domingo, novembro 30, 2014

Argumentos

Argumentar é exprimir um raciocínio e, qualquer que seja o tema, do direito à ciência ou da astrologia aos raptos por extraterrestres, sempre que alguém quer mostrar como se chega a uma conclusão tem de argumentar. Por exemplo, o Mats argumenta que a teoria da evolução é incompatível com a ciência, propondo que «A ciência pressupõe que o universo é lógico e ordenado» e que só se pode assumir isto porque «Deus fez todas as coisas», «impôs ordem no universo» e «a Bíblia ensina que Deus sustém todas as coisas através do Seu Poder». O argumento pode ser válido. Se a ciência assumir algo que exige as premissas do criacionismo, então a teoria da evolução será incompatível com a ciência. Mas isto não basta para aceitar a conclusão.

Um argumento finito tem necessariamente de começar por premissas, implícitas ou explícitas, que assume sem justificar. Portanto, para avaliar um argumento é preciso também considerar se as premissas são aceitáveis. O argumento do Mats falha nisto, logo na primeira premissa, porque a ciência não presume que «o universo é lógico e ordenado, e que ele obedece a leis matemáticas que são consistentes ao longo do tempo e do espaço.» A ciência pergunta se, e em que condições, é que isto pode ocorrer. A distância a que o berlinde cai depende da velocidade e ângulo com que o atiramos, consistentemente e de forma previsível. Esta é uma regularidade que podemos aproveitar. Um átomo de urânio 238 transforma-se em tório 234 sem causa alguma nem qualquer indício prévio. Neste caso, não se pode estimar mais do que uma probabilidade de decaimento em função do tempo. E assim por diante.

Mas há ainda outro aspecto da avaliação de um argumento, muitas vezes descurado. Cada argumento parte de premissas escolhidas por quem o formulou e estas não são necessariamente todas as premissas relevantes. O Mats assume que a regularidade do universo se deve ao deus do cristão evangélico, deixando de parte uma imensidão de alternativas que inclui todas as outras religiões e todas explicações naturais para as regularidades observadas.

Em ciência há dois truques para que não se descure estes aspectos. O primeiro é a secção “materiais e métodos”, na generalidade dos artigos científicos, onde se descreve em detalhe como se aferiu a verdade das premissas. O que se mediu, experimentou e observou. Isto não só reduz o risco de se partir de premissas falsas como também facilita a verificação independente daquilo que foi assumido no argumento. A teologia é um bom exemplo de como a dedicação exclusiva ao rigor lógico dos argumentos, descurando a validação das premissas, resulta em resmas de papel com inferências detalhadas ligando pressupostos sem fundamento a conclusões ridículas. Admito que há argumentos interessantes cujas premissas não podem ser testadas à parte mas, nesses casos, há que reconhecer que isso fragiliza muito o argumento. O segundo truque da ciência é chamar a qualquer argumento “uma hipótese”. Isto salienta que se trata apenas de uma entre muitas possibilidades, focando somente um sub-conjunto da informação que possa ser relevante, e que não deve ser avaliada sem ser confrontada com hipóteses alternativas.

Descurar alternativas é um erro comum não só na teologia e outras tretas mas até na filosofia da religião, talvez pela ênfase na análise minuciosa de cada argumento. Por exemplo, é comum a ideia de que basta haver argumentos “sérios” em favor de uma conclusão para ser racional aceitá-la como verdadeira. Isto é um erro porque o racional será optar pelo melhor argumento, assente no conjunto mais abrangente de premissas independentemente verificáveis. Não é racional aceitar uma conclusão com base num argumento descurando outro melhor que aponta o contrário. O exemplo mais saliente é a tese da criação do universo por parte de um ser inteligente e sobrenatural. Há vários argumentos a favor dela, mas todos exigem uma selecção tendenciosa e muito limitada das premissas. Quando consideramos todos os dados disponíveis, não só as várias crenças religiosas mas também o que sabemos da física da formação do universo e da psicologia e sociologia das religiões, a melhor explicação para tudo isto é a de que a hipótese de criação sobrenatural não passa de uma ficção humana, uma ficção comum e bem ilustrada pelas teses que o Mats defende.

É verdade que a tendência humana para inventar deuses não prova que os deuses não existem. Da mesma forma como as pessoas que alegam terem sido raptadas por extraterrestres serem mais susceptíveis à criação de memórias falsas não prova que não ande aí algum ET a raptar gente (2). No entanto, estes dados apoiam melhor explicações alternativas que não exigem seres sobrenaturais ou extraterrestres raptores. Racionalmente, essas são as conclusões preferíveis. Para compreender isto é preciso ir além da análise de cada argumento. Não basta aferir se o argumento é válido, assumindo as premissas, e se é sólido, com premissas que se pode admitir serem verdadeiras. É preciso também determinar se não há alternativas melhores, com premissas mais fundamentadas e que não deixem de fora dados relevantes. O criacionismo é um exemplo extremo do erro de olhar para cada coisa com palas a tapar o resto, mas há outros casos. Alguns disfarçam melhor pela diligência com que examinam cada argumento mas descuram à mesma a natureza hipotética da argumentação. Quando se avalia um argumento é importante ter em conta que um argumento não aponta a verdade. Aponta apenas uma hipótese possível se as premissas forem verdadeiras e não houver outros indícios contraditórios. É como hipótese que qualquer argumento deve ser avaliado, e sempre no contexto das outras hipóteses com as quais concorre.

1- Mats, Evolução: a teoria anti-científica
2. Clancy et al, Memory distortion in people reporting abduction by aliens., J Abnorm Psychol. 2002 Aug;111(3):455-61.

domingo, novembro 23, 2014

Treta da semana (passada): o muro da defesa

O que defendo acerca do papel do Estado na economia e na redistribuição de riqueza devia aproximar-me do PCP. Também o contacto que tive com o partido, se bem que apenas com um deputado e a propósito do copyright, devia contribuir para esta aproximação pela boa impressão que me deixou. No entanto, surge sempre o problema do núcleo do PCP ser controlado por pessoas que vivem num universo tão estranho que nem as minhas quatro décadas de infância* como fã da Marvel me ajudam a compreender. Este é um problema que vai desde o mais genérico, como o slogan da CDU (“Uma Política Patriótica e de Esquerda”) até detalhes como o de não saberem se o regime da Coreia do Norte é opressivo ou pérolas como o comunicado a propósito das celebrações da queda do muro de Berlim. Começa assim:

A chamada «queda do muro de Berlim»
[...]Perante a campanha anticomunista de intoxicação da opinião pública desencadeada a pretexto da passagem de 25 anos sobre a chamada «queda do muro de Berlim», o PCP considera necessário afirmar o seguinte:
(1)

E depois piora.

