sábado, junho 29, 2013

Treta da semana (passada): regresso às origens.

A Associação do Comércio Audiovisual de Obras Culturais e de Entretenimento de Portugal (ACAPOR) está a tentar resolver o problema dos clubes de vídeo não darem lucro processando quem não cobra para distribuir filmes. Se o Nuno Pereira, o presidente da ACAPOR, fosse economista, provavelmente não confiaria nesta medida como solução para rentabilizar o aluguer de vídeos em DVD. Se fosse autor, talvez até se incomodasse com a ideia de usar a lei contra quem apreciasse o seu trabalho. Mas a ACAPOR é liderada por um advogado, o que é natural no “comércio cultural” porque o fundamento desta actividade não é a cultura, nem o entretenimento nem sequer prestar qualquer serviço útil. O contributo cultural dos clubes de vídeo é modesto e ter de passear bolachas de plástico para ver filmes nem entretém nem é prático. O “comércio cultural” de hoje apenas cobra, por coação legal, para distribuir aquilo que se pode distribuir de graça. Por isso é que o dirigente ideal para algo como a ACAPOR é um advogado.

Segundo o Nuno Pereira, a ACAPOR «já foi responsável pelo encerramento de 27 sites de partilha de ficheiros ilegais»(1). Agora pedem uma indemnização de 30,000€ a um tal «Humberto Batista, um homem de 31 anos residente nas Caldas da Rainha e administrador do site de streaming não autorizado de obras cinematográficas – www.legendatuga.com»(2). O Nuno não explica o que é um ficheiro ilegal e é difícil perceber o conceito. Um ficheiro digital é apenas, como o nome indica, uma sequência de números. Os tais sites também não são de partilha de ficheiros mas sim de partilha de ligações para onde, noutros sites, se pode encontrar ficheiros. A ACAPOR exige o equivale a condenar por contrafacção quem divulgar a localização da feira de Carcavelos. E até parece que o tal Humberto Batista nem tem muito que ver com o assunto (3). Mas o mais estranho aqui talvez seja o pedido de indemnização.

Vamos ignorar toda esta cegada dos “ficheiros ilegais” e dos “sites de partilha” e fazer de conta que os clubes de vídeo estavam a ser prejudicados por um crime mesmo. Por exemplo, um bando de ladrões tinha assaltado um armazém de DVD em Espanha e, num ataque de generosidade, desatava a distribuir gratuitamente milhares de filmes em Portugal. Já que isto é hipotético, vamos também assumir que o problema dos clubes de vídeo não era toda a gente ter quatro ou cinco canais por cabo a dar filmes o dia inteiro e que a queda nos alugueres se devia aos DVD de borla. Se bem que fosse legítimo a ACAPOR denunciar o crime não faria sentido receberem indemnização por um furto de algo que pertencia a terceiros. Teriam menos lucro, mas o lucro não é um direito que a sociedade tenha de garantir. É isto que se passa com os tais “sites de partilha”. Mesmo que distribuir filmes viole monopólios que a lei concede a alguns estúdios de cinema, a ACAPOR não é detentora desses direitos de distribuição. Como o lucro, por si só, não é um direito, não há razão para a ACAPOR receber os 30,000€ que exige.

Ver o problema nesta perspectiva revela uma falha fundamental no copyright digital. Enquanto que no analógico podemos justificar a concessão de direitos exclusivos ao distribuidor como forma de compensar o investimento que a distribuição analógica exige, a única justificação para o monopólio sobre a distribuição digital é o lucro que de outra forma desaparece por esta distribuição ter um custo marginal praticamente nulo. Mas o lucro não é um direito e não se justifica conceder protecção legal a uma actividade apenas para garantir o lucro. Ao contrário do que alguns defendem, não é verdade que a decisão unilateral de investir num projecto, por si só, dê o direito de cobrar dinheiro a terceiros ou crie algum direito ao lucro que a sociedade tenha a obrigação de proteger.

