Filosofia da compatibilidade.
A filosofia da religião podia ajudar-nos bastante com alguns problemas. As religiões têm influência no comportamento das pessoas e levantam questões éticas que não devemos ignorar. Se uma religião merece um estatuto diferente de outras associações de pessoas, se sim então como podemos decidir o que é uma religião, se pode ser o Estado a decidir tais coisas e assim por diante. Este é um tipo de perguntas que a filosofia permite explorar e onde a filosofia ajuda a delinear as respostas que procuramos. Infelizmente, parece-me que a maioria dos filósofos da religião se dedica ao problema irrelevante da existência de um deus abstracto que nada tem que ver com as religiões. Não é Jahve, Allah, Buda nem Krishna. É “uma causa sem causa” ou “uma necessidade metafísica” a quem ninguém acende uma vela.
O Domingos Faria resumiu recentemente alguns argumentos que ilustram este problema. Defendem que a hipótese de um deus ser responsável por toda a criação é logicamente compatível com a teoria da evolução (1). Resumidamente, o ponto fundamental é que não há contradição lógica entre a tese de que os organismos evoluem pela acumulação de mutações e a tese de que um deus guia o processo desde que o faça às escondidas. Se bem que isto seja verdade, falha por completo o mais importante.
Há uns anos a minha televisão avariou-se. Pesquisando pela Web, descobri que o problema era um defeito nuns condensadores e, em vez de a deitar fora, reparei-a substituindo os condensadores. Quero primeiro apontar que não há incompatibilidade lógica entre “reparei a televisão” e “deitei fora a televisão”. É logicamente consistente arranjar a televisão e depois deitá-la fora. Mas é importante apontar também que isso seria o que os ingleses chamam de missing the point e os portugueses, menos subtis, chamam de parvoíce. É este o problema que assola boa parte da filosofia da religião.
Tal como a generalidade das explicações científicas, a teoria da evolução tem três características importantes. Primeiro, assenta em premissas independentes da teoria. A replicação do ADN, as mutações, a selecção natural, a hereditariedade e afins podem ser confirmadas sem assumir que a teoria está correcta. Em segundo lugar, a teoria da evolução explica o que é mais difícil de compreender recorrendo a elementos mais fáceis de compreender. Por exemplo, explica a evolução das baleias pela acumulação de pequenas mutações sob pressão selectiva, ao longo de muitas gerações. Finalmente, a teoria da evolução especifica em detalhe o que se pode observar na natureza se a teoria estiver correcta, o que permite extrapolar do que sabemos para prever algo de novo. As hipóteses de deuses sempre falharam nas duas primeiras características. O deus sempre foi assumido gratuitamente, sem evidências independentes que suportassem essa premissa, e explicar uma baleia invocando um deus não ajuda a perceber nada porque pretende explicar o difícil com algo impossível de compreender. O deus dos filósofos modernos é ainda pior porque falha até na terceira característica. As hipóteses religiosas de criação divina ainda diziam alguma coisa, se bem que fossem erradas. A hipótese deslavada da filosofia da religião nem sequer errada consegue ser.
O estudo filosófico da compatibilidade lógica desta hipótese com o resto da ciência é trivial porque a hipótese é concebida, à partida, para permitir tudo. Se esse deus pode fazer tudo, a hipótese dele existir é compatível com o que quer que se observe. Mas é precisamente por isso que a devemos rejeitar. Logo à partida, isto coloca-a a par com infinitas alternativas igualmente compatíveis com tudo, como os duendes invisíveis da carga do electrão e os gnomos transdimensionais da gravidade. Mas, principalmente, porque conjugar essa hipótese com as teorias científicas estraga tudo o que estas têm de bom. Deixam de estar assentes apenas em premissas empiricamente fundamentadas. Deixam de poder explicar o que é difícil de entender com recurso a elementos mais compreensíveis. E a mera possibilidade de um deus manipular tudo impede-as de prever o que quer que seja.
Este último ponto é muitas vezes descurado porque, na prática, ninguém leva a sério a hipótese desse deus existir. Mas, se considerássemos mesmo essa possibilidade, todas as teorias científicas deixariam de ter fundamento. Os modelos de genética de populações têm de assumir independência estatística entre mutações. A mera possibilidade de um ser inteligente controlar as mutações impede que se assuma isso. Quando se calcula a trajectória de um satélite tem de se assumir que ninguém vai mexer no satélite. Admitir a existência de um ser omnipotente que pode alterar a trajectória a gosto exclui essa premissa. Não é preciso assumir que Deus vai mesmo mexer nas coisas. Por vezes tentam descartar este argumento dizendo, sabe-se lá com base em quê, que Deus é um tipo porreiro e não nos vai dificultar a vida. O problema é que basta a possibilidade de Deus mexer nas coisas para retirar fundamento a qualquer modelo científico. Não há incompatibilidade lógica porque a hipótese em causa é concebida de forma a permitir tudo, mas ao permitir tudo a hipótese retira a justificação a premissas necessárias para extrapolar do que já observámos para o que ainda não sabemos.
