao topo precisamente porque agiu como um homem competitivo e agressivo. Isso parece-me igualdade. Quem quer ganhar o salário do Cristiano Ronaldo tem de jogar como o Cristiano Ronaldo. E dá para ver que Newman percebe isto porque, após algumas tentativas de deturpar o que Peterson disse, vira o assunto ao contrário. O problema deixa de ser o suposto tratamento desigual de homens e mulheres e passa a ser exigirem que as mulheres se comportem como homens, o que não é agradável. Isto não faz sentido nenhum mas mostra bem como se consegue partir do “é mau discriminar” e chegar ao “vamos impor quotas”.

Mas a minha parte preferida começa a meio do minuto 21. Newman pergunta porque é que o direito de Peterson dizer o que pensa há de ter precedência sobre o direito dos outros não se sentirem ofendidos. É delicioso ver a reacção de Newman quando Peterson explica que isso é o que ela está a fazer e porque é bom que o faça. Até se ouve a moeda a cair.

E pronto, deixo-vos em paz para verem a entrevista. Mas fica já a ameaça de voltar a estes assuntos, porque cada vez me parece haver mais para dizer.





1- DI, FCT/NOVA, Technovation Challenge

sábado, fevereiro 17, 2018

Treta da semana (atrasada): os três aquecedores.

Foi recentemente publicada a portaria 45/2018, que «Regula os requisitos gerais [da licenciatura] em Medicina Tradicional Chinesa». Entre outras coisas, estes licenciados em “medicina” terão de dominar «a) Teorias de medicina tradicional chinesa, incluindo [...] Os seis níveis, as quatro camadas, os três aquecedores» (1). Os três aquecedores são órgãos fictícios que os chineses julgavam fazer circular os fluidos pelo corpo (2). São os erros normais em qualquer investigação porque, no fundo, o nosso conhecimento cresce precisamente corrigindo erros anteriores. Na “medicina tradicional” grega, Aristóteles afirmou que as mulheres têm menos dentes que os homens. É falso mas faltavam-lhe as noções de estatística necessárias para perceber que não basta contar os dentes de uma desdentada qualquer para fundamentar uma conclusão destas. Um tratamento para feridas do século XVII era o “pó da simpatia”, um preparado de sulfato de cobre que se aplicava à lâmina que causara o ferimento. Tinha a vantagem de poupar o paciente às porcarias que, de outra forma, lhe iriam pôr na ferida (3).

As “medicinas” tradicionais brotaram da imaginação de pessoas mais ignorantes do que nós. A nossa medicina também não é perfeita. Provavelmente, as gerações vindouras ainda vão corrigir muitos erros. Mas quanto mais se sabe melhores soluções se encontra. É obviamente indesejável optar pelo saneamento tradicional e ter toda a gente despejar os penicos pela janela. Ou o transporte tradicional a partilhar a autoestrada com carros de bois. A medicina tradicional é igualmente absurda. Até 1960, a esperança média de vida na China rondava os 40 anos. Mesmo com antibióticos, vacinas e outras coisas nada tradicionais, hoje ainda é dez anos menor do que em Portugal (4). Quem diz que a medicina tradicional chinesa é melhor do que a medicina moderna portuguesa ou tem algo a ganhar com isso ou tem o barrete enfiado até ao queixo.

Ah, e tal, mas a medicina tradicional até pode ter coisas boas. Com certeza. Eu tenho um relógio parado que também está certo duas vezes por dia. Seja como for, a medicina progride aproveitando o que funciona, melhorando o que dá problemas e procurando alternativas. Quando eu era miúdo tomava aspirina para a febre. Era um risco calculado, porque há quem tenha reacções graves à aspirina (5). Mas antes isso do que ficar com danos cerebrais se a febre fosse muito alta*. Os meus filhos tomaram paracetamol em vez de aspirina, porque hoje sabemos ser mais seguro. Medicina é isto. Não faz sentido inventar uma “medicina da aspirina” em contraponto à “medicina do paracetamol” só para haver complementaridade ou tretas dessas. O mais racional é tratar cada doença com a terapia melhor. Isso de inventar “medicinas” avulsas é só truque para fazer negócio.

