segunda-feira, outubro 07, 2019

Treta da semana: a receita.

Esta é a receita da moda para combater desigualdades de género: escolhe-se um indicador estatisticamente diferente em homens e mulheres; presume-se causado por estereótipos e fácil de mudar com exemplos ou educação; tenta-se mudar e, quando se descobre que não muda, impõe-se quotas. Por cá, a receita já foi seguida até ao fim na administração de empresas e nas eleições mas, mesmo sem esta fase terminal, o processo todo peca por assumir que as predisposições visadas são fáceis de ajustar e por presumir que é papel legítimo do Estado tentar condicionar a maneira de ser das pessoas.

Pensemos no que faz alguém sentir-se atraído por outrem, sexualmente ou romanticamente. Apesar da a orientação sexual, fetiches e outras preferências variarem muito de pessoa para pessoa, e de ser tudo influenciado por factores sociais, ainda assim há uma diferença média significativa entre o que atrai homens e o que atrai mulheres. Não permite prever muito acerca de cada indivíduo, porque cada um é só como si próprio, mas há uma correlação grande na população que, inevitavelmente, estraga as estatísticas da igualdade de género. Os homens tendem a preferir parceiras com indicadores físicos de fertilidade, o que inclui a idade, por razões óbvias quando pensamos na evolução do nosso desejo sexual. As mulheres também preferem parceiros com bons genes mas, em média, não preferem parceiros mais jovens pois não é o homem quem aguenta a gravidez e o parto. Esta diferença de preferências afecta muitas estatísticas, desde a diferença média de 8 anos entre actrizes e actores quando ganham o primeiro Oscar (1) à diferença de dois ou três anos entre a mãe e o pai quando nasce o primeiro filho (2). Por sua vez, a diferença de idades entre o pai e a mãe quando o filho nasce contribui para que, nessa altura, o pai tenda a ter um salário maior do que o da mãe. Acresce a isto vantagem que a mulher jovem tem por deter quase tudo o que é preciso para constituir família, permitindo-lhe escolher um parceiro com melhor estatuto sócio-económico. Por seu lado, ao homem não compensa ser exigente neste critério porque não só precisa que a parceira entre com todo o capital biológico como a sua confiança acerca da paternidade está dependente de a convencer a concedê-lo em exclusividade. Por isso o homem tende a preferir uma mulher que precise dele, nem que seja para pagar as contas. Isto nota-se bem nas estatísticas das diferenças salariais. Não são simplesmente entre homens e mulheres. A maior diferença parece ser entre homens casados e o resto (3). Considerando as preferências diferentes quanto à idade e nível sócio-económico dos parceiros e outras diferenças como o parto e a capacidade de amamentar, não é estranho que o rendimento das mulheres caia significativamente quando nasce o primeiro filho (4). Tanto a biologia como as escolhas feitas até esse momento contribuem para que seja o homem a trazer recursos e a mulher a ficar com a criança.

Obviamente, não será popular defender que o Estado deve persuadir as mulheres a escolher parceiros mais jovens e mais pobres para que sejam elas a ir trabalhar, ficando eles em casa com as crianças. Isso punha a nu os problema fundamentais da receita. É por isso preciso inventar causas hipotéticas cuja regulação pelo colectivo seja mais aceitável. Os estereótipos são uma opção sempre popular mas, no Observador, João Pires da Cruz dá um exemplo alternativo: o problema é as mulheres serem perfeccionistas (5). É este perfeccionismo que, segundo Cruz, temos de corrigir às raparigas logo na escola. Mas além de não ser claro como se corrige o perfeccionismo, ou sequer que legitimidade temos para o fazer – não será um direito ser perfeccionista? – as evidências que Cruz apresenta para a sua hipótese são pouco persuasivas.

Começa por apontar que, no ginásio, estão só as «magras, vestidas impecavelmente e […] a risca dos sapatos combina com o tom da camisola». Mas isto é o que se espera pela diferente importância que homens e mulheres dão à aparência em potenciais parceiros sexuais. Se um homem pudesse entrar num bar e garantir encontrar várias mulheres dispostas a ter relações sexuais com ele simplesmente pela forma como ele se vestisse, era certinho que os homens andariam todos produzidos. Como, aliás, é frequente nos homossexuais. Outra diferença que Cruz aponta é que «as mulheres só se candidatam a um posto se cumprirem 100% dos requisitos, os homens candidatam-se se cumprirem 60%». Também não precisamos de invocar um perfeccionismo particularmente feminino para explicar esta diferença. É razoável uma pessoa candidatar-se apenas aos cargos para os quais tem as qualificações necessárias. Excepto se está sob pressão para ter um cargo com mais prestígio ou remuneração porque, por exemplo, dificilmente atrairá a atenção de uma mulher se não o conseguir.

O primeiro problema desta receita para conseguir igualdade alterando as mentalidades é não haver, na prática, forma de o fazer. A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género julga que se atinge a igualdade controlando a publicidade e os livros de actividades para crianças. É pouco plausível. Desde cedo que rapazes e raparigas percebem o que é que atrai o outro sexo. Não adianta insistir com uma rapariga que mais vale ter uma carreira do que ser bonita quando é óbvio o poder da aparência feminina. Até há mulheres que fazem carreira disso. E ensinar a um rapaz que não tem mal nenhum viver com uma mulher de carreira e ficar em casa a cuidar dos filhos não o impede de estimar, realisticamente, que nenhuma mulher de carreira vai querer sustentar um tipo desempregado em casa.

O segundo problema da receita é ainda mais grave. A razão principal para as diferenças estatísticas entre homens e mulheres é que nem os homens querem ser como as mulheres nem as mulheres querem ser como os homens. Isso não se deve corrigir. Deve-se respeitar.

1- Deseret, Oscars illustrate Hollywood’s gender age gap
2- Não encontrei dados para Portugal, mas parece ser bastante constante. Aqui vão alguns links: Noruega, República Checa, Inglaterra e Gales.
3- Quartz, The gender wage gap is between married men and everyone else
4- Vox, A stunning chart shows the true cause of the gender wage gap
5- Observador, João Pires da Cruz, Não há mulheres gordas no ginásio

quinta-feira, outubro 03, 2019

Legislativas 2019.

Nestas eleições tenho um problema. Não encontro um partido no qual queira votar, nem mesmo depois de considerar os candidatos elegíveis a ver se, ao menos, me dava vontade de votar na pessoa. Resta-me portanto fazer o que tenho recomendado a quem pensa abster-se: na ausência de uma boa opção, votar na menos má. Mas votar.

Os partidos pelos quais tenho mais afinidade ideológica são o LIVRE e o BE. Isto tem-me facilitado a decisão nos últimos anos. Mas estes partidos estão a defender posições que considero inaceitáveis em questões demasiado importantes para ignorar. Ambos defendem que o Estado discrimine cidadãos em função de atributos como raça ou sexo, pela imposição de quotas. Está na moda mas eu não quero que o Estado trate pessoas de forma diferente em função desses atributos. Ninguém deve ser preterido ou favorecido pelo Estado por causa do seu sexo, etnia ou cor de pele. Pior ainda, o LIVRE e o BE estão a atolar-se numa ideologia que confunde a identidade do indivíduo com estes atributos, segregando as pessoas por raça e sexo e alegando que é preciso eleger mulheres negras para representar mulheres negras. A noção deturpada de diversidade e representatividade como sendo por estes atributos em vez de pelos valores e ideias das pessoas joga a favor das parvoíces da extrema direita. Presume que as mulheres negras são um grupo homogéneo que será representado na Assembleia por qualquer mulher negra. Como se fossem todas iguais. Isto é tão absurdo como achar que basta o candidato ser homem branco para me representar. E implica também que eu nunca poderia ser representado por uma mulher negra, outra premissa obviamente falsa porque a Assembleia é um órgão legislativo e o que me interessa que representem lá são valores relevantes para legislar, que excluem sexo e a cor de pele. Esta ideia de que brancos representam brancos e negros representam negros só dá jeito aos racistas.

Outro problema nestes partidos é o crescente desprezo pela separação entre o Estado e o cidadão. O Estado deve garantir a liberdade de todos e que todos respeitam a liberdade dos outros mas não se deve imiscuir na forma como cada um usa a sua liberdade. Mas estes partidos querem usar as escolas para condicionar a opinião das crianças acerca de matérias privadas, desde a sexualidade à distribuição de tarefas domésticas; querem proibir a expressão de certas opiniões explicitamente para evitar que outras pessoas concordem; querem controlar o que se publica para combater estereótipos e preconceitos sem reconhecer que, bons ou maus, é um direito de cada um ter os seus estereótipos e preconceitos. Isto para mim é um problema grave porque a separação entre o Estado e o cidadão é fundamental para uma sociedade livre. Este problema sempre me levou a votar contra o PCP, apesar de eu ser de esquerda, e agora contribui também para que vote contra o LIVRE e o BE.

O PS também sofre parcialmente destes problemas e, além disso, não quero votar nos partidos grandes. Há muita gente nesses partidos que sente ter o lugar reservado e, por isso, acha que pode fazer o que quer. Não quero contribuir para manter esse regime. À direita do PSD, incluindo monárquicos, “renovadores” e palhaçadas, também não vejo nada de aceitável. O único que considerei deste lado foi o Iniciativa Liberal pela sua posição acerca da liberdade de comunicação na Internet e liberdade de expressão mas, infelizmente, as suas propostas para a economia parecem-me erradas. Numa sociedade moderna quem tem dinheiro tem imenso poder para acumular mais dinheiro e só um Estado forte, capaz de compensar esta tendência pela distribuição, pode manter o sistema estável. A posição do IL de que se deve reduzir os impostos e o peso do Estado é receita para um desastre.