Esta atitude da ACAPOR mostra como o copyright voltou às origens. No final do século XIX e até quase ao fim do século XX a concessão de direitos exclusivos de distribuição ao autor foi uma forma de mitigar um pouco a vantagem do distribuidor, detentor da infraestrutura industrial da qual o autor necessitava para chegar ao seu público. Não mitigava muito mas sempre era melhor do que o que acontecia antes, quando o copyright servia simplesmente para diminuir a concorrência entre distribuidores. Mas o propósito original destes direitos de cópia foi a censura. Foi isso que levou, em 1557, o rei Filipe e a rainha Maria* de Inglaterra a conceder à Worshipful Company of Stationers and Newspaper Makers(4) o direito exclusivo de imprimir obras e até o poder de policiar os copistas clandestinos e destruir “livros ilegais”, um concito análogo ao dos “ficheiros ilegais” do Nuno Pereira. O propósito não era, obviamente, o de incentivar a criatividade e promover o acesso às obras mas precisamente o contrário, censurar tudo o que não estivesse de acordo com os interesses de quem estava no poder.

Com o copyright digital temos novamente esta situação. O monopólio sobre sequências numéricas é necessariamente censura porque governa informação em abstracto. O Nuno Pereira fala em “ficheiros ilegais” mas não se pode especificar quais as sequências de bytes que são legais e quais são ilegais porque há sempre operações algébricas que permitem calcular umas a partir das outras. O que se vê, na prática, é a necessidade de regular a troca de informação sob todas as formas, condenando até como criminoso quem cria um fórum onde utilizadores possam informar-se acerca de onde descarregar ficheiros.

* Os dois. Maria I, rainha de Inglaterra e da Irlanda, casou com Filipe das Astúrias com um contrato de co-regência.

1- Tek, ACAPOR: 27 sites fechados e mais duas queixas-crime a caminho
2- ACAPOR, ACAPOR apresentou acção contra administrador do site Legendatuga
3- Tugaleaks, Legendatuga encerrado depois da ACAPOR publicar online os dados do dono errado
4- Wikipedia, Stationers' Company. Recomendo também The Surprising History of Copyright and The Promise of a Post-Copyright World, no Question Copyright.

quarta-feira, junho 19, 2013

A (in)compatibilidade.

O Alfredo Dinis e a Palmira Silva debateram, no Contraditório, a compatibilidade entre ciência e religião (1). O Alfredo defendeu que são compatíveis, a Palmira defendeu o contrário. Como já escrevi aqui várias vezes, estou do lado da Palmira nisto. No entanto, não me parece que a Palmira tenha argumentado bem em suporte desta tese e, por isso, não resisto meter o bedelho. Vou só despachar o Alfredo primeiro.

O Alfredo defende que a ciência e a religião, em que “religião” quer dizer a dele, parecem ser incompatíveis apenas porque muitos interpretam mal os livros religiosos, em que “livros religiosos” quer dizer a Bíblia. Interpretando a Bíblia correctamente, em que “correctamente” é como o Alfredo diz interpretá-la, já fica tudo resolvido. Assim, o Alfredo pode dizer que «Nunca senti que o conhecimento científico abalasse a minha crença em Deus». Mas a questão não é se é possível definir e redefinir as crenças religiosas de forma a evitar contradições com o conhecimento científico. A questão é se a ciência é compatível com a religião. Inadvertidamente, o Alfredo demonstra que não: «A religião representa a recusa de acreditar que a vida humana não tem qualquer importância num universo que teria surgido por acaso e onde a Humanidade teria aparecido igualmente por mero acaso.» Esse cliché de ser preciso acreditar num deus para dar valor à vida é um disparate que, espero, já não exige refutação. Mas, à parte disto, o Alfredo afirma que a religião exige “a recusa de acreditar” em certas hipóteses. Categoricamente, e sejam quais forem as evidências que possamos vir a ter, o religioso recusa acreditar, por exemplo, na hipótese de não existirem deuses. Esta rejeição categórica de uma hipótese é incompatível com a ciência. QED.

A Palmira foca os conflitos históricos entre ciência e religião, dá exemplos interessantes e não diz nada que me pareça errado. No entanto, falha o fundamental. Afirmações como «a religião assenta na fé [...] e a ciência em factos» ou «todas as “verdades” religiosas nas respectivas áreas de estudo foram refutadas cientificamente» enfraquecem o argumento porque não são consensuais. O crente dirá que há factos religiosos e factos científicos e que as verdades mais importantes da religião são inatacáveis. É verdade que isto exige usar os termos de forma subtilmente diferente, mas primeiro que se deslinde o que se quer dizer com “factos”, “verdade” e “científico” atolamos num lamaçal de desculpas onde é quase impossível progredir. Já lá estive; sei como é. Afirmar que a ciência assenta «no método científico» também adianta de pouco e até ajuda a ideia, falsa, de que a ciência é um jogo que se pode jogar num canto sem interferir com a religião que se joga no outro. Eu proponho uma abordagem diferente.

