quarta-feira, dezembro 31, 2014

Treta da semana (atrasada): Umbiguismo.

Algumas pessoas, raras, são tão geniais e têm um pensamento tão avançado para a sua época que muitos dos seus contemporâneos, não conseguindo alcançar tal visão, as julgam palhaços. Pessoas como Copérnico, Galileu, Darwin e Batatinha, por exemplo. Gustavo Santos é mais um nome a acrescentar a esta lista. É difícil perceber isto à primeira porque Gustavo Santos é um homem modesto. Logo no seu perfil, pede aos leitores «Não me chamem "famoso" ou "vedeta da televisão"»(1) e apresenta-se simplesmente como «um homem que sabe quem é e o que anda aqui a fazer». Parece pouco, mas as aparências enganam. O pensamento de Santos não só é revelador, avassalador e revolucionário como toca várias áreas distintas daquilo que preocupa a humanidade.

Durante milénios, pessoas relativamente inteligentes como Platão, Kant e Mill procuraram soluções para o problema de avaliar actos, guiar decisões e encontrar a melhor forma de viver. Pelo caminho inventaram conceitos confusos como virtudes, deveres, imperativos, utilidades, contratos sociais e noções de justiça. Uma enorme baralhada que não ajuda ninguém. Num rasgo de genialidade, Gustavo Santos revela-nos que a resposta esteve sempre ali, mesmo à nossa frente. No umbigo. «O amor da minha vida sou eu, ponto final parágrafo […] O amor da tua vida és tu.»(2) «Ser feliz é saber quem somos e respeitar o que desejamos, materializando. É sermos a pessoa mais importante da nossa vida»(3).

Também na etimologia o trabalho de Gustavo Santos sobressai. A palavra “presente”, que muita gente julgava vir do Latim praesum, do “é perante”, afinal separa-se em “pré” e “sente”. Portanto o presente, afinal, é o que ocorre antes de sentirmos, que Gustavo Santos separa do agora que é o que ocorre depois de sentirmos (2). Por exemplo, o período de aproximação rápida entre o martelo e o polegar é o presente, enquanto o agora é o período durante o qual o incauto martelador grita “F***-se! M**** para isto! Quem me mandou a andar a pregar coisas à p*** da mobília! C******!” É supreendente como a análise etimológica cuidada e bem fundamentada dá novos sentidos à nossa vida.

Mas o génio de Gustavo Santos não se limita à ética ou a questões linguísticas. Mostra-nos também como terminar, de uma só vez, com todo o sofrimento da humanidade. A doença, a fome, a miséria, as guerras, o ódio e a sede de poder assolam muitos milhões de pessoas tornando a sua vida num inferno. Não é preciso que assim seja e, graças a Gustavo Santos, já sabemos como resolver este problema. «Descobri que era um homem feliz quando percebi que a minha felicidade apenas dependia de mim»(4). É esta mensagem importante que temos de transmitir a toda a gente. A quem tiver perdido a casa e a família num bombardeamento e esteja agora a fugir de uma guerra. A quem tenha os filhos a morrer de sede. Aos órfãos esfomeados e abandonados e a quem a vida se esvai em pus e sangue numa cubata. A todos esses, que se julgam infelizes vítimas das circunstâncias, temos de dizer que a felicidade só depende deles. Que a fome não é uma tragédia. É uma oportunidade. Que a guerra não é um mal. É um desafio. Que se a morte dos filhos os entristece é porque, incautos, não decidiram amar-se a si próprios acima de tudo.

Gustavo Santos diz-se um “life coach”, alguém que treina os outros para viver. Na sua modéstia, aponta que apesar de ter «formação segundo as normas da ICF, International Coaching Federation», o que lhe dá «verdadeiras habilitações para trabalhá-lo com as mais variadas pessoas [...] é o facto de ser um homem verdadeiramente feliz.»(4) E qual é o segredo dessa felicidade? Que ideia invulgar permite a Gustavo Santos dizer tanta coisa genial sem corar de vergonha? É talvez a mais importante de todas, e aquela que dá a Gustavo Santos o lugar merecido no fecho de mais um ano de tretas:

«Tudo o que vale a pena nesta vida é aquilo que sentimos; o que pensamos [...] é mau entretenimento.»

Sigam o conselho de Gustavo Santos. Não pensem. Sintam apenas. Senão, se se metem nesse mau entretenimento que é pensar, não sentirão a genialidade de Gustavo Santos e ainda podem acabar confundindo-o com um palhaço. Até par ao ano, e bom 2015.

1- Gustavo Santos, Arrisca-te a viver, perfil.
2- Gustavo Santos, Quanto tempo esperarias pelo amor da tua vida?
3- Revista Progredir, Entrevista a Gustavo Santos
4- Gustavo Santos, Arrisca-te a Viver.
5- Gustavo Santos, Arrisca-te a Viver, Coaching.

quarta-feira, dezembro 24, 2014

Treta da semana (atrasada): a priori, de novo.

Pelas minhas contas, este é o 400º post desta rubrica. Era para ser sobre o Gustavo Santos, mas vou deixá-lo para o 401º e ressuscitar a discussão sobre o conhecimento a priori. Não só para evitar estragar a efeméride com o Gustavo Santos mas também porque descobri que 71% dos filósofos julgam que o conhecimento a priori não é um disparate (1) e, por coincidência, comecei também a discutir isto nos comentários a um dos meus posts (2).

A distinção entre conhecimento a priori e a posteriori é ilusoriamente clara. O conhecimento é a priori se puder ser obtido sem dados empíricos adicionais e a posteriori se for necessário obter mais dados. Um exemplo clássico de conhecimento a priori é “nenhum solteiro é casado”. Para um dado conceito de solteiro e casado, esta afirmação é evidentemente verdadeira mesmo sem ser preciso perguntar aos solteiros se são casados. Um exemplo de conhecimento a posteriori será “nenhum corvo é branco”. Para um certo conceito de corvo, não é evidente se isto é verdade ou não e precisamos de ir observar corvos para tentar testar a hipótese.

Mas esta distinção é ilusória porque a compreensão de todos os conceitos depende de dados empíricos e o que caracteriza uma proposição como verdadeira a priori é simplesmente a decisão arbitrária de considerar que a informação necessária para concluir que é verdadeira faz parte dos conceitos. Vou dar alguns exemplos deste problema. Primeiro, “nenhum solteiro é casado”. A experiência da Ana levou-a a formar um conceito de solteiro com sendo o de uma pessoa que não é casada. Assim, a Ana não precisa de mais informação para concluir que a afirmação é verdadeira. Mas o Pedro é advogado e trata de muitos casos de emigrantes e imigrantes. Na experiência dele, uma pessoa pode ser casada num país mas esse casamento não ser legalmente reconhecido noutro, onde é considerada solteira. Portanto, para o Pedro, essa afirmação não é verdadeira. É possível alguém ser solteiro e casado ao mesmo tempo.

O Pedro não percebe nada de biologia. Não sabe distinguir um corvo de uma gralha preta, não faz ideia da definição biológica de espécie e, para ele, um corvo é simplesmente um pássaro preto e grande. Por isso, com este conceito de corvo, “nenhum corvo é branco” é verdade a priori para o Pedro. Mas a Ana é bióloga. Sabe que corvo, em Português, refere normalmente a espécie Corvus corax e que alguns indivíduos dessa espécie são brancos. Portanto, para a Ana “nenhum corvo é branco” nem sequer é verdade. É possível ser corvo e branco ao mesmo tempo.

É claro que, se os conceitos são diferentes, então as proposições também são diferentes, mesmo quando expressas nas mesmas palavras. Para o Pedro, as frases “nenhum solteiro é casado” e “nenhum corvo é branco” afirmam proposições diferentes daquelas que afirmam quando a Ana as interpreta. Mas para aprendermos alguma coisa daqui temos de ser capazes de fazer esta distinção. Temos de compreender que “nenhum solteiro é casado” é verdadeira para aquele conceito de solteiro mas é falsa para o outro e, como os conceitos são formados pela experiência, essa compreensão também é empírica. O a priori surge apenas como consequência trivial, e irrelevante, de num caso incluirmos no conceito a informação necessária para determinar a verdade da proposição.

É isto que acontece com proposições como “o Super-Homem usa cuecas vermelhas por cima das calças” ou “o hélio foi descoberto no Sol antes de ser encontrado na Terra”. Se considerarmos que o conceito de Super-Homem inclui o seu visual característico e que o conceito de hélio inclui saber que o elemento tem este nome por ter sido primeiro encontrado no Sol então estas afirmações são verdadeiras a priori. Caso contrário são verdadeiras a posteriori. Mas a diferença está unicamente na decisão arbitrária de incluir, ou não, as cuecas do Super-Homem e a descoberta do hélio nos respectivos conceitos. Em qualquer dos casos, os dados empíricos necessários para avaliar a verdade destas proposições são os mesmos, pelo que se trata de uma distinção sem diferença alguma.

O problema epistemológico de distinguir entre verdade a priori e a posteriori é como o de decidir se eu sou pesado demais para a minha altura ou baixo demais para o meu peso. Sim. Sou. E depois da festança ainda vou ficar pior. Boas festas para todos.

Adenda: no Facebook, o Pedro Galvão deu-me um exemplo muito melhor do que estes que usei aqui. Se bem que a intenção dele não tenha sido esta, não resisto aproveitá-lo. O exemplo é “tudo o que é verde tem cor”. Para sabermos que esta afirmação é verdade precisamos de saber, empiricamente, três coisas: que certos estímulos nos fazem sentir ver cor; que coisas verdes reflectem luz numa certa gama de frequências; e que essa gama de frequências de luz é uma que nos faz sentir ver cor. Vamos assumir que o conceito “ter cor” é o de ser capaz de produzir em nós essa sensação. Se o conceito de “ser verde” incluir tanto a propriedade de reflectir luz de certas frequências e a propriedade dessa luz causar a sensação de cor, então a frase “tudo o que é verde tem cor” é verdade a priori porque toda a informação empírica necessária para a avaliar já está nos conceitos. No entanto, se “ser verde” apenas indicar a frequência da luz reflectida sem implicar nada acerca da nossa percepção da cor, então a verdade da afirmação terá de ser determinada a posteriori porque é preciso saber adicionalmente que essa frequência de luz nos causa uma sensação de ver cor. O ponto importante aqui é que aquilo que precisamos de saber empiricamente é sempre o mesmo. Esta distinção apenas separa a decisão arbitrária de definir o conceito de “verde” só em função da frequência da luz e a decisão igualmente arbitrária de incluir nesse conceito a nossa percepção subjectiva da cor.

1- Sean Carroll, What Do Philosophers Believe?, via Facebook
2- No Facebook, O melhor método.

sábado, dezembro 20, 2014

O melhor método.

Quando afirmo que a ciência é o melhor método para obter explicações e apurar factos, por vezes contrapõem que não porque a ciência não explica tudo. É uma objecção estranha. Ser o melhor método não implica que faça tudo; quer dizer apenas que as alternativas são piores. A física e a engenharia civil também não permitem construir uma ponte de Lisboa ao Funchal com apenas três palitos e meio quilo de farinha. No entanto, a melhor forma de construir pontes continua a ser usando estes conhecimentos. Não há alternativa que funcione tão bem.

A ciência é o melhor método para compreender a realidade porque aproveita o que os seus predecessores faziam bem e acrescenta o que lhes faltava. O primeiro passo para compreender a realidade, que se perde na pré-história, foi tentar criar narrativas inteligíveis. A maior parte dos modelos modernos são construídos em matemática em vez de língua natural, para quantificar com rigor, mas a ideia fundamental é a mesma. Queremos uma representação simbólica do que se passa “lá fora” que possamos, dentro do possível, entender “cá dentro” na nossa mente. Daqui vem, ainda hoje, a ideia confusa de que o que é inteligível é a realidade que está “lá fora”. Mas, em rigor, nós não compreendemos pedras, nem estrelas nem gravidade. O que pode ser mais ou menos inteligível, conforme outras restrições permitam, são os modelos que inventamos para descrever essas coisas. É somente através destes que compreendemos a realidade.