Segundo o PCP, celebrou-se «a anexação [...] da [República Democrática Alemã] pela República Federal Alemã». O termo “anexação” é pouco adequado aqui. Um exemplo que ilustra melhor a situação que se vivia até 1990 foi o que aconteceu em 1989 quando a Hungria desmantelou o seu muro, uma vedação guardada de 150km que impedia a passagem para a Áustria. Assim que isso aconteceu, milhares de alemães de leste que estavam na Hungria passaram para a Áustria, de onde puderam livremente viajar para a Alemanha. A outra Alemanha. Meses antes do desmantelamento oficial desta vedação, num “Picnic Pan-Europeu” organizado entre austríacos e húngaros, centenas de alemães de leste aproveitaram para se pirar pelo pequeno buraco (2). O que aconteceu à Alemanha em 1945 não foi uma divisão em dois países. Foi uma divisão em duas administrações, uma pelos aliados e outra pelos soviéticos. Os aliados rapidamente deixaram os alemães do seu lado decidir o que fazer da vida mas os soviéticos só largaram o osso em 1990. O muro caiu como baixam os braços de quem já não está na mira da metralhadora.

Acrescenta aínda o PCP que «É necessário desmascarar a hipocrisia daqueles que, clamando contra o muro erguido em Berlim pelas autoridades da RDA, têm construido e continuam a construir barreiras do mais variado tipo (sociais, raciais, religiosas e outras) por esse mundo fora, incluindo muros físicos, intransponíveis de que o exemplo mais brutal é o muro erguido por Israel para cercar e aprisionar o povo palestiniano na sua própria pátria». Eu também sou contra barreiras à imigração. Não me parece eticamente defensável a tese de que alguém nascido do outro lado de uma fronteira tem menos direito às oportunidades que eu tenho só porque eu nasci deste lado. Mas essas barreiras são uma consequência inevitável de qualquer política patriótica, porque o patriotismo é precisamente a doutrina de que “nós”, aqui, valemos mais do que “eles”. Parece-me hipocrisia defender políticas patrióticas e ser contra barreiras à imigração, e é uma das razões pelas quais rejeito o patriotismo. Primeiro as pessoas.

Mas mais preocupante que esta contradição é o PCP não perceber, ou não querer perceber, como o muro de Berlim, e toda a cortina de ferro, eram diferentes dos muros de Israel na Palestina, dos EUA na fronteira com o México ou da Espanha em Marrocos. Estes últimos são muros criados por governos a mando das pessoas que representam e que não querem que os pobres lhes venham estragar o ambiente. O muro de Berlim foi criado por um regime contra as pessoas que governava porque sem o muro elas piravam-se. A característica mais preocupante do núcleo dirigente do PCP é a incapacidade notável de distinguir entre governar de acordo com a vontade do povo e governar atropelando o povo na defesa de alguma pseudo-ideologia mais demagógica do que concreta.

Dizer que «o socialismo é mais actual e necessário do que nunca» parece-me injusto para com os trabalhadores da revolução industrial, que sofreram consideravelmente mais do que sofrem os seus congéneres de hoje. Mas concordo que o socialismo é actual e necessário e agradeço o esforço de todos os que tornaram a nossa sociedade tão socialista. Quem critica a esquerda fá-lo normalmente ignorando que muito do que todos tomamos como garantido, desde a segurança social à liberdade de associação e da escola pública ao acesso universal à justiça, são invenções de esquerda. Mas discordo desta dicotomia de que «o futuro da Humanidade não é o capitalismo mas o socialismo e o comunismo.» O futuro da Humanidade exige que se respeite a vontade das pessoas em vez de construir muros para as manter na linha e é um facto incontornável que o capitalismo agrada a muita gente. Por isso, o que temos de fazer é garantir que há socialismo suficiente para equilibrar as injustiças do capitalismo e de resto deixar as pessoas viver a sua vida à vontade. O que se perde em pureza ideológica é mais do que compensado pelo que se poupa em holofotes e arame farpado.

* Não, não é gralha. É honestidade.

1- Avante, A chamada «queda do muro de Berlim»
2- Wikipedia, Pan-European Picnic

sexta-feira, novembro 21, 2014

Ciência (e a escova de dentes)

Depois de anos de posts sobre ciência e religião, já é altura de esclarecer o que quero dizer com estes termos. Hoje vou começar pelo primeiro. O outro fica para uma próxima oportunidade. Definições de “ciência” como «um empreendimento sistemático que constrói e organiza conhecimento na forma de explicações testáveis»(1) ou «sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico»(2) não me satisfazem. São como dizer que uma escova de dentes é um cabo de plástico com cerdas na ponta. Mesmo sendo verdade, adianta de muito pouco. A ciência e a escova de dentes foram criadas com certos objectivos em vista e percebe-se melhor o que são se focarmos aquilo para que foram concebidas. A escova de dentes é uma escova que serve para lavar os dentes e

A ciência é a procura por uma explicação consistente para a realidade enquanto objecto.

Isto não traça uma fronteira precisa entre o que é ciência e o que não é ciência. Seria uma tarefa fútil. A escova de dentes é muito mais simples do que a ciência e, mesmo sendo claro que uma escova com cinco metros de diâmetro não dá para lavar os dentes, ainda assim não se consegue determinar, ao milímetro, com que tamanho a escova deixa de ser de dentes. Também na ciência há uma forma ideal, outras claramente inadequadas e uma zona intermédia de eficácia decrescente onde qualquer fronteira será arbitrária e subjectiva. Por isso, prefiro apresentar o conceito pelos objectivos e deixar os detalhes em aberto.