Por um momento, deixemos de parte a conversa da ciência e da religião. Em vez disso, vamos considerar um objectivo simples: quero que a minha concepção da realidade corresponda, o melhor possível, ao que a realidade é. Ou, parafraseando um professor de filosofia que tive, ninguém gosta de ser enganado*. Se é isto que quero, então o ponto de partida em qualquer questão acerca da realidade não pode ser acreditar, ter fé, desejar ou recusar alguma hipótese. Isso iria subordinar a resposta a um preconceito, precisamente o contrário do objectivo inicial. Se quero moldar, tanto quanto possa, as minhas ideias à realidade tenho de começar sempre por “não sei”. No ponto de partida tenho de ter as opções em aberto e só depois, com informação que o justifique, posso seleccionar entre as várias alternativas.

Isto, feito com afinco, é ciência. Se não sei a resposta tenho de considerar várias hipóteses. Como não sei, à partida, qual delas é a correcta tenho de encontrar forma de as testar, de as confrontar umas com as outras e de confrontar todas com a informação que obtenha acerca do que quero saber. Mesmo que uma hipótese sobressaia como claramente melhor do que as outras, tenho de manter em aberto a possibilidade de mudar de ideias por encontrar dados que a contradigam ou me ocorrer outra hipótese ainda melhor. Também tenho de estar sempre atento aos erros e garantir que a justificação para optar por uma hipótese em detrimento das outras não depende de crenças ou preferências pessoais. É isto, grosso modo, a que chamamos ciência.

A religião não é incompatível com a ciência no sentido de um cientista não poder ser crente. É possível abordar uns problemas com fé e outros com vontade de saber. Também não é incompatível no sentido dos produtos de uma serem forçosamente inconsistentes com os produtos da outra. Como o Alfredo explica, pode-se sempre reinventar os relatos religiosos de forma a resolver esse problema. Não se vê o escaravelho gigante que rebola o Sol pelo céu? Pois claro que não se vê. É um escaravelho invisível. Amén. A religião é incompatível com a ciência porque o objectivo e o ponto de partida são diferentes. O objectivo da fé religiosa não é mudar de ideias conforme as evidências. É agarrar um dogma com toda a força e nunca o largar. Por isso, o ponto de partida da religião não pode ser “não sei”. Pela fé o crente tenta convencer-se de que já sabe o mais importante. Não há consenso entre os crentes acerca do que isso seja. Pode ser o que está no Korão ou no Novo Testamento, pode ser lido à letra ou como metáfora, pode ser um deus ou vários. Mas, seja como for, o ponto de partida de cada religião são os dogmas que a fundamentam e o seu objectivo é nunca abdicar deles. É isto que é incompatível com a ciência.

* A disciplina era Filosofia Contemporânea mas a matéria que ele deu foi só sobre Kierkegaard, um teólogo protestante do século XIX. Daí que a coisa que mais vivamente me lembro dele foi dizer que ninguém gosta de ser enganado...

1- Contraditório, É possível conciliar ciência e religião?

domingo, junho 16, 2013

Treta da semana: o incómodo.

Amanhã, os professores do ensino secundário vão fazer greve. Num dia de exame, em vez de esperarem pelas férias. O governo acha que os professores não deviam ter o direito de fazer greve quando incomoda e já vi várias pessoas a criticar esta greve por lhes incomodar que os filhos não tenham exames. É uma chatice. O Henrique Monteiro aponta assim o problema: «As greves serviam para penalizar os maus patrões, os patrões não dialogantes. [...] As greves na função pública [...] são diferentes. Em primeiro lugar, em vez de penalizarem os patrões, penalizam os utentes desses serviços [...] os alunos e pais, no caso do momento, a greve dos professores. [...] os prejudicados de não haver exames não são os patrões dos professores (o ministro e o Ministério da Educação), mas sim os utentes dos serviços de educação - os alunos e os pais.»(1) Há aqui duas confusões importantes.