Mas esta confusão faz com que até narrativas como o Génesis ou os poemas de Homero criem facilmente a impressão de nos dar a compreender algo real apenas pela compreensão da narrativa. É uma sensação ilusória, porque nem sequer se tenta determinar se a narrativa corresponde à realidade que pretende narrar. Mas é uma ilusão tão forte que até acabou formalizada no “acreditar para compreender” de Agostinho e Anselmo, e sempre foi a base do pensamento religioso. Assim, a crença tornou-se o primeiro critério para apurar a verdade. Este problema foi o último a ser resolvido, não só pelo poder da ilusão de compreender quando se acredita mas porque, em geral, testar a correspondência entre modelos e realidade exige tecnologias de medição e técnicas de inferência que só surgiram nos últimos séculos. Aristóteles é muito criticado por julgar que as mulheres tinham menos dentes que os homens, mas não é nada fácil determinar essas coisas quando o número de dentes varia de pessoa para pessoa e se está ainda a séculos das primeiras noções de estatística.

Mas outro problema nas narrativas mitológicas tornou-se evidente mais cedo. É a tendência para acumular alegações ad hoc, o que não só dá origem a inconsistências mas exige que se acredite em tudo porque sim. Que as folhas caem porque Perséfone vai ter com Hades. Que o Sol nasce e se põe porque Hélio o transporta numa carroça ou que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três e um só ao mesmo tempo. Para evitar estas coisas, alguns gregos inventaram a argumentação. É uma narrativa mais estruturada, na qual se pode alegar o que se quiser como ponto de partida mas, daí em diante, as coisas têm de encaixar. Não vale ir inventando conforme dá jeito. Daqui surgiram imensas ideias acerca do que é feita a matéria, de como as coisas funcionam e de porque é que as mulheres são inferiores aos homens. Mas surgiram também coisas impressionantes, como a lógica de Aristóteles ou a geometria de Euclides. Tão impressionantes que até o cristianismo aproveitou esta abordagem, mas talvez também pelas conclusões acerca das mulheres.

Durante séculos, teólogos dedicaram-se a detalhar argumentos rigorosos onde assentavam conclusões inabaláveis acerca do momento exacto em que Deus criou a Terra ou se o Espírito Santo provém apenas do Pai ou também do Filho. O problema era o raio das premissas. Assumindo uma coisa, concluía-se isto mas, assumindo outra, já se concluía aquilo e aquilo podia não dar jeito nenhum. Enquanto os filósofos gregos aceitavam o convívio de argumentos contraditórios como parte do jogo, uma religião precisa de organizar as coisas. A solução foi declarar heresia qualquer premissa inconveniente e complementar a argumentação com o extermínio sistemático de quem não concordasse. O resultado foi a fragmentação do cristianismo nas muitas variantes que hoje temos, trazendo-o de volta aonde estavam os gregos mas com o caminho lavado em sangue.

O problema das premissas só se resolveu, já nos últimos séculos, com a solução para o problema de aferir a correspondência entre as narrativas e a realidade. Com as técnicas e tecnologias necessárias para medir, registar e interpretar os dados, passou a ser viável testar a generalidade das alegações. Foi a revolução que faltava para a ciência. Manteve-se a ideia original de procurar narrativas inteligíveis, se bem que a inteligibilidade tenha, por vezes, de ser sacrificada em favor da correspondência à realidade. Nem sempre a explicação mais fácil de entender é a mais correcta. Preservou-se também lógica rigorosa da argumentação, mas levando-a mais longe. Em vez do argumento isolado, uma linha de inferências a unir uma verdade presumida à sua conclusão inevitável, os argumentos passaram a fazer parte de árvores de possibilidades. Cada argumento é um ramo que une uma hipótese a consequências observáveis e cada hipótese é apenas uma entre várias alternativas. Assim, cobre-se as várias possibilidades sem ter de assumir nenhuma como verdadeira à partida. É o que se infere de cada hipótese que, confrontado com a experiência, determina que ramos descartar e que ramos aceitar como parte das melhores explicações. Estas, por sua vez, abrem novas árvores de possibilidades, continuando a expansão do conhecimento. É por isso que a ciência é a melhor forma de compreender a realidade. Porque junta as abordagens anteriores num processo optimizado para se corrigir e para progredir como nenhuma das outras consegue.

domingo, dezembro 14, 2014

Treta da semana (passada): ”Poder ao povo”

Sempre que saem os rankings das escolas ressurge a ideia de privatizar todo o sistema de ensino subsidiando as despesas com a educação. Por exemplo, «A solução passa [...] por dar "poder ao povo": se o Estado deixasse de financiar directamente as suas escolas (que, como as privadas, teriam de cobrar uma propina), e em alternativa desse a todo e cada pai sem rendimentos suficientes os meios para os seus filhos acederem à escola que preferissem (privada ou detida pelo Estado), nenhuma escola que não fosse reconhecida como boa por um número suficiente de pais poderia continuar a operar» (1)

Em geral, sou a favor deste tipo de medidas. É por isso que defendo um rendimento básico incondicional. O dinheiro e um mercado são a melhor forma de transmitir informação acerca do que cada um quer e, por isso, em vez de se andar a distribuir comida ad hoc, a organizar campanhas para ajudar os pobrezinhos e a dar subsídios de pobreza, devia-se simplesmente dar um rendimento garantido a cada pessoa, fosse quem fosse, para ajudar a comprar o que precisassem.

Mas isto depende de uma premissa crucial. O mercado tem de estar limitado pela procura. Só assim poderá responder adequadamente. Se dermos dinheiro a toda a gente, quem não tinha dinheiro para comprar pão passa a poder comprar pão porque o aumento na procura faz aumentar a oferta. Problema resolvido. Mas só nestas condições. Se houvesse uma guerra e não fosse possível fazer pão suficiente para satisfazer toda a procura, dar dinheiro não ajudaria os pobres porque o mercado iria responder subindo o preço. Os ricos continuariam a açambarcar o pão e os pobres teriam de comer relva. Nesse caso, é preciso racionar para que todos recebam uma parte justa. Isto é ineficiente e traz imensos problemas com aldrabices e mercado negro mas é a solução menos má quando o mercado está limitado na oferta.

É precisamente isto que se passa em serviços como os da saúde e educação. Fazer boas escolas não é como fazer um papo-seco. Exige anos, ou décadas, de investimento sustentado em formação e na criação das comunidades de professores que trabalham em cada escola. Este é um aspecto importante que tem sido muito descurado. A qualidade do ensino não depende apenas da qualidade individual dos professores mas também, e bastante, da forma como os professores de uma escola trabalham em conjunto. Para que a equipa funcione bem, é preciso tempo e estabilidade. Reorganizações constantes, incertezas nas colocações e a trapalhada que tem havido degradam muito a qualidade do ensino.

Por isso, num mercado de ensino, a oferta demora muito tempo a responder à procura. Mas os pais com o “cheque ensino” vão querer a melhor escola que isso lhes pagar naquele momento e não ao fim de dez anos de investimento. O resultado é que o mercado vai ajustar apenas o que pode ajustar rapidamente, que é o preço, enquanto que a instabilidade no investimento vai degradando a maioria das escolas, exceptuando apenas as escolas dos mais ricos. Que continuarão a ser apenas para os mais ricos.

Outro problema é o dos incentivos. Com as padarias basta alguma fiscalização das condições de higiene e da qualidade dos ingredientes para alinhar o interesse do produtor, que é ganhar dinheiro, com o do consumidor, que é comer bom pão. Nas escolas isto é muito mais difícil. Práticas como a inflação de notas (2) ou a selecção de alunos são praticamente impossíveis de regular e permitem às escolas aparentar maior qualidade do que realmente têm. Quando é trivial vender gato por lebre o mercado do coelho à caçador funciona mal. Nestas condições, o dinheiro deixa de cumprir o papel importante de guiar o produtor de acordo com as necessidades do consumidor.

Finalmente, há um problema fundamental na identificação do valor da educação. A ideia do mercado livre da educação presume que a educação tenha valor como bem privado. Algo que eu compro para mim ou para os meus filhos porque tem valor para mim ou para os meus filhos. Esta premissa, ainda que implícita, é necessária para justificar a liberalização deste mercado para que cada um compre de acordo com o valor que atribui à mercadoria. Mas o benefício que cada um tira da educação não vem apenas da sua educação ou da educação dos seus filhos. Vem também da educação de todos os outros. Socialmente, a educação tem um impacto enorme na criminalidade, na inovação, na produtividade, no ambiente, na qualidade de vida e até no funcionamento da democracia e das instituições públicas. Muito mais importante do que poder escolher para que escola vão os meus filhos é ter um sistema que vá melhorando o mais possível a formação de toda a gente com quem temos de conviver.

Infelizmente, as ideologias dominantes são muito influenciadas por quem tem dinheiro suficiente para não ter de ir ao supermercado, andar em transportes públicos ou, em geral, contactar com o zé povinho. Para esses, a educação dos outros tem muito menos benefícios. Pode até ser indesejável. Suspeito que seja daí que se vai propagando a ideia da educação como uma mercadoria em vez de um bem público.

Editado às 14:00 para substituir ratings por rankings.

1- Económico, Bruno Alves, Poder ao povo.
2- Público, Notas inflacionadas das privadas permitem ultrapassar até 450 colegas

sábado, dezembro 13, 2014

Questões

O programa “Prós e Contras” desta semana pretendeu debater a pergunta “Deus tem futuro?” (1). No entanto, dos seis elementos do painel, quatro pertenciam ao clero, um era ateu mas defendia que os ateus não se devem preocupar com a questão de Deus existir ou não, e o cientista, Carlos Fiolhais, defendeu apenas a posição de que a ciência não tem nada a dizer sobre o assunto. Assim, o painel dedicou-se a discutir quem teria a melhor variante do monoteísmo bíblico, concordando todos no futuro de Deus e discordando apenas acerca de que Deus teria tal futuro. Haveria muito a apontar mas, neste post, vou focar apenas a posição de Carlos Fiolhais porque abordou um problema fundamental. Fiolhais alegou que a ciência foca um tipo de perguntas e não todo o tipo de perguntas. Nisto estamos de acordo. Mas depois, sem esclarecer como divide as perguntas em vários tipos nem como se avalia as respostas, simplesmente afirmou que há perguntas que são respondidas pela arte, outras pela ciência e outras pela religião, e que «a ciência não pode responder à pergunta se Deus existe ou não existe». Disto já discordo e até posso explicar porquê.

Vou categorizar as questões em três tipos em função das respostas que admitem. O tipo menos interessante é o de perguntas como “Existe blrrt?”. Estas não admitem resposta porque só são perguntas na sintaxe. Semanticamente não são nada. É o que acontece com “Existe Deus?” quando não se especifica nada desse “Deus”. Na prática, isto é raro. A menos que alguém esteja rodeado de clérigos de religiões diferentes e queira evitar o confronto a todo o custo, raramente se coloca esta questão sem afirmar algo concreto acerca desse “Deus”.

Outras questões admitem várias respostas correctas. As respostas a perguntas como “Queres jantar?”, “Tens fé em Jesus?” ou “Acreditas que há vida noutros planetas?” dependem da pessoa ou até do momento em que são colocadas. No debate, Anselmo Borges declarou que Deus é objecto de fé e não de ciência. Esta afirmação é vaga mas pode querer dizer que Deus é apenas uma ideia, na mente do crente, onde este foca a sua fé. Se assim for, então a pergunta “Existe Deus?” pode ser correctamente respondida pela afirmativa ou pela negativa conforme a pessoa a quem perguntamos foca a sua fé nessa ideia ou não.