Dos restantes, há dois que me pareceram candidatos à posição de mal menor: o PAN e o “Nós, Cidadãos!” (NC). Mas o programa do PAN é uma mistura caótica de ideias razoáveis, medidas que nem parecem fazer sentido num programa eleitoral (e.g. «112 Criar uma fileira de recolha de resíduos de cortiça») e propostas francamente erradas (e.g. «150 Proibir a produção e o cultivo comercial de Organismos Geneticamente Modificados»). O NC, por seu lado, tem um conjunto de propostas que me parecem razoáveis, começando logo pela defesa dos direitos das pessoas, algo que é cada vez mais importante, e continuando pelo combate à corrupção e sobre-endividamento, ambiente, saúde e afins, mas sem nada de transformador ou radical. Nem para bem, nem para mal. O NC é a papa de aveia da política portuguesa. Não é doce, não é salgado, não é picante nem amargo e até parece vir à temperatura ambiente, tal como o cabeça de lista do partido pelo distrito de Lisboa.

É assim, sem entusiasmo mas de consciência tranquila, que vou votar no NC. A probabilidade de eleger um deputado é pequena mas a utilidade do voto não está apenas nos deputados que se elege. É também uma oportunidade para mostrar aos partidos o que pensamos da sua prestação. Além disso, tenho sempre a esperança de que os eleitores que consideram abster-se para protestar contra o estado da política em vez disso protestem votando em partidos pequenos que lhes pareçam menos repugnantes. Se os 45% de abstenção se tornarem votos de protesto sai uma centena de lugares dos partidos grandes para os pequenos. Seria um safanão sem precedentes nas negociatas montadas e pregava um susto valente àqueles que julgam que ninguém os tira do poiso.

sexta-feira, setembro 27, 2019

Treta da semana: grande outra vez.

Tenciono, em breve, escrever o post costumeiro sobre as eleições. Mas, antes disso, queria dar destaque ao Partido Nacional Renovador (PNR) pelo seu slogan, que tem tanto de inteligível quanto de original: «Fazer Portugal grande outra vez» (1).

Olhando para os indicadores de prosperidade e qualidade de vida, não se percebe o “outra vez”. Não houve momento na história deste país com menor mortalidade infantil, maior esperança de vida, maior conforto material para a maioria da população ou maior liberdade para cada um viver a sua vida à sua maneira. Vou supor que a grandeza à qual o PNR quer voltar não é a da peste bubónica, da Inquisição, das sopas de vinho ou das crianças descalças pela rua.

Outra possibilidade é a justiça. Segundo o programa do PNR, «A Justiça, desvirtuada da sua nobre função e prostituída às mãos de criminosos, de corruptos e de toda a sorte de tratantes impunes, só serve os interesses dos poderosos.»(1) Talvez o PNR queira voltar aos tempos em que a justiça em Portugal servia o povo e não os poderosos. Isto também parece difícil. Durante séculos de monarquia a “justiça” (as leis, não necessariamente justas) serviam explicitamente quem estava no poder, que era quem as inventava. Entre 1911 e 1926 houve uma tentativa incipiente de criar uma sociedade mais justa mas Portugal não estava preparado ainda para essas modernices. Só da minha geração em diante é que nos temos aproximado desse ideal da lei ser também justiça. Ainda há muito que fazer mas qualquer regresso ao “outra vez” seria contraproducente.

Mas numa coisa Portugal foi inegavelmente grande. No tamanho, geográfico e demográfico. Por meios moralmente reprováveis mas eficazes, Portugal já foi do Brasil até Timor (Angola, Moçambique, Goa e Macau; bolas, agora a música não me sai da cabeça). Foi um país grande, com uma população numerosa, multiracial e multicultural. No entanto, seria hoje visto como má educação chegar aos países dos outros, desatar à paulada e declarar “isto agora é Portugal, vocês são portugueses e vamos levar já uns para a Madeira que há lá cana para cortar”. Além disso, não parece que o PNR queira que Portugal tenha outra vez essa grandiosidade de culturas e raças que teve outrora. Pelo contrário. Segundo o programa do PNR, «A imigração em massa constitui uma verdadeira invasão e traduz-se numa ameaça à identidade, à soberania, à segurança e à sobrevivência futura de Portugal», propondo por isso o partido «Alterar a Lei da Nacionalidade, baseando-se no jus sanguinis (nacionalidade herdada por descendência)». Se formos grandes outra vez terá de ser só com a prata da casa.

Não vejo no passado de Portugal onde o PNR possa ir buscar grandiosidade. Mas talvez o que o partido queira seja algo diferente. Durante boa parte do século XX, Portugal foi um pais pequeno, pobre nos recursos materiais e miserável nos humanos, de onde muita gente queria era fugir. Nesse Portugal, quem estava menos mal via à sua volta sempre miséria que bastasse para se sentir melhor que os outros. Julgo que é essa sensação de “grandeza” que o PNR quer que volte. Espero que não tenham sucesso nisso.

1- Programa do PNR para as legislativas de 2019

segunda-feira, setembro 16, 2019

A heurística.

No Esquerda Republicana, João Vasco defende a «legitimidade do argumento de autoridade» e propõe que «Se não sou especialista numa área, eu uso uma heurística: confio no consenso entre especialistas.» Defende-o, alegadamente, em oposição à tese de que «a Ciência recusa "autoridades", o que importa são as "evidências", "devemos avaliar os argumentos pelos seus méritos, avaliar as evidências que os suportam, e ignorar a quantidade de gente que a eles adere ou a autoridade dos mesmos" e por aí fora». Propõe João Vasco que, aceitando argumentos de autoridade, poderemos ter uma «epistemologia diferente, adequada a uma população que tem de formar crenças sobre a verdade ou falsidade de afirmações relativamente às quais não tem tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.»(1)

A intenção parece boa mas temo que não funcione. Primeiro, “confio no consenso entre especialistas” não é uma heurística útil. Tal como “cuida da tua saúde para não teres doenças”, é um conselho que nada diz acerca de como o aplicar. Vou confiar nos teólogos para saber se Deus existe, nos astrólogos para saber a astrologia funciona e nos criacionistas para saber se o criacionismo é verdade? Não adianta confiar nos especialistas sem saber identificar os especialistas certos. Além disso, esta heurística de nada serve contra meias verdades e outros engodos. Por exemplo, se alguém disser que as Torres Gémeas não podem ter caído por causa dos aviões porque, segundo os especialistas, a temperatura a que arde o combustível dos aviões não é suficiente para derreter o aço. Confiar naqueles que se julga especialistas não é uma maneira fiável de «formar crenças sobre a verdade ou falsidade de afirmações relativamente às quais não [se] tem tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.»

Um equívoco parece estar na distinção que João Vasco faz entre evidências (isto é, indícios de que uma hipótese é verdadeira) e a opinião de especialistas. A opinião de especialistas é também evidência, exactamente como o resto. Na verdade, as evidências são apenas hipóteses das quais, de momento, julgamos não valer a pena duvidar. Aquilo que nos parece evidente que é verdadeiro. Por exemplo, se eu confio na balança então considero o número que lá aparece como evidência para o meu peso. Se não confio, então é algo que tenho de testar. Com pesos conhecidos, por exemplo. Qualquer investigador confia (tentativamente) em muitas fontes autoritárias, desde os aparelhos que usa aos artigos que cita e em cujos resultados baseia o seu trabalho. Tudo isso são evidências que, em conjunto, terá de avaliar para determinar que conclusão suportam. Tanto faz se são resultados de experiências, valores fornecidos por aparelhos, citações de artigos ou alegações de peritos. Não são fiáveis sem “tempo nem disponibilidade” para as avaliar porque é sempre preciso avaliar o padrão que formam. É preciso atenção constante àquelas inconsistências que indicam que este perito está enganado, aquele aparelho está a funcionar mal ou aquela medição foi mal feita.

É por isso que a “heurística” de seguir os peritos não serve de substituto à análise das evidências. A opinião dos peritos é mais uma peça do puzzle e não há uma regra simples para distinguir entre as evidências correctas e as incorrectas. O que funciona, mas que é mais trabalhoso do que confiar nos peritos, é manter uma atitude persistente, consciente e deliberada de atenção ao encaixe das evidências e a disposição para considerar hipóteses alternativas, questionando premissas sempre que algo não encaixe bem. Isto exige treino e depende de ter informação e de compreender como essa informação está interligada. Nada disto é possível sem tempo e disponibilidade para avaliar as evidências.

Infelizmente, isto que João Vasco propõe está a ganhar popularidade. Há quem queira que empresas policiem as “redes sociais” para eliminar afirmações falsas ou prejudiciais. Há fact checkers que se apresentam como fontes autoritárias que nos basta consultar para ficarmos imunes ao engano. Até serve para vender jornais, alegando que, se pagarmos aos jornalistas, eles tornam-se fontes fiáveis de informação correcta e imparcial. Mas nada disto resolve o problema de muita gente não ter «tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.» Para resolver esse problema é preciso, primeiro, dar tempo às pessoas e a formação necessária para que possam pensar criticamente. E, depois, é preciso que as pessoas queiram usar esse tempo e essa capacidade para avaliar adequadamente as hipóteses que lhes apresentam. Confiar em fontes fiáveis é uma boa ideia mas não dispensa a atenção necessária para avaliar se a fonte é realmente fiável, se merece essa confiança e se não está a dizer asneira. Sem esse cuidado, esta “epistemologia diferente” é apenas pôr-se jeito para enfiar barretes.