A primeira, mais geral, é acerca do direito à greve. Parece-me que muita gente julga que o direito à greve vem de uma legislação especial que dá às pessoas o direito de faltar ao trabalho. Não é isso. Todos temos o direito de faltar ao trabalho pelo simples facto de não sermos escravos. É certo que as faltas injustificadas dão ao patrão o direito de sancionar o trabalhador, eventualmente com o despedimento, mas isto é apenas por acordo mútuo no contrato de trabalho. Salvo casos de impreterível necessidade social – que, segundo a legislação da requisição civil, não inclui os exames do ensino secundário – não há ilegalidade nenhuma em faltar ao trabalho. O direito à greve é acerca de outra coisa. Se os empregados protestam faltando ao trabalho, é óbvio que o patrão não os vai despedir todos. Ficava sem ninguém para trabalhar. Mas podia despedir aqueles empregados incómodos que organizam os protestos, normalmente uma pequena minoria. A lei da greve apenas retira esse poder injusto de coacção que impediria os trabalhadores de organizarem sindicatos. Quando há uma greve que nos incomoda, é importante lembrar que esses trabalhadores que faltam ao trabalho não são escravos e não podem ser legitimamente obrigados a trabalhar contra a sua vontade só porque nos dá jeito. A lei da greve apenas limita as sanções previstas no contrato de trabalho, circunscrevendo-se à relação entre os trabalhadores e quem administra esses contratos. Que pode nem ser o patrão, se a organização for grande.

Essa é a outra confusão, que o Henrique Monteiro tão bem exprime. As greves servem para pressionar os patrões. Em muitos casos isto pode ser feito indirectamente pela pressão sobre os clientes, mas no caso da função pública a pressão é directa. Porque, ao contrário do que o Henrique Monteiro julga, os patrões dos professores, e dos funcionários públicos em geral, são os utentes. O ministro da educação é apenas um administrador escolhido em nome dos eleitores para tratar dos detalhes. Não é o patrão da educação. Não é dono das escolas, não paga os salários dos professores com o seu dinheiro nem lucra com o trabalho deles. O ministro da educação é mais um funcionário público. Para bem ou para mal, os patrões somos nós. Todos.

É por isso duplamente errado focar o alegado abuso dos professores em fazer greve logo no dia dos exames. Primeiro, porque ninguém pode legitimamente obrigá-los a vigiar exames se não quiserem. Declarar que é greve apenas limita as sanções aplicáveis segundo o seu contrato de trabalho e não altera em nada os direitos que têm enquanto pessoas. Mas, principalmente, porque a reacção de um patrão perante a greve dos seus funcionários não deve ser simplesmente um “olha que chatice, logo num dia em que não me dá jeito”. No interesse do próprio patrão, deve tentar perceber o problema e o que pode fazer para o resolver.

Neste caso não é difícil. Há muitos detalhes, como as propostas de lei da mobilidade, cortes nos salários, regras dos concursos e assim por diante, mas não é importante perceber o problema a esse nível. O principal é óbvio. Este governo – ou seja, os administradores que os patrões contrataram – está a demonizar toda a função pública e, principalmente, os professores do ensino básico e secundário. Reduziu o número de professores de 130 mil para 100 mil, cortou-lhes os salários e inventa constantemente regras para chatear. O objectivo claro é o de reduzir o professor a alguém que aceite o cargo por não ter alternativas e que, por isso, saia barato. Isto vai dar uma educação de porcaria, mas por alguma razão os ministros têm os filhos em escolas privadas (2).

Quem tem filhos na escola pública não devia ver esta greve como uma chatice. Devia vê-la como um alerta, como qualquer patrão faria. Quem não tem filhos na escola devia pensar o mesmo. Porque somos os patrões desta gente toda, de professores a ministros, com a responsabilidade de perceber o que se passa e fazer algo para o resolver. E porque a qualidade do ensino não afecta apenas os nossos filhos. A qualidade do ensino influencia a sociedade toda. O nível de criminalidade, o desenvolvimento tecnológico, a cultura e até as nossas pensões quando nos reformarmos vão depender muito do sucesso académico destas crianças. Crianças que cada vez estão em turmas maiores, cada vez têm professores menos motivados e cada vez têm menos respeito por quem as tenta educar. Este último é até um factor pelo qual os patrões dos professores e dos ministros são directamente responsáveis.