Finalmente, há aquelas perguntas que admitem uma resposta correcta e para as quais as restantes respostas estão erradas, em maior ou menor grau. Perguntas como “Qual é a forma da Terra?”, “Existem electrões?”, “Alguém levou o corpo de Maria para o Céu?”, “O universo foi criado por um ser inteligente?” e assim por diante. São perguntas que fazem sentido e que visam obter uma resposta única que não é função de crenças, escolhas ou opiniões do inquirido. A resposta, presume-se, é algo que “já lá está” e que temos de descobrir. Este é o tipo de perguntas que a ciência aborda.

Aqui costuma surgir outra confusão. É correcto dizer que as religiões dão respostas. É esse um dos seus objectivos principais. Pergunte-se a um religioso algo acerca dos deuses, da origem do universo, do maior mistério e ele, mesmo admitindo que é um mistério, dá normalmente uma resposta. A diferença entre religiões e ciência não está nos tipos de pergunta, porque ambas dão primazia às perguntas que exigem uma, e só uma, resposta certa. A diferença é que o ponto forte da ciência não é dar uma resposta mas sim fazer a parte difícil, que é avaliar, comparativamente, as respostas possíveis. É fácil esquecer isto porque, se se perguntar a um cientista qual o número atómico do carbono ou a idade do sistema solar, ele dá uma resposta. Mas apenas porque a ciência já foi feita. Já se passou séculos a considerar alternativas, a compará-las, a descartar muita coisa até chegar a algo que, provisoriamente, parece ser a melhor resposta.

Num aspecto, Fiolhais tem razão. Se perguntarmos sobre Deus a um católico, muçulmano ou judeu, cada um dará a sua resposta acerca do que Deus é, quer, fez e exige de nós. A ciência, concordo, não faz isto. A ciência não dá respostas tiradas do chapéu, seja por fé ou fezada. Mas se a questão admite apenas uma resposta objectivamente correcta a ciência é a melhor forma de tentar respondê-la porque a ciência procura entre todas as respostas possíveis aquela que encaixa na melhor explicação para todos os dados relevantes. Muitas vezes os dados são insuficientes para que uma resposta seja claramente melhor do que as demais e, mesmo que seja, sê-lo-à apenas provisoriamente. Mas isto é o melhor que se pode fazer e qualquer afirmação ou certeza que vá além disto é mera ilusão.

Outra confusão está em julgar que a ciência decide “provando” o que é verdade. Por isso, Anselmo Borges apontou que não se pode provar que Deus não existe. Mas consideremos a hipótese evangélica de Deus ter criado o mundo em seis dias há seis mil anos atrás. Se Deus é omnipotente, não se pode provar que isto é falso. Um deus assim até poderia ter criado tudo há cinco minutos sem ter deixado qualquer indício disso. Com um deus que tudo pode fazer, até as nossas memórias de infância podem ter sido criadas já nos nossos cérebros adultos. A ciência rejeita esta hipótese simplesmente porque há uma explicação melhor para a origem da Terra que não inclui deus nenhum. E isto aplica-se igualmente ao deus que terá ditado o Corão, ao deus que levou o corpo de Maria para o céu ou ao deus que terá feito o universo num big-bang. Tudo isso a ciência rejeita. Não por “provar” o que quer que seja mas porque a ciência é um processo contínuo de inferência à melhor explicação e, neste momento, essas coisas não fazem parte das melhores explicações que temos.

1- RTP, Prós e Contras.

domingo, dezembro 07, 2014

Treta da semana (passada): o cérebro e a verdade.

Num post sobre dez questões aos “evolucionistas”, o Mats pergunta «Se, segundo o neo-Darwinismo, nós mais não somos que uma combinação arbitrária de matéria, energia e processos aleatórios [...] então como é que alguém pode confiar no que eles chamam de “pensamentos racionais” de modo a que estes correctamente lhes indiquem a veracidade do que quer que seja?»(1). A afirmação de que somos uma combinação arbitrária de processos aleatórios é falsa. Os processos que decorrem em nós não são aleatórios; o efeito de uma proteína, membrana ou ácido nucleico está bem determinado pela natureza física de cada molécula. E a teoria da evolução não propõe que estes sistemas sejam uma criação arbitrária. Um problema dos criacionismos, do mais assumido ao mais disfarçado, é ter de presumir que a vontade de um criador omnipotente, omnisciente e inimaginavelmente maior do que nós o levou a criar-nos tal como somos sem qualquer necessidade que o forçasse a isso. É demasiada presunção para a evidência disponível. Mas a evolução não é arbitrária. É como uma avalanche. Nos detalhes, é caótica e imprevisível mas, a uma escala maior, tal como a gravidade e a geometria do terreno determinam por onde a neve escorrega, a selecção natural e o ambiente também forçam o caminho de cada linhagem. Por isso, soluções úteis para problemas comuns, como raízes, olhos, mandíbulas, pernas ou asas, evoluíram independentemente várias vezes.

O nosso corpo e o nosso cérebro não surgiram por mecanismos arbitrários ou aleatórios. Surgiram por quatro mil milhões de anos de aperfeiçoamento da arte de ter mais sucesso reprodutivo do que o vizinho. Isto levou a uma enorme diversificação de soluções, da bactéria ao eucalipto e ao mosquito, entre as quais está a nossa de usar um cérebro grande para se adaptar a situações diferentes. Isto traz-nos, essencialmente, ao argumento de Plantinga contra o naturalismo. Segundo Plantinga, o que podemos esperar da evolução será apenas um cérebro que nos dá crenças úteis para o nosso sucesso reprodutivo mas não necessariamente crenças verdadeiras. No entanto, a evolução dos nossas capacidades cognitivas não decorreu apenas sob pressão para um cérebro poderoso. Outra pressão importante foi a de ter um cérebro barato.

Se bem que um cérebro já pronto à nascença seja uma opção viável em organismos intelectualmente mais simples, para mamíferos, e especialmente para os primatas, isso seria demasiado dispendioso. Por isso, o cérebro de um humano recém-nascido é quase uma massa amorfa de neurónios. Há uma organização grosseira, ditada pelos genes e pelo desenvolvimento embrionário, mas os detalhes estão omissos. Nos primeiros meses nem sequer conseguimos controlar os membros. Mas todos os neurónios são capazes de formar ou eliminar ligações conforme os estímulos que recebem e, assim, adaptar o cérebro às regularidades nos padrões sensoriais. Isto não garante crenças rigorosamente verdadeiras mas a adaptação às correlações na interacção com o ambiente força alguma correspondência entre os modelos neuronais e o ambiente que os moldou. Se aprendemos a atirar pedras atirando pedras, a ideia que formamos da relação entre a trajectória e a força não pode ficar muito longe da realidade que imprimiu no nosso cérebro essa noção durante o treino.

No entanto, Mats e Plantinga estão correctos num ponto importante. A evolução de um cérebro geneticamente barato – que, por isso, se tem de adaptar ao ambiente para aprender – força os modelos mentais a corresponderem aproximadamente à verdade mas não os obriga a corresponder exactamente à verdade. E é precisamente isto que observamos. Sentimos a pedra como sólida e maciça mas, na realidade, trata-se da repulsão eléctrica entre nuvens de electrões na nossa mão e na pedra, ambas feitas de vazio salpicado de pequenas partículas. Parece-nos que a pedra está imóvel mas todos os seus átomos se agitam continuamente. Temos ideia de que a velocidade e posição da pedra, como as de qualquer objecto, são atributos independentes e bem definidos. Não é verdade. São apenas distribuições de valores possíveis e estão interligados de tal forma que estreitar a distribuição de um alarga a distribuição do outro. Durante quase toda a nossa história o cérebro enganou-nos acerca da realidade, dando-nos ideias aproximadamente correctas mas fundamentalmente erradas.

Só nos últimos séculos é que começamos a contornar os defeitos do nosso intelecto delegando em ferramentas boa parte do processamento dos dados. Medindo com relógios, réguas e espectrómetros em vez de “a olho”. Quantificando com álgebra, de forma algorítmica e mecanizada, em vez de nos guiarmos pela intuição. Construindo penosamente modelos simbólicos, parcialmente ininteligíveis, mas que podem ser testados e adaptados à realidade com rigor. Foi assim que chegámos onde estamos agora. Não é de admirar que haja criacionistas como o Mats. O Génesis foi escrito com o conhecimento intuitivo de uma tribo antiga e mesmo à medida das limitações do nosso cérebro. Milhares de anos, criação inteligente, homem feito do barro e essas coisas. Isso é fácil de digerir. A realidade que a ciência nos revela não é algo para o qual o nosso cérebro esteja preparado. Um universo com treze mil milhões de anos. Quatro mil milhões de anos de evolução biológica. A relatividade do tempo. A mecânica quântica. Qualquer criança percebe facilmente que a pedra é sólida mas vai precisar de décadas de treino para perceber o que a pedra realmente é e, no fim, terá apenas uma ideia abstracta daquilo que as equações lhe dizem enquanto o cérebro continua a insistir no erro inicial. Como diria Jack Nicholson, nós não conseguimos lidar com a verdade.

1- Mats, 10 questões que todo evolucionista tem que saber responder.

terça-feira, dezembro 02, 2014

Treta da semana (atrasada): a física de Rodrigues dos Santos

José Rodrigues dos Santos inspirou um dos seus livros em «estudos sobre o pós-morte e livros de física»(1). Desta combinação retirou que «A consciência sobrevive à morte porque está na origem de tudo», uma inferência duvidosa mesmo que a premissa fosse verdadeira. E não é. O que Santos quer dizer com “na origem de tudo” vem de uma interpretação errada da física quântica. « há dois anos estava a ler um livro de física que me explicou uma das coisas mais misteriosas que a ciência produziu, que é a experiência da dupla fenda. [...] quando uma partícula é observada comporta-se como tal, quando não é observada é uma onda fantasmagórica. É uma onda que não tem existência real: não tem energia, não tem forma, é uma onda abstracta de potencialidades [...]. As coisas não existem quando não são observadas e quando deixam de ser observadas voltam a não ter realidade física, regressam ao seu campo fantasmagórico. E portanto o papel da consciência é muito mais importante.» Santos afirma que falou com cientistas para confirmar esta intepretação, mas quando «estavam em desacordo comigo eu insistia, "está aqui uma passagem que confirma o que eu digo", e mantive o texto.» Devia ter sido menos teimoso.

A primeira coisa a ter em mente acerca da física quântica é que não é intrinsecamente estranha nem misteriosa. O problema está do nosso lado. Temos um cérebro que evoluiu sob pressão selectiva para ser bom a atirar lanças, encontrar as bagas maduras e convencer potenciais parceiros a colaborar na reprodução e criação da prole. Isso deu-nos uma visão muito enviesada e errada da realidade. Facilmente encontramos propósito e consciência em tudo, temos ideia de que a matéria é sólida e de que as coisas só mexem se algo as empurrar e assim por diante. A descrição mais correcta que temos da realidade só nos parece estranha porque a nossa intuição é completamente errada.

A experiência “misteriosa” que Santos refere consiste numa caixa que tem um emissor de electrões num lado, detectores no lado oposto, no meio, uma barreira com duas fendas por onde os electrões podem passar. Quando se emite um electrão, ele é detectado num detector do outro lado da caixa. Repetindo isto muitas vezes é possível contar quantos electrões caem em cada detector. O resultado que parece estranho é que os impactos formam um padrão de difracção como o da interferência de ondas (painel de baixo da figura, [2]).

fenda simples e dupla

Daqui vem a tal ideia de que o electrão se comporta como onda enquanto viaja pela caixa, e por isso interfere consigo próprio na passagem pelas duas frestas, mas depois se comporta como partícula quando é observado a bater no final da caixa. Esta ideia é errada. A noção intuitiva de onda e partícula vem da nossa experiência à escala em que vivemos e do nosso enviesamento cognitivo. Na realidade, as propriedades do electrão são uma sobreposição de todos os estados possíveis com uma certa densidade para cada um. Por exemplo, a posição do electrão reparte-se pela caixa com mais ou menos densidade em regiões diferentes. Isto faz com que a descrição mais correcta do electrão seja a de uma função que é matematicamente idêntica às funções que usamos para descrever ondas.