A ciência é uma procura. É uma enorme investigação distribuída por milhões de pessoas que, há séculos, andam que nem baratas a vasculhar tudo. Esta ideia da ciência como trabalho de pesquisa é muito melhor do que focar características acessórias como “resultados empíricos reprodutíveis” ou “hipóteses falsificáveis”. Além de ser a razão fundamental de toda essa bijuteria, permite perceber que a ciência não se define pela crença dogmática num conjunto de hipóteses. Em ciência, quaisquer hipóteses que se considere verdadeiras, e quaisquer métodos que se considere válidos, sê-lo-ão apenas como consequência do que se vai descobrindo. Para grande frustração de alguns filósofos que andam há décadas a tentar pregar a sopa ao prato.

Acerca das explicações, recomendo a palestra TED do David Deutsch (3) mas, se não tiverem quinze minutos, o que quero dizer por “explicação” é uma descrição que não só nos diz como as coisas são mas também especifica por que razões têm de ser assim. O relato da criação no livro do Génesis é uma descrição que não explica. Descreve quando Deus terá criado cada coisa mas deixa em aberto a possibilidade de ter sido tudo completamente diferente. Podia ter piscado os olhos e pronto. Podia ter demorado milénios. Podia ter começado pelas latas de pêssego em calda. A cosmologia, a geologia e a teoria da evolução não só descrevem o que aconteceu em mais detalhe como restringem muito mais o que poderia ter acontecido. Não podia haver água antes de haver estrelas porque não haveria oxigénio. Não podia haver baleias antes dos mamíferos terrestres dos quais descenderam. E assim por diante.

A ciência procura uma explicação consistente porque todas as explicações que vai encontrando têm de encaixar numa estrutura conceptual sem contradições. Partes da ciência podem focar aspectos diferentes, até porque não é prático modelar o comportamento das abelhas ao nível da mecânica quântica. Mas qualquer contradição será um problema a resolver e nunca uma solução aceitável. A ideia de haver milagres é incompatível com a ciência porque exige aceitar que as coisas funcionem normalmente de certa forma mas que, quando um deus quer, as regras se suspendam para um vale tudo excepcional. Mesmo que algumas pessoas fossem realmente curadas por intervenção divina, a medicina só daria o problema como resolvido quando encontrasse uma explicação que incluísse tanto os curados quanto aqueles que o deus deixasse morrer (4). Uma explicação consistente em vez de um pote de alhos e bugalhos.

Acerca do conceito de realidade podia dizer que é muito discutido em filosofia. Mas como isso é verdade para quase tudo, não seria informativo. De uma forma pragmática, a realidade é aquilo que pode demolir as nossas conjecturas e o que leva mesmo os anti-realistas mais ferrenhos a evitar sair pela janela do 10º andar. Como é isso que a ciência visa explicar, tudo o que se assuma como ficção fica de fora. Além disso, a ciência tem de explicar a realidade numa perspectiva neutra. Proposições como “gosto de ervilhas” têm um valor de verdade que depende do sujeito que as profere e, por isso, não encaixam numa explicação consistente para tudo. Para lidar com esta informação, a ciência tem de descartar a perspectiva subjectiva e tratar o sujeito como um objecto. “O Ludwig gosta de ervilhas” já serve. Fundamentalmente, é esta exigência que impede a ciência de modelar certos aspectos da ética, da estética ou de experiências pessoais. É uma limitação bem menor do que muitos apregoam, mas é uma limitação, determinada pelo objectivo de obter uma explicação consistente para a realidade.

Isto, proponho, é o que interessa. O resto é consequência ou acessório. Ou, por vezes, mera tentativa de abrir buracos na ciência para se poder alegar que “não interfere” numa treta qualquer que se quer defender. Por isso, desconfiem de definições de ciência que só dêem detalhes arbitrários sem considerar para que é que a ciência serve. Afinal, um cabo de plástico com cerdas na ponta também pode ser uma piaçaba.

1- Wikipedia, Science
2- Wikipedia, Ciência
3- TED, David Deutsch: A new way to explain explanation.
4- Isto seria inaceitável em ciência: S. Harris, Then a miracle occurs...

sábado, novembro 15, 2014

Treta da semana (passada): evidência anedótica

Em resposta a um texto de Carlos Fiolhais, no qual este criticou a homeopatia (1), Paulo Varela Gomes alegou estar «profundamente zangado» porque o «ataque à homeopatia não tem pés nem cabeça, é insultuoso, mentiroso, e demonstra uma ignorância inacreditável»(2). À parte de uma vaga referência a «rígidos e incrédulos cientistas» e «perfiladas instituições académicas», Gomes justifica a sua acusação com uma experiência pessoal. «Houve um dia em que acordei de manhã com um alto no pescoço. […] era um cancro de grau IV – ou seja, letal. Metástases na cadeia linfática, etc. Consultei vários oncologistas aqui e ali e até acolá (no estrangeiro): três a quatro meses de vida. […] Isto foi no final de Maio de 2012. [...] Em poucas palavras: tenho dois anos e meio de qualidade de vida por cima da sentença de morte ditada pelos oncologistas da medicina oficial.» A causa do milagre, segundo Gomes, é que «tenho sido acompanhado pela medicina homeopática». Perante tal tragédia, custa criticar o raciocínio. Fiolhais fê-lo com uma diplomacia exemplar (3). No entanto, penso que a tese de Gomes merece ser mais dissecada mesmo sacrificando algum tacto diplomático.

Se uma pessoa tomar um medicamento homeopático e morrer no dia seguinte não se justifica, só por isso, considerar que o medicamento homeopático é um veneno mortal. Como Fiolhais aponta, «um caso particular não permite tirar conclusões» porque, «Quando observamos um efeito, para lhe atribuirmos uma causa específica temos que excluir as restantes causas possíveis»(3). Não é uma tarefa fácil. Na prática, a relação causal é complexa, probabilística, e nunca conseguimos cobrir absolutamente todos os factores. Quando se diz que o tabaco causa cancro o que se quer dizer é que, sendo o resto aparentemente constante dentro do que podemos observar, o fumador tem uma probabilidade de cancro maior do que teria se não fumasse. Ou seja, o tabaco é um factor causal com um efeito estatisticamente significativo. Por isso, para determinar causas é preciso observar vários casos, tantos mais quanto mais fraca for a relação causal entre os factores que monitorizarmos. Só assim podemos encontrar as correlações, mais fortes ou mais fracas, que uma relação causal origina.