1- João Vasco, A Ciência e os argumentos de autoridade

quinta-feira, maio 23, 2019

Europeias.

Em traços gerais, alinho-me com o LIVRE em quase tudo o que me parece ser preocupação legítima da política. A União Europeia, o clima, a regulação de agentes económicos, o papel distributivo do Estado, o acesso à cultura e conhecimento e assim por diante. E Rui Tavares, o cabeça de lista do LIVRE para o Parlamento Europeu, já demonstrou ser um eurodeputado competente e leal aos princípios que diz defender. Se fosse só isto a minha decisão era simples.

Infelizmente, o problema complica-se pelo avanço do politicamente correcto, até na esquerda mais liberal como a do LIVRE. Por “politicamente correcto” não me refiro a picuinhices vagas mas ao sentido original (1) de presumir que compete ao colectivo condicionar opiniões dos indivíduos. É uma variante secular da heresia, da ideia de que há pensamentos que não se pode admitir que alguém tenha. E isto está a contaminar partidos como o BE e o LIVRE. Por exemplo, as quotas de género requerem que o Estado prejudique ou beneficie certos indivíduos em função de atributos pelos quais o Estado nunca deveria discriminar. Os defensores destas medidas – e a esquerda está cada vez mais cheia deles – dizem ser um mal necessário para mudar expectativas e opiniões que influenciam opções individuais, como a profissão ou em quem se vota. Mas isto presume que é legítimo o Estado manipular estas opiniões. Não é. O Estado tem duas funções fundamentais: primeiro, fazer o possível para que todos sejamos igualmente livres e tão livres quanto isso permita; e, segundo, garantir que cada um pode usufruir da sua liberdade como entender. O Estado deve garantir liberdade de religião mas não deve dizer a ninguém que religião escolher. Deve garantir liberdade de opinião política, de valores pessoais, de orientação sexual, de formação e profissão mas não deve empurrar ninguém para esta ou aquela opção. Qualquer que seja. As quotas são uma medida injusta que tentam justificar com um propósito ilícito, o de usar o Estado para condicionar opiniões que são do foro pessoal.

Este desrespeito pela separação entre o domínio individual e o domínio colectivo é cada vez mais grave. Em 2018, o LIVRE defendeu a «condenação veemente de todas as manifestações racistas» e «uma legislação que criminalize o racismo de forma contundente e explícita»(2). O racismo é uma estupidez e não podemos admitir que polícias torturem detidos ou que juízes condenem inocentes. Mas estes actos são inadmissíveis qualquer que seja o motivo e o racismo é simplesmente o que o racista sente. É uma falha de carácter mas não é do foro penal nem compete ao Estado decidir por que razões cada um pode gostar ou desgostar de alguém. Quando perguntei o que queriam dizer com “criminalizar o racismo” (iriam prender quem não quisesse casar com pessoas de outra raça?) explicaram que só queriam que a lei se cumprisse. Não foi uma resposta adequada. Por um lado, “criminalizar” não é cumprir a lei. É tornar crime aquilo que não o era. E, por outro lado, porque a lei já se tornou politicamente correcta no sentido de pôr o Estado a controlar o que as pessoas pensam. A Lei n.º 93/2017 proíbe quaisquer actos pelos quais «seja emitida uma declaração ou transmitida uma informação» que possa ofender alguém em virtude da sua raça, e presume «intenção discriminatória […] sem necessidade de prova»(3). As sanções ficam a cargo da Comissão para a Igualdade que, entretanto, recomendou à comunicação social e entidades públicas que omitissem informação sobre «origem racial, étnica, a cor, nacionalidade, ascendência» por condicionar «fortemente a perceção e interpretação da realidade»(4). Ou seja, é um mecanismo coercivo para o Estado controlar as opiniões das pessoas limitando a informação disponível. Isto é um problema sério porque ou temos um Estado democrático ou temos um Estado que restringe o que se diz e se sabe para controlar o que se pensa. São opções mutuamente exclusivas (5).

O BE é tão mau como o LIVRE nisto e, se bem que a CDU pareça menos inclinada para as modernices do politicamente correcto, o PCP preserva o politicamente correcto original. Se chegassem ao poder não se inibiriam de censurar o que fosse preciso em nome do “interesse colectivo”, como se faz na China e na Coreia do Norte. É difícil votar liberal nestas condições. Enquanto à esquerda querem mandar no que cada um faz com a sua liberdade, à direita não reconhecem que a liberdade individual exige que o Estado garanta educação, cuidados de saúde, acesso à cultura, justiça, segurança e até que ninguém seja coagido pela miséria a vender o seu trabalho. O novo partido Iniciativa Liberal tem a virtude de defender a liberdade de expressão mas falha nas medidas económicas, defendendo a concorrência fiscal entre países europeus, «baixos impostos e regulação amiga do investidor»(6), precisamente o contrário do que é necessário para sermos todos igualmente livres. E o PS, além de combinar defeitos de ambos os lados tem uma «estratégia europeia específica para a revolução digital» (7) que consiste em censurar os uploads para dar mais dinheiro aos cobradores de cópias (8). Nisso não voto.

Votarei no LIVRE. Mas só porque confio que Tavares não tenha sucumbido ao politicamente correcto e porque me parece muito improvável que o LIVRE eleja dois deputados. Joacine Katar Moreira, na segunda posição da lista, parece determinada a demolir a barreira que separa o Estado do indivíduo. A «base da [sua] participação» será «a acção feminista e anti-racista»(9) e, a julgar por aquilo a que chama «A trilogia poder, privilégio e presunção»(10), não fará qualquer distinção entre actos que compete ao Estado regular e aquilo que, sendo do foro pessoal, como opiniões acerca do próprio ou dos outros, são matéria da qual o Estado tem a obrigação de se abster. A falta de clareza nesta distinção é um problema tão sério que, se um dia acontecer que todos os votos à esquerda sejam também votos nisto, julgo que nesse dia passarei a votar à direita. E temo que não serei o único.

1- Wikipedia, Political Correctness, Early-to-mid 20th century
2- A propósito deste Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial
3- Lei n.º 93/2017
4- TSF, Comissão para Igualdade chama comunicação social devido a aumento de discurso xenófobo
5- E é contraproducente. Uma notícia como Segurança agredido por família no Hospital S. João, apesar de respeitar criteriosamente a lei, não só falha por completo no objectivo de inibir impulsos racistas como reforça a tese extremista da conspiração para encobrir os crimes “deles” pela censura do que “nós” dizemos.
6- IL,Programa Eleitoral Europeias 2019
7- PS, Manifesto Eleitoral
8- Como votaram os eurodeputados portugueses na nova directiva dos direitos de autor?
9- LIVRE, Joacine Katar Moreira
10- Os três “P” ou a trilogia do racismo

segunda-feira, março 18, 2019

Treta da semana: fissão é a solução.

Tenho visto muita gente a defender a fissão nuclear como a melhor opção para travar o aquecimento global. Teoricamente, parece que sim: não liberta CO2; produz electricidade de forma fiável e constante, ao contrário da energia solar ou eólica; precisa de menos terreno do que um parque eólico ou solar, ou uma barragem; a electricidade nuclear sai mais barata do que a das renováveis; e se tudo for feito como deve ser não vai haver acidentes como Chernobyl ou Fukushima porque esses erros já não serão repetidos.

Infelizmente, é ingénuo assumir que tudo vai sempre ser feito como deve ser. O colapso do BES, da ponte de Entre-os-Rios e da estrada de Borba são apenas alguns de muitos exemplos de tragédias teoricamente evitáveis que resultaram de problemas humanos que, na prática, são inevitáveis. Vai sempre haver erros, incompetência, ganância ou corrupção. Centrais nucleares não são imunes a estes problemas e quando temos em conta que tudo tem de correr bem não só durante as décadas de operação da central mas também durante os séculos de armazenamento do lixo radioactivo, temos de estimar como muito alta a probabilidade de haver asneiras.

Os defensores da fissão nuclear também subestimam a gravidade dos problemas. É difícil estimar o número de mortes devido ao desastre de Chernobyl (1) e o de Fukushima parece não ter causado mortes directas (2). Em contraste, trabalhar em telhados é perigoso (3) e a instalação de painéis solares vai levar a mais acidentes. Mas esta contabilidade é enganadora. Morre ainda mais gente em acidentes de automóvel mas é consensual que aceitamos esse risco pela liberdade de ir para onde queremos. Um acidente nuclear como Chernobyl ou Fukushima obriga centenas de milhares de pessoas a abandonar a sua casa, escola, bairro, comunidade ou negócio e refazer a vida num lugar diferente, com outras pessoas. O custo pessoal e social de um acidente nuclear é enorme e não pode ser descartado apontando acidentes de construção ou de viação.