1- Henrique Monteiro, Professores: as greves contra os utentes
2- Que neste momento não são necessariamente as melhores –ver aqui no Aventar – mas estão-se a esforçar por isso.

sábado, junho 15, 2013

Treta da semana (passada): no contexto cultural.

O Anselmo Borges defende que não há demónios, que «Os rituais de exorcismos não têm justificação» e que o diabo é apenas «um símbolo personificado de todo o mal». Concordo. O mafarrico e companhia são apenas personagens inventados para ilustrar alguns conceitos humanos. Eu até iria mais longe nisto. E irei. Mas, primeiro, a parte que me aborrece.

O evangelho de Marcos relata que Jesus se deparou com «um homem dominado pelo demónio», que «Jesus falou ao demónio que existia dentro dele e disse: Sai, espírito mau.[...] Como te chamas?, perguntou Jesus. Exército, porque somos muitos dentro deste homem». Então «os demónios pediram com insistência que não os expulsasse para qualquer terra distante» e Jesus mandou-os ir com os porcos: «Então, os espíritos maus saíram do homem e entraram nos animais. A vara inteira de dois mil porcos lançou-se pela encosta íngreme do monte e caiu lá em baixo no lago, onde se afogou.»(Marcos 5, 1-13). O Anselmo Borges refere esta passagem na Bíblia mas descarta-a alegando que «Se é certo que Jesus, nos Evangelhos, aparece expulsando demónios, isso deve ser compreendido no contexto das crenças da altura. Hoje, sabemos que se tratava de doenças do foro psiquiátrico»(1). Isto é treta.

Na parábola do bom samaritano, um judeu é assaltado e espancado, passa por ele um sacerdote e um levita que o ignoram mas o samaritano ajuda-o e trata-lhe das feridas. Hoje todos conhecemos a expressão “bom samaritano” e, para muita gente, fica desta história a ideia que os samaritanos eram tipos impecáveis. Mas se compreendermos a parábola «no contexto das crenças da altura» a mensagem é bem diferente. Os samaritanos e os judeus davam-se como o cão com o gato e o ponto principal da história, sobre ajudar o próximo, é o judeu ter sido ajudado pelo samaritano, que era a última pessoa de quem se esperaria tal coisa. Compreender o texto «no contexto das crenças da altura» é interpretar o texto de acordo com as expectativas e premissas dos seus autores e contemporâneos. Isto, concordo, faz todo o sentido. Mas o que o Anselmo Borges quer fazer é precisamente o contrário.

Se compreendermos o relato do exorcismo «no contexto das crenças da altura«, a interpretação tem de ser a de que Jesus enfrentou uma carrada de demónios, os expulsou para os porcos e os atirou pela ribanceira abaixo. Era isso que queriam dizer quando escreveram este relato era isso que, na altura, percebiam quando o liam. O problema do Anselmo é que, à luz do que sabemos hoje, isto é um disparate. Como o Anselmo não quer admitir que a Bíblia tem disparates, faz esta finta de dizer que interpreta o texto «no contexto das crenças da altura» para defender que não há lá demónios. É um truque muito usado pelos teólogos. Primeiro dizem que não se pode interpretar o texto literalmente porque é preciso considerar o seu contexto cultural. Isto apesar do contexto cultural ser o da interpretação literal que rejeitam. Depois alegam que o texto defende o contrário do que lá está escrito porque que é alegórico ou metafórico. Finalmente, safam-se de explicar como é que a alegoria ou metáfora que alegam lá estar diz o contrário da letra do texto. Neste caso em particular, não é nada evidente como o relato do exorcismo e da morte de dois mil porcos pode ser uma alegoria ou metáfora para o aconselhamento psicológico ou o tratamento de doença psiquiátrica.

Eu concordo que a interpretação literal do Génesis ou deste exorcismo resulta em relatos que são claramente falsos. Eu concordo que é útil interpretar os textos no seu contexto cultural para perceber o que o autor queria dizer. Mas é desonesto invocar esse contexto cultural para afirmar que o texto deve ter uma interpretação completamente diferente daquela que o próprio autor lhe dava e depois nem sequer adiantar nada acerca dessa interpretação para que se possa, pelo menos, avaliar se faz algum sentido.

