quarta-feira, setembro 30, 2009

Viva a blasfémia.

It's fun to live at the

www.blasphemyday.com

terça-feira, setembro 29, 2009

Protestar, militar ou liderar.

Agora que a Alemanha escolheu quem governa e nós os representantes das províncias portuguesas, já há mais calma para comentar as sugestões do Gonçalo Valverde acerca dos meus protestos contra o estado da nossa política, que nos obriga a escolher o menos mau por não haver nada de bom:

«Vivemos num sistema democrático (mais ou menos) e se o Ludwig não gosta das escolhas que lhe são propostas tem duas alternativas:
1- Aderir a um partido em que se reveja e trabalhar no seio do mesmo para o mudar
2- Juntar-se a outros descontentes com o sistema actual, recolher cinco mil assinaturas e fundar um novo partido que apresente propostas novas.
Claro que quer uma ou outra das opções dão muito mais trabalho que o típico lamentar, mas garanto-lhe que a postura "consumista" dos partidos como se fossem champôos ou qualquer outro produto de consumo é que não vai mudar a situação.
[…] Essa é a posição mais confortavel e a posição mais facilitista, lamento dizer-lhe. Num pais onde toda a gente tem opinião sobre tudo, infelizmente são poucos os que gostam de arregaçar as mangas e trabalhar para uma efectiva mudança. Como se costuma dizer, "talk is cheap"...»
(1)

Admito que protestar é mais confortável. Mas não aceito que fazer as coisas da maneira mais fácil seja, só por si, um defeito. Se posso levar as compras para casa carregando os sacos nas mãos não vejo porque os deva levar pendurados dos dentes só para ser mais difícil. Por isso começo por apontar que o conforto e a facilidade são factores a considerar na coluna dos prós. É claro que podem implicar contras se conduzirem a uma alternativa menos eficaz. Mas não neste caso.

Não sou professor por coincidência. Gosto de explicar e ser claro e gosto que me entendam. Este é um vício terrível para um político, nos dias que correm, pela necessidade de ser claro apenas naquilo que a audiência concorde. E sei por experiência que não tenho capacidade para mover massas nem para pôr uma data de gente de braço no ar a gritar a sigla que eu escolha. Por isso a segunda sugestão do Gonçalo é, para mim, uma perda de tempo. Um esforço enorme para um impacto ainda menor que escrever um blog, por pouco efeito que isto tenha.

E a primeira opção junta à incapacidade de liderança política a dificuldade de escolher um partido no qual militar. Já me é difícil escolher onde marcar uma cruzinha – afinal, queixo-me precisamente não haver partidos bons, só maus e piores – não vejo como me posso tornar militante de um. E não era boa ideia. Militante ou não, o meu voto só conta por um. A minha influência no partido ia depender da tal lábia política que me falta. E ia comprometer a minha credibilidade sempre que falasse de política a quem interessa: os eleitores não militantes, aqueles que ainda estão a decidir.

Mas a razão principal para rejeitar estas sugestões do Gonçalo é que não são soluções. São parte do problema. Porque o problema é o mercado da democracia ser dominado pela oferta. Quando vamos a votos é que vemos o que há disponível e muitos vão pela marca a que se habituaram. Compramos o que nos impingem. Criar um novo produto ou tentar vender um velho numa embalagem mais atraente apenas perpetua o problema. O que é preciso é que a procura domine a oferta. É que as propostas dos partidos sejam moldadas pelas exigências dos eleitores. E para isso é preciso um eleitorado exigente, informado, que diga o que quer e que vote por isso.

O resultado destas eleições sugere que estamos no bom caminho. Muita gente mudou o seu voto e pelo menos um partido grande vai ter de repensar o que oferecer aos eleitores daqui a quatro anos. Mas ainda há muito clubismo, muita inércia, muita abstenção e muita gente a votar reagindo ao que ouve sem pensar primeiro no que quer. E isso não pode ser corrigido com mais partidos ou mais militância. Só com mais informação e mais discussão. Só assumindo cada eleitor a responsabilidade que, neste momento, soluções como as do Gonçalo delegam nos lideres partidários ou nos militantes.