A maneira dos praticantes destas “medicinas” responderem a críticas demonstra bem os seus objectivos. Um técnico competente responde a críticas admitindo que errou ou explicando por que tem razão. Mas quando João Cerqueira questionou a eficácia terapêutica dos serviços vendidos no Centro de Cura Corpo Limpo (6) recebeu uma notificação de um advogado solicitando que retratasse a crítica por colocar em causa «a credibilidade, o bom nome e a imagem» dos auto-proclamados terapeutas (7). Ficou de parte a questão mais importante, e mais objectiva, que é a da eficácia e segurança do «método próprio de tratamento Cérebroterapia e Despertar da Consciência» que vendem no tal “Centro de Cura”. O truque da virgem ofendida é muito usado nestas andanças. Há uns anos fui depor a tribunal por causa disso (8). Hoje, por Cerqueira ter dado uma classificação baixa à página “Clínicas Pedro Choy”, Pedro Choy comentou que «Fica mal a um profissional de saúde ( sem grandes provas dadas, diga-se de passagem) criticar o trabalho dos seus concorrentes»(9). No mesmo sítio, Ana Rodrigues, terapeuta holística e facilitadora do método Kiron, concordou: «Fica muito mal a um professional de saúde, seja de que área for, criticar / julgar o trabalho de outro profissional.» Faz sentido. Quem tem pés de barro não dança. Mas a crítica, principalmente entre peritos, é o motor principal do progresso. É à prática de criticar que devemos o conhecimento que temos, incluindo o conhecimento de antibióticos, vacinas, saneamento básico e medicina preventiva que dá tanta saúde a tanta gente que a podem esbanjar em tretas. Ironicamente, foi o enorme sucesso da medicina a sério que permitiu a proliferação das outras “medicinas”. Ana Rodrigues defende que «Cada um é livre de ter a sua experiência! O que funciona para uns às vezes não funciona para outros, faz parte do caminho». Mas se tem mais de quarenta anos, ou se não viu metade dos seus filhos morrer antes dos cinco, é graças à medicina a sério ser muito mais fiável do que o método de Kiron, a acupunctura ou a Cérebroterapia.

Há licenciaturas que abordam temas fictícios. Em literatura, história ou filosofia, por exemplo, é preciso estudar relatos que não correspondem à realidade. Mas, com a teologia fora do ensino público, é invulgar obrigar os alunos a afirmar serem reais coisas tão obviamente fictícias como o sistema dos meridianos, as patologias energéticas ou o “qi”. Também parece pouco útil, ou sequer honesto, licenciar técnicos no tratamento de doenças dos três aquecedores. Dizem que a oposição da Ordem dos Médicos é “sectária” (10) mas parece-me tão razoável que os médicos se oponham a isto quanto seria os químicos protestarem contra uma licenciatura em “química tradicional” que leccionasse o flogisto e a pedra filosofal. O que querem ensinar são erros que a ciência já corrigiu. Mas se a racionalidade continuar a perder terreno, pelo menos deixem-me criar uma licenciatura em caça de gambozinos ou uma pós-graduação em fadas e duendes. Será tradicional e, sem as restrições da realidade, terei muito menos trabalho a preparar as aulas. A quem criticar a matéria, também já sei o que responder: criticar é feio e o caminho é mesmo assim; não serve para todos. Este caminho é bom é para os que ficam servidos.

*Admito que, no meu caso, talvez a aspirina não tenha sido inteiramente eficaz.

1- DRE, Portaria n.º 45/2018
2- Shen-Nong, Triple Burner
3- Wikipedia, Powder of sympathy; e também weapon salve, na RationalWiki.
4- World Bank, Life expectancy at birth, total (years)
5- Wikipedia, Aspirin-induced asthma.
6- Scimed, Clínica Placebo – Centro de Cura Corpo Limpo
7- Scimed (Facebook): 8 Fevereiro, 18:59
8- Processado
9- Facebook, João Júlio Cerqueira reviewed Clínicas Pedro Choy
10- DN, Sociedade de Medicina Chinesa acusa Ordem dos Médicos de sectarismo

segunda-feira, fevereiro 12, 2018

Treta da semana (atrasada): distribuições, igualdades e direitos.