Mas a mera correlação não basta porque a noção de causalidade não é apenas acerca daquilo que ocorre. É também uma afirmação acerca daquilo que hipoteticamente teria acontecido se o factor causal se tivesse alterado. Por exemplo, a correlação entre a incidência de doenças respiratórias e o número de cinzeiros no domicílio não demonstra que ter cinzeiros cause doenças respiratórias ou, ainda mais estranho, que doenças respiratórias causem a posse de cinzeiros. Porque não se espera que a incidência de doenças respiratórias seja diferente daquilo que seria se, hipoteticamente, tirássemos ou oferecêssemos cinzeiros às pessoas sem alterar mais nada. Neste caso, a correlação surge apenas por haver um outro factor causal comum e não por uma relação causal entre os factores observados. Este carácter contrafactual da causalidade obriga-nos a ir além da mera correlação para poder identificar relações causais.

Não sendo possível voltar atrás no tempo para comparar cenários hipotéticos alternativos com os mesmos indivíduos – por exemplo, para ver o que teria acontecido a Gomes se não tivesse tomado medicamentos homeopáticos – é preciso simular essa comparação usando grupos diferentes mas equivalentes. Por exemplo, se quisermos testar o efeito de um produto químico na fertilidade de uma espécie de mosca podemos usar dois grupos de moscas, em recipientes separados. Um, o grupo experimental, fica exposto ao composto a testar. O outro, o grupo de controlo, será criado em condições idênticas ao primeiro em tudo excepto na ausência desse composto. Se as moscas forem atribuídas a cada grupo aleatoriamente e não variarem outros factores, então qualquer correlação observada será um bom indício de uma relação causal.

É isto que se faz em ensaios clínicos, mas com o problema adicional de se lidar com pessoas. As moscas são mais fáceis de manipular e o número de descendentes de cada geração é um indicador objectivo. As pessoas são muito mais inteligentes e seguir a evolução de uma doença exige considerar sintomas que o doente reporta e que o médico tem de classificar, tarefas que envolvem muitas decisões subjectivas. Por isso, nos ensaios clínicos é necessário que nem o paciente nem o médico que o avalia tenham qualquer indício do grupo – experimental ou controlo – no qual o doente foi colocado. Caso contrário, estaremos a introduzir outras correlações que irão influenciar o resultado. Isto faz com que um ensaio clínico fiável seja muito difícil de implementar, na prática, porque a nossa espécie é notoriamente matreira e sensível a pequenos detalhes. Basta uma pequena diferença na postura do enfermeiro que injecta o medicamento (ou placebo) no saco de soro para que o paciente perceba em que grupo está. E, quando se trata de pessoas com doenças terminais, como o cancro, é muito difícil que um ser humano reaja da mesma forma quando administra uma droga experimental que é a última esperança daquela pessoa ou quando administra um placebo que sabe não vai adiantar de nada.

O princípio homeopático das diluições é tão contrário ao que sabemos como a possibilidade de voar agarrando as botas e puxando-as para cima. Se as evidências para qualquer destes efeitos forem suficientemente sólidas, será sensato rever os princípios que nos dizem que isto é impossível. Mas têm de ser mesmo sólidas. E não são. O que acontece na homeopatia é que a suposta relação causal diminui conforme aumenta a qualidade dos ensaios clínicos, o que sugere que os resultados estão a ser afectados por outras correlações e não pela relação causal procurada (4). Por isso, e ao contrário do que Gomes implicitamente defende, não se justifica ainda descartar tudo o que sabemos da química para declarar que a homeopatia funciona.

1- Público, Ciência diluída
2- Público, Carta aberta a Carlos Fiolhais
3 – Público, Ainda a ciência diluída
4- Shang et al, 2005, Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects? Comparative study of placebo-controlled trials of homoeopathy and allopathy.Lancet. 2005 Aug 27-Sep 2;366(9487):726-32.

terça-feira, novembro 11, 2014

O piropo e a lei.

Um vídeo com os comentários que alguns homens dirigiram a uma mulher que caminhava por Nova Iorque (1), apesar de ter suscitado algumas críticas (2), tem estimulado uma discussão acesa sobre este assunto. Infelizmente, a discussão tem sido pouco esclarecedora porque não foca o verdadeiro problema. Assume que o mal é o piropo ou a arrogância dos homens que se metem com as mulheres (3), o que faz naturalmente confusão a qualquer homem que se imagine na posição delas. Se as mulheres se dirigissem aos homens na rua com piropos ou propostas de teor sexual, quer fosse um singelo “estás lindo” quer fosse um “chupo-te todo”, não era provável que muitos homens se considerassem vítimas de assédio e os que o fizessem seriam gozados pelos outros. No entanto, a mera inversão de actores não inverte a situação porque o problema fundamental é outro.

Segundo as estatísticas da APAV sobre crimes sexuais, aproximadamente 95% dos agressores são homens e 95% das vítimas são mulheres (4). Este é apenas um indicador, entre muitos, daquilo que é óbvio. As diferenças físicas entre homens e mulheres estão associadas a diferenças comportamentais que vão desde disposições até escolhas deliberadas. As hormonas que determinam as características sexuais físicas também influenciam o sistema nervoso. A possibilidade de engravidar ou de ser enganado a criar um filho que não é seu diferem entre homens e mulheres. Factores como estes levam a diferenças médias de atitude na relação com o sexo oposto. Infelizmente, há uma grande relutância em admitir a importância destes factores por se confundir o seu fundamento biológico com determinismo ou por se temer que a biologia venha a justificar o mau comportamento. É um disparate. O facto de alguém ser mais forte ou agressivo não lhe dá o direito de bater nos outros. Pelo contrário. E é evidente que a educação e a sociedade podem moldar estes comportamentos. A actriz caminhou dez horas em Nova Iorque e, apesar dos piropos, ninguém lhe tocou. Em Kabul ou Jabalpur o resultado poderia ter sido bem diferente.