Terminado o desabafo, queria voltar à proposta do Anselmo de que o diabo será apenas «um símbolo personificado de todo o mal». Ou seja, apesar do seu protagonismo nalguns relatos bíblicos, é apenas um personagem fictício que dá corpo a anseios e preocupações abstractas dos autores dessas histórias. Estou inteiramente de acordo. Isto faz todo o sentido quando consideramos os muitos exemplos por todas as religiões, como Afrodite, Zeus, Odin, Shiva, Kali e assim por diante. Mas eu vou um pouco mais longe, dando aquele passo pequenino que separa o Anselmo do ateísmo. Também Deus é apenas «um símbolo personificado» das características que lhe atribuem. É um personagem fictício que simboliza coisas boas, como bondade, amor, justiça e afins que, tal como o mal, são mais fáceis de comunicar, pelo menos antes de se começar a tentar compreendê-las, se as imaginarmos como pessoas.

1- Anselmo Borges, O diabo, possessões demoníacas e exorcismos

sexta-feira, junho 14, 2013

A metáfora da dívida.

Se me esqueço de dinheiro para o almoço e peço emprestado a um colega fico em dívida para com ele. No sentido pleno do termo. Devo dinheiro, assumindo o compromisso pessoal e moral de o restituir, e estou em dívida pelo favor, além da quantia emprestada. O significado de “dívida” corresponde bem a esta situação. Comprar uma casa com empréstimo bancário é diferente. Não fico a dever favor nenhum ao banco, que empresta para fazer negócio e obter lucro. Também não assumo um compromisso moral de restituir o dinheiro. Assino um contrato que especifica o que acontece se pagar e o que acontece se não pagar. Se a casa desvalorizar e passar a valer menos do que ainda devo ao banco é sensato e legítimo deixar de pagar e entregar a casa ao banco. É o que está no contrato. Apesar de lhe chamarmos “dívida”, este contrato com o banco não impõe qualquer obrigação moral além das opções e deveres que o contrato estabelece.

Vamos supor que, em vez de pedir dinheiro a um colega ou ao banco, eu regularmente leiloava a possibilidade de pagar 1000€ um mês mais tarde. Quem oferecesse mais dava-me o dinheiro naquele momento e, um mês depois, se eu quisesse pagar, dava-lhe os 1000€. Fazer isto uma vez não daria grande coisa, mas se eu já tivesse reputação de bom pagador podia conseguir uns 800€ ou 900€ por cada leilão, pois todos saberiam ser do meu interesse pagar para continuar o esquema e teriam confiança nuns 100€ ou 200€ de lucro sem problemas. É isto o que o Estado faz quando vende “dívida pública”. Não é uma promessa nem é um favor. É um negócio de risco. Os licitadores arriscam o que acham que vale a pena, tendo em conta vários factores*, e o Estado depois logo vê se paga. Chamar a isto “dívida” é enganador porque não passa de uma sequência de apostas.

A própria noção de dívida pública é enganadora. Vamos supor que é preciso pintar o prédio e o condomínio não tem dinheiro que chegue. Então os condóminos adiantam a quantia que falta e, nos meses seguintes, esse dinheiro é devolvido reduzindo as quotas mensais. À primeira vista, parece uma dívida do condomínio para com os condóminos. Só que o condomínio é o conjunto dos condóminos que, no fundo, estão a emprestar dinheiro a si próprios para seu próprio benefício. O Japão é um bom exemplo disto. A “dívida pública” japonesa está a aproximar-se dos 240% do PIB (1). Segundo a metáfora da dívida que por aqui impera, os japoneses são uns terríveis esbanjadores, duas vezes piores que os portugueses e ainda mais gastadores do que os gregos. Na realidade, passa-se o contrário. A “dívida pública” japonesa não é algo que os japoneses devem mas sim poupanças que alocaram a infraestrutura e serviços públicos dos quais usufruem. É verdade que dois terços da dívida pública portuguesa tem credores estrangeiros, e este é um problema em muitos países europeus. Mas esses estrangeiros pertencem à UE, e a UE não é um conjunto de países independentes. Na prática, é uma união de regiões interdependentes, cada uma beneficiando do investimento nas outras. A dívida pública da Europa é essencialmente doméstica.