1- Comentários a Treta da semana: diz que é proibido despedir.

domingo, setembro 27, 2009

Cara Lilly.

A Lilly Allen é (dizem) uma cantora famosa. Apesar de ter começado a carreira gravando a sua voz com músicas de outros cantores famosos e pondo-as online, recentemente decidiu lutar contra a partilha de ficheiros. Criou um blog para criticar os “piratas” e defender o corte da ligação a quem partilha, foi logo apanhada a plagiar (1), acabou por apagar o blog e dizer que desiste da música (2) e agora até mudou de ideias quanto aos castigos aos partilhadores (3).

Mas isto, por si, tem pouco interesse. É apenas mais um de muitos exemplos da ausência de correlação entre fama, talento artístico e sensatez. Apenas o menciono como introdução a este vídeo do Dan Bull, outro músico, que compôs esta carta aberta à Lilly. Está porreiro.



Via ZeroPaid.


1- TorrentFreak, 21-9-09, File-Sharing Heroine Lilly Allen is a Copyright Hypocrite
2- TorrentFreak, 24-9-09, Lily Allen Deletes Pro-Copyright Blog and Ends Career
3- TorrentFreak, 25-9-09, Lily Allen Changes Tune, Now Wants To Throttle Pirates

sábado, setembro 26, 2009

Matemática ilegal.

A Texas Instruments (TI) tem um sistema de encriptação nas suas máquinas de calcular mais sofisticadas para impedir que se instale software que a empresa não tenha validado (1). Penso que isto tem interesse para a TI por restringir o uso destas máquinas, que são pequenos computadores, de forma a que sejam permitidas em exames oficiais. Mas é uma forma deliberada, e eticamente dúbia, de impedir o comprador de tirar pleno partido do equipamento que comprou.

Infelizmente para a TI, usaram uma chave de encriptação com apenas 512 bits para a assinatura digital. Ao fim de uns meses de cálculos distribuídos por uma rede de computadores, um grupo de entusiastas conseguiu factorizar os módulos das chaves públicas de vários modelos de máquinas da TI (2). Ou seja, para cada modelo, calcularam os dois números primos cujo produto é igual a um número que faz parte da chave pública. Como estes números são grandes, o cálculo é demorado mas, uma vez factorizado o módulo, é trivial calcular a chave privada e levar a máquina a aceitar qualquer software como se tivesse sido aprovado pela TI.

Em resposta, a TI exigiu a várias pessoas que retirassem essas chaves da Web (3), o que levou imediatamente outras a pô-las online, incluindo na Wikileaks (4) e Wikipedia (2). O esforço é fútil, mas a lei dá razão à TI, porque saber estes números primos permite contornar o sistema de restrições que a TI implementou nas suas máquinas de calcular. São números ilegais. E, pela mesma razão, as contas que fizeram para os calcular são também ilegais. Factorizar um número em dois números primos, segundo o Digital Millenium Copyright Act, é uma violação de direitos de autor e um acto ilegal. O que demonstra, matematicamente, que leis como esta são uma treta.

Via Schneier on Security.

1- Por exemplo, a TI-83
2- Wikipedia, Texas Instruments signing key controversy
3- Por exemplo, http://diomedes.phear.cc/~chronomex/keys.shtml>esta.
4- Suppressed Texas Instruments cryptographic signing keys, 28 Aug 2009

sexta-feira, setembro 25, 2009

Treta da semana: Palavra da Ciência.

Já várias vezes me pareceu que a forma como o Ricardo Silvestre descreve a ciência pode ser mal entendida. O que não me tem preocupado enquanto o Ricardo falava por si. Mas agora o Ricardo representa o Movimento Ateísta Português. O nome não é esse, mas os apresentadores de rádio e TV não estão para dizer “associação-portal-ateu-traço-movimento-ateísta-português” e, mesmo que dissessem, não seria claro que isto não é acerca dos ateus portugueses mas do site Portal Ateu (1). Por isso agora já me preocupo, não vá alguém julgar que eu defendo o mesmo que o Ricardo.