E quando o electrão interage com os detectores não se transforma em partícula. O que acontece é que os estados possíveis do electrão passam a fazer parte de um conjunto de sobreposições com os estados possíveis de todos os átomos, electrões e fotões do detector, dos circuitos do amplificador e do monitor onde vemos os resultados. Se pudéssemos observar todo este sistema como um só conjunto de partículas, teríamos de o descrever com as mesmas equações de onda com a sobreposição de todos os estados possíveis, se bem que agora com um número enorme de variáveis e coeficientes. Só que, como só olhamos para a emissão de alguns fotões do monitor no final desta cadeia, podemos simplificar a descrição e dizer que o electrão se comportou como uma partícula e bateu no detector naquele sítio. Não é verdade. Na realidade, lá bem no fundo, é tudo sobreposições de estados possíveis que só podem ser descritas por equações análogas às de ondas. O efeito de misturar os estados do electrão com os de muitos milhões de milhões de partículas e depois olhar só para algumas é que, na prática, faz parecer que o electrão se comportou de acordo com a nossa intuição de partícula.

A decoerência quântica não é um tema simples (3) e, no que toca aos detalhes, possivelmente não sei mais do que sabe o José Rodrigues dos Santos. Mas há um ponto fundamental que não é difícil de compreender e de cuja confusão muitos vendedores de tretas se aproveitam. A realidade é fundamentalmente como a mecânica quântica descreve. Os estados possíveis estão em sobreposição e não existe uma posição ou velocidade bem determinada para nenhuma partícula. O comportamento clássico que intuitivamente compreendemos à nossa escala, dos objectos com propriedades bem delimitadas, da pedra que está aqui e do pássaro que voa por ali, emerge da realidade quântica pela interacção de grandes números dessas partículas e a perda de informação resultante de se usar apenas uma pequena parte dos atributos do sistema. Dizemos que a pedra está parada mas todos os seus átomos se movem. É a esta redução de informação e interação de um sistema pequeno com um maior que se chama “observação” em física, e não tem absolutamente nada que ver com consciência.

1- I online, José Rodrigues dos Santos. "A consciência sobrevive à morte porque está na origem de tudo".
2- Wikipedia, Double slit experiment
3- Wikipedia, Quantum decoherence.

domingo, novembro 30, 2014

Argumentos

Argumentar é exprimir um raciocínio e, qualquer que seja o tema, do direito à ciência ou da astrologia aos raptos por extraterrestres, sempre que alguém quer mostrar como se chega a uma conclusão tem de argumentar. Por exemplo, o Mats argumenta que a teoria da evolução é incompatível com a ciência, propondo que «A ciência pressupõe que o universo é lógico e ordenado» e que só se pode assumir isto porque «Deus fez todas as coisas», «impôs ordem no universo» e «a Bíblia ensina que Deus sustém todas as coisas através do Seu Poder». O argumento pode ser válido. Se a ciência assumir algo que exige as premissas do criacionismo, então a teoria da evolução será incompatível com a ciência. Mas isto não basta para aceitar a conclusão.

Um argumento finito tem necessariamente de começar por premissas, implícitas ou explícitas, que assume sem justificar. Portanto, para avaliar um argumento é preciso também considerar se as premissas são aceitáveis. O argumento do Mats falha nisto, logo na primeira premissa, porque a ciência não presume que «o universo é lógico e ordenado, e que ele obedece a leis matemáticas que são consistentes ao longo do tempo e do espaço.» A ciência pergunta se, e em que condições, é que isto pode ocorrer. A distância a que o berlinde cai depende da velocidade e ângulo com que o atiramos, consistentemente e de forma previsível. Esta é uma regularidade que podemos aproveitar. Um átomo de urânio 238 transforma-se em tório 234 sem causa alguma nem qualquer indício prévio. Neste caso, não se pode estimar mais do que uma probabilidade de decaimento em função do tempo. E assim por diante.

Mas há ainda outro aspecto da avaliação de um argumento, muitas vezes descurado. Cada argumento parte de premissas escolhidas por quem o formulou e estas não são necessariamente todas as premissas relevantes. O Mats assume que a regularidade do universo se deve ao deus do cristão evangélico, deixando de parte uma imensidão de alternativas que inclui todas as outras religiões e todas explicações naturais para as regularidades observadas.

Em ciência há dois truques para que não se descure estes aspectos. O primeiro é a secção “materiais e métodos”, na generalidade dos artigos científicos, onde se descreve em detalhe como se aferiu a verdade das premissas. O que se mediu, experimentou e observou. Isto não só reduz o risco de se partir de premissas falsas como também facilita a verificação independente daquilo que foi assumido no argumento. A teologia é um bom exemplo de como a dedicação exclusiva ao rigor lógico dos argumentos, descurando a validação das premissas, resulta em resmas de papel com inferências detalhadas ligando pressupostos sem fundamento a conclusões ridículas. Admito que há argumentos interessantes cujas premissas não podem ser testadas à parte mas, nesses casos, há que reconhecer que isso fragiliza muito o argumento. O segundo truque da ciência é chamar a qualquer argumento “uma hipótese”. Isto salienta que se trata apenas de uma entre muitas possibilidades, focando somente um sub-conjunto da informação que possa ser relevante, e que não deve ser avaliada sem ser confrontada com hipóteses alternativas.

Descurar alternativas é um erro comum não só na teologia e outras tretas mas até na filosofia da religião, talvez pela ênfase na análise minuciosa de cada argumento. Por exemplo, é comum a ideia de que basta haver argumentos “sérios” em favor de uma conclusão para ser racional aceitá-la como verdadeira. Isto é um erro porque o racional será optar pelo melhor argumento, assente no conjunto mais abrangente de premissas independentemente verificáveis. Não é racional aceitar uma conclusão com base num argumento descurando outro melhor que aponta o contrário. O exemplo mais saliente é a tese da criação do universo por parte de um ser inteligente e sobrenatural. Há vários argumentos a favor dela, mas todos exigem uma selecção tendenciosa e muito limitada das premissas. Quando consideramos todos os dados disponíveis, não só as várias crenças religiosas mas também o que sabemos da física da formação do universo e da psicologia e sociologia das religiões, a melhor explicação para tudo isto é a de que a hipótese de criação sobrenatural não passa de uma ficção humana, uma ficção comum e bem ilustrada pelas teses que o Mats defende.

É verdade que a tendência humana para inventar deuses não prova que os deuses não existem. Da mesma forma como as pessoas que alegam terem sido raptadas por extraterrestres serem mais susceptíveis à criação de memórias falsas não prova que não ande aí algum ET a raptar gente (2). No entanto, estes dados apoiam melhor explicações alternativas que não exigem seres sobrenaturais ou extraterrestres raptores. Racionalmente, essas são as conclusões preferíveis. Para compreender isto é preciso ir além da análise de cada argumento. Não basta aferir se o argumento é válido, assumindo as premissas, e se é sólido, com premissas que se pode admitir serem verdadeiras. É preciso também determinar se não há alternativas melhores, com premissas mais fundamentadas e que não deixem de fora dados relevantes. O criacionismo é um exemplo extremo do erro de olhar para cada coisa com palas a tapar o resto, mas há outros casos. Alguns disfarçam melhor pela diligência com que examinam cada argumento mas descuram à mesma a natureza hipotética da argumentação. Quando se avalia um argumento é importante ter em conta que um argumento não aponta a verdade. Aponta apenas uma hipótese possível se as premissas forem verdadeiras e não houver outros indícios contraditórios. É como hipótese que qualquer argumento deve ser avaliado, e sempre no contexto das outras hipóteses com as quais concorre.

1- Mats, Evolução: a teoria anti-científica
2. Clancy et al, Memory distortion in people reporting abduction by aliens., J Abnorm Psychol. 2002 Aug;111(3):455-61.

domingo, novembro 23, 2014

Treta da semana (passada): o muro da defesa

O que defendo acerca do papel do Estado na economia e na redistribuição de riqueza devia aproximar-me do PCP. Também o contacto que tive com o partido, se bem que apenas com um deputado e a propósito do copyright, devia contribuir para esta aproximação pela boa impressão que me deixou. No entanto, surge sempre o problema do núcleo do PCP ser controlado por pessoas que vivem num universo tão estranho que nem as minhas quatro décadas de infância* como fã da Marvel me ajudam a compreender. Este é um problema que vai desde o mais genérico, como o slogan da CDU (“Uma Política Patriótica e de Esquerda”) até detalhes como o de não saberem se o regime da Coreia do Norte é opressivo ou pérolas como o comunicado a propósito das celebrações da queda do muro de Berlim. Começa assim:

A chamada «queda do muro de Berlim»
[...]Perante a campanha anticomunista de intoxicação da opinião pública desencadeada a pretexto da passagem de 25 anos sobre a chamada «queda do muro de Berlim», o PCP considera necessário afirmar o seguinte:
(1)

E depois piora.

Segundo o PCP, celebrou-se «a anexação [...] da [República Democrática Alemã] pela República Federal Alemã». O termo “anexação” é pouco adequado aqui. Um exemplo que ilustra melhor a situação que se vivia até 1990 foi o que aconteceu em 1989 quando a Hungria desmantelou o seu muro, uma vedação guardada de 150km que impedia a passagem para a Áustria. Assim que isso aconteceu, milhares de alemães de leste que estavam na Hungria passaram para a Áustria, de onde puderam livremente viajar para a Alemanha. A outra Alemanha. Meses antes do desmantelamento oficial desta vedação, num “Picnic Pan-Europeu” organizado entre austríacos e húngaros, centenas de alemães de leste aproveitaram para se pirar pelo pequeno buraco (2). O que aconteceu à Alemanha em 1945 não foi uma divisão em dois países. Foi uma divisão em duas administrações, uma pelos aliados e outra pelos soviéticos. Os aliados rapidamente deixaram os alemães do seu lado decidir o que fazer da vida mas os soviéticos só largaram o osso em 1990. O muro caiu como baixam os braços de quem já não está na mira da metralhadora.

Acrescenta aínda o PCP que «É necessário desmascarar a hipocrisia daqueles que, clamando contra o muro erguido em Berlim pelas autoridades da RDA, têm construido e continuam a construir barreiras do mais variado tipo (sociais, raciais, religiosas e outras) por esse mundo fora, incluindo muros físicos, intransponíveis de que o exemplo mais brutal é o muro erguido por Israel para cercar e aprisionar o povo palestiniano na sua própria pátria». Eu também sou contra barreiras à imigração. Não me parece eticamente defensável a tese de que alguém nascido do outro lado de uma fronteira tem menos direito às oportunidades que eu tenho só porque eu nasci deste lado. Mas essas barreiras são uma consequência inevitável de qualquer política patriótica, porque o patriotismo é precisamente a doutrina de que “nós”, aqui, valemos mais do que “eles”. Parece-me hipocrisia defender políticas patrióticas e ser contra barreiras à imigração, e é uma das razões pelas quais rejeito o patriotismo. Primeiro as pessoas.

Mas mais preocupante que esta contradição é o PCP não perceber, ou não querer perceber, como o muro de Berlim, e toda a cortina de ferro, eram diferentes dos muros de Israel na Palestina, dos EUA na fronteira com o México ou da Espanha em Marrocos. Estes últimos são muros criados por governos a mando das pessoas que representam e que não querem que os pobres lhes venham estragar o ambiente. O muro de Berlim foi criado por um regime contra as pessoas que governava porque sem o muro elas piravam-se. A característica mais preocupante do núcleo dirigente do PCP é a incapacidade notável de distinguir entre governar de acordo com a vontade do povo e governar atropelando o povo na defesa de alguma pseudo-ideologia mais demagógica do que concreta.