Com a moda do empreendedorismo há também a ideia de que a “dívida pública” é o que os pobres devem aos ricos. Bancos e cidadãos mais ricos emprestam dinheiro ao Estado, a juros, e este depois esbanja tudo em escolas públicas, hospitais e subsídios, coisas das quais os ricos não precisam. No entanto, só o Estado, com prestações sociais e cargas policiais, é que consegue manter a sociedade estável com uma diferença tão grande entre ricos e pobres. Se não se financiar adequadamente o Estado é inevitável uma redistribuição violenta da riqueza. No fundo, uma boa parte da dívida pública surge porque os ricos não querem pagar os impostos que seria necessário pagarem para se poderem manter ricos e, em vez disso, emprestam esse dinheiro ao Estado para que este consiga depois cobrá-lo dos pobres.

A metáfora da dívida pública é enganadora. É um embuste a analogia do Estado com a pessoa que gastou mais do que tinha e agora tem de apertar o cinto, envergonhada e arrependida, para poder pagar aos seus benévolos credores e recuperar a honra. Parte da dívida pública vem de desperdícios e ineficiências, que é sempre conveniente corrigir. Mas essa é uma parte pequena. O grosso vem de negócios especulativos, de empréstimos em benefício dos credores e de simplesmente dar dinheiro aos ricos com parcerias, nacionalizando bancos falidos e maroscas afins. Entretanto, o moralismo bacoco da “dívida” vai escondendo o verdadeiro problema, que é o sistema bancário, e vai vendendo a treta da austeridade. Mas acerca disso passo a palavra ao Mark Blyth, que percebe bastante mais do assunto. A palestra não é fácil de seguir, pela velocidade com que ele fala, mas vale a pena ouvir as vezes que for preciso.


Via Boing Boing

* Em certos casos até podem dar mais dinheiro do que vão receber. Por exemplo, Negative Yield on German 2-Year Note. Isto pode acontecer se outros investimentos parecerem ainda mais arriscados.
1- Economist, Shinzo Abe’s government looks likely to disappoint on fiscal consolidation

domingo, junho 09, 2013

Treta da semana (passada): a pele do fóssil.

Na sua tradução um texto do Institute for Creation Research (1), o Mats pergunta se a pele de dinossauro pode «permanecer intacta durante milhões de anos». Depois responde que não, «a pele decai de modo contínuo e implacável até desaparecer por completo – tornando-se em pó em apenas alguns milhares de anos». Então, explica o Mats, como «uma equipa a trabalhar no Canadá encontrou [...] uma genuína pele de dinossauro agregada [a um fóssil de hadrossauro]»(2), a teoria da evolução tem de ser falsa e o relato bíblico da criação é correcto. O Mats não explica como é que a pele permaneceu intacta durante os milhares de anos que se seguiram ao dilúvio se «a pele decai de modo contínuo e implacável até desaparecer por completo – tornando-se em pó em apenas alguns milhares de anos». Mas não explica porque não precisa. A grande vantagem do criacionismo é que não precisa de ser consistente. Qualquer problema que surja no modelo resolve-se com um milagre. Ou dois, ou três. Por exemplo, «Para onde foi toda a água do Dilúvio?»

«Da mesma forma que Deus milagrosamente alterou a topografia terrestre durante a Semana da Criação (Génesis 1:9-13), e tal como Ele milagrosamente enviou as águas do Dilúvio sobre a Terra, aparentemente Deus também milagrosamente causou a que as águas do Dilúvio baixassem de nível.»(3)

Da mesma forma que fez isso tudo milagrosamente, também preservou milagrosamente a pele do dinossauro durante milhares de anos só para demonstrar que a pele de dinossauro nunca poderia ter milhões de anos se só por milagre é que duraria tanto tempo. Se isto parecer pouco credível façam como os criacionistas e rezem até que a dúvida desapareça.

O Mats teria poupado esta milagrada toda, e até algum embaraço, se tivesse lido o título do artigo que ele próprio refere: «Scientists study rare dinosaur skin fossil at CLS»(4). Ou seja, o que encontraram foi um fóssil de pele e não a pele intacta. Isto não precisa de um milagre mas, ainda assim, é raro e interessante. Durante a fossilização, conforme o organismo se decompõe a água que se infiltra pela matriz do fóssil vai levando a matéria orgânica e depositando minerais em seu lugar. O processo, lento e gradual, é semelhante ao da formação de estalactites e estalagmites. Por isso, o mais comum é encontrar-se fósseis apenas de partes como ossos, carapaças, conchas, troncos e afins porque resistem mais tempo, o que facilita a deposição de minerais. O que este fóssil tem de excepcional é a pele ter ficado fossilizada na sua forma original.