Outro problema é o lixo radioactivo, que é das substancias mais perigosas que produzimos. Só na Europa, são quase três mil toneladas de metais radioactivos por ano (3). Comparado com outras formas de produção de energia é um volume pequeno de resíduos. Mas é material que terá de ficar isolado durante séculos. Qualquer problema no armazenamento, seja por corrupção, negligência, crise económica ou instabilidade política, pode ter consequências desastrosas. Isto é especialmente relevante se quisermos usar a fissão nuclear para travar o aquecimento global. A maior parte do CO2 emitido para a atmosfera já vem da Ásia (4) e é nos países em desenvolvimento mais populosos que temos de travar o seu aumento. O aquecimento global não se resolve com centrais nucleares na Alemanha ou na Dinamarca. Tem de ser em países como China, Índia, Indonésia, Brasil, Paquistão e Nigéria. É absurdo presumir que seria seguro investir na construção em massa de centrais nucleares nesses países.

Economicamente, também não é tão viável como parecem presumir. A energia nuclear exige um investimento inicial muito grande e só dá lucro ao fim de décadas. Com a queda constante dos custos de produção das renováveis, melhorias tecnológicas na produção e armazenamento de energia e potencial para alterações sociais – por exemplo, a automação levar as pessoas a sair das cidades, distribuindo o consumo e a produção de energia – é muito arriscado estar a investir milhares de milhões de dólares (5) sem uma garantia de retorno. E não é nada claro que seja um bom investimento, mesmo considerando apenas a redução das emissões de CO2. Em números redondos, o custo de construir uma central nuclear é o mesmo de reflorestar o necessário para compensar as emissões da mesma energia produzida durante dez anos pela combustão de biomassa (6). São estimativas por alto, porque o custo varia muito em detalhe, mas o custo de substituir centrais térmicas por centrais nucleares é semelhante ao de converter centrais térmicas para usar biomassa e reflorestar o suficiente para compensar as emissões. Para o aquecimento global o efeito é o mesmo e ficamos com florestas em vez de lixo radioactivo.

Um defeito que apontam ao uso de biomassa para produzir energia é que estamos a queimar a madeira agora e só mais tarde voltamos a sequestrar o CO2, porque a floresta demora anos a crescer. Mas esse problema é igual para a energia nuclear. Entre decidir ter energia nuclear e pôr a central a funcionar já as árvores estão todas grandes. E se bem que a florestação exija investimento público, a energia nuclear também. Nenhum privado vai investir esse dinheiro sem garantias de retorno e não é razoável esperar que sejam os privados a guardar o lixo radioactivo durante séculos.

Temos de abandonar a queima de combustíveis fósseis. Mas a fissão nuclear não é uma boa alternativa. A quantidade de reactores que seria preciso e os países onde os teríamos de construir é receita certa para desastres. O enorme investimento seria melhor aplicado na recuperação de solos e reflorestação, que mais que reduzir emissões retiraria carbono da atmosfera. E a fissão nuclear é um beco tecnológico, como o motor a vapor ou o VHS. O progresso na produção de energia de fontes renováveis, melhorias nas baterias ou alterações demográficas que favoreçam a produção distribuída, com menos gente concentrada nas grandes cidades, facilmente tornam a fissão nuclear economicamente inviável. Além disso, não é de excluir a possibilidade da fusão nuclear se tornar rentável no prazo de 30 ou 40 anos de um novo investimento em fissão nuclear. Somando a isto tudo, o lixo radioactivo produzido pela fissão nuclear seria um fardo – e um perigo – para muitas gerações além das que beneficiariam da electricidade produzida, uma atitude irresponsável que criticamos nas gerações passadas e que temos o dever de não perpetuar.

1- Wikipedia, Deaths due to the Chernobyl disaster
2- World Nuclear Association, Fukushima Daiichi Accident
3- EEA, EN13 Nuclear Waste Production EN13 Nuclear Waste Production
4- Global Carbon Atlas
5- Dois a nove mil milhões de dólares por unidade, segundo a USCSA, Nuclear Power Cost
6- A construção de uma central de fissão nuclear fica em cerca de $5000/kWe segundo a World Nuclear Assoiation, excluindo custos de financiamento. Uma tonelada de madeira produz um MWh e uma tonelada de CO2 custa $100 a sequestrar. Dez anos de produção de um kWe dá 87MW, o que custa cerca de $8700 a sequestrar em floresta.

sábado, março 09, 2019

Grato às feministas.

As mulheres que podem usar calças, votar, escolher a sua profissão, gerir a sua propriedade, pedir divórcio e exercer muitos outros direitos têm de agradecer às feministas (1). E os homens também, porque é evidente que restringir metade dos cidadãos, além de injusto, dá sociedades de porcaria. A igualdade de direitos entre homens e mulheres beneficia-nos a todos e só cá chegámos graças ao feminismo. Infelizmente, a palavra “feminismo” foi mudando de sentido e agora é diferente daquilo que conseguiu estas vitórias. Superficialmente, ainda dizem que é a luta pela igualdade de direitos. Mas não é. Nem é luta, nem é por essa igualdade justa.

Emmeline Pankhurst foi uma sufragista britânica que, em 1913, proferiu um famoso discurso para as suas companheiras de luta nos EUA. Começou por dizer que o movimento pelo direito de voto das mulheres era «matéria de revolução e guerra civil», que ela tinha vindo «como um soldado que deixa provisoriamente o campo de batalha» e que fazia o que fariam os homens se não se pudessem fazer ouvir pelos votos: «sublevar-se e adoptar alguns dos meios antiquados pelos quais os homens do passado fizeram resolver os problemas de que se queixavam» (2). Pankhurst era mãe de três filhas e dois filhos, um falecido em criança com difteria, era viúva e foi sete vezes presa na sua luta pelos direitos das mulheres. Que envolvia, entre outras coisas, destruição de propriedade, confrontos com a polícia, greves de fome e até fogo posto (3). Pode parecer excessivo, mas estas mulheres estavam mesmo a lutar por direitos que eram seus e lhes estavam a ser negados. O fim justificava os meios.

Esse é o feminismo que merece a nossa gratidão e ainda faz falta na maior parte do mundo. O feminismo da luta por direitos, de pessoas dispostas a sacrificar-se pelo que é justo. Por exemplo, uma medida feminista que a União Europeia devia adoptar era proibir a importação de bens ou serviços de países cuja lei não garanta igualdade de direitos entre homens e mulheres. Saía caro, iria afectar a economia, mas seria uma forma eficaz de pressão sobre países como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos ou o Irão, para que respeitassem por igual os direitos de todas as pessoas. E o nosso sacrifício não seria nada comparado ao que Pankhurst sacrificou. Mas esse feminismo que faz falta não é o feminismo que agora temos.

O que temos agora são “feministas” como as autoras da lei do piropo: «Carla Rodrigues, deputada do PSD na última legislatura [...] assume a maternidade da iniciativa. "A alteração surgiu por proposta nossa. Visava dar resposta a uma situação que não estava prevista no Código Penal. […] Os assédios às adolescentes parecem ter sido decisivos para tal: "Falei de casos como o de uma jovem de 15 anos que vai na rua e vem um velho e diz "fazia-te isto fazia-te aquilo". Isso sensibilizou-os mais. O insulto ou injúria estão desde sempre previstos no Código Penal, mas um homem a importunar, a amedrontar uma miúda não estava a cometer um crime. E um dos argumentos contra criminalizar é que as mulheres têm de saber lidar com isso, responder - mas as adolescentes também? Tenho uma filha de três anos e falei disto com o meu marido, sobre como nos sentiríamos com isto a suceder-lhe, como se podia protegê-la. E cheguei a esta formulação."»(4) Querem protecção como as crianças em vez de direitos como os homens.

Ironicamente, a fotografia que o Diário de Notícias escolheu para ilustrar o artigo sobre a lei do piropo é “Uma rapariga americana em Itália”, de Ruth Orkin. Tirada em Florença, em 1951, mostra Ninalee Craig, então com 23 anos, fitada por vários homens enquanto passa na rua. Hoje é vista como exemplo do assédio que aflige as mulheres na rua mas, para as duas mulheres envolvidas, fotógrafa e fotografada, representava precisamente o contrário: a independência das mulheres. Serviu até para ilustrar um artigo na Cosmopolitan de 1952 que encorajava as mulheres a viajarem sozinhas. «A admiração pública […] não a deve perturbar. Mirar as senhoras é um passatempo popular, lisonjeiro e inofensivo em muitos países estrangeiros. Os cavalheiros são mais vocais e expressivos que os homens Americanos, mas sem más intenções»(5). Setenta anos depois caminhamos de volta para o século XIX.

Devemos muito ao feminismo. E ainda precisamos do feminismo. Mas do feminismo que defende mulheres autónomas, eticamente equivalentes aos homens, igualmente capazes de arcar com responsabilidades e igualmente merecedoras de direitos. É por essa igualdade, a de direitos e responsabilidades, que vale a pena lutar em todo o lado aonde ainda não chegou. Lutar exige sacrifícios, mas se é por um fim justo vale a pena. Infelizmente, nas democracias ocidentais, este feminismo de mulheres está a dar lugar a um “feminismo“ adolescente que troca a luta pelo queixume e que, em vez de independência e igualdade de direitos, exige protecção especial contra propostas de teor sexual, estereótipos, anedotas sexistas e o olhar masculino. E exige lugares reservados em cargos competitivos, espaços seguros, validação, encorajamento e muitas outras coisas que se tem de conceder à mulher só porque é mulher. É um feminismo de primeiro mundo, de regalias, mais preocupado com o género de protagonistas nos filmes de Hollywood do que com a injustiça com que as mulheres são tratadas fora das democracias ocidentais. E é um feminismo perigoso. As mulheres conquistaram direitos iguais aos dos homens quando convenceram a sociedade de que eram igualmente capazes de viver a sua vida e de competir e colaborar com os homens sem regras especiais para as proteger. É esse feminismo que merece a nossa gratidão. Mas é isso que o novo feminismo está a destruir com as suas reivindicações de que seja o homem a acomodar as sensibilidades femininas para que a mulher consiga caminhar a seu lado.