Discute-se a legitimidade do piropo quando o problema é as mulheres se sentirem ameaçadas pela atenção indesejada. Mesmo que, objectivamente, o verdadeiro perigo seja o ex-namorado e não um estranho numa rua cheia de gente, a verdade é que estes piropos só servem para uns parvos se sentirem mais machos assustando as mulheres que lhes passam à frente. Apesar do respeito pela liberdade de expressão e do “és muita gira”, por si só, ser inócuo, isto não é aceitável e devemos educar as pessoas para que não aconteça e, principalmente, para que não surta este efeito se acontecer.

No entanto, considero um erro atacar o piropo com legislação, como propõe a Fernanda Câncio (4). A lei é um instrumento demasiado grosseiro para regular algo tão subjectivo como o hipotético delito de piropo na via pública. Além disso, o verdadeiro problema é muito mais complexo e não se resolve multando os piropeiros de rua. Mas estas objecções são secundárias. A principal é outra.

Câncio relata uma experiência determinante para a sua reacção aos piropos. «Tinha uns 12 anos, vinha do liceu e um homem com idade para ser meu avô disse, quase ao meu ouvido: "Lambia-te toda."» Eu também tive experiências desagradáveis com essa idade. Uma vez, à saída da escola, três ciganos deram-me uns pontapés e levaram-me o dinheiro e os bilhetes para o autocarro. Tive de voltar a pé para casa. Outra vez foi um cigano com um canivete. Esse só me levou um bilhete de autocarro porque eu já tinha aprendido a não levar dinheiro, e nem tive de voltar a pé porque levava outro bilhete escondido no forro do casaco. Noutra ocasião, eu e o meu irmão mais novo tivemos de fugir de uma meia dúzia de ciganos que vieram a correr atrás de nós, a atirar pedras e a ameaçar bater-nos. Não chegámos a apurar se a ameaça era para cumprir, mas a fuga custou o pacote de leite que o meu irmão teve de largar pelo caminho. Por estas e outras, se um cigano hoje me perguntar “tens trocos?” eu tenho tanta razão para ter receio como Câncio terá se um homem lhe disser “és toda boa”. Mas sou contra punir os ciganos que perguntem se alguém tem trocos porque isto seria punir algo objectivamente inofensivo apenas porque quem o faz é parecido com outros que cometeram crimes. Por muito desagradáveis que tenham sido as minhas experiências com ciganos quando era miúdo, não concordo que se descarte a presunção de inocência só por isso.

Infelizmente, é verdade que há homens que agridem mulheres. Por isso, as mulheres têm alguma razão em sentir receio de homens estranhos que mandem piropos. Não muita razão, mas certamente alguma. Tal como eu teria razão para ter medo de ciganos. No entanto, não é justo pintar todos com o mesmo pincel e menos ainda castigar quem não faz nada de objectivamente danoso só porque outros do mesmo grupo são criminosos. Câncio escreve que «Contra a penalização formal destes comportamentos ridiculariza-se; alega-se o não terem "dignidade penal", ou até a "defesa da liberdade de expressão"» mas o problema principal não é esse. O problema principal é que “és boa todos os dias” só parece ameaçador porque uns brutos com órgãos sexuais parecidos com os do piropeiro esfaquearam a mulher ou a ex-namorada. É uma razão inadequada para punir legalmente algo que, a menos desse paralelo, não passaria de má educação.

1- Youtube, 10 Hours of Walking in NYC as a Woman
2- Nomeadamente, por parecer racista. E.g. Women Of Color React To That Viral Catcalling Video.
3- Por exemplo, nesta entrevista: Meet the woman from NY street harassment video
4- DN, Boas todos os dias

domingo, novembro 09, 2014

Treta da semana (passada): dez questões.

O Mats traduziu um artigo criacionista propondo «10 questões que todo evolucionista tem [de] saber responder»(1). É um truque comum. Como responder dá mais trabalho do que inventar perguntas disparatadas, conseguem dar a impressão de que a ciência é uma trapalhada. É especialmente prático quando fingem que não há respostas ou quando apresentam mentiras como se fossem perguntas. Por exemplo, «Porque é que a ciência demonstra que todas as espécies animais têm limites rigorosos em torno do quanto que eles (ou o seu ADN) se pode alterar». Não há “limites rigorosos” que impeçam o ADN de uma espécie de se tornar no ADN de outra pela acumulação de mutações. Talvez aproveite outras destas perguntas mais tarde mas, por agora, fico-me pela primeira, que já dá para um post.

«Porque é que a ciência diz que a vida evoluiu de matéria sem vida mas por outro lado declara que a geração espontânea é impossível?

Até há uns séculos, era fácil assumir que o pão ganhava bolor ou que apareciam larvas de mosca na carne podre porque brotavam espontaneamente da matéria em decomposição. Era senso comum que organismos aparentemente tão simples fossem um produto da decomposição e não seria razoável que Deus passasse os dias a criar bolor ou larvas de insecto em tudo o que apodrecia. A conclusão era de que os organismos complexos teriam sido criados por um deus mas a bicharada e o bafio surgiam por geração espontânea.

Com o tempo, descobriu-se que mesmo os seres vivos mais pequenos são imensamente complexos e mostrou-se que o que toda a gente julgava saber estava errado. As larvas da mosca vinham de ovos de mosca e não da carne podre. Não se formavam seres vivos espontaneamente de um momento para o outro. Por outro lado, Deus também foi explicando cada vez menos. Por exemplo, se no Paraíso não havia morte não se percebe porque teria criado tantas espécies dependentes da putrefacção. A teoria da evolução resolveu este dilema, mostrando como a geração de vida pode ser espontânea, no sentido de não precisar do acto consciente de um criador, mas sem exigir que algo tão complexo como um ser vivo se forme de uma assentada, pela combinação súbita e improvável dos elementos que o constituem.

A teoria da evolução é, em abstracto, um esquema para gerar modelos de certas populações. Nomeadamente, populações de algo que se replica e que herda características que afectem a probabilidade de replicação. Nessas condições, a teoria da evolução permite compreender, descrever e prever como a população muda ao longo do tempo. Tanto faz que seja de seres vivos, como bactérias, moscas ou humanos, ou de seres inanimados, como vírus, moléculas ou até sequências de bits no computador. A ideia fundamental é que quaisquer mutações que reduzam a probabilidade de replicação tenderão a ser eliminadas e quaisquer mutações que aumentem a probabilidade de replicação tenderão a fixar-se na população. Assim, mesmo que as mutações benéficas sejam muito minoritárias, com o passar das gerações a população vai evoluir para uma população de entidades mais aptas para se reproduzirem naquele ambiente.