Nada disto refuta a existência de Deus. O meu ponto é apenas que, se assumirmos que Deus existe, então a ciência vai toda para o lixo. A incompatibilidade não está numa contradição directa entre proposições mas na impossibilidade de justificar extrapolações num univero sujeito aos caprichos de um ser omnipotente. E, como a ciência vai funcionando cada vez melhor, graças a reparações constantes, é má ideia deitá-la fora.
1- Domingos Faria, A evolução natural é incompatível com o teísmo?
2- Eu, a Web, e praga dos condensadores.
Sobre o que disse o Domingos Faria: E seria provável que um deus que deseja tanto ser adorado/venerado/notado fizesse com que tudo pareça natural, sem a sua intervenção? Pelas características do deus da bíblia, o evolucionismo teísta é pouco provável.
ResponderEliminar«É logicamente consistente arranjar a televisão e depois deitá-la fora.» Talvez. Mas é provável? Não me parece.
Isto é, se considerarmos o deus da Bíblia e não outro qualquer que se invente...
EliminarE em relação ao resto. é claro que tem razão. Sem evidências, sem valor explicativo, não temos uma hipótese digna de aceitação.
ResponderEliminar«Mas, principalmente, porque conjugar essa hipótese com as teorias científicas estraga tudo o que estas têm de bom. Deixam de estar assentes apenas em premissas empiricamente fundamentadas. Deixam de poder explicar o que é difícil de entender com recurso a elementos mais compreensíveis. E a mera possibilidade de um deus manipular tudo impede-as de prever o que quer que seja.» - E só o "deixam de estar assentes em premissas empiricamente fundamentadas" deita tudo a perder.
Ou pode pôr-se em todas as teorias científicas ;
ResponderEliminarSe os deuses e todas as outras entidades sobrenaturais não tiverem nada contra e se entretanto não mudarem de ideias ...
E segue a teoria....
Ludwig,
ResponderEliminar«O meu ponto é apenas que, se assumirmos que Deus existe, então a ciência vai toda para o lixo.»
Não me parece que assim seja ou possa ser. Antes pelo contrário, a ciência é a evidência da existência de Deus, ou, pelo menos, o fenómeno da racionalidade, da ciência e da inteligência só faz sentido e todo o sentido se assumirmos a existência de Deus. Com ou sem evolução, a ciência, enquanto manifestação de racionalidade e de inteligência é um fenómeno que encontra explicação em Deus.
Tenho de discordar quando diz " ciência é a evidência da existência de Deus, ou, pelo menos, o fenómeno da racionalidade".
EliminarEm primeiro lugar, são coisas diferentes e com objectivos diferentes.
A ciência, pelo menos na forma ocidental fortemente baseada na lógica da filosofia grega clássica, tem como objectivo descrever o mundo sem necessidade de recorrer a explicações sobrenaturais. Tal implica a ausência de deuses. Creio que é legitimo dizer que a ciência é ateia de base.
A religião sempre foi algo diferente da ciência no sentido de tentar fornecer explicações sobre os motivos do mundo que nos rodeia ("o porquê"), quando a ciência tenta explicar como funciona ("o como").
Um exemplo curioso é a ideia de "karma" indiano, a explicação de porque é que algumas pessoas parecem ter mais ou menos sorte na vida do que outras sem qualquer motivo aparente - este é um exemplo do porquê (o tal motivo). Esta questão do porquê não faz sentido em ciência. É o chamado principio antrópico: "as coisas são como são, senão seriam de outra maneira", e não existe um motivo inerente.
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ResponderEliminarPor falar nas entidades reguladoras do universo. Precisamos urgentemente de um post sobre mafaguinhos, Ludwig.
Carlos Soares,
ResponderEliminar«a ciência é a evidência da existência de Deus, ou, pelo menos, o fenómeno da racionalidade, da ciência e da inteligência só faz sentido e todo o sentido se assumirmos a existência de Deus.»
Nem por isso. Em circunstâncias nas quais a capacidade de criar modelos internos correctos daquilo que rodeia um organismo melhore a probabilidade desse organismo se reproduzir, haverá uma pressão selectiva para desenvolver e aperfeiçoar essas capacidades. Ao que tudo indica, a nossa espécie surgiu numa linhagem que evoluiu nessas circunstâncias. Daí que não seja estranho que tenhamos alguma capacidade para compreender a realidade.
Não é uma capacidade perfeita, como atestam os muitos milhões de pessoas que ainda acreditam em Deuses, mas é o que se espera de um processo imperfeito como a evolução. Não é preciso inventar espíritos, deuses ou bruxarias para ter uma ideia acerca de como isto aconteceu.
Ludwig,
ResponderEliminarao que tudo indica o que sabes acerca da realidade é muito pouco, tão pouco que não te permite concluir o que concluis sempre. As tuas conclusões sabemos de antemão, ainda antes de apresentares os argumentos. Resultado: não adianta ler o que escreves. Repetitivo.
Bem faz o Criacionismo bíblico em responder-te «ad nauseam».