1- Público, És mulher e estás a ler isto? “Agradece a uma feminista”
2- Guardian, Great speeches of the 20th century: Emmeline Pankhurst's Freedom or death
3- Wikipedia, Emmeline Pankhurst
4- Diário de Notícias, Piropos já são crime e dão pena de prisão até três anos
5- CNN, The real story behind 'An American Girl in Italy'

domingo, março 03, 2019

Treta da semana: o erro menor.

Joana Bento Rodrigues publicou uma opinião polémica, especialmente vinda de uma mulher. Segundo ela, «as características mais belas da mulher» e o «potencial feminino» são que «Gosta de se arranjar e de se sentir bonita. Gosta de ter a casa arrumada e [ …] das tarefas domésticas». Há dois erros fundamentais nisto. O mais óbvio é que, se bem que sejam opções de vida legítimas, as mulheres não são todas iguais. São pessoas e, como tal, há-as de muitos feitios e gostos. Mas é interessante ver como os defensores do feminismo identitário atacaram Rodrigues: ignorando os erros e focando quase exclusivamente as opiniões.

Ana Bárbara Pedrosa diz que Rodrigues age «enquanto carrasco de milhões de mulheres pelo mundo» (2); Nelson Nunes diz que Rodrigues é «Uma inimiga das mulheres» (3); Maria João Marques diz que o texto de Rodrigues «é um belo exemplo de discurso fascista» (4). E isto tudo porque Rodrigues dá uma opinião e diz que é contra a imposição legal de quotas de género. Os críticos mencionam que «as mulheres são livres de fazerem o que bem entendem»(3) e que «o feminismo […] serve para dizer às mulheres o mesmo que é dito aos homens: nos corpos delas mandam elas, nas vidas delas mandam elas». Mas isso não só devia incluir o direito de Rodrigues opinar sem ser rotulada de fascista como devia deixar o Estado fora de assuntos pessoais como a escolha da profissão. Que é o que Rodrigues defende.

Curiosamente, se bem que Rodrigues exagere na generalização, em média nem está muito enganada. A Fundação Francisco Manuel dos Santos publicou recentemente o resultado de um inquérito às mulheres portuguesas. Na página 349 podemos ver que as duas coisas que fazem as mulheres mais felizes são os filhos e os netos e as duas que as fazem mais infelizes são o aspecto físico e o trabalho remunerado (5). É claro que há mulheres que gostam da sua carreira mas a verdade é que, para a maioria das pessoas, o trabalho é algo que têm de suportar porque precisam do dinheiro. Entre outras coisas, por causa dos filhos. Parece-me um erro maior julgar que o desejo das mulheres é largar a família para vender trabalho às empresas, como demonstra a distribuição de horas de trabalho remunerado em vários países. Quanto menos se força as pessoas a vender o seu trabalho, maior a diferença entre homens e mulheres. Por exemplo, a diferença em Portugal ou na Grécia é muito menor do que na Holanda, Bélgica ou Finlândia (6). O propósito das quotas não é dar mais liberdade de escolha. É forçar as escolhas. Já Safaa Dib o admitia em 2016: «Frustrada por ver demasiadas mulheres que se sentem menos confortáveis em dar a cara, não porque não sejam capazes, mas simplesmente porque preferem o trabalho de bastidores e dedicar-se à organização e à gestão. […] Frustrada porque foi preciso impor no Parlamento a Lei da Paridade para forçar as mulheres a ter um lugar à mesa e, ainda assim, é uma luta para preencher as listas e respeitar as quotas. Temos um longo caminho a percorrer até deitar abaixo a vergonha que parece tomar conta das mulheres que desejam fazer-se ouvir.»(7). "Não" é "não". Excepto se uma mulher diz que não quer investir a sua vida nestas coisas. Nesses casos, se diz não é porque tem vergonha e é preciso quotas.

Há uma explicação óbvia para a desproporção entre o fel despejado sobre as opiniões de Rodrigues e a pouca atenção dedicada aos seus erros objectivos. O feminismo identitário comete precisamente os mesmos erros. É por isso que não lhe convém chamar muita atenção para eles. Rodrigues generaliza demasiado ao falar “da mulher” como se as mulheres fossem um conjunto homogéneo de pessoas que querem todas o mesmo. Lar, marido, filhos e essas coisas. É o mesmo erro do feminismo identitário. É a premissa subjacente à ideia da “representatividade”, segundo a qual as pessoas com ovários têm de ser representadas por pessoas que também tenham ovários porque pessoas com ovários têm todas os mesmos valores, a mesma orientação política e mesmos interesses. Com a “diversidade” é o mesmo. Quer-se de género e cor em vez de ideias e opiniões. Se uma coisa fica clara nas críticas a Rodrigues é que o feminismo identitário abomina a diversidade de opiniões.

O outro erro de Rodrigues é querer avaliar as mulheres em função do tal “potencial feminino” de tratar dos filhos, da casa e do marido. Como aponta Marques, isto é ver as mulheres como «instrumentos para um fim – produzir bebés e manter um homem feliz – sem valor intrínseco próprio»(3), o que é obviamente errado. Mas nisto também o feminismo identitário erra quando avalia a mulher pela carreira, pelo salário ou pelo cargo que ocupa. O trabalho vendido a uma empresa é tão instrumentalizante, ou talvez até mais, do que o trabalho dedicado à família e à vida pessoal. A única forma de não valorizarmos as pessoas como instrumentos é dando valor, acima de tudo, à liberdade de cada um ser como é e viver a sua vida como deseja. Era isto que o feminismo defendia antes de se tornar identitário e passar a definir cada indivíduo apenas pelos grupos a que pertence.

Rodrigues exagera nas características que atribui às mulheres, generaliza demasiado e faz juízos de valor acerca da vida dos outros que só seria adequado fazer acerca das suas próprias escolhas. Ironicamente, são os mesmos erros que o feminismo identitário faz para o outro lado. Mas há uma grande diferença entre ter uma opinião errada e querer impô-la aos outros por força da lei. É nisso que a posição de Rodrigues é muito mais legítima do que a dos seus críticos.

1- Joana Bento Rodrigues, A Mulher, o feminismo e a lei da paridade
2- Ana Bárbara Pedrosa, Não me apetece ser submissa, meu amor
3- Nelson Nunes, Uma inimiga das mulheres
4- Maria João Marques, Islamabad-Coimbra, ou a história da anti-feminista
5- Fundação Francisco Manuel dos Santos, As mulheres em Portugal, hoje
6- OECD, Usual working hoursper week by gender
7- Safaa Dib, O lugar da mulher também é na política

sábado, fevereiro 16, 2019

Treta da semana: aumentar a vibração.

Nos próximos anos, entre 2019 e 2024, irá ocorrer o Evento. «O Evento é o avanço por compressão [...] quando as forças da Luz acima e abaixo da superfície do planeta se encontram na superfície do mesmo». Várias coisas vão suceder nesse Evento. Algumas à escala galáctica, como «uma grande onda de Luz ou flash, de Energia Divina, de luz do Sol Central Galáctico diretamente para a superfície do planeta. (O Sol Central Galáctico é um objecto na constelação de Sagitário)». Outras mais modestas, como «Detenções e desmantelamento das organizações criminosas que operam a nível planetário (prisão em massa da cabala)» (1). Mas atenção: «O planeta irá passar de um planeta de 3.ª para 4.ª densidade (daí as alterações climáticas, terramotos, etc), portanto irá elevar a sua frequência, portanto os humanos também terão de o fazer, se desejarem permanecer cá, sendo que a Época Dourada começará na Terra». Não podemos deixar que o planeta passe para a quarta densidade sem aumentarmos nós próprios a nossa frequência. Felizmente, não é preciso comprar um martelo pneumático ou uma cadeira de massagens. O autor, informado pelos seres de Luz, diz-nos o que fazer e não fazer. Não devemos comer açúcar, nem beber água da torneira (porque tem químicos, principalmente H2O) e sobretudo evitar «Água ácida». É importante também saber que «as pessoas depressivas sugam-nos a energia, portanto diminuir o contacto com elas». Se tiverem algum amigo que se sinta mais em baixo, cortem relações. Um suicídio a mais ou a menos faz pouca diferença nas estatísticas e sempre poupam o incómodo de aturar gente deprimida. Ironicamente, nessa página está também este aviso: «Internet: se a mesma for usado de forma consciente é bem-vinda, mas a maioria usa a internet obviamente para aquilo que não interessa e ocupa muito do seu tempo livre.»(2)

No YouTube há muitos vídeos a explicar como se pode aumentar as vibrações e até que frequências são boas para vários efeitos. 432Hz cura, aumenta a vibração e energia positiva e ainda traz amor, força e poder (3). Com 963Hz activa-se imediatamente a “Glândula PINEAL” o que, suponho, é bom, mas não explica porque é que o vídeo dura quase quarenta minutos se a activação é imediata (4). Mas parece que o mercado das frequências na nossa língua está dominado por brasileiros. Encontrei apenas dois mestres portugueses desta disciplina do aumento vibracional e um deles, Jorge Silva, parece estar agora ainda menos activo do que estava quando fazia vídeos. Deixo aqui as suas recomendações para aumentar a vibração do corpo ou, pelo menos, para dormir uma sesta:



O outro, achado graças ao Facebook, é Ivo Artur, aparentemente um português que vive no Brasil e que tenta conciliar as duas pronuncias com resultados fascinantes. Sem menosprezar o contributo de Jorge Silva, julgo que Artur causa mais vibrações, especialmente na região abdominal.