Dizer que «o socialismo é mais actual e necessário do que nunca» parece-me injusto para com os trabalhadores da revolução industrial, que sofreram consideravelmente mais do que sofrem os seus congéneres de hoje. Mas concordo que o socialismo é actual e necessário e agradeço o esforço de todos os que tornaram a nossa sociedade tão socialista. Quem critica a esquerda fá-lo normalmente ignorando que muito do que todos tomamos como garantido, desde a segurança social à liberdade de associação e da escola pública ao acesso universal à justiça, são invenções de esquerda. Mas discordo desta dicotomia de que «o futuro da Humanidade não é o capitalismo mas o socialismo e o comunismo.» O futuro da Humanidade exige que se respeite a vontade das pessoas em vez de construir muros para as manter na linha e é um facto incontornável que o capitalismo agrada a muita gente. Por isso, o que temos de fazer é garantir que há socialismo suficiente para equilibrar as injustiças do capitalismo e de resto deixar as pessoas viver a sua vida à vontade. O que se perde em pureza ideológica é mais do que compensado pelo que se poupa em holofotes e arame farpado.

* Não, não é gralha. É honestidade.

1- Avante, A chamada «queda do muro de Berlim»
2- Wikipedia, Pan-European Picnic

sexta-feira, novembro 21, 2014

Ciência (e a escova de dentes)

Depois de anos de posts sobre ciência e religião, já é altura de esclarecer o que quero dizer com estes termos. Hoje vou começar pelo primeiro. O outro fica para uma próxima oportunidade. Definições de “ciência” como «um empreendimento sistemático que constrói e organiza conhecimento na forma de explicações testáveis»(1) ou «sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico»(2) não me satisfazem. São como dizer que uma escova de dentes é um cabo de plástico com cerdas na ponta. Mesmo sendo verdade, adianta de muito pouco. A ciência e a escova de dentes foram criadas com certos objectivos em vista e percebe-se melhor o que são se focarmos aquilo para que foram concebidas. A escova de dentes é uma escova que serve para lavar os dentes e

A ciência é a procura por uma explicação consistente para a realidade enquanto objecto.

Isto não traça uma fronteira precisa entre o que é ciência e o que não é ciência. Seria uma tarefa fútil. A escova de dentes é muito mais simples do que a ciência e, mesmo sendo claro que uma escova com cinco metros de diâmetro não dá para lavar os dentes, ainda assim não se consegue determinar, ao milímetro, com que tamanho a escova deixa de ser de dentes. Também na ciência há uma forma ideal, outras claramente inadequadas e uma zona intermédia de eficácia decrescente onde qualquer fronteira será arbitrária e subjectiva. Por isso, prefiro apresentar o conceito pelos objectivos e deixar os detalhes em aberto.

A ciência é uma procura. É uma enorme investigação distribuída por milhões de pessoas que, há séculos, andam que nem baratas a vasculhar tudo. Esta ideia da ciência como trabalho de pesquisa é muito melhor do que focar características acessórias como “resultados empíricos reprodutíveis” ou “hipóteses falsificáveis”. Além de ser a razão fundamental de toda essa bijuteria, permite perceber que a ciência não se define pela crença dogmática num conjunto de hipóteses. Em ciência, quaisquer hipóteses que se considere verdadeiras, e quaisquer métodos que se considere válidos, sê-lo-ão apenas como consequência do que se vai descobrindo. Para grande frustração de alguns filósofos que andam há décadas a tentar pregar a sopa ao prato.

Acerca das explicações, recomendo a palestra TED do David Deutsch (3) mas, se não tiverem quinze minutos, o que quero dizer por “explicação” é uma descrição que não só nos diz como as coisas são mas também especifica por que razões têm de ser assim. O relato da criação no livro do Génesis é uma descrição que não explica. Descreve quando Deus terá criado cada coisa mas deixa em aberto a possibilidade de ter sido tudo completamente diferente. Podia ter piscado os olhos e pronto. Podia ter demorado milénios. Podia ter começado pelas latas de pêssego em calda. A cosmologia, a geologia e a teoria da evolução não só descrevem o que aconteceu em mais detalhe como restringem muito mais o que poderia ter acontecido. Não podia haver água antes de haver estrelas porque não haveria oxigénio. Não podia haver baleias antes dos mamíferos terrestres dos quais descenderam. E assim por diante.

A ciência procura uma explicação consistente porque todas as explicações que vai encontrando têm de encaixar numa estrutura conceptual sem contradições. Partes da ciência podem focar aspectos diferentes, até porque não é prático modelar o comportamento das abelhas ao nível da mecânica quântica. Mas qualquer contradição será um problema a resolver e nunca uma solução aceitável. A ideia de haver milagres é incompatível com a ciência porque exige aceitar que as coisas funcionem normalmente de certa forma mas que, quando um deus quer, as regras se suspendam para um vale tudo excepcional. Mesmo que algumas pessoas fossem realmente curadas por intervenção divina, a medicina só daria o problema como resolvido quando encontrasse uma explicação que incluísse tanto os curados quanto aqueles que o deus deixasse morrer (4). Uma explicação consistente em vez de um pote de alhos e bugalhos.

Acerca do conceito de realidade podia dizer que é muito discutido em filosofia. Mas como isso é verdade para quase tudo, não seria informativo. De uma forma pragmática, a realidade é aquilo que pode demolir as nossas conjecturas e o que leva mesmo os anti-realistas mais ferrenhos a evitar sair pela janela do 10º andar. Como é isso que a ciência visa explicar, tudo o que se assuma como ficção fica de fora. Além disso, a ciência tem de explicar a realidade numa perspectiva neutra. Proposições como “gosto de ervilhas” têm um valor de verdade que depende do sujeito que as profere e, por isso, não encaixam numa explicação consistente para tudo. Para lidar com esta informação, a ciência tem de descartar a perspectiva subjectiva e tratar o sujeito como um objecto. “O Ludwig gosta de ervilhas” já serve. Fundamentalmente, é esta exigência que impede a ciência de modelar certos aspectos da ética, da estética ou de experiências pessoais. É uma limitação bem menor do que muitos apregoam, mas é uma limitação, determinada pelo objectivo de obter uma explicação consistente para a realidade.

Isto, proponho, é o que interessa. O resto é consequência ou acessório. Ou, por vezes, mera tentativa de abrir buracos na ciência para se poder alegar que “não interfere” numa treta qualquer que se quer defender. Por isso, desconfiem de definições de ciência que só dêem detalhes arbitrários sem considerar para que é que a ciência serve. Afinal, um cabo de plástico com cerdas na ponta também pode ser uma piaçaba.

1- Wikipedia, Science
2- Wikipedia, Ciência
3- TED, David Deutsch: A new way to explain explanation.
4- Isto seria inaceitável em ciência: S. Harris, Then a miracle occurs...

sábado, novembro 15, 2014

Treta da semana (passada): evidência anedótica

Em resposta a um texto de Carlos Fiolhais, no qual este criticou a homeopatia (1), Paulo Varela Gomes alegou estar «profundamente zangado» porque o «ataque à homeopatia não tem pés nem cabeça, é insultuoso, mentiroso, e demonstra uma ignorância inacreditável»(2). À parte de uma vaga referência a «rígidos e incrédulos cientistas» e «perfiladas instituições académicas», Gomes justifica a sua acusação com uma experiência pessoal. «Houve um dia em que acordei de manhã com um alto no pescoço. […] era um cancro de grau IV – ou seja, letal. Metástases na cadeia linfática, etc. Consultei vários oncologistas aqui e ali e até acolá (no estrangeiro): três a quatro meses de vida. […] Isto foi no final de Maio de 2012. [...] Em poucas palavras: tenho dois anos e meio de qualidade de vida por cima da sentença de morte ditada pelos oncologistas da medicina oficial.» A causa do milagre, segundo Gomes, é que «tenho sido acompanhado pela medicina homeopática». Perante tal tragédia, custa criticar o raciocínio. Fiolhais fê-lo com uma diplomacia exemplar (3). No entanto, penso que a tese de Gomes merece ser mais dissecada mesmo sacrificando algum tacto diplomático.

Se uma pessoa tomar um medicamento homeopático e morrer no dia seguinte não se justifica, só por isso, considerar que o medicamento homeopático é um veneno mortal. Como Fiolhais aponta, «um caso particular não permite tirar conclusões» porque, «Quando observamos um efeito, para lhe atribuirmos uma causa específica temos que excluir as restantes causas possíveis»(3). Não é uma tarefa fácil. Na prática, a relação causal é complexa, probabilística, e nunca conseguimos cobrir absolutamente todos os factores. Quando se diz que o tabaco causa cancro o que se quer dizer é que, sendo o resto aparentemente constante dentro do que podemos observar, o fumador tem uma probabilidade de cancro maior do que teria se não fumasse. Ou seja, o tabaco é um factor causal com um efeito estatisticamente significativo. Por isso, para determinar causas é preciso observar vários casos, tantos mais quanto mais fraca for a relação causal entre os factores que monitorizarmos. Só assim podemos encontrar as correlações, mais fortes ou mais fracas, que uma relação causal origina.

Mas a mera correlação não basta porque a noção de causalidade não é apenas acerca daquilo que ocorre. É também uma afirmação acerca daquilo que hipoteticamente teria acontecido se o factor causal se tivesse alterado. Por exemplo, a correlação entre a incidência de doenças respiratórias e o número de cinzeiros no domicílio não demonstra que ter cinzeiros cause doenças respiratórias ou, ainda mais estranho, que doenças respiratórias causem a posse de cinzeiros. Porque não se espera que a incidência de doenças respiratórias seja diferente daquilo que seria se, hipoteticamente, tirássemos ou oferecêssemos cinzeiros às pessoas sem alterar mais nada. Neste caso, a correlação surge apenas por haver um outro factor causal comum e não por uma relação causal entre os factores observados. Este carácter contrafactual da causalidade obriga-nos a ir além da mera correlação para poder identificar relações causais.

Não sendo possível voltar atrás no tempo para comparar cenários hipotéticos alternativos com os mesmos indivíduos – por exemplo, para ver o que teria acontecido a Gomes se não tivesse tomado medicamentos homeopáticos – é preciso simular essa comparação usando grupos diferentes mas equivalentes. Por exemplo, se quisermos testar o efeito de um produto químico na fertilidade de uma espécie de mosca podemos usar dois grupos de moscas, em recipientes separados. Um, o grupo experimental, fica exposto ao composto a testar. O outro, o grupo de controlo, será criado em condições idênticas ao primeiro em tudo excepto na ausência desse composto. Se as moscas forem atribuídas a cada grupo aleatoriamente e não variarem outros factores, então qualquer correlação observada será um bom indício de uma relação causal.

É isto que se faz em ensaios clínicos, mas com o problema adicional de se lidar com pessoas. As moscas são mais fáceis de manipular e o número de descendentes de cada geração é um indicador objectivo. As pessoas são muito mais inteligentes e seguir a evolução de uma doença exige considerar sintomas que o doente reporta e que o médico tem de classificar, tarefas que envolvem muitas decisões subjectivas. Por isso, nos ensaios clínicos é necessário que nem o paciente nem o médico que o avalia tenham qualquer indício do grupo – experimental ou controlo – no qual o doente foi colocado. Caso contrário, estaremos a introduzir outras correlações que irão influenciar o resultado. Isto faz com que um ensaio clínico fiável seja muito difícil de implementar, na prática, porque a nossa espécie é notoriamente matreira e sensível a pequenos detalhes. Basta uma pequena diferença na postura do enfermeiro que injecta o medicamento (ou placebo) no saco de soro para que o paciente perceba em que grupo está. E, quando se trata de pessoas com doenças terminais, como o cancro, é muito difícil que um ser humano reaja da mesma forma quando administra uma droga experimental que é a última esperança daquela pessoa ou quando administra um placebo que sabe não vai adiantar de nada.