Conforme o tecido fossiliza, a rocha que se vai formando pode isolar partes da matéria orgânica original que assim ficam presas no fóssil, protegidas dos processos normais de decomposição. Desta forma podem ficar preservadas, mesmo passados milhões de anos, algumas moléculas indicativas da composição inicial. São estes vestígios orgânicos que os investigadores agora procuram no fóssil de pele de dinossauro. É por isso que o estudo será feito no sincrotrão do Canadian Light Source. Se fosse um pedaço de pele preservada haveria formas mais adequadas de o analisar.

1- Institute for Creation Research. Scientist Stumped by Actual Dinosaur Skin
2- Mats, Pode a pele de dinossauro permanecer intacta durante milhões de anos?
3- Mats, Para onde foi toda a água do Dilúvio?
4- Canadian Light Source, Scientists study rare dinosaur skin fossil at CLS

sábado, junho 01, 2013

Treta da semana (passada): a palhaçada.

Por causa de uma comparação imprudente, o Miguel Sousa Tavares sujeita-se a arranjar problemas com a lei. Como a nossa legislação considera que o insulto é crime, a Operação Nariz Vermelho (1) poderia levar o Miguel a tribunal por insinuar que o desempenho deles está ao nível do desempenho do nosso Presidente. Felizmente, mesmo sendo palhaços sabem que o ridículo tem limites e não vão ocupar promotores, juízes e tribunais com coisas destas. Infelizmente, a outra parte visada não tem esse discernimento e julga ser uma boa aplicação do erário e de recursos judiciais apurar se a comparação entre Cavaco Silva e um palhaço ofende a honra de alguém e, em caso afirmativo, de quem (2).

Esta legislação antiquada que criminaliza ofensas, e o seu abuso por parte de governantes, já custou a Portugal algumas multas por condenações no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (3). Mas como quem paga a multa são os contribuintes, em vez dos governantes que usama lei para fazer pior figura do que fariam sossegados, a asneira persiste. A própria lei é um disparate, um vestígio anacrónico do tempo em que a reputação de cada pessoa era criada principalmente pelo que diziam e escreviam dela. No tempo do diz que disse talvez fizesse algum sentido punir afirmações insultuosas. Hoje não faz. A honra de alguém como o cidadão Cavaco Silva é determinada principalmente pelos seus actos e não pelos nomes que lhe possam chamar. Dos negócios com a SNL (4) e a casa no Algarve (5) à alegada intervenção da virgem junto à troika, o Cavaco Silva já fez mais por manchar a sua reputação do que qualquer insulto poderia fazer.

Pior ainda, em Portugal não se criminaliza apenas os insultos pessoais. Vai-se ao pormenor de criminalizar adicionalmente quem ofende a honra do Presidente e da República Portuguesa. O que apresenta um dilema aos tribunais. Se, por um lado, foi o Miguel Sousa Tavares que chamou palhaço ou Cavaco Silva, por outro lado foi o Cavaco Silva quem ridicularizou internacionalmente a nossa democracia ao mobilizar o sistema judicial só porque o outro menino lhe chamou nomes (6). Se alguém em Portugal merecesse castigo por ofensas à República e ao Presidente seria, em primeiro lugar, o cidadão Cavaco Silva.

1- www.narizvermelho.pt/
2- Expresso, Ministério Público considera crime palavras de Sousa Tavares; I online, PGR abre inquérito por alegada ofensa à honra de Cavaco por Miguel Sousa Tavares
3- Por exemplo, I online, 10-2009, Tribunal Europeu condena Portugal por violar liberdade de expressão, ou Público, 11-2012, Tribunal europeu condena Portugal por violação da liberdade de expressão.
4- DN, 2009, Cavaco e filha lucraram com acções da SLN
5- Económico, 2011, Cavaco Silva construiu casa de férias antes de ter licença
6- Le Monde, Qualifié de "clown", le président portugais saisit la justice, BBC, Portugal author Miguel Sousa Tavares probed for 'clown' jibe