Eu gosto de terminar os meus posts frisando a mensagem principal, em jeito de conclusão, mas neste caso não sei o que fazer disto. Deixo-vos apenas mais um vídeo de Artur, que penso ilustrar bem o que conta como explicação e conhecimento nestas andanças. Muitas vibrações para todos, mas só das positivas, uma boa dose de namastés e não bebam água ácida que é só químicos.



1- oevento.pt, O que é o Evento
2- oevento.pt, O que nos faz subir ou descer a nossa Energia, Frequência e Vibração
3- YouTube, Clube de Meditação para Pensamentos Poderosos, 432Hz Frequência de Cura | Aumentar Vibração e Energia Positiva | Atrair Amor, Força e Poder
4- YouTube, Outro Mundo, Glândula PINEAL| 963Hz | ATIVAÇÃO IMEDIATA | Meditação |

segunda-feira, fevereiro 11, 2019

Tipos de treta.

Apesar da oposição da ministra da cultura, foi aprovado no Parlamento o IVA a 6% para a tourada, beneficiando assim da redução reservada a espectáculos culturais. Parece estranho. A tourada não é um espectáculo cultural. Lutas de cães e de galos já foram proibidas e até a matança do porco tem de respeitar a legislação vigente para a «proteção dos animais de abate, quanto à contenção, atordoamento, sangria e demais disposições aplicáveis»(1). Trazer um porco para a praça, ou qualquer outro animal, e fazer o espectáculo espetando-lhe ferros seria repudiado até pelos aficionados da tourada. Invocar a preservação do touro “bravo” também não faz sentido. Não só porque a conservação ecológica não se faz espetando ferros nos animais como porque o touro “bravo” é gado doméstico, uma casta seleccionada pelo seu comportamento previsível (2). A justificação para a tourada é treta mas as tretas não são todas a mesma coisa.

Algumas tretas afectam apenas como cada um usufrui das suas liberdades. Se vai muitas vezes à missa, se consulta o horóscopo, se anda à caça de fantasmas ou se acredita que um deus criou cada vespa, varejeira e víbora de acordo com a sua espécie. Esses disparates não exigem grande preocupação acerca de como as pessoas vão reagir à crítica. Por exemplo, alguns crentes têm dito que as minhas críticas à sua religião só lhes reforçam a fé. Bom para eles. Não é coisa que me preocupe porque o meu interesse é nas ideias e no diálogo, pelo fascínio que tenho por estas tretas. Cada um que acredite no que lhe der mais gozo e use os crucifixos ou cristais que quiser.

Outras tretas levam pessoas a exigir que a sociedade imponha restrições à liberdade dos outros. Mas, felizmente, são restrições que não conseguem impor sozinhas. Por exemplo, exigem que um casamento tenha um homem e uma mulher ou que uma administração de uma empresa tenha pelo menos 40% de pessoas de cada sexo. Que seja crime dizer certas coisas ofensivas ou partilhar ficheiros na Internet. Neste caso, temos de ter atenção ao poder que essas pessoas possam ter para influenciar a legislação, ou para encontrarem outras formas de impor a sua vontade. Não é treta para encarar com a mesma leviandade que as do primeiro tipo. Mas, como o defensor da treta, sozinho, nada pode fazer, desde que se acautele a imposição da treta o problema fica resolvido. Por exemplo, uma vez abolidas as quotas de género no casamento tanto faz que fique muita gente irritada por os homossexuais poderem casar. Passa a ser uma treta inofensiva.

As piores tretas são aquelas que fazem uma pessoa cometer injustiças. Mutilar os genitais de crianças, não as vacinar, bater na mulher ou até matar os filhos, durante a gestação ou depois. Por exemplo, várias etnias tribais no Brasil praticam o infanticídio (3). Apesar de ser crime, não é viável prender tribos inteiras por causa disso. Medidas coercivas só são aceitáveis quando o acto a reprimir é suficientemente raro. Caso contrário, a lei não adianta. Por cá temos problemas semelhantes. O aborto foi despenalizado até às 10 semanas, na premissa de que isso resolvia o problema, mas continua a haver aborto ilegal pois nem todos os fetos são abortados até essa idade. Tal como antes da despenalização, não se vai prender quem o faça e despenalizar o aborto até aos 9 meses seria, mais uma vez, apenas disfarçar o problema. A mutilação genital de crianças, principalmente do sexo masculino, é uma prática tão comum que a justiça tem de a considerar excepção à regra evidente de que não se deve mutilar crianças. O mesmo com os castigos corporais. Teoricamente são crime mas só são punidos se o castigado for o cônjuge. Se for um filho faz-se de conta que não importa. Foi este aspecto da tourada que a ministra descurou. O “espectáculo” de espetar ferros num animal é indefensável. Mas este tipo de treta exige convencer as pessoas. Enquanto tantos acharem bem espetar ferros nos touros não há muito que se possa fazer.

Por isso, sem prejuízo da liberdade (e gozo) de desancar verbalmente quem defende tretas deste tipo, nestas tretas não podemos ignorar o que as pessoas pensam. Nas outras tretas não há problema. Tanto faz se o caçador de OVNI teima que Vénus é uma nave extraterrestre. E basta que quem queira proibir os homossexuais de casar não tenha poder para isso que não vale a pena ralarmo-nos com a sua opinião. Mas as tretas do terceiro tipo exigem considerar os factores que levam as pessoas a abraçá-las. Não se vai acabar com o infanticídio nas tribos do Brasil, ou a mutilação de crianças por crendice religiosa, só a escrever leis. É preciso compreender o que faz as pessoas agir assim e dar-lhes alternativas que elas prefiram. Só depois de reduzir a prática o suficiente é que se pode reprimi-la pela força. No caso da tourada, não sei ao certo o que se poderá fazer. Talvez incentivos económicos que facilitem a mudança de negócio a quem se dedica à criação dos touros. Talvez haja alterações graduais que se possa introduzir para reduzir o sofrimento do animal. Seja como for, com tretas deste tipo, se queremos resolver o problema é preciso engolir uns sapos e ser mais pragmático. Não podemos ficar só pelo escárnio e maldizer.

1- DRE, Despacho n.º 7198/2016, de 1 de junho de 2016.
2- Como os próprios aficionados admitem: «As ganadarias de toiros bravos surgem com a profissionalização do toureio a pé nos meados do século XVIII. Antes desta época o toiro era um animal silvestre, que vivia nos bosques da península ibérica. O touro bravo que hoje conhecemos é o resultado de mais de três séculos de cuidadosa selecção dos ganadeiros (pessoas que criam os toiros), que ao longo deste tempo foram selecionando caracteres comportamentais e morfológicos (aspecto) deste animal, numa busca constante pela bravura. Deste modo, hoje, podemos dizer que o toiro é cultura, ou seja, é o resultado da mistura entre as características naturais deste animal extraordinário e a acção do homem, na sua selecção.» Touradas.pt.
3- «Ainda praticado por cerca de 20 etnias entre as tribos brasileiras, o infanticídio indígena leva à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo.», INFANTICÍDIO INDÍGENA

sábado, fevereiro 02, 2019

Treta da semana: sermão ao ateu fundamentalista.

No blog do Público, Henrique Pinto Mesquita escreveu um sermão dedicado ao ateu fundamentalista. Como esse fundamentalismo me é imputado com frequência tenho desculpa para responder. Mas, antes, queria explicar porque é que a imputação é incorrecta. É natural que quem acredita ter uma relação pessoal com o criador do universo a veja como fundamental na sua vida. Mas eu não me preocupo com o que Bastet pensa da minha alergia aos gatos, o que Alá opina sobre o que como durante o Ramadão ou se Jeová se zanga quando trabalho ao Sábado. O meu ateísmo não é fundamento para nada. É apenas um efeito de eu valorizar a imparcialidade quando considero hipóteses e viver num universo que mostra claramente não existirem deuses. Não houvesse tanta gente a insistir que isto só vale para os deuses dos outros e eu nem seria chamado de ateu. O tema só dá para tanta conversa porque muitos julgam que preferir a Marvel à DC faz o Homem-Aranha tornar-se real.

Mesquita aduz aos ateus uma acusação vaga que se pode concretizar em três mais específicas: pensam que o crente «peca no intelecto»; que «Não pensa pela própria cabeça»; e que os crentes são «menos inteligentes»(1). Naturalmente, não me parece que os crentes sejam todos igualmente inteligentes. E, como de Mesquita conheço apenas este texto, vou abster-me de julgar a sua inteligência. Poderia sair desfavorecida. Mas não acho que ser crente implique ser menos inteligente. Por exemplo, tive o prazer – e guardo saudades – de conversar sobre isto com Alfredo Dinis, que era sacerdote católico e que sempre revelou ser uma pessoa inteligente. Também não considero que seja pecado tentar acreditar (com mais ou menos sucesso) na existência de algum deus. É um erro epistémico mas cada um é livre de usar os seus neurónios como entender. Eu não condeno a fé como intrinsecamente imoral. Ao contrário dos crentes, não considero que opinião seja delito.

