Treta da semana (passada): regresso às origens.
A Associação do Comércio Audiovisual de Obras Culturais e de Entretenimento de Portugal (ACAPOR) está a tentar resolver o problema dos clubes de vídeo não darem lucro processando quem não cobra para distribuir filmes. Se o Nuno Pereira, o presidente da ACAPOR, fosse economista, provavelmente não confiaria nesta medida como solução para rentabilizar o aluguer de vídeos em DVD. Se fosse autor, talvez até se incomodasse com a ideia de usar a lei contra quem apreciasse o seu trabalho. Mas a ACAPOR é liderada por um advogado, o que é natural no “comércio cultural” porque o fundamento desta actividade não é a cultura, nem o entretenimento nem sequer prestar qualquer serviço útil. O contributo cultural dos clubes de vídeo é modesto e ter de passear bolachas de plástico para ver filmes nem entretém nem é prático. O “comércio cultural” de hoje apenas cobra, por coação legal, para distribuir aquilo que se pode distribuir de graça. Por isso é que o dirigente ideal para algo como a ACAPOR é um advogado.
Segundo o Nuno Pereira, a ACAPOR «já foi responsável pelo encerramento de 27 sites de partilha de ficheiros ilegais»(1). Agora pedem uma indemnização de 30,000€ a um tal «Humberto Batista, um homem de 31 anos residente nas Caldas da Rainha e administrador do site de streaming não autorizado de obras cinematográficas – www.legendatuga.com»(2). O Nuno não explica o que é um ficheiro ilegal e é difícil perceber o conceito. Um ficheiro digital é apenas, como o nome indica, uma sequência de números. Os tais sites também não são de partilha de ficheiros mas sim de partilha de ligações para onde, noutros sites, se pode encontrar ficheiros. A ACAPOR exige o equivale a condenar por contrafacção quem divulgar a localização da feira de Carcavelos. E até parece que o tal Humberto Batista nem tem muito que ver com o assunto (3). Mas o mais estranho aqui talvez seja o pedido de indemnização.
Vamos ignorar toda esta cegada dos “ficheiros ilegais” e dos “sites de partilha” e fazer de conta que os clubes de vídeo estavam a ser prejudicados por um crime mesmo. Por exemplo, um bando de ladrões tinha assaltado um armazém de DVD em Espanha e, num ataque de generosidade, desatava a distribuir gratuitamente milhares de filmes em Portugal. Já que isto é hipotético, vamos também assumir que o problema dos clubes de vídeo não era toda a gente ter quatro ou cinco canais por cabo a dar filmes o dia inteiro e que a queda nos alugueres se devia aos DVD de borla. Se bem que fosse legítimo a ACAPOR denunciar o crime não faria sentido receberem indemnização por um furto de algo que pertencia a terceiros. Teriam menos lucro, mas o lucro não é um direito que a sociedade tenha de garantir. É isto que se passa com os tais “sites de partilha”. Mesmo que distribuir filmes viole monopólios que a lei concede a alguns estúdios de cinema, a ACAPOR não é detentora desses direitos de distribuição. Como o lucro, por si só, não é um direito, não há razão para a ACAPOR receber os 30,000€ que exige.
Ver o problema nesta perspectiva revela uma falha fundamental no copyright digital. Enquanto que no analógico podemos justificar a concessão de direitos exclusivos ao distribuidor como forma de compensar o investimento que a distribuição analógica exige, a única justificação para o monopólio sobre a distribuição digital é o lucro que de outra forma desaparece por esta distribuição ter um custo marginal praticamente nulo. Mas o lucro não é um direito e não se justifica conceder protecção legal a uma actividade apenas para garantir o lucro. Ao contrário do que alguns defendem, não é verdade que a decisão unilateral de investir num projecto, por si só, dê o direito de cobrar dinheiro a terceiros ou crie algum direito ao lucro que a sociedade tenha a obrigação de proteger.
Esta atitude da ACAPOR mostra como o copyright voltou às origens. No final do século XIX e até quase ao fim do século XX a concessão de direitos exclusivos de distribuição ao autor foi uma forma de mitigar um pouco a vantagem do distribuidor, detentor da infraestrutura industrial da qual o autor necessitava para chegar ao seu público. Não mitigava muito mas sempre era melhor do que o que acontecia antes, quando o copyright servia simplesmente para diminuir a concorrência entre distribuidores. Mas o propósito original destes direitos de cópia foi a censura. Foi isso que levou, em 1557, o rei Filipe e a rainha Maria* de Inglaterra a conceder à Worshipful Company of Stationers and Newspaper Makers(4) o direito exclusivo de imprimir obras e até o poder de policiar os copistas clandestinos e destruir “livros ilegais”, um concito análogo ao dos “ficheiros ilegais” do Nuno Pereira. O propósito não era, obviamente, o de incentivar a criatividade e promover o acesso às obras mas precisamente o contrário, censurar tudo o que não estivesse de acordo com os interesses de quem estava no poder.
Com o copyright digital temos novamente esta situação. O monopólio sobre sequências numéricas é necessariamente censura porque governa informação em abstracto. O Nuno Pereira fala em “ficheiros ilegais” mas não se pode especificar quais as sequências de bytes que são legais e quais são ilegais porque há sempre operações algébricas que permitem calcular umas a partir das outras. O que se vê, na prática, é a necessidade de regular a troca de informação sob todas as formas, condenando até como criminoso quem cria um fórum onde utilizadores possam informar-se acerca de onde descarregar ficheiros.
* Os dois. Maria I, rainha de Inglaterra e da Irlanda, casou com Filipe das Astúrias com um contrato de co-regência.
1- Tek, ACAPOR: 27 sites fechados e mais duas queixas-crime a caminho
2- ACAPOR, ACAPOR apresentou acção contra administrador do site Legendatuga
3- Tugaleaks, Legendatuga encerrado depois da ACAPOR publicar online os dados do dono errado
4- Wikipedia, Stationers' Company. Recomendo também The Surprising History of Copyright and The Promise of a Post-Copyright World, no Question Copyright.