O problema da ideia original da geração espontânea era exigir que seres complexos surgissem subitamente. Evidentemente, não é plausível que larvas de mosca surjam da carne podre de um dia para outro. Para isso teria de haver um deus a fazer milagres ou ir lá uma mosca pôr ovos. A experiência de Pasteur confirmou que a segunda hipótese é a correcta. Mas algo é espontâneo quando ocorre sem que seja preciso uma causa especial. Não é preciso ser rápido. E a teoria da evolução explica como as moscas, e todas as outras espécies, surgiram de forma espontânea a partir da interacção de moléculas simples. Não sabemos ainda os detalhes – há vários candidatos para essa “sopa” inicial e muitos pormenores por deslindar – mas os traços gerais do mecanismo são claros. A partir de replicadores simples, a acumulação de mutações ao longo de milhares de milhões de gerações foi gerando replicadores cada vez mais eficazes, muitos dos quais são tão complexos que dizemos estarem vivos.

Em suma, o que a ciência diz é que a vida surgiu da matéria inanimada de uma forma espontânea, sem milagres, deuses ou causas sobrenaturais. A hipótese antiga da geração espontânea apenas foi descartada porque subestimava, em várias ordens de grandeza, o tempo que esse processo exigiu.

1- Mats, 10 questões que todo evolucionista tem que saber responder

quinta-feira, novembro 06, 2014

Filosofia da compatibilidade.

A filosofia da religião podia ajudar-nos bastante com alguns problemas. As religiões têm influência no comportamento das pessoas e levantam questões éticas que não devemos ignorar. Se uma religião merece um estatuto diferente de outras associações de pessoas, se sim então como podemos decidir o que é uma religião, se pode ser o Estado a decidir tais coisas e assim por diante. Este é um tipo de perguntas que a filosofia permite explorar e onde a filosofia ajuda a delinear as respostas que procuramos. Infelizmente, parece-me que a maioria dos filósofos da religião se dedica ao problema irrelevante da existência de um deus abstracto que nada tem que ver com as religiões. Não é Jahve, Allah, Buda nem Krishna. É “uma causa sem causa” ou “uma necessidade metafísica” a quem ninguém acende uma vela.

O Domingos Faria resumiu recentemente alguns argumentos que ilustram este problema. Defendem que a hipótese de um deus ser responsável por toda a criação é logicamente compatível com a teoria da evolução (1). Resumidamente, o ponto fundamental é que não há contradição lógica entre a tese de que os organismos evoluem pela acumulação de mutações e a tese de que um deus guia o processo desde que o faça às escondidas. Se bem que isto seja verdade, falha por completo o mais importante.

Há uns anos a minha televisão avariou-se. Pesquisando pela Web, descobri que o problema era um defeito nuns condensadores e, em vez de a deitar fora, reparei-a substituindo os condensadores. Quero primeiro apontar que não há incompatibilidade lógica entre “reparei a televisão” e “deitei fora a televisão”. É logicamente consistente arranjar a televisão e depois deitá-la fora. Mas é importante apontar também que isso seria o que os ingleses chamam de missing the point e os portugueses, menos subtis, chamam de parvoíce. É este o problema que assola boa parte da filosofia da religião.

Tal como a generalidade das explicações científicas, a teoria da evolução tem três características importantes. Primeiro, assenta em premissas independentes da teoria. A replicação do ADN, as mutações, a selecção natural, a hereditariedade e afins podem ser confirmadas sem assumir que a teoria está correcta. Em segundo lugar, a teoria da evolução explica o que é mais difícil de compreender recorrendo a elementos mais fáceis de compreender. Por exemplo, explica a evolução das baleias pela acumulação de pequenas mutações sob pressão selectiva, ao longo de muitas gerações. Finalmente, a teoria da evolução especifica em detalhe o que se pode observar na natureza se a teoria estiver correcta, o que permite extrapolar do que sabemos para prever algo de novo. As hipóteses de deuses sempre falharam nas duas primeiras características. O deus sempre foi assumido gratuitamente, sem evidências independentes que suportassem essa premissa, e explicar uma baleia invocando um deus não ajuda a perceber nada porque pretende explicar o difícil com algo impossível de compreender. O deus dos filósofos modernos é ainda pior porque falha até na terceira característica. As hipóteses religiosas de criação divina ainda diziam alguma coisa, se bem que fossem erradas. A hipótese deslavada da filosofia da religião nem sequer errada consegue ser.

O estudo filosófico da compatibilidade lógica desta hipótese com o resto da ciência é trivial porque a hipótese é concebida, à partida, para permitir tudo. Se esse deus pode fazer tudo, a hipótese dele existir é compatível com o que quer que se observe. Mas é precisamente por isso que a devemos rejeitar. Logo à partida, isto coloca-a a par com infinitas alternativas igualmente compatíveis com tudo, como os duendes invisíveis da carga do electrão e os gnomos transdimensionais da gravidade. Mas, principalmente, porque conjugar essa hipótese com as teorias científicas estraga tudo o que estas têm de bom. Deixam de estar assentes apenas em premissas empiricamente fundamentadas. Deixam de poder explicar o que é difícil de entender com recurso a elementos mais compreensíveis. E a mera possibilidade de um deus manipular tudo impede-as de prever o que quer que seja.

Este último ponto é muitas vezes descurado porque, na prática, ninguém leva a sério a hipótese desse deus existir. Mas, se considerássemos mesmo essa possibilidade, todas as teorias científicas deixariam de ter fundamento. Os modelos de genética de populações têm de assumir independência estatística entre mutações. A mera possibilidade de um ser inteligente controlar as mutações impede que se assuma isso. Quando se calcula a trajectória de um satélite tem de se assumir que ninguém vai mexer no satélite. Admitir a existência de um ser omnipotente que pode alterar a trajectória a gosto exclui essa premissa. Não é preciso assumir que Deus vai mesmo mexer nas coisas. Por vezes tentam descartar este argumento dizendo, sabe-se lá com base em quê, que Deus é um tipo porreiro e não nos vai dificultar a vida. O problema é que basta a possibilidade de Deus mexer nas coisas para retirar fundamento a qualquer modelo científico. Não há incompatibilidade lógica porque a hipótese em causa é concebida de forma a permitir tudo, mas ao permitir tudo a hipótese retira a justificação a premissas necessárias para extrapolar do que já observámos para o que ainda não sabemos.