Da acusação do meio é que me admito culpado. Realmente, parece-me que esforçar-se por acreditar num deus exige delegar o raciocínio a terceiros. Até Dinis o admitiu, confessando que a sua religião seria outra se tivesse outra cultura, sendo católico apenas por ter nascido onde nasceu. Mesquita parece admitir o mesmo, narrando ser «Oriundo de uma família católica e educado num colégio como tal», tendo voltado, após um cepticismo passageiro, a essa fé que descreve como «um sentimento, uma crença pessoal. Que em nada se pode confundir com a razão». Precisamente. Pela razão nunca chegaria lá.

Pensando por si, qualquer pessoa informada pode concluir que Odin não é um deus verdadeiro. Não precisa de ter fé na opinião de terceiros, nem em dogmas revelados, para perceber que aquilo que sabemos sobre Odin se explica melhor assumindo que é uma invenção humana e não um ser real. Passa-se o mesmo com o electrão, se bem que a conclusão seja a oposta. O que sabemos de coisas como electricidade, tempestades e reacções químicas encaixa perfeitamente quando assumimos que os electrões existem mas fragmenta-se num monte de mistérios desconexos sem essa premissa. Isto também se compreende usando a razão.

A fé, como a de Mesquita, não o permite. A fé não é conclusão de um raciocínio. É o ponto de partida, um dever ou desejo de acreditar em algo previamente determinado. E aquilo em que o crente acredita por fé vem de alguém que lhe diz que é assim. Mesquita assume-se «como um homem de fé» por opção sua mas é católico porque calhou. Noutro lado do mundo seria de outra religião qualquer porque a crença a que a fé o obriga é importada de quem estiver à sua volta, sem compreender como se pode concluir que aquilo é verdade.

Mais, esta falta de compreensão não é mera lacuna. É deliberada. Se o “homem de fé” usa a razão depara-se inevitavelmente com problemas como a arbitrariedade das crenças que quer adoptar e a inconsistência entre aquilo que quer acreditar e aquilo que observa. Por exemplo, um deus infinitamente bom e crianças a morrer de cancro. A solução é abster-se de pensar «pela própria cabeça» e dizer que são mistérios da fé. Como reconhece Mesquita, é algo que «em nada se pode confundir com a razão». Se é para acreditar nisso é melhor nem pensar no assunto. Isto é o contrário do que acontece com o ateu. Como o ateu pensa por si e pensa acerca da realidade, que é comum a todos, chega à mesma conclusão quer seja de família judaica, católica, muçulmana ou qualquer outra. Se tiver azar e nascer num sítio onde o ateísmo é reprimido pode ter de disfarçar. Mas, fora isso, ateu é ateu, venha de onde tiver vindo.

O ateísmo tem isto em comum com a ciência porque o ateísmo, tal como a ciência, não vem da vontade de crer em algo decidido a priori. Vem da vontade de seguir as evidências para perceber a realidade como ela é. Se apagássemos da memória colectiva todo o conhecimento da química, da física, ou da biologia, eventualmente seria possível recuperá-lo. Era só juntar novamente as peças do puzzle. O mesmo com o ateísmo. Todas as razões e raciocínios do ateísmo podem ser recuperados seguindo novamente o caminho que leva à conclusão de que os deuses são treta. Mas nenhuma religião é assim. Se apagássemos o cristianismo da memória humana a teologia cristã, com as suas idiossincrasias infundadas, desapareceria para sempre. Não seria possível reinventar as mesmas histórias, os mesmos dogmas da assunção, da trindade, da conceição imaculada e milagres. Haveria outras histórias para as substituir. Nisso a imaginação humana é prolífica. Mas nunca seriam as mesmas porque é tudo inventado, com muito pouco raciocínio e sem qualquer suporte em evidências.

1- Henrique Pinto Mesquita, O ateu fundamentalista

quarta-feira, janeiro 30, 2019

Privilégio de homem branco.

Várias vezes me imputaram este privilégio para refutar algo que eu defendia. Por exemplo, quando discordei de uma formação exclusiva para crianças de um sexo, por ser contra a discriminação sexual no ensino público, a primeira resposta que recebi foi a acusar-me do privilégio de ser homem branco. Outro exemplo foi a propósito de um debate sobre o activismo online. O painel era composto só por homens e algumas pessoas queixaram-se da falta de “representatividade”. Quando apontei que não faria sentido seleccionar ou excluir pessoas pelo sexo para debater esse tema – talvez fizesse se o debate fosse sobre disfunção eréctil ou licenças de parto – novamente a conversa começou com o tal privilégio de homem branco. Um traço comum é a irrelevância da acusação. Nada do que defendi nessas ocasiões teria mais fundamento se eu tivesse nascido mulher negra. Mas, além desse defeito óbvio, o alegado privilégio tem outros problemas mais relevantes.

Primeiro, presume que é melhor ser homem do que ser mulher. Normalmente, dizem que é porque os homens ganham mais, há mais homens em lugares de poder e as mulheres têm mais medo de andar sozinhas. Ou algo assim. Além de ser suspeitosamente focado em aspectos muito estreitos da vida humana, mesmo assim a asserção é questionável. Os homens ganham mais, em média, sobretudo porque as mulheres reduzem o trabalho que vendem para fora do agregado familiar quando têm filhos (1). Mas o facto de ser o homem, em média, a trazer mais dinheiro para a família não significa que seja só o homem a usá-lo. Do divórcio dos Bezos ao número de lojas para mulheres nos centros comerciais, parece-me haver muitos indícios de que os homens não saem financeiramente beneficiados desta colaboração. Além disso, são também os homens que fazem quase todos os trabalhos perigosos e mais desagradáveis (2). Também a preponderância de homens nos lugares de topo é acompanhada pelo domínio masculino no outro extremo. Nas prisões, entre os sem-abrigo e suicidas há muito mais homens do que mulheres. E se bem que muitas mulheres digam ter mais medo de andar sozinhas, o facto é que a maioria das vítimas de crime violento é do sexo masculino. Em média, a vida dos homens é mais perigosa. Entre agressões e acidentes, apesar de nascerem mais meninos que meninas, a partir dos 30 anos as mulheres já estão em maioria. A esperança média de vida de um homem português é inferior à de uma mulher na Turquia enquanto que a esperança média de vida de uma mulher portuguesa é dois anos e meio maior do que a de um homem no melhor país para os homens, que é a Suíça (3). Eu gosto de ser homem. Não me safava bem como mulher. Mas a ideia de que há vantagem em ser homem em países como o nosso é absurda.

Com a cor é diferente. Os humanos têm uma forte tendência para formar grupos e, com isso, uma disposição para distinguir entre “nós” e “outros”. Como a cor da pele é uma característica tão saliente, o racismo é um problema tramado e ter a cor da maioria poupa muitas chatices. Mas a cor de pele é apenas uma de muitas características que usamos para discriminar. Os ciganos romenos são brancos e não são particularmente privilegiados por isso. A cor da pele também tem adiantado de pouco aos judeus. Por outro lado, ter pele escura é um problema menor que os outros correlacionados por razões económicas e sociais. Enquanto os “brancos” em Portugal estão mais distribuídos por todos os níveis socio-económicos, os “pretos”, se bem que etnicamente e culturalmente muito diversos, são tendencialmente pobres. Muito pobres, porque são quase todos refugiados de situações extremas de miséria ou seus descendentes directos. Eu tive a sorte de nunca passar fome, de crescer numa família estável com pai e mãe, de morar numa casa e ter onde estudar. Viver assim com pele escura faria pouca diferença. E se tivesse crescido numa barraca, fosse para a escola com fome e a minha família fosse o gang da rua ser branco não me tinha adiantado de nada. No meio disto tudo, não é à cor que devo o que sou.

Mas o problema principal do “privilégio de homem branco” é a ideia de que é um privilégio. Um privilégio é uma vantagem injusta concedida a uns em exclusão de terceiros. É receber dinheiro do Estado por pertencer à família real. É entrar para um cargo por cunha ou por quotas. É aquilo que só é vantagem para uns porque outros não o têm. Eu tive muita sorte na minha vida mas crescer num ambiente saudável, ter acesso a educação e não ser espancado pela minha raça são direitos. Não são privilégios. É claro que quando me acusam do “privilégio” de ser homem branco não me estão a culpar por ter nascido como nasci ou por não ter passado fome. A acusação vem da ideologia identitária que ignora a pessoa como indivíduo e a vê apenas como elemento de um grupo. Nesta, o que importa são as estatísticas e não o que acontece a cada um. O meu “privilégio” vem do grupo em que me colocam, pela cor e sexo, ter estatísticas mais favoráveis quando contamos ministros, juízes ou milionários. É esse o “privilégio” que partilho com o trolha, o pastor e o reformado que janta chá e torradas porque a reforma não lhe dá para mais.

Este absurdo é ainda mais nefasto do outro lado. Os problemas da mulher que não tem dinheiro para alimentar os filhos ou do negro que tem de enxotar as ratazanas da barraca não se resolvem com “representatividade” ou “diversidade”. Podemos manipular as médias dos grupos privilegiando alguns indivíduos com quotas (isso sim é privilégio) mas o indivíduo não é a média nem um representa outro só porque têm a mesma cor ou genitais. A treta do “privilégio de homem branco” é mais um sintoma de como a esquerda se está a perder na obsessão por grupos e “identidades”. As medidas em que se tem empenhado, como quotas de género nas empresas e no Parlamento, censurar opiniões que ofendam quem pertence a certos grupos ou fiscalizar estereótipos nos livros de actividades, servem para manipular estatísticas e aparências à custa dos direitos individuais e sem adiantar de nada a quem precisa de ajuda. Depois admiram-se que os pobres votem à direita sem agradecer esta luta pelas estatísticas dos grupos.