Quando me acusam de não defender a igualdade de género admito que sou culpado. E quando explico que quero igualdade de direitos em vez de igualdade de género, muitas vezes dizem-me que são a mesma coisa. Mas não são. Não são sequer compatíveis.



A figura acima mostra as distribuições de altura de dez mil pessoas, separadas por género (1). Isto ilustra a generalidade dos atributos. Seja a idade a que teve o primeiro filho, o tempo passado a ver desporto, o interesse por informática ou o número de dias de baixa por ano, as distribuições são diferentes para homens e mulheres mas sobrepõem-se e têm grande variação dentro de cada grupo. O primeiro problema da igualdade de género é que, ao contrário da igualdade de direitos, pretende igualar distribuições sem igualar indivíduos. Por exemplo, a igualdade de género nos salários não pretende salários iguais para todos. Mas é difícil defender que é injusto a Jennifer Lawrence ganhar menos que o Mark Wahlberg por causa da distribuição de salários de homens e mulheres que nada têm que ver com Lawrence ou Wahlberg. Ou justificar a preocupação com diferenças salariais entre milionários e milionárias quando se ignora a diferença entre o salário de Lawrence e de uma enfermeira ou de Wahlberg e de um bombeiro. Exigir igualdade nas distribuições não tem justificação ética porque a justiça ou injustiça da desigualdade depende dos indivíduos e não da distribuição. E é suspeito que se preocupem só com a desigualdade entre distribuições quando a maior desigualdade está dentro de cada distribuição.

Outro problema é a selecção dos atributos cujas distribuições querem iguais. Na igualdade de direitos é fácil porque são todos os direitos. Se é direito, deve ser igual para todos. Mas a igualdade de género não quer igualdade na altura, nos balneários, na roupa ou no desporto. É só em algumas coisas. É estranho exigir igualdade de género no salário e ignorar a desigualdade de género nas doenças profissionais, acidentes de trabalho ou esperança de vida. Acontece o mesmo com os grupos que consideram. Enquanto a igualdade de direitos é igualdade para todos, como qualquer igualdade deve ser, quem exige quotas de género em cargos de direcção não quer quotas na construção civil e quem lamenta a falta de mulheres na informática não se importa que faltem homens na enfermagem. São todos iguais, mas uns são mais iguais que outros.

Depois, há as correlações. Para a igualdade de direitos entre indivíduos não faz mal se os doentes forem, em média, mais fracos ou se os doutorados em ciência forem menos religiosos. Os direitos são os mesmos para todos e cada um que faça dos seus o que quiser. Mas quem procura injustiças nas distribuições facilmente se ilude por ignorar correlações. Uma diferença média entre os salários de quem executa tarefas perigosas e quem se recusa a correr riscos não demonstra injustiça ou discriminação. É de esperar melhor remuneração por trabalhos arriscados. Acontece o mesmo com diferenças na força física, tempo de baixa médica, estatura, uso de analgésicos e assim por diante. Estes factores dizem pouco acerca do indivíduo; uma pessoa usar mais analgésicos não implica ter um salário menor. Mas tudo isto contribui para criar diferenças entre distribuições e estatísticas. Por isso, é errado concluir que a diferença de género em distribuições como as dos salários é indicativa de injustiças. Há muitas correlações que contribuem para esta diferença sem nada terem de injusto. Isto não quer dizer que não haja injustiças. Infelizmente, há muitas. Mas não afectam só um género nem vitimam todas as pessoas desse género por igual. E não têm nada que ver com a distribuição. Quando uma pessoa sofre uma injustiça, o que temos de corrigir é essa injustiça e não a média da distribuição.

Finalmente, enquanto a igualdade de direitos é um objectivo meritório, a igualdade de género é um erro factual porque homens e mulheres são diferentes. Basta ver o gráfico ali em cima. Se bem que o género seja uma construção social, não só está fortemente correlacionado com diferenças biológicas como serve para acentuar essas diferenças. Isto é evidente em todas as culturas. Seja qual for a forma de vestir, a maneira de falar, os gestos ou costumes, os géneros enfatizam sempre as diferenças entre homens e mulheres. É absurdo querer igualdade entre os géneros quando o género em si é uma afirmação de diferença. É por isso que segregamos os géneros nos balneários e no desporto ao mesmo tempo que condenaríamos uma segregação por raça, credo ou orientação sexual. É por isso que recusar relações sexuais com parceiros de certa raça é racismo mas recusar relações sexuais com parceiros de certo género é perfeitamente normal. Quem adopta um género fá-lo por, e para, ser diferente de quem adopta o outro.