O princípio homeopático das diluições é tão contrário ao que sabemos como a possibilidade de voar agarrando as botas e puxando-as para cima. Se as evidências para qualquer destes efeitos forem suficientemente sólidas, será sensato rever os princípios que nos dizem que isto é impossível. Mas têm de ser mesmo sólidas. E não são. O que acontece na homeopatia é que a suposta relação causal diminui conforme aumenta a qualidade dos ensaios clínicos, o que sugere que os resultados estão a ser afectados por outras correlações e não pela relação causal procurada (4). Por isso, e ao contrário do que Gomes implicitamente defende, não se justifica ainda descartar tudo o que sabemos da química para declarar que a homeopatia funciona.

1- Público, Ciência diluída
2- Público, Carta aberta a Carlos Fiolhais
3 – Público, Ainda a ciência diluída
4- Shang et al, 2005, Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects? Comparative study of placebo-controlled trials of homoeopathy and allopathy.Lancet. 2005 Aug 27-Sep 2;366(9487):726-32.

terça-feira, novembro 11, 2014

O piropo e a lei.

Um vídeo com os comentários que alguns homens dirigiram a uma mulher que caminhava por Nova Iorque (1), apesar de ter suscitado algumas críticas (2), tem estimulado uma discussão acesa sobre este assunto. Infelizmente, a discussão tem sido pouco esclarecedora porque não foca o verdadeiro problema. Assume que o mal é o piropo ou a arrogância dos homens que se metem com as mulheres (3), o que faz naturalmente confusão a qualquer homem que se imagine na posição delas. Se as mulheres se dirigissem aos homens na rua com piropos ou propostas de teor sexual, quer fosse um singelo “estás lindo” quer fosse um “chupo-te todo”, não era provável que muitos homens se considerassem vítimas de assédio e os que o fizessem seriam gozados pelos outros. No entanto, a mera inversão de actores não inverte a situação porque o problema fundamental é outro.

Segundo as estatísticas da APAV sobre crimes sexuais, aproximadamente 95% dos agressores são homens e 95% das vítimas são mulheres (4). Este é apenas um indicador, entre muitos, daquilo que é óbvio. As diferenças físicas entre homens e mulheres estão associadas a diferenças comportamentais que vão desde disposições até escolhas deliberadas. As hormonas que determinam as características sexuais físicas também influenciam o sistema nervoso. A possibilidade de engravidar ou de ser enganado a criar um filho que não é seu diferem entre homens e mulheres. Factores como estes levam a diferenças médias de atitude na relação com o sexo oposto. Infelizmente, há uma grande relutância em admitir a importância destes factores por se confundir o seu fundamento biológico com determinismo ou por se temer que a biologia venha a justificar o mau comportamento. É um disparate. O facto de alguém ser mais forte ou agressivo não lhe dá o direito de bater nos outros. Pelo contrário. E é evidente que a educação e a sociedade podem moldar estes comportamentos. A actriz caminhou dez horas em Nova Iorque e, apesar dos piropos, ninguém lhe tocou. Em Kabul ou Jabalpur o resultado poderia ter sido bem diferente.

Discute-se a legitimidade do piropo quando o problema é as mulheres se sentirem ameaçadas pela atenção indesejada. Mesmo que, objectivamente, o verdadeiro perigo seja o ex-namorado e não um estranho numa rua cheia de gente, a verdade é que estes piropos só servem para uns parvos se sentirem mais machos assustando as mulheres que lhes passam à frente. Apesar do respeito pela liberdade de expressão e do “és muita gira”, por si só, ser inócuo, isto não é aceitável e devemos educar as pessoas para que não aconteça e, principalmente, para que não surta este efeito se acontecer.

No entanto, considero um erro atacar o piropo com legislação, como propõe a Fernanda Câncio (4). A lei é um instrumento demasiado grosseiro para regular algo tão subjectivo como o hipotético delito de piropo na via pública. Além disso, o verdadeiro problema é muito mais complexo e não se resolve multando os piropeiros de rua. Mas estas objecções são secundárias. A principal é outra.

Câncio relata uma experiência determinante para a sua reacção aos piropos. «Tinha uns 12 anos, vinha do liceu e um homem com idade para ser meu avô disse, quase ao meu ouvido: "Lambia-te toda."» Eu também tive experiências desagradáveis com essa idade. Uma vez, à saída da escola, três ciganos deram-me uns pontapés e levaram-me o dinheiro e os bilhetes para o autocarro. Tive de voltar a pé para casa. Outra vez foi um cigano com um canivete. Esse só me levou um bilhete de autocarro porque eu já tinha aprendido a não levar dinheiro, e nem tive de voltar a pé porque levava outro bilhete escondido no forro do casaco. Noutra ocasião, eu e o meu irmão mais novo tivemos de fugir de uma meia dúzia de ciganos que vieram a correr atrás de nós, a atirar pedras e a ameaçar bater-nos. Não chegámos a apurar se a ameaça era para cumprir, mas a fuga custou o pacote de leite que o meu irmão teve de largar pelo caminho. Por estas e outras, se um cigano hoje me perguntar “tens trocos?” eu tenho tanta razão para ter receio como Câncio terá se um homem lhe disser “és toda boa”. Mas sou contra punir os ciganos que perguntem se alguém tem trocos porque isto seria punir algo objectivamente inofensivo apenas porque quem o faz é parecido com outros que cometeram crimes. Por muito desagradáveis que tenham sido as minhas experiências com ciganos quando era miúdo, não concordo que se descarte a presunção de inocência só por isso.

Infelizmente, é verdade que há homens que agridem mulheres. Por isso, as mulheres têm alguma razão em sentir receio de homens estranhos que mandem piropos. Não muita razão, mas certamente alguma. Tal como eu teria razão para ter medo de ciganos. No entanto, não é justo pintar todos com o mesmo pincel e menos ainda castigar quem não faz nada de objectivamente danoso só porque outros do mesmo grupo são criminosos. Câncio escreve que «Contra a penalização formal destes comportamentos ridiculariza-se; alega-se o não terem "dignidade penal", ou até a "defesa da liberdade de expressão"» mas o problema principal não é esse. O problema principal é que “és boa todos os dias” só parece ameaçador porque uns brutos com órgãos sexuais parecidos com os do piropeiro esfaquearam a mulher ou a ex-namorada. É uma razão inadequada para punir legalmente algo que, a menos desse paralelo, não passaria de má educação.

1- Youtube, 10 Hours of Walking in NYC as a Woman
2- Nomeadamente, por parecer racista. E.g. Women Of Color React To That Viral Catcalling Video.
3- Por exemplo, nesta entrevista: Meet the woman from NY street harassment video
4- DN, Boas todos os dias

domingo, novembro 09, 2014

Treta da semana (passada): dez questões.

O Mats traduziu um artigo criacionista propondo «10 questões que todo evolucionista tem [de] saber responder»(1). É um truque comum. Como responder dá mais trabalho do que inventar perguntas disparatadas, conseguem dar a impressão de que a ciência é uma trapalhada. É especialmente prático quando fingem que não há respostas ou quando apresentam mentiras como se fossem perguntas. Por exemplo, «Porque é que a ciência demonstra que todas as espécies animais têm limites rigorosos em torno do quanto que eles (ou o seu ADN) se pode alterar». Não há “limites rigorosos” que impeçam o ADN de uma espécie de se tornar no ADN de outra pela acumulação de mutações. Talvez aproveite outras destas perguntas mais tarde mas, por agora, fico-me pela primeira, que já dá para um post.

«Porque é que a ciência diz que a vida evoluiu de matéria sem vida mas por outro lado declara que a geração espontânea é impossível?

Até há uns séculos, era fácil assumir que o pão ganhava bolor ou que apareciam larvas de mosca na carne podre porque brotavam espontaneamente da matéria em decomposição. Era senso comum que organismos aparentemente tão simples fossem um produto da decomposição e não seria razoável que Deus passasse os dias a criar bolor ou larvas de insecto em tudo o que apodrecia. A conclusão era de que os organismos complexos teriam sido criados por um deus mas a bicharada e o bafio surgiam por geração espontânea.

Com o tempo, descobriu-se que mesmo os seres vivos mais pequenos são imensamente complexos e mostrou-se que o que toda a gente julgava saber estava errado. As larvas da mosca vinham de ovos de mosca e não da carne podre. Não se formavam seres vivos espontaneamente de um momento para o outro. Por outro lado, Deus também foi explicando cada vez menos. Por exemplo, se no Paraíso não havia morte não se percebe porque teria criado tantas espécies dependentes da putrefacção. A teoria da evolução resolveu este dilema, mostrando como a geração de vida pode ser espontânea, no sentido de não precisar do acto consciente de um criador, mas sem exigir que algo tão complexo como um ser vivo se forme de uma assentada, pela combinação súbita e improvável dos elementos que o constituem.

A teoria da evolução é, em abstracto, um esquema para gerar modelos de certas populações. Nomeadamente, populações de algo que se replica e que herda características que afectem a probabilidade de replicação. Nessas condições, a teoria da evolução permite compreender, descrever e prever como a população muda ao longo do tempo. Tanto faz que seja de seres vivos, como bactérias, moscas ou humanos, ou de seres inanimados, como vírus, moléculas ou até sequências de bits no computador. A ideia fundamental é que quaisquer mutações que reduzam a probabilidade de replicação tenderão a ser eliminadas e quaisquer mutações que aumentem a probabilidade de replicação tenderão a fixar-se na população. Assim, mesmo que as mutações benéficas sejam muito minoritárias, com o passar das gerações a população vai evoluir para uma população de entidades mais aptas para se reproduzirem naquele ambiente.

O problema da ideia original da geração espontânea era exigir que seres complexos surgissem subitamente. Evidentemente, não é plausível que larvas de mosca surjam da carne podre de um dia para outro. Para isso teria de haver um deus a fazer milagres ou ir lá uma mosca pôr ovos. A experiência de Pasteur confirmou que a segunda hipótese é a correcta. Mas algo é espontâneo quando ocorre sem que seja preciso uma causa especial. Não é preciso ser rápido. E a teoria da evolução explica como as moscas, e todas as outras espécies, surgiram de forma espontânea a partir da interacção de moléculas simples. Não sabemos ainda os detalhes – há vários candidatos para essa “sopa” inicial e muitos pormenores por deslindar – mas os traços gerais do mecanismo são claros. A partir de replicadores simples, a acumulação de mutações ao longo de milhares de milhões de gerações foi gerando replicadores cada vez mais eficazes, muitos dos quais são tão complexos que dizemos estarem vivos.

Em suma, o que a ciência diz é que a vida surgiu da matéria inanimada de uma forma espontânea, sem milagres, deuses ou causas sobrenaturais. A hipótese antiga da geração espontânea apenas foi descartada porque subestimava, em várias ordens de grandeza, o tempo que esse processo exigiu.

1- Mats, 10 questões que todo evolucionista tem que saber responder

quinta-feira, novembro 06, 2014

Filosofia da compatibilidade.

A filosofia da religião podia ajudar-nos bastante com alguns problemas. As religiões têm influência no comportamento das pessoas e levantam questões éticas que não devemos ignorar. Se uma religião merece um estatuto diferente de outras associações de pessoas, se sim então como podemos decidir o que é uma religião, se pode ser o Estado a decidir tais coisas e assim por diante. Este é um tipo de perguntas que a filosofia permite explorar e onde a filosofia ajuda a delinear as respostas que procuramos. Infelizmente, parece-me que a maioria dos filósofos da religião se dedica ao problema irrelevante da existência de um deus abstracto que nada tem que ver com as religiões. Não é Jahve, Allah, Buda nem Krishna. É “uma causa sem causa” ou “uma necessidade metafísica” a quem ninguém acende uma vela.

