segunda-feira, setembro 16, 2019

A heurística.

No Esquerda Republicana, João Vasco defende a «legitimidade do argumento de autoridade» e propõe que «Se não sou especialista numa área, eu uso uma heurística: confio no consenso entre especialistas.» Defende-o, alegadamente, em oposição à tese de que «a Ciência recusa "autoridades", o que importa são as "evidências", "devemos avaliar os argumentos pelos seus méritos, avaliar as evidências que os suportam, e ignorar a quantidade de gente que a eles adere ou a autoridade dos mesmos" e por aí fora». Propõe João Vasco que, aceitando argumentos de autoridade, poderemos ter uma «epistemologia diferente, adequada a uma população que tem de formar crenças sobre a verdade ou falsidade de afirmações relativamente às quais não tem tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.»(1)

A intenção parece boa mas temo que não funcione. Primeiro, “confio no consenso entre especialistas” não é uma heurística útil. Tal como “cuida da tua saúde para não teres doenças”, é um conselho que nada diz acerca de como o aplicar. Vou confiar nos teólogos para saber se Deus existe, nos astrólogos para saber a astrologia funciona e nos criacionistas para saber se o criacionismo é verdade? Não adianta confiar nos especialistas sem saber identificar os especialistas certos. Além disso, esta heurística de nada serve contra meias verdades e outros engodos. Por exemplo, se alguém disser que as Torres Gémeas não podem ter caído por causa dos aviões porque, segundo os especialistas, a temperatura a que arde o combustível dos aviões não é suficiente para derreter o aço. Confiar naqueles que se julga especialistas não é uma maneira fiável de «formar crenças sobre a verdade ou falsidade de afirmações relativamente às quais não [se] tem tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.»

Um equívoco parece estar na distinção que João Vasco faz entre evidências (isto é, indícios de que uma hipótese é verdadeira) e a opinião de especialistas. A opinião de especialistas é também evidência, exactamente como o resto. Na verdade, as evidências são apenas hipóteses das quais, de momento, julgamos não valer a pena duvidar. Aquilo que nos parece evidente que é verdadeiro. Por exemplo, se eu confio na balança então considero o número que lá aparece como evidência para o meu peso. Se não confio, então é algo que tenho de testar. Com pesos conhecidos, por exemplo. Qualquer investigador confia (tentativamente) em muitas fontes autoritárias, desde os aparelhos que usa aos artigos que cita e em cujos resultados baseia o seu trabalho. Tudo isso são evidências que, em conjunto, terá de avaliar para determinar que conclusão suportam. Tanto faz se são resultados de experiências, valores fornecidos por aparelhos, citações de artigos ou alegações de peritos. Não são fiáveis sem “tempo nem disponibilidade” para as avaliar porque é sempre preciso avaliar o padrão que formam. É preciso atenção constante àquelas inconsistências que indicam que este perito está enganado, aquele aparelho está a funcionar mal ou aquela medição foi mal feita.

É por isso que a “heurística” de seguir os peritos não serve de substituto à análise das evidências. A opinião dos peritos é mais uma peça do puzzle e não há uma regra simples para distinguir entre as evidências correctas e as incorrectas. O que funciona, mas que é mais trabalhoso do que confiar nos peritos, é manter uma atitude persistente, consciente e deliberada de atenção ao encaixe das evidências e a disposição para considerar hipóteses alternativas, questionando premissas sempre que algo não encaixe bem. Isto exige treino e depende de ter informação e de compreender como essa informação está interligada. Nada disto é possível sem tempo e disponibilidade para avaliar as evidências.

Infelizmente, isto que João Vasco propõe está a ganhar popularidade. Há quem queira que empresas policiem as “redes sociais” para eliminar afirmações falsas ou prejudiciais. Há fact checkers que se apresentam como fontes autoritárias que nos basta consultar para ficarmos imunes ao engano. Até serve para vender jornais, alegando que, se pagarmos aos jornalistas, eles tornam-se fontes fiáveis de informação correcta e imparcial. Mas nada disto resolve o problema de muita gente não ter «tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.» Para resolver esse problema é preciso, primeiro, dar tempo às pessoas e a formação necessária para que possam pensar criticamente. E, depois, é preciso que as pessoas queiram usar esse tempo e essa capacidade para avaliar adequadamente as hipóteses que lhes apresentam. Confiar em fontes fiáveis é uma boa ideia mas não dispensa a atenção necessária para avaliar se a fonte é realmente fiável, se merece essa confiança e se não está a dizer asneira. Sem esse cuidado, esta “epistemologia diferente” é apenas pôr-se jeito para enfiar barretes.

1- João Vasco, A Ciência e os argumentos de autoridade

11 comentários:

  1. Bom post para se refletir e comentar com mais tempo, depois.

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  2. e eliminar pobres perfis sem fotografias de jêto no falsebook

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  3. A astrologia, o criacionismo, a existência de Deus, não reúnem consensos entre os especialistas do que é a matéria de facto, os cientistas e porque não , os filósofos. Eu estou de acordo que é muito melhor usar pensamento crítico, e até defendo que ele não pode ser posto em modo de espera. Mas é muito difícil trabalhar e viver sem conceder algum grau de autoridade a algo ou alguém. Eu acho que o consenso científico é uma das maiores empresas da humanidade, e em cada época, foi quase sempre o melhor que se podia saber. Para além disso, eu discordo que possa haver especialistas na pseudociência. Quanto muito especialistas em pseudociência.

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  4. Se eu for especialista em gnomos mas os gnomos não existirem, sou especialista em quê? Gnomos não é certamente. Especialista em nada parece me uma negação de se ser especialista.

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  5. O sr. Krippahl é old-schoold. Ele sempre vai defender os argumentos ''cépticos'' de antigamente, a la Sagan e Asimov, por exemplo, mesmo que estejam ultrapassados ou apareçam argumentos com aplicações mais úteis ao quotidiano.

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    1. O sr. Krippahl é old-school. Ele sempre vai defender os argumentos ''cépticos'' de antigamente, à la Sagan e Russell, por exemplo, mesmo que estejam ultrapassados ou apareçam argumentos com aplicações mais úteis ao quotidiano.

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    2. Houve um erro ortográfico, por isso postei duas vezes.

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  6. De qualquer modo, preocupa-me, como condição geral da convivência e dos negócios humanos, que todos façam afirmações e proclamem certezas, mas sejam muito poucos os que fazem demonstrações. Afirmar é fácil, demonstrar pode ser impossível. Vivemos mais num mundo daquele tipo.

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  7. e as eleições, desta vez nã há recomendação pró livra-te?

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  8. afirmar que o aquecimento global é uma catástrofe para os sonhos das creanças num me parece fácil de demonstrar, falta uma semana prás eleições é só fazer um copy e garantir 60002 votos no partei

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