É claro que ninguém é obrigado a isso. Há pessoas que se identificam com um género diferente do seu sexo, ou com ambos, ou com nenhum. Há pessoas que agem como a média de um género numas coisas mas não noutras. Há pessoas de todos os tipos e têm todo o direito de ser como são. E este é o ponto fundamental: o nosso dever é respeitar essa liberdade de cada indivíduo. Mesmo que isso estrague as estatísticas e gere distribuições diferentes. A doutrina da igualdade de género é incompatível com este dever, atropelando direitos individuais com medidas discriminatórias, como quotas e afins, só para forçar algumas estatísticas escolhidas de forma suspeita. Politicamente, é conveniente. A aceitação acrítica de que a discriminação é a única causa das irredutíveis diferenças entre distribuições garante o tacho a quem quiser inventar injustiças na desigualdade dos géneros. Mas esta doutrina é um cancro. Cresce por todo o lado substituindo-se ao respeito pelos direitos dos indivíduos, incluindo o direito à diferença, que é a peça mais fundamental de qualquer sociedade decente. Por isso, sim, sou contra a igualdade de género. Os géneros são diferentes. Isso é um facto e é mesmo por isso que há géneros. Se fossem iguais só haveria um. A igualdade que devemos garantir é a da liberdade, de todas as pessoas e de cada uma. As distribuições depois que se espalhem por onde calhar.



1- Os dados são do livro “Machine Learning for Hackers” (Conway e White), disponíveis no Github. Não sei de onde é a amostra, ao certo, mas para os efeitos deste post é pouco importante.

domingo, fevereiro 04, 2018

Treta da semana (atrasada): criptomoeda, parte 2.

Na primeira parte, propus que as “criptomoedas”, mesmo não sendo moedas por falta de estatuto legal, são fundamentalmente equivalentes às moedas fiduciárias. Todas valem em função daquilo que especulamos irão valer para os outros no futuro. Se estimamos que ninguém vai querer bolívares, o Bolívar deixa de ter valor. De pouco adianta o governo da Venezuela insistir que é muito bom para pagar impostos. Se as “criptomoedas” funcionam como o dinheiro mas não estão sujeitas a autoridades centrais que as possam controlar, pode parecer que só têm vantagens. Não é bem assim.

Não haver autoridades centrais que controlam o nosso dinheiro protege-nos de ficar sem nada quando o banco vai à falência ou do Estado facilmente restringir o que podemos fazer com o dinheiro. Mas se eu perder o cartão multibanco posso pedir um novo e se me enganar numa transferência ou falsificarem a minha assinatura tenho a quem recorrer. Em contraste, se perder a chave criptográfica de uma “criptomoeda” é impossível recuperá-la e qualquer transacção é irreversível. Posso mitigar o risco distribuindo-o por várias “criptomoedas”, ter cuidados com a segurança e especial atenção a fraudes, mas qualquer distracção pode sair cara.

Outra apregoada vantagem das “criptomoedas” é a segurança criptográfica. Em teoria, a criptografia é a tecnologia mais segura que temos. Mais segura do que qualquer fechadura ou cofre. Mas a teoria e a prática não são a mesma coisa. Na prática, basta um erro de implementação para estragar tudo e o software que usamos faz parte de um ecossistema complexo, com muito que pode correr mal. Pode haver um problema na geração de números aleatórios (1) ou selecção de números primos (2), o computador pode estar infectado com malware ou até haver falhas na arquitectura do CPU (3). Este risco também pode ser mitigado, com algum esforço, mas será sempre significativo. Isto é especialmente importante para quem queira investir a suas poupanças em “criptomoeda”. Basta um bug para perder tudo.