O Ricardo foi convidado para o programa Companhia das Manhãs, da SIC, onde também estava uma sacerdotisa e um médium. A sacerdotisa explicou como sentia os espíritos depois de uma reportagem onde lançava ou Tarot e dava uma consulta. O médium disse que isso não podia ser assim porque o Tarot é um jogo de adivinhação e um verdadeiro médium não faz disso. E o Ricardo afirmou que «Nada disto está provado científicamente. Estas pessoas não têm qualquer certificação nem técnica nem científica para o fazer. [...] Se as pessoas querem realmente ter uma acção como essa, que tirem toda esta conversa, todo este misticismo que é para enganar as pessoas e provem-no na arena científica.» Depois, mostrando umas folhas impressas, disse «Esta é a maneira como se faz um trabalho de ajuda científica. Publica-se na literatura que é vista como uma literatura científica. Não é esta conversa dos búzios, que esta conversa dos búzios não diz absolutamente nada.»

Para pregar ao coro talvez chegue, porque quem parte do principio que o médium e a sacerdotisa só inventam tretas vai achar que o Ricardo lhes disse das boas. Mas para quem está de fora, o Ricardo apresentou a ciência como sendo igual ao resto. A sacerdotisa diz que é de uma maneira, o médium diz que é de outra e o Ricardo abana os papeis no ar e diz que não, que é assim como ele diz. Pior ainda, diz que se preocupa por estarem «a promover um serviço onde pessoas que não têm a capacidade para saber melhor, ou porque não têm o conhecimento ou porque são susceptíveis para tal, são de repente envolvidas em situações como estas.» Isto sugere que a ciência é só para alguns, como se fosse uma disciplina esotérica. Pelo contrário, a ciência é uma ferramenta para compreender a realidade e qualquer pessoa a pode utilizar.

A dona de casa que tem a ideia de arrefecer o leite pondo o púcaro em água fria faz ciência. Parte de uma ideia geral acerca de como o calor se transfere, cria um modelo mental do que espera acontecer ao leite no púcaro e faz a experiência, atenta ao resultado a ver se corre como esperava. Todos nós fazemos ciência sempre que pensamos nas coisas, experimentamos e ajustamos as nossas ideias ao que observamos. É isto que importa salientar. Ao contrário das muitas crendices, a ciência não precisa de fé, não precisa de dons místicos ou de iniciações esotéricas, de pactos com espíritos do outro mundo ou respeito por rituais. Precisa apenas da capacidade humana, universal, de compreender.

O difícil na ciência moderna não é a abordagem, que é perfeitamente acessível a quem a queira perceber. O que é difícil de dominar é o corpo de conhecimento que a ciência acumulou. Por ser uma forma de esclarecer assente em dados objectivos, a ciência é a actividade humana que mais aproveita o trabalho anterior. Mais que a arte, a filosofia ou as crenças, a ciência acumula resultados, constrói teorias sobre estes e estende o seu alcance constantemente. É por isso que é preciso muitos anos de estudo para dominar mesmo uma parte pequena do muito que a ciência descobriu. Mas qualquer um pode fazê-lo. Basta algum esforço e paciência. Porque não há mistérios, não há segredos, não é preciso saltos de fé ou dons místicos. E é isto que temos de explicar, que ciência não é para alguns mais capazes. É para todos.

E é o contrário disto que o Ricardo faz parecer. Na sua segunda intervenção, após uma nota biográfica pouco relevante que facilmente usaram contra ele, o Ricardo prossegue com variações do argumento de autoridade. Desafia os outros participantes a explicar porque é que não há médiums ministros ou prémios Nobel e diz que o que eles defendem implica que os médicos e cosmólogos e outros cientistas não sabem o que dizem. Ou seja, novamente apresenta a ciência como um campo dogmático, elitista, onde as coisas são assim porque os cientistas o dizem.