Nada disto refuta a existência de Deus. O meu ponto é apenas que, se assumirmos que Deus existe, então a ciência vai toda para o lixo. A incompatibilidade não está numa contradição directa entre proposições mas na impossibilidade de justificar extrapolações num univero sujeito aos caprichos de um ser omnipotente. E, como a ciência vai funcionando cada vez melhor, graças a reparações constantes, é má ideia deitá-la fora.

1- Domingos Faria, A evolução natural é incompatível com o teísmo?
2- Eu, a Web, e praga dos condensadores.

domingo, novembro 02, 2014

Treta da semana (passada): não fazer publicidade.

No passado dia 21, o Clube de Filosofia Al-Mu'tamid organizou na Mesquita de Lisboa um debate sobre o Estado Islâmico. Naturalmente, David Munir, o xeque da mesquita, criticou o Estado Islâmico. O intrigante foi a forma como criticou essa organização criminosa que anda a massacrar populações, a escravizar, a torturar e a violar crianças, tudo em nome do islão. Segundo Munir, «à luz da religião o líder do Estado Islâmico não tem direito a declarar, como fez, a constituição de um califado, e insistiu que as bases do islão são de paz, não de guerra.»(1) Com tanto defeito a apontar, limitou-se a um detalhe técnico e um par de banalidades. É interessante pensar porquê.

Também na audiência questionaram o porquê dos representantes da comunidade islâmica não condenarem mais claramente as atrocidades daquele grupo. «"Vocês não sentem necessidade de uma demonstração de renúncia? Sei lá, um anúncio no jornal a dizer 'não tenho nada que ver com aquilo'?"» A resposta de Mahomed Abed, coordenador cultural da mesquita, foi de que «Ao ir pelo outro caminho estaríamos a fazer publicidade»(2).

Há várias razões para não ficar satisfeito com a resposta. Evitar a publicidade ao Estado Islâmico pressupõe que pouca gente tenha ouvido falar desse grupo, o que não é plausível. Pressupõe também que não falar no assunto contribua para resolver o problema de ter milhares de homens armados a cometer atrocidades no Iraque e na Síria, outra premissa que me parece incorrecta. Finalmente, organizarem um debate público sobre o Estado Islâmico contradiz claramente a tese de que não repudiam esse grupo apenas para evitar fazer publicidade. Tem de haver outra razão.

Uma diferença importante entre o islão e as outras religiões com mais aderentes é o seu livro sagrado. A Bíblia, os Vedas e os Sutras são compilações de textos muito diversos, de fontes diferentes e que os crentes aceitam como relatos inspirados mas que podem ser interpretados com alguma flexibilidade. Em contraste, o Corão é um texto muito mais uniforme, conciso e coerente e que os muçulmanos assumem como sendo uma recitação da palavra divina. Não tem partes que se possa descartar como alegóricas ou metafóricas nem se dá a grandes interpretações. Por exemplo, 4:89 expõe claramente como se deve lidar com quem abandona a fé: «Anseiam (os hipócritas) que renegueis, como renegaram eles, para que sejais todos iguais. Não tomeis a nenhum deles por confidente, até que tenham migrado pela causa de Deus. Porém, se se rebelarem, capturai-os então, matai-os, onde quer que os acheis, e não tomeis a nenhum deles por confidente nem por socorredor.»(3) No Antigo Testamento também há exemplos deste género, mas enquanto cristãos podem invocar que o Novo Testamento se sobrepõe ao antigo e judeus podem interpretar tais trechos como relatos históricos de práticas que já não se aplicam, para um muçulmano é muito mais difícil descartar as ordens do Corão enquanto mantém a fé neste livro como registo das palavras do seu deus.

Esta diferença tem consequências práticas. Não é certamente coincidência que os 23 países que punem explicitamente a apostasia como um crime estejam entre os 49 países de maioria muçulmana. Dos outros países, sejam seculares ou dominados por outras religiões, nenhum considera a apostasia um crime. A razão mais plausível não parece ser económica ou social. Parece ser a de que o islão tem um texto sagrado que é aceite como a palavra directa de Deus onde está explícito que se deve matar quem se rebelar contra esta religião.

Outra diferença importante é a vida e o legado do fundador da religião. Jesus pregou, rezou, ensinou e foi crucificado. Buda pregou, jejuou, ensinou e abandonou o seu corpo. Maomé unificou as tribos de Medina e conquistou Meca com um exército que depois enviou para destruir todos os templos das outras religiões na península arábica. Nos hadiths é-lhe atribuída a ordem de que «Quem quer que abandone a sua religião Islâmica, então matai-o»(4). Consumou o seu casamento com Aisha quando esta tinha nove ou dez anos (5). E assim por diante. Um muçulmano não pode descartar estas coisas como um cristão faz com as barbaridades do Antigo Testamento porque trata-se do Profeta, a peça central da sua religião. É tão difícil a um muçulmano condenar inequivocamente estas práticas pela barbaridade que são como seria a um cristão admitir que a história da ressurreição é fictícia.

Não é por medo da publicidade que os líderes dos muçulmanos moderados se limitam a acusar o Estado Islâmico, e extremistas afins, de meras falhas processuais como a de não ter «direito a declarar, como fez, a constituição de um califado». O problema é que aquilo que os extremistas fazem é cópia chapada do que fez o fundador do islão, e é impossível condenar os actos daqueles sem uma censura implícita aos actos deste. Censura essa que Maomé deixou bem claro como deve ser castigada.

PS: Se tiverem oportunidade, recomendo a entrevista que Sam Harris deu a Cenk Uygur. São três horas, mas vale a pena: Sam Harris and Cenk Uygur Clear the Air on Religious Violence and Islam

1- Público, A noite em que a mesquita de Lisboa se encheu para debater o Estado Islâmico
2- Expresso, Sheikh David Munir. "Nós não temos mesquitas clandestinas. Isso não existe. Vocês conhecem-nos"
3- eBookLibris, O Alcorão Sagrado
4- Center for Muslim-Jewish engagement (vis WebCite), Dealing with Apostates.
5- Wikipedia, Aisha.

sábado, novembro 01, 2014

Negativo e positivo.