O Domingos Faria resumiu recentemente alguns argumentos que ilustram este problema. Defendem que a hipótese de um deus ser responsável por toda a criação é logicamente compatível com a teoria da evolução (1). Resumidamente, o ponto fundamental é que não há contradição lógica entre a tese de que os organismos evoluem pela acumulação de mutações e a tese de que um deus guia o processo desde que o faça às escondidas. Se bem que isto seja verdade, falha por completo o mais importante.

Há uns anos a minha televisão avariou-se. Pesquisando pela Web, descobri que o problema era um defeito nuns condensadores e, em vez de a deitar fora, reparei-a substituindo os condensadores. Quero primeiro apontar que não há incompatibilidade lógica entre “reparei a televisão” e “deitei fora a televisão”. É logicamente consistente arranjar a televisão e depois deitá-la fora. Mas é importante apontar também que isso seria o que os ingleses chamam de missing the point e os portugueses, menos subtis, chamam de parvoíce. É este o problema que assola boa parte da filosofia da religião.

Tal como a generalidade das explicações científicas, a teoria da evolução tem três características importantes. Primeiro, assenta em premissas independentes da teoria. A replicação do ADN, as mutações, a selecção natural, a hereditariedade e afins podem ser confirmadas sem assumir que a teoria está correcta. Em segundo lugar, a teoria da evolução explica o que é mais difícil de compreender recorrendo a elementos mais fáceis de compreender. Por exemplo, explica a evolução das baleias pela acumulação de pequenas mutações sob pressão selectiva, ao longo de muitas gerações. Finalmente, a teoria da evolução especifica em detalhe o que se pode observar na natureza se a teoria estiver correcta, o que permite extrapolar do que sabemos para prever algo de novo. As hipóteses de deuses sempre falharam nas duas primeiras características. O deus sempre foi assumido gratuitamente, sem evidências independentes que suportassem essa premissa, e explicar uma baleia invocando um deus não ajuda a perceber nada porque pretende explicar o difícil com algo impossível de compreender. O deus dos filósofos modernos é ainda pior porque falha até na terceira característica. As hipóteses religiosas de criação divina ainda diziam alguma coisa, se bem que fossem erradas. A hipótese deslavada da filosofia da religião nem sequer errada consegue ser.

O estudo filosófico da compatibilidade lógica desta hipótese com o resto da ciência é trivial porque a hipótese é concebida, à partida, para permitir tudo. Se esse deus pode fazer tudo, a hipótese dele existir é compatível com o que quer que se observe. Mas é precisamente por isso que a devemos rejeitar. Logo à partida, isto coloca-a a par com infinitas alternativas igualmente compatíveis com tudo, como os duendes invisíveis da carga do electrão e os gnomos transdimensionais da gravidade. Mas, principalmente, porque conjugar essa hipótese com as teorias científicas estraga tudo o que estas têm de bom. Deixam de estar assentes apenas em premissas empiricamente fundamentadas. Deixam de poder explicar o que é difícil de entender com recurso a elementos mais compreensíveis. E a mera possibilidade de um deus manipular tudo impede-as de prever o que quer que seja.

Este último ponto é muitas vezes descurado porque, na prática, ninguém leva a sério a hipótese desse deus existir. Mas, se considerássemos mesmo essa possibilidade, todas as teorias científicas deixariam de ter fundamento. Os modelos de genética de populações têm de assumir independência estatística entre mutações. A mera possibilidade de um ser inteligente controlar as mutações impede que se assuma isso. Quando se calcula a trajectória de um satélite tem de se assumir que ninguém vai mexer no satélite. Admitir a existência de um ser omnipotente que pode alterar a trajectória a gosto exclui essa premissa. Não é preciso assumir que Deus vai mesmo mexer nas coisas. Por vezes tentam descartar este argumento dizendo, sabe-se lá com base em quê, que Deus é um tipo porreiro e não nos vai dificultar a vida. O problema é que basta a possibilidade de Deus mexer nas coisas para retirar fundamento a qualquer modelo científico. Não há incompatibilidade lógica porque a hipótese em causa é concebida de forma a permitir tudo, mas ao permitir tudo a hipótese retira a justificação a premissas necessárias para extrapolar do que já observámos para o que ainda não sabemos.

Nada disto refuta a existência de Deus. O meu ponto é apenas que, se assumirmos que Deus existe, então a ciência vai toda para o lixo. A incompatibilidade não está numa contradição directa entre proposições mas na impossibilidade de justificar extrapolações num univero sujeito aos caprichos de um ser omnipotente. E, como a ciência vai funcionando cada vez melhor, graças a reparações constantes, é má ideia deitá-la fora.

1- Domingos Faria, A evolução natural é incompatível com o teísmo?
2- Eu, a Web, e praga dos condensadores.

domingo, novembro 02, 2014

Treta da semana (passada): não fazer publicidade.

No passado dia 21, o Clube de Filosofia Al-Mu'tamid organizou na Mesquita de Lisboa um debate sobre o Estado Islâmico. Naturalmente, David Munir, o xeque da mesquita, criticou o Estado Islâmico. O intrigante foi a forma como criticou essa organização criminosa que anda a massacrar populações, a escravizar, a torturar e a violar crianças, tudo em nome do islão. Segundo Munir, «à luz da religião o líder do Estado Islâmico não tem direito a declarar, como fez, a constituição de um califado, e insistiu que as bases do islão são de paz, não de guerra.»(1) Com tanto defeito a apontar, limitou-se a um detalhe técnico e um par de banalidades. É interessante pensar porquê.

Também na audiência questionaram o porquê dos representantes da comunidade islâmica não condenarem mais claramente as atrocidades daquele grupo. «"Vocês não sentem necessidade de uma demonstração de renúncia? Sei lá, um anúncio no jornal a dizer 'não tenho nada que ver com aquilo'?"» A resposta de Mahomed Abed, coordenador cultural da mesquita, foi de que «Ao ir pelo outro caminho estaríamos a fazer publicidade»(2).

Há várias razões para não ficar satisfeito com a resposta. Evitar a publicidade ao Estado Islâmico pressupõe que pouca gente tenha ouvido falar desse grupo, o que não é plausível. Pressupõe também que não falar no assunto contribua para resolver o problema de ter milhares de homens armados a cometer atrocidades no Iraque e na Síria, outra premissa que me parece incorrecta. Finalmente, organizarem um debate público sobre o Estado Islâmico contradiz claramente a tese de que não repudiam esse grupo apenas para evitar fazer publicidade. Tem de haver outra razão.

Uma diferença importante entre o islão e as outras religiões com mais aderentes é o seu livro sagrado. A Bíblia, os Vedas e os Sutras são compilações de textos muito diversos, de fontes diferentes e que os crentes aceitam como relatos inspirados mas que podem ser interpretados com alguma flexibilidade. Em contraste, o Corão é um texto muito mais uniforme, conciso e coerente e que os muçulmanos assumem como sendo uma recitação da palavra divina. Não tem partes que se possa descartar como alegóricas ou metafóricas nem se dá a grandes interpretações. Por exemplo, 4:89 expõe claramente como se deve lidar com quem abandona a fé: «Anseiam (os hipócritas) que renegueis, como renegaram eles, para que sejais todos iguais. Não tomeis a nenhum deles por confidente, até que tenham migrado pela causa de Deus. Porém, se se rebelarem, capturai-os então, matai-os, onde quer que os acheis, e não tomeis a nenhum deles por confidente nem por socorredor.»(3) No Antigo Testamento também há exemplos deste género, mas enquanto cristãos podem invocar que o Novo Testamento se sobrepõe ao antigo e judeus podem interpretar tais trechos como relatos históricos de práticas que já não se aplicam, para um muçulmano é muito mais difícil descartar as ordens do Corão enquanto mantém a fé neste livro como registo das palavras do seu deus.

Esta diferença tem consequências práticas. Não é certamente coincidência que os 23 países que punem explicitamente a apostasia como um crime estejam entre os 49 países de maioria muçulmana. Dos outros países, sejam seculares ou dominados por outras religiões, nenhum considera a apostasia um crime. A razão mais plausível não parece ser económica ou social. Parece ser a de que o islão tem um texto sagrado que é aceite como a palavra directa de Deus onde está explícito que se deve matar quem se rebelar contra esta religião.

Outra diferença importante é a vida e o legado do fundador da religião. Jesus pregou, rezou, ensinou e foi crucificado. Buda pregou, jejuou, ensinou e abandonou o seu corpo. Maomé unificou as tribos de Medina e conquistou Meca com um exército que depois enviou para destruir todos os templos das outras religiões na península arábica. Nos hadiths é-lhe atribuída a ordem de que «Quem quer que abandone a sua religião Islâmica, então matai-o»(4). Consumou o seu casamento com Aisha quando esta tinha nove ou dez anos (5). E assim por diante. Um muçulmano não pode descartar estas coisas como um cristão faz com as barbaridades do Antigo Testamento porque trata-se do Profeta, a peça central da sua religião. É tão difícil a um muçulmano condenar inequivocamente estas práticas pela barbaridade que são como seria a um cristão admitir que a história da ressurreição é fictícia.

Não é por medo da publicidade que os líderes dos muçulmanos moderados se limitam a acusar o Estado Islâmico, e extremistas afins, de meras falhas processuais como a de não ter «direito a declarar, como fez, a constituição de um califado». O problema é que aquilo que os extremistas fazem é cópia chapada do que fez o fundador do islão, e é impossível condenar os actos daqueles sem uma censura implícita aos actos deste. Censura essa que Maomé deixou bem claro como deve ser castigada.

PS: Se tiverem oportunidade, recomendo a entrevista que Sam Harris deu a Cenk Uygur. São três horas, mas vale a pena: Sam Harris and Cenk Uygur Clear the Air on Religious Violence and Islam

1- Público, A noite em que a mesquita de Lisboa se encheu para debater o Estado Islâmico
2- Expresso, Sheikh David Munir. "Nós não temos mesquitas clandestinas. Isso não existe. Vocês conhecem-nos"
3- eBookLibris, O Alcorão Sagrado
4- Center for Muslim-Jewish engagement (vis WebCite), Dealing with Apostates.
5- Wikipedia, Aisha.

sábado, novembro 01, 2014

Negativo e positivo.

Quando procuramos uma forma justa de resolver conflitos é útil distinguir dois tipos de direitos. Os direitos negativos, que correspondem, grosso modo, à liberdade de cada um agir conforme os seus interesses, e os direitos positivos, que correspondem à obrigação de terceiros agirem de acordo com os interesses do detentor desses direitos. Por exemplo, o direito à vida é um direito negativo, enquanto direito a não ser morto pelos outros, mas o direito à assistência médica é positivo porque exige que outros prestem esse auxílio. Apesar da distinção não ser sempre inequívoca, é útil ter em mente uma escala entre estes extremos porque os direitos negativos tendem a ser prioritários e mais fundamentais. O direito à protecção policial, por exemplo, é um direito positivo que se justifica por direitos negativos, como o direito à integridade física e à propriedade pessoal, e que obriga principalmente quem escolheu ser polícia. A proibição de agredir os outros toca a todos mas o dever de intervir numa rixa para deter o agressor não é igual para toda a gente. Como esta hierarquia subordina os direitos positivos aos negativos, quem exige direitos positivos em violação de direitos negativos de terceiros tende a querer confundir estas diferenças. A defesa do copyright está pejada desta manobra falaciosa (1), começando logo pela expressão “propriedade intelectual”.