Apesar do que parece, isto não é um ataque pessoal ao Ricardo. Esta forma de defender a ciência é comum, infelizmente, e não me daria para implicar tanto com ele só por isto. Se não fosse a percepção inevitável que o Ricardo é um representante do ateísmo português. Não é, e a última coisa que precisamos é dar a ideia que a ciência é uma coisa que só os bons percebem e que quem não tem doutoramento ou artigos publicados deve calar e acreditar nos cientistas. Esse é o truque dos outros e o erro que nós devemos corrigir. No início do segundo vídeo o Ricardo diz que acredita na ciência. Eu não. Eu tento compreendê-la. A ciência serve para compreender e para explicar, e acreditar tem pouco a ver com isso.

Deixo aqui os vídeos da intervenção do Ricardo. A primeira parte, copiada do post A PAMAP contra o irracionalismo:


E a segunda parte, tirada do post A PAMAP contra a irracionalidade, parte 2:


1- www.portalateu.com

quinta-feira, setembro 24, 2009

(In)decisão...

Várias pessoas propuseram que a economia é o factor mais importante para decidir o voto. Infelizmente, não há consenso acerca do partido que a economia recomenda. E um problema é o medo, injustificado, que redistribuir mais nos trama a todos por reduzir a produção de riqueza, e que é a produção que importa.

Dividir o PIB pelo número de adultos dá 2,000€ por mês. É o meu rendimento*. E é metade da média alemã, o que parece muito mas, a este nível, tem pouco efeito na qualidade de vida. Se eu fosse professor universitário na Alemanha a diferença principal na minha vida seria ter, e gastar, mais dinheiro para passar férias cá. Aumentar o rendimento de quem já tem a sua parte da riqueza que este país produz tem pouco impacto. O dinheiro faz falta é a quem tem muito menos que isso.

Às vezes vejo no Lidl pessoas a contar os trocos a ver se levam o pão ou só o arroz e as cebolas. É aí que se deve investir para aumentar a qualidade média de vida. Não com esmolas, mas com a garantia justa que ninguém é condenado à miséria. E isto é também um estímulo à produção. Subsidiar empresas não ajuda quem passou 20 anos a coser sapatos numa fábrica que agora faliu. Ninguém lhe vai dar emprego. Mas dar-lhe um rendimento fixo e não ameaçar retirar-lho assim que a sua situação melhore incentiva essa pessoa a tornar-se novamente activa na economia. A comprar um carro e fazer limpezas a escritórios, ou equipamento de sapateiro e reparar sapatos ou qualquer outra coisa. Arriscar, sabendo que não perde tudo por isso. Coisa que quem vive das poupanças ou de um subsídio à miséria nunca fará. Por isso eu defendo mais redistribuição, não só para melhorar a qualidade média de vida como, se for bem feita, para estimular o empreendedorismo individual que a economia tanto precisa.

Mas o mais importante nesta decisão nem é o que eu penso da economia. É a incerteza das estimativas ser muito maior que as diferenças estimadas. Há uns gráficos que mostram uma grande variação na desigualdade de rendimento entre os governos do PSD e PS (1). Mas a variação é apenas do rendimento médio no percentil 80 ser 7.4 vezes maior que no percentil 20 com o PSD, para 6.4 vezes maior com o PS. Contas por alto, é como baixar de 3700€ para 3400€ nos ricos aumentando de 500€ para 531€ nos pobres. Vai na direcção certa, mas só impressiona quando se manipula o gráfico para exagerar a diferença. Quando tento projectar o que prevejo das medidas económicas do PS, do PSD e do BE num eixo do muito mau ao muito bom, se sou honesto com as margens de erro estas pequenas diferenças só dão manchas desfocadas sobrepostas