Treta da semana: direito de vestir.
A Dinamarca proibiu que se ande em público de cara tapada e a primeira multa foi aplicada a uma mulher que usava niqab num centro comercial (1). É uma solução imperfeita para um problema complexo e nem sei se é boa ideia. Mas o argumento de que é inadmissível multar estas mulheres porque têm o direito de se vestir como querem é errado e até me parece hipócrita. Se fossem homens a andar encapuçados pelas ruas duvido que se protestasse tanto contra a proibição.
O primeiro erro é descurar que a liberdade de cada um acaba no dever de respeitar a liberdade dos outros. A liberdade de ocultar o número de telefone tem de respeitar a liberdade de não atender chamadas de desconhecidos. A liberdade de deixar comentários anónimos sujeita-se à liberdade de permitir comentários anónimos. Também a liberdade de andar de cara tapada não se sobrepõe à liberdade de não interagir com encapuçados. No mínimo, deve proibir-se o niqab em qualquer sítio onde trabalhe quem tenha obrigação de atender pessoas, como em escolas, lojas, transportes, hospitais e quase todo o lado.
O segundo erro é assumir que a escolha da indumentária é um exercício de liberdade pessoal. É como julgar que cada trabalhador é livre de escolher se quer ter intervalo para almoço e dias de descanso todas as semanas. Não é. Por isso, é bom que lei retire a liberdade dos trabalhadores “escolherem” trabalhar sem descanso. Estas mulheres também não andam de cara tapada porque lhes apetece. Andam de cara tapada porque uma organização na qual as meteram em criança diz que têm de tapar a cara na rua. E isso sabemos como resolver. Se uma empresa não quer deixar o empregado ausentar-se para fazer um exame, a lei manda a empresa deixar. Se a empresa exige que as empregadas andem de cara tapada, a lei proíbe essa discriminação e proíbe que imponham regras dessas. Seja uma empresa, um clube de futebol, uma associação cultural ou um partido político, nenhuma organização tem legitimidade para mandar as mulheres andar na rua de cara tapada. Uma religião é uma organização como qualquer outra. Talvez devessem multar também quem manda as mulheres tapar a cara.
Há quem reconheça este constrangimento mas desculpando-o por ser cultural. Tal como há raparigas que pintam o cabelo de azul ou andam de calças rasgadas, dirão, há outras que querem andar de niqab. Esta desculpa também é treta. É verdade que as crianças adoptam características da sua cultura mas, se as deixarem, vão escolhendo o que adoptam, vão mudando de ideias e não se consegue prever o que lhes vai agradar mais quando chegarem a adultos. Não é nada natural que uma criança queira andar sempre de cara tapada quando vê pessoas de cara destapada na rua, colegas na escola de cara destapada e outras crianças a brincar no jardim e na praia sem esconder a cara. E é especialmente suspeito que, chegando a adulta, continue a insistir que não pode sair de casa sem tapar a cara. As circunstâncias são fortemente indicativas de maus tratos a menores e devíamos condenar estas práticas como condenamos os casamentos forçados, a retirada das raparigas do sistema de ensino e outras práticas culturais que também visam gerir a vida das raparigas como um recurso da família em vez de respeitar a sua autonomia como pessoas.
Outra desculpa é a religião. Numa carta à Sky News, exigindo a expulsão de Boris Johnson, cem mulheres britânicas «que usam niqab ou burka» descrevem-se assim: «Falamos como mulheres livres capazes de falar por nós próprias e fazer as nossas próprias escolhas. A nossa decisão de usar o niqab ou burka não é fácil, especialmente devido ao ódio que muitas de nós regularmente enfrentam. Ainda assim, fazemo-lo porque acreditamos que é uma forma de ficar mais próximo de Deus»(2). Por um infeliz legado histórico, qualquer aldrabice ou superstição que meta deuses torna-se socialmente mais aceitável. Mas não tem mais mérito por isso. É errado considerar que alguém é “livre e capaz de decidir por si próprio” quando foi burlado. Quem toma medicamentos homeopáticos julgando que curam, paga consultas a astrólogos convencido que prevêem o futuro ou compra autocolantes coloridos para tratar problemas musculares, não está a fazer uma escolha livre e informada. O mesmo acontece às mulheres que julgam haver um deus que não as quer na rua de cara à mostra. É uma burla bastante óbvia para lhes roubar a independência. Experimentem arranjar emprego sem nunca destapar a cara.