Finalmente, como as “criptomoedas” funcionam sobre sistemas distribuídos, sem controlo central, muita gente julga que são à prova de interferência do Estado. Não é verdade. São sistemas robustos porque estão concebidos para contrariar incentivos económicos à aldrabice. Por exemplo, para controlar a rede Bitcoin e poder reverter transacções e gastar as mesmas bitcoins várias vezes é preciso ter mais de metade do poder de computação da rede. Além de exigir um investimento enorme, isto seria imediatamente visível no registo dos blocos, levando toda a gente a abandonar essa “criptomoeda”. O investidor nesta aldrabice passaria a controlar algo que mais ninguém quereria e que, por isso, não teria qualquer valor. O incentivo económico é apenas para colaborar e ajudar a proteger a rede.

Mas nem todo o incentivo é económico. Se o governo da China decidir que a Bitcoin é um empecilho, facilmente obtém o poder de computação necessário para controlar a rede e destruir a Bitcoin. Ou qualquer outra “criptomoeda”. E, na prática, nem precisa desse investimento. A mera capacidade de o fazer torna suficiente declarar essa intenção para colapsar o preço de qualquer “criptomoeda”. Esta é outra consideração importante para quem quer ganhar dinheiro investindo nestas coisas. Quanto mais peso as “criptomoedas” tiverem na economia, mais provável é serem eliminadas ou sujeitas a regulação do Estado.

É por estas razões, e não pelo valor ser especulativo, que eu não recomendo investir muito nestas “moedas” com o intuito de enriquecer. Na prática, há muita coisa que pode correr mal. Mas faz sentido investir um pouco nesta tecnologia porque é muito mais do que uma aposta para ganhar euros. Estes sistemas distribuídos de registo de transacções podem servir como dinheiro, para registar contratos, para alugar poder de computação ou espaço de armazenamento ou, em teoria, qualquer coisa que se possa fazer com a Internet e serviços digitais. Nós estamos habituados a obter estes serviços de entidades nas quais temos de confiar, seja o banco seja a Google ou a Microsoft. Mas, por um preço um pouco mais alto – um sistema distribuído fiável tem custos – poderemos optar por alternativas que não dependem de confiar em ninguém. Não é claro que fracção do mercado corresponderá a essas alternativas mas é muito provável que seja significativa. As “criptomoedas” são apenas o primeiro exemplo desse potencial.

1- Arstechnica, 2013, Google confirms critical Android crypto flaw used in $5,700 Bitcoin heist
2- Arstechnica, 2017, Flaw crippling millions of crypto keys is worse than first disclosed
3- Meltdownattack.com

quinta-feira, janeiro 25, 2018

Treta da semana (atrasada): criptomoeda, parte 1.

A popularidade de “criptomoedas” como a Bitcoin tem estimulado muita crítica, proselitismo e opinião. E, como é inevitável, muita treta. Dá para dois posts, pelo menos, começando logo pelo nome.

Uma moeda é um meio de troca com suporte legal. O Euro é moeda porque a lei favorece o seu uso no comércio e no sistema bancário e o Estado aceita, e usa, euros para saldar dívidas. Neste sentido, uma “criptomoeda” não é moeda. Nem sequer é especialmente “cripto”, porque usar criptografia para autenticar agentes e garantir a integridade de registos não é novidade nenhuma. O que distingue as “criptomoedas” é a listagem de transacções ser pública e permitir que qualquer participante acrescente registos. Esta listagem pública – a blockchain – elimina a necessidade de confiar numa autoridade central que decida quem tem o quê. Muitos criticam a Bitcoin pela electricidade gasta a proteger as transacções, mas parece-me ser um preço aceitável para não pôr tudo nas mãos de um Ricardo Salgado ou uma Lehman Brothers.

A crítica mais comum às “criptomoedas” é a de que o seu valor é especulativo, alegadamente ao contrário de uma moeda fiduciária como o Euro. Esta crítica é parcialmente correcta. Se dou 20€ por um bilhete para ver o espectáculo, estou decidir que, para mim, ver o espectáculo vale mais que 20€. Isto não é especulativo porque eu sei o que prefiro. Mas se dou 20€ pelo bilhete contando vendê-lo por 30€ à porta do pavilhão, o valor que dou ao bilhete será parcialmente especulativo porque depende de especular acerca do valor que outros lhe darão. Pode até ser totalmente especulativo se eu não tiver interesse nenhum no espectáculo. Neste sentido, é verdade que o valor das “criptomoedas” é principalmente especulativo.