Quando procuramos uma forma justa de resolver conflitos é útil distinguir dois tipos de direitos. Os direitos negativos, que correspondem, grosso modo, à liberdade de cada um agir conforme os seus interesses, e os direitos positivos, que correspondem à obrigação de terceiros agirem de acordo com os interesses do detentor desses direitos. Por exemplo, o direito à vida é um direito negativo, enquanto direito a não ser morto pelos outros, mas o direito à assistência médica é positivo porque exige que outros prestem esse auxílio. Apesar da distinção não ser sempre inequívoca, é útil ter em mente uma escala entre estes extremos porque os direitos negativos tendem a ser prioritários e mais fundamentais. O direito à protecção policial, por exemplo, é um direito positivo que se justifica por direitos negativos, como o direito à integridade física e à propriedade pessoal, e que obriga principalmente quem escolheu ser polícia. A proibição de agredir os outros toca a todos mas o dever de intervir numa rixa para deter o agressor não é igual para toda a gente. Como esta hierarquia subordina os direitos positivos aos negativos, quem exige direitos positivos em violação de direitos negativos de terceiros tende a querer confundir estas diferenças. A defesa do copyright está pejada desta manobra falaciosa (1), começando logo pela expressão “propriedade intelectual”.

A propriedade pessoal depende de um direito negativo: o direito do indivíduo não sofrer interferências no uso daquilo que é seu, como a sua casa ou a sua roupa. Mas se abandona uma casa ou um terreno agrícola já é questionável que vedar a terceiros o uso dessa propriedade seja um direito negativo, e tão fundamental como se se tratasse da casa onde reside. Mais distante ainda é o caso do proprietário de uma entidade financeira que detém uma cadeia de supermercados. Este direito de propriedade é claramente positivo porque o indivíduo só pode exercer controlo como proprietário com a colaboração activa de legisladores, tribunais e agentes da autoridade. Apesar da noção de propriedade ser sempre convencional, estas diferenças são importantes quando avaliamos direitos do proprietário. Os direitos que tem sobre o seu supermercado não são iguais aos que tem sobre o seu domicílio. Quando se diz que o autor tem o direito de proteger a sua propriedade intelectual parece invocar-se um direito negativo, fundamental, de que não mexam nas suas coisas. Que não o privem da sua roupa, nem lhe invadam a casa nem queimem os seus livros. Mas é falacioso inferir daqui que se deve coagir terceiros a não copiar ficheiros ou partilhar informação sem autorização do autor porque mandar nas coisas dos outros não tem nada que ver com direitos negativos de propriedade.

O direito à remuneração é outro exemplo desta falácia. Se alguém quiser ganhar dinheiro fazendo esculturas na areia tem o direito de ser remunerado pelo seu trabalho. Mas este é o direito negativo de não o impedirem de negociar com quem lhe queira pagar. Concessionários de restaurantes, produtores de cinema ou organizadores de festas na praia, por exemplo. Este direito negativo nunca justificaria punir com três anos de cadeia quem tirasse fotografias às esculturas sem autorização do escultor. Mesmo que tal lei visasse facilitar a remuneração, permitindo ao autor cobrar por cada foto, estaria longe de um direito de não interferência. Só com a colaboração activa de muita gente é que o autor poderia controlar o que cada pessoa, sentada na sua toalha, iria fazer com a sua máquina fotográfica. E este suposto direito de controlar a propriedade dos outros nunca se poderia sobrepor ao direito negativo de cada um usar a sua propriedade sem interferência. Invocar o direito à remuneração para justificar restrições à partilha de ficheiros é uma falácia por confundir o direito negativo de poder negociar uma remuneração com o direito positivo de coagir toda a gente a ajudar o autor a ganhar mais dinheiro.

A legislação de direitos de autor é produto de três séculos de braço-de-ferro entre uns poucos detentores dos meios de cópia e aqueles autores que tinham interesse em vender cópias. Ao contrário do que muitas vezes se presume, este conjunto de autores sempre ficou muito aquém de corresponder à totalidade das pessoas que contribuem para o progresso da cultura, do conhecimento e das artes. Com uma audiência tão restrita e um âmbito tão limitado, esta legislação foi sendo implementada por meio de tratados internacionais e negociada à porta fechada sem contributo da vasta maioria das pessoas para quem estas leis, até recentemente, nunca tiveram importância. Nas últimas décadas isto mudou. Em resposta à inovação tecnológica que tornou o acto de copiar universal e trivial, a legislação criada para resolver um conflito de interesses de uma pequena minoria passou a ser aplicada a milhares de milhões de pessoas que nunca tinham tido nada que ver com o assunto. Se bem que todos concordem que é preciso adequar a legislação à nova tecnologia, muitos esquecem-se de que o problema não é meramente tecnológico. Não é coisa que se resolva taxando pendisks e censurando a Internet.

Além da evolução tecnológica e da lei que regulava a relação entre editores e alguns autores ter passado a regular a vida privada de toda a gente, nestes trezentos anos também houve muitas alterações nas nossas noções de justiça, ética e da legitimidade democrática da legislação. O Statute of Anne, a primeira codificação do copyright moderno, data de 1710, mais de um século antes do Reino Unido abolir a escravatura. A ideia de proibir o povo de copiar para que uma aristocracia de privilegiados ganhasse mais dinheiro estava em linha com as boas práticas da época, que incluíam a escravatura, ter crianças a trabalhar nas minas e conceder privilégios legais a quem tivesse mais poder. Mas, além de se ter tornado tecnologicamente obsoleta, esta legislação tornou-se também incompatível com os valores fundamentais da sociedade moderna. A única solução é deitar esta legislação para o lixo e refazê-la de origem respeitando os princípios da democracia e dando prioridade aos direitos mais importantes.

1- A RIAA dá um exemplo engraçado, que nem vale a pena comentar, alegando que sites como o Pirate Bay atacam direitos humanos fundamentais e que por isso têm de ser eliminados: Torrent Freak, RIAA: The Pirate Bay Assaults Fundamental Human Rights