Finalmente, numa sociedade como a nossa, andar de niqab ou burka é muito mais do que uma moda. É uma manifestação política semelhante à foice e o martelo, ou a suástica ou o vestido branco com o capuz pontiagudo. Nas sociedades em que as mulheres são animais de estimação não faz diferença que andem de cara tapada, até porque é suposto só andarem pela rua o mínimo indispensável. Mas por cá são pessoas. Têm os mesmos direitos e os mesmos deveres que os homens. As mulheres que andam de niqab na ruas da Europa estão activamente a promover alterações sociais. Estão a promover a segregação cultural, normas acerca do que se pode beber e de quem se pode amar, normas acerca da crença religiosa e muitas outras práticas e valores que os muçulmanos defendem e que, na sua cultura, não são opcionais. Isto é legítimo. Qualquer pessoa deve ser livre de promover os seus valores publicamente e tentar mudar a sociedade, seja exibindo o niqab, a foice e o martelo ou a suástica. Mas essa liberdade acaba nas liberdades dos outros. Por isso, expressões públicas deste tipo devem ser reguladas para não andarmos a levar constantemente com comícios e manifestações a cada esquina. Organizem a parada do niqab e da burka, desfilem pela rua de cara tapada, gritem as palavras de ordem que acharem adequado, reivindiquem o que querem reivindicar mas depois não andem de cara tapada porque, por cá, as mulheres também são pessoas e é legítimo não querer lidar com pessoas encapuçadas, como qualquer mulher muçulmana facilmente admitirá se encontrar pela rua homens de cara tapada.
1- The Guardian, First woman fined in Denmark for wearing full-face veil
2- Sky News, 100 women who wear niqab or burka demand Boris Johnson be kicked out of Conservative Party
Ludwig,
ResponderEliminarConcordo com o que escreveste.
Só tenho uma coisa a dizer a este respeito: as pessoas quando vão para um país, têm de ter cuidado em cumprir as regras e as tradições dos locais para onde vão. É como diz o ditado: "Em Roma, sê romano!".
Se eu migrasse, também iria gostar de manter as minhas tradições, mas se quero fazer parte da sociedade, tenho de fazer concessões, e sinceramente, não consigo entender porque muitas pessoas têm dificuldade com isso. Em especial, se um europeu for para um país muçulmando, tem de ter em atenção que lá as mulheres assim e assado, mas se for ao contrário, temos de respeitar as tradições deles. É claramente um "double standard" que não faz sentido.
"...qualquer aldrabice ou superstição que meta deuses torna-se socialmente mais aceitável. Mas não tem mais mérito por isso".
ResponderEliminarO mesmo sucede, com toda a propriedade, com as teorias racistas, genocidas e de supremacia branca derivadas da aldrabice da teoria evolução de Darwin (desenvolvida a partir de tentilhoes que continuam tentilhões, como se diz em Génesis 1 (!)...
Vejamos o que dizia o próprio Darwin sobre o assunto:
"Lastly I could show fight on natural selection having done and doing more for the progress of civilisation than you seem inclined to admit.
Remember what risks the nations of Europe ran, not so many centuries ago of being overwhelmed by the Turks, and how ridiculous such an idea now is. The more civilised so-called Caucasian races have beaten the Turkish hollow in the struggle for existence.
Looking to the world at no very distant date, what an endless number of the lower races will have been eliminated by the higher civilised races throughout the world."
Carta de Darwin a William Graham, 3 Julho 1881