A propriedade pessoal depende de um direito negativo: o direito do indivíduo não sofrer interferências no uso daquilo que é seu, como a sua casa ou a sua roupa. Mas se abandona uma casa ou um terreno agrícola já é questionável que vedar a terceiros o uso dessa propriedade seja um direito negativo, e tão fundamental como se se tratasse da casa onde reside. Mais distante ainda é o caso do proprietário de uma entidade financeira que detém uma cadeia de supermercados. Este direito de propriedade é claramente positivo porque o indivíduo só pode exercer controlo como proprietário com a colaboração activa de legisladores, tribunais e agentes da autoridade. Apesar da noção de propriedade ser sempre convencional, estas diferenças são importantes quando avaliamos direitos do proprietário. Os direitos que tem sobre o seu supermercado não são iguais aos que tem sobre o seu domicílio. Quando se diz que o autor tem o direito de proteger a sua propriedade intelectual parece invocar-se um direito negativo, fundamental, de que não mexam nas suas coisas. Que não o privem da sua roupa, nem lhe invadam a casa nem queimem os seus livros. Mas é falacioso inferir daqui que se deve coagir terceiros a não copiar ficheiros ou partilhar informação sem autorização do autor porque mandar nas coisas dos outros não tem nada que ver com direitos negativos de propriedade.

O direito à remuneração é outro exemplo desta falácia. Se alguém quiser ganhar dinheiro fazendo esculturas na areia tem o direito de ser remunerado pelo seu trabalho. Mas este é o direito negativo de não o impedirem de negociar com quem lhe queira pagar. Concessionários de restaurantes, produtores de cinema ou organizadores de festas na praia, por exemplo. Este direito negativo nunca justificaria punir com três anos de cadeia quem tirasse fotografias às esculturas sem autorização do escultor. Mesmo que tal lei visasse facilitar a remuneração, permitindo ao autor cobrar por cada foto, estaria longe de um direito de não interferência. Só com a colaboração activa de muita gente é que o autor poderia controlar o que cada pessoa, sentada na sua toalha, iria fazer com a sua máquina fotográfica. E este suposto direito de controlar a propriedade dos outros nunca se poderia sobrepor ao direito negativo de cada um usar a sua propriedade sem interferência. Invocar o direito à remuneração para justificar restrições à partilha de ficheiros é uma falácia por confundir o direito negativo de poder negociar uma remuneração com o direito positivo de coagir toda a gente a ajudar o autor a ganhar mais dinheiro.

A legislação de direitos de autor é produto de três séculos de braço-de-ferro entre uns poucos detentores dos meios de cópia e aqueles autores que tinham interesse em vender cópias. Ao contrário do que muitas vezes se presume, este conjunto de autores sempre ficou muito aquém de corresponder à totalidade das pessoas que contribuem para o progresso da cultura, do conhecimento e das artes. Com uma audiência tão restrita e um âmbito tão limitado, esta legislação foi sendo implementada por meio de tratados internacionais e negociada à porta fechada sem contributo da vasta maioria das pessoas para quem estas leis, até recentemente, nunca tiveram importância. Nas últimas décadas isto mudou. Em resposta à inovação tecnológica que tornou o acto de copiar universal e trivial, a legislação criada para resolver um conflito de interesses de uma pequena minoria passou a ser aplicada a milhares de milhões de pessoas que nunca tinham tido nada que ver com o assunto. Se bem que todos concordem que é preciso adequar a legislação à nova tecnologia, muitos esquecem-se de que o problema não é meramente tecnológico. Não é coisa que se resolva taxando pendisks e censurando a Internet.

Além da evolução tecnológica e da lei que regulava a relação entre editores e alguns autores ter passado a regular a vida privada de toda a gente, nestes trezentos anos também houve muitas alterações nas nossas noções de justiça, ética e da legitimidade democrática da legislação. O Statute of Anne, a primeira codificação do copyright moderno, data de 1710, mais de um século antes do Reino Unido abolir a escravatura. A ideia de proibir o povo de copiar para que uma aristocracia de privilegiados ganhasse mais dinheiro estava em linha com as boas práticas da época, que incluíam a escravatura, ter crianças a trabalhar nas minas e conceder privilégios legais a quem tivesse mais poder. Mas, além de se ter tornado tecnologicamente obsoleta, esta legislação tornou-se também incompatível com os valores fundamentais da sociedade moderna. A única solução é deitar esta legislação para o lixo e refazê-la de origem respeitando os princípios da democracia e dando prioridade aos direitos mais importantes.

1- A RIAA dá um exemplo engraçado, que nem vale a pena comentar, alegando que sites como o Pirate Bay atacam direitos humanos fundamentais e que por isso têm de ser eliminados: Torrent Freak, RIAA: The Pirate Bay Assaults Fundamental Human Rights

domingo, outubro 26, 2014

Treta da semana (passada): sem autoria.

João Grancho, ex-secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, copiou de outros autores uma boa parte da sua comunicação sobre "A dimensão moral da profissão docente", apresentada em 2007 em Espanha (1,2). Como não referiu as fontes nem distinguiu as partes copiadas das partes que escreveu, plagiou. Nas muitas discussões em que me meto a propósito do copyright, por vezes vejo o plágio a ser apresentado como um exemplo de violação dos direitos de autor. Grancho parece partilhar esta opinião, declarando-se inocente de plágio por se tratar de «um mero documento de trabalho, não académico nem de autor»(3). Ou seja, não sendo uma questão de autoria, não pode ser plágio, subentendendo-se que o plágio só o é se violar algum preceito do tal direito de autor. Penso que a maioria dos leitores facilmente concordará que a desculpa de Grancho é uma treta. Mais difícil será convencê-los de que é uma treta porque o mal do plágio não nada que ver com autoria ou direitos de autor. Deve-se simplesmente ao atentado contra a verdade, a honestidade e a reputação de terceiros. Mas argumentar só vale a pena quando não é trivial, por isso aqui vai.

Eu defendo que nenhum autor tem o direito de restringir a cópia ou o uso de obras que voluntariamente decidiu publicar. Antes de publicar, claro que sim. Todos temos direito à privacidade e, como os direitos de uns acabam onde começam os dos outros, ninguém tem o direito de devassar a privacidade de terceiros reproduzindo ou divulgando o que é privado. Mas, quando decidimos tornar pública uma obra, ultrapassamos a fronteira além da qual os nossos direitos dão lugar aos dos outros. Aí já não temos legitimidade para proibir ou restringir o que quer que seja só por termos sido autores. O meu direito de decidir quem pode ou não pode ler, copiar, usar ou distribuir este texto extingue-se no momento em que carrego no “Publish”.

Por isso, se alguém copiar isto para o seu blog insinuando que é o autor, não está a violar qualquer direito que eu tenha sobre este texto. Não é uma situação análoga a uma invasão de propriedade ou a um furto, em que se apropriam de algo que é meu. É, antes, análoga à situação do miúdo que parte um vidro com uma bolada e culpa o companheiro de jogo, inocente, quando a vizinha vem à janela saber o que se passou. É uma mentira que nega o direito à verdade e imputa demérito a quem tem mais mérito e mérito a quem não o merece. É isso que faz o plagiador. É indiferente se é um documento “de trabalho” ou se “não é de autoria”, seja lá o que isso for. O que importa é que, ao cometer plágio, arroga-se de méritos que não tem, acusa implicitamente o autor de mentir e nega à audiência o direito de saber a verdade.

1- Jornal de Negócios, Secretário de Estado plagiou textos sobre a "dimensão moral" do professor
2- Público, Os originais e as cópias de João Grancho
3- Público, Secretário de Estado demite-se por “imperativos de consciência” após notícia do PÚBLICO sobre plágio

sexta-feira, outubro 24, 2014

O pulmão natural.

Os dirigentes da Igreja Católica têm estado a decidir se a Idade Média já acabou. O assunto pode parecer simples para quem está de fora mas, como o Espírito Santo diz umas coisas ao Papa e outras aos bispos, a decisão está complicada. Entretanto, alguns comentadores católicos por cá já chegaram à sua verdade revelada. Admito que aquilo que João César das Neves pensa acerca do casamento e do divórcio é entre ele a a sua esposa, e o que Gonçalo Portocarrero de Almada pensa é só com ele. Mas achei piada aos argumentos que apresentam para fazer de conta que não defendem um disparate.

Neves argumenta que o divórcio é inadmissível com uma analogia entre o cônjuge e o pulmão. «Tenho problemas respiratórios desde pequeno, com asma, bronquites, etc. Viver com os meus pulmões não é nada fácil, mas nunca me passou pela cabeça andar sem eles.» Foi «pelas mesmas razões» que não lhe ocorreu divorciar-se (1). É uma analogia estranha mas reveladora da noção que Neves tem do casamento. Eu não trocaria os meus pulmões porque, com a medicina que temos hoje, isso teria consequências desagradáveis. Mas se, quando eu tiver sessenta anos, a medicina permitir trocar de pulmões com a mesma facilidade com que se tira um apêndice, não verei problema ético nenhum em trocar os meus pulmões de sessenta anos por uns de vinte. Trocar assim de cônjuge já não seria um acto moralmente neutro. Mas, ao contrário do que Neves defende, isto não tem nada que ver com preservarmos «aquele corpo a que pertencemos desde que nascemos». Não se trata de um dever de permanecer juntos só porque calhou estar juntos. Tem que ver com o cônjuge ser uma pessoa e não um apêndice.

À primeira vista, isto pode parecer dar ainda mais razão à tese de Neves por ser pior trocar de cônjuge do que de pulmões. Mas o dever de ter consideração pelo cônjuge pode tornar o divórcio numa obrigação moral se a relação não for aquela que ambos merecem. A tese de Neves revela um problema comum a muitas religiões: descurar o facto de que, mesmo quando fazem parte de famílias, comunidades ou cultos, as pessoas continuam a ser indivíduos. Não passam a ser órgãos.

Gonçalo Portocarrero de Almada tenta chegar ao mesmo sítio por outra via. Invoca que «O matrimónio cristão [é] o casamento natural elevado à condição de sacramento» e que, por ser natural, «essa união só pode ser estabelecida entre uma mulher e um varão e deve durar enquanto os dois cônjuges forem vivos.»(2). Concordo que o casamento é algo natural na nossa espécie. A nossa espécie é, apesar do que por vezes parece, especialmente inteligente, e temos muito a ganhar por viver em grupos mistos de adultos e crianças. No entanto, as nossas crias precisam da atenção de ambos os progenitores, o que exige que os machos saibam quais são as suas crias. A dificuldade de combinar a vida em grupo com o investimento paternal e evitar que os machos matem as crias dos outros obrigou a nossa espécie a criar rituais e normas de comportamento que permitissem este tipo de colaboração. O casamento é um dos mecanismos resultantes desta pressão.

Mas se há algo natural na nossa espécie é a capacidade de nos adaptarmos às circunstâncias. É por isso falso que o casamento tenha de ser entre “uma mulher e um varão” e durar a vida toda. Todas as culturas têm formas de divórcio e quantos casam com quem e com quantos depende das condições em que vivem. Culturas nas quais os homens arriscam frequentemente a vida em confrontos para capturar recursos tendem a favorecer a poliginia. Habitar em regiões mais pobres pode favorecer a poliandria, com uma mulher tipicamente casando com dois irmãos, o que lhe permite reunir os recursos necessários para criar os filhos. Com a formalização legal das uniões e a separação entre o Estado e a vida privada, é perfeitamente natural que o casamento possa ser a união entre duas pessoas, qualquer que seja o sexo. Não será um matrimónio no sentido original do termo mas, como as evidências claramente demonstram, não sai do intervalo de adaptabilidade destas normas sociais.

É perfeitamente legítimo que os católicos concebam o seu casamento como bem entenderem. Mas a sua condenação do divórcio é uma idiossincrasia religiosa que não reflecte qualquer realidade profunda acerca da natureza humana ou dos transplantes de órgãos.

1- DN, Amputação
2- Voz da Verdade, Divórcio, casamento natural e matrimónio cristão