Onde esta crítica falha é em julgar que o Euro é diferente. Não é. É verdade que, por ser moeda, o Estado garante que o aceita para saldar dívidas, como impostos e taxas. Mas pagar impostos não tem um valor positivo e se fosse essa a única utilidade do Euro ninguém iria querer euros. Apesar de, colectivamente, todos beneficiarmos por todos pagarem impostos, individualmente é sempre preferível deixar os outros pagar. Por isso, só damos valor aos euros porque especulamos que outros irão dar valor a esses euros, no futuro, quando os quisermos trocar por outra coisa. É essa confiança especulativa num valor futuro, e não a mera garantia do Estado, que nos faz dar valor a moedas como o Euro. E a “criptomoedas” como a Bitcoin.

Isto é contra-intuitivo porque a utilização ubíqua de moeda no mercado faz parecer que o valor da moeda está objectivamente ligado aos bens e serviços transaccionados no país. Normalmente, é a proporção entre a quantidade de dinheiro em circulação e o tamanho da economia que determina a inflação. Mas isto só acontece enquanto a maioria especular que os outros continuarão interessados nessa moeda. Quando falha a confiança, o valor da moeda desliga-se do resto da economia. Por exemplo, a Venezuela produz petróleo. Se o preço do Bolívar estivesse preso aos bens que a Venezuela produz, qualquer país aceitaria bolívares porque poderia trocá-los por petróleo na Venezuela. Mas não é isso que acontece. Ninguém quer vender coisas à Venezuela em bolívares porque o valor presente do Bolívar não é função daquilo que a Venezuela tem agora para vender. É função da expectativa – especulativa – de quanto se poderá comprar no futuro com esses bolívares. Neste momento, ninguém especula que seja grande coisa.

É verdade que o Estado tem algum poder para manter os cidadãos presos à sua moeda. Se eu recebo em euros e o supermercado vende em euros, é mais difícil eu desistir do Euro do que da Bitcoin. Mas se bem que isto sirva para pressionar a maioria das pessoas a usar a moeda oficial do país, a maior parte do capital está concentrada numa minoria que facilmente escapa a esta pressão. Um dos primeiros sintomas do desmoronamento de uma moeda é a fuga de capital quando os ricos se descartam dela antecipando – e contribuindo para – o seu colapso. Este é um problema que afecta qualquer “criptomoeda” mas que afecta também qualquer moeda. Há diferenças de grau, tal como há diferenças entre entre o Euro e o Bolívar, mas o valor de uma moeda fiduciária é, fundamentalmente, tão especulativo quanto o de uma “criptomoeda”.

Ou até mais. Para mim, a “criptomoeda” – ou, melhor dizendo, a participação num sistema aberto e descentralizado de registo de transacções – tem algum valor próprio, além do especulativo. Acho interessante a ideia e a implementação. Foi esse interesse que me fez investir nisto há uns anos. Não foi para especular e vender. Era o meu bilhete para o espectáculo. É verdade que, neste momento, esse valor é residual comparado ao seu valor especulativo, ordens de grandeza maior. Mas isso apenas aproxima as “criptomoedas” de moedas como o Euro e o Bolívar, que nem aquele valor próprio residual têm. Além disso, o nosso controlo sobre os euros no banco é bastante menor do que o controlo sobre bitcoins, como ficou demonstrado no Chipre em 2013 e como, suspeito, será ainda mais evidente em breve (1).

No entanto, apesar de achar que muitas das críticas que fazem a este sistema serem treta e de ver algumas vantagens em ter sistemas distribuídos de registo de transacções, não recomendo a ninguém que arrisque nisto dinheiro que lhe vá fazer falta. Porque, do outro lado, também há tretas que merecem consideração. Mas isso fica para a segunda parte.

1- Reuters, 2017-07-28, EU explores account freezes to prevent runs at failing banks