1- Vox, A stunning chart shows the true cause of the gender wage gap
2- Mark Perry, ‘Equal pay day’ this year is April 12; the next ‘equal occupational fatality day’ will be in the year 2027
3- Wikipedia, List of countries by life expectancy

domingo, janeiro 27, 2019

Treta da semana: Terapia de Consciência.

No dia 19 de Novembro, Maria Borges lançou oficialmente, e com amor, a sua «marca como terapeuta» na Terapia de Consciência (1). Tinha tudo para correr bem. Comentários encorajadores das amigas, um site na Web, página no Facebook com mensagens inspiradoras (2), os preços das consultas online e até testemunhos de clientes satisfeitas, se bem que com alguma intersecção aparente com as amigas mencionadas atrás. Só cometeu um erro. Pagou ao Facebook para fazer publicidade ao seu consultório virtual, o que é arriscado porque nunca se sabe onde é que o anúncio vai aparecer e há por aí malucos que só estão bem a dizer mal.

Como eu não sou desses, começo pelo que me pareceu, inicialmente, ser um aspecto positivo na empreitada de Borges. Nestas coisas, vejo muitos exagerarem as suas qualificações e as virtudes da cobra cuja banha querem vender. Pareceu-me louvável de Borges evitar este erro. Descreve a sua terapia de forma minimalista e abstém-se de quaisquer alegações passíveis de induzir o leitor a julgá-la uma terapeuta qualificada. Pouco mais adiante do que «A terapia de consciência permite uma leitura, compreensão e orientação do seu estado de consciência de forma integral» e que, como terapeuta, tem quatro características importantes, cada uma ilustrada com o boneco apropriado: escuta activa (uma orelha); linguagem acessível (um balão); sensibilidade avançada (uma folha); e foco no resultado (um alvo). São cinquenta euros por uma consulta online individual, oitenta se for um casal, por uma terapia descrita assim:

«Com as ferramentas necessárias possibilito acesso a campos de informação necessários para compreender o seu percurso, os seus bloqueios, as suas potencialidades e em conjunto chegarmos a um caminho mais adequado àquilo que realmente faz sentido para si.»

Despertou-me a curiosidade e fui procurar mais sobre esta Terapia de Consciência. Foi durante essa breve pesquisa que a minha percepção de virtude na abordagem de Borges se foi transformando em preocupação. Encontrei material sobre estados alterados de consciência mas não deve ser isso porque não dá para fazer dessas coisas com consultas online. Acerca da Terapia de Consciência apenas descobri que «tem como base explorar os nossos processos mais inconscientes, fazendo uma análise integrada dos vários aspectos que nos podem estar a aprisionar e construindo de forma integrada soluções e orientações para a resolução de situações que nos podem estar a impedir de trazer as nossas virudes [sic] e bem-estar.» (3).

Não sei onde a terapeuta Maria Borges se formou em Terapia de Consciência. Talvez haja cursos disso. Talvez me tenha escapado alguma fonte mais substancial sobre esta terapia. Mas receio que isto seja sinal de uma twitterização das tretas. Agora tem de caber tudo em 250 caracteres ou ser pequeno que baste para ler à pressa no telemóvel no intervalo de esmagar rebuçados. Se for isso, é pena. Ganhei gosto por tretas mais elaboradas e temo que já não tenha idade para me adaptar a este minimalismo.

1- Maria Borges, Facebook.
2- Maria Borges, e Facebook
3- Essência de Luz, Terapia de Consciência

domingo, janeiro 20, 2019

ISDS

Em 1599 um grupo de comerciantes britânicos formou uma companhia para organizar expedições às “Índias Orientais”. No ano seguinte lá convenceram a rainha a conceder-lhes o monopólio sobre essas expedições, criando assim a organização que se tornaria na Companhia Britânica das Índias Orientais (EIC). No final do século XVIII, a EIC tinha um exército privado com cerca de sessenta mil soldados, incluindo infantaria, cavalaria e artilharia, e uma frota de cargueiros armados e navios de guerra. Foi a EIC que conquistou a Índia para o Reino Unido e a governou durante décadas. Era a EIC que ditava as regras e as impunha por boa parte da Ásia.

Este é o estado natural das interacções humanas, e de muitos outros animais. Quem tem poder, aproveita. O leão maior, o grande chefe, o rei, o ditador ou a corporação. É para isto que as sociedades humanas convergem naturalmente. Mas, como as cáries, ser natural não quer dizer que seja desejável. Felizmente, já descobrimos maneiras de contornar a natureza e ir prevenindo estas coisas, quer as cáries quer os abusos de poder. Para isso, a democracia é um profiláctico eficaz, como o flúor e consultas regulares. Numa democracia as leis são iguais para todos, quem as impõe é o Estado por meio de tribunais independentes, os legisladores são eleitos por sufrágio universal e tudo isto funciona sob escrutínio dos cidadãos. A legitimidade do que nos governa vem da vontade dos governados e não do poder dos governantes. Mas não basta lavar os dentes uma vez. Os ataques à democracia são piores que a placa dentária, exigindo vigilância constante contra corrupção, nepotismo, mentiras e a sequestração de processos legítimos por parte de interesses privados. O ISDS é um exemplo deste último problema. Podia ser uma coisa boa mas a implementação presente faz lembrar as Companhias das Índias.

O Investor-state dispute settlement é um mecanismo incluído em muitos tratados internacionais para permitir aos investidores estrangeiros processar o Estado onde investem sem recorrer ao sistema judicial desse Estado. Supostamente, o propósito original deste mecanismo é incentivar o investimento externo protegendo os investidores de sistemas judiciais inadequados, corruptos ou ao serviço de regimes despóticos. A ideia faz sentido. Países em desenvolvimento têm muito a beneficiar com o investimento externo mas são precisamente os mais afectados por problemas no sistema judicial. Também pode ser bom ter um tribunal imparcial que possa adjudicar disputas entre países diferentes, e já existem vários assim. Mas apesar da ideia ser boa, a implementação é péssima.

O ISDS permite aos investidores processarem o Estado onde investem. Por exemplo, a Metalclad estava montar um aterro em Guadalcazar no México mas a população protestou e as autoridades locais recusaram a autorização da operação, suspendendo os trabalhos em 1995. A Metalclad processou o México e recebeu 16 milhões de dólares de indemnização além da autorização para construir o aterro, mesmo contra a vontade da população e a decisão das autoridades locais (1). No entanto, o ISDS não serve para processar empresas multinacionais. Os procedimentos têm de ser iniciados pela empresa. Nem os Estados, e muito menos os cidadãos, podem usar este sistema de arbitragem. Portanto, o objectivo não é oferecer uma alternativa mais justa do que os sistemas judiciais deficitários dos países em desenvolvimento. É só para proveito das empresas. Isto pode estimular o investimento externo mas provavelmente não será o tipo de investimento que mais beneficiará esses países.

Além disso, o ISDS é usado mesmo entre países democráticos com sistemas judiciais perfeitamente adequados. Se o propósito fosse mitigar os problemas da justiça nos países em desenvolvimento, isto seria desnecessário. Mas não é esse o propósito. O ISDS não tem um tribunal independente. A arbitragem fica a cargo de advogados que trabalham para empresas que até podem ter o litigante como cliente. É um tribunal privado que, além de caro – o litígio ronda as dezenas de milhões de euros, para lucro dos advogados – e pouco transparente deixa muitas dúvidas acerca da sua imparcialidade. A sua função óbvia é contornar o processo democrático de legislação e aplicação das leis. E já está a chegar cá (2).

Em vez de um processo privado pelo qual multinacionais processam Estados para garantir lucro, o que é preciso é um sistema independente, transparente, que não só garanta os direitos de todos mas que também responsabilize as empresas mesmo nos países onde a lei é deficitária. O problema principal do investimento internacional não é a falta de lucro mas sim os abusos de empresas que poluem e exploram o máximo que podem. No próximo dia 22 de Janeiro, um colectivo de associações europeias irá iniciar uma campanha contra o ISDS e por um sistema mais justo (3). Voltarei ao assunto quando souber mais detalhes.

Se tiverem 18 minutos livres, recomendo este vídeo onde Alessandra Arcuri explica alguns aspectos do ISDS: Law professor explains the dangers of ISDS. Já tem uns anos e é no contexto do TIPP, mas explica o mais importante. Se tiverem uma hora e meia para gastar, este painel sobre a reforma do ISDS é interessante: ISDS at a Crossroads. Especialmente a intervenção de Charles Brower, um defensor (e parte interessada) do ISDS como está. Fico especialmente confiante da minha oposição a algo quando os seus defensores reforçam as minhas suspeitas. Se só vos sobrar 4 minutos, então vejam este: ISDS – A corporate system of injustice. Seja como for, fiquem atentos nos próximos tempos. Defender a democracia é como manter os dentes saudáveis. Sabemos o que fazer, mas é preciso ir fazendo.

1- Metalclad Corporation v. The United Mexican States, ICSID Case No. ARB(AF)/97/1. Mais exemplos na Wikipedia.
2- Plataforma TROCA, EDP versus Portugal
3- Plataforma TROCA, Direitos para as pessoas, regras para as multinacionais. Mais informação neste texto do João Vasco: A luta contra sistemas de Justiça ao serviço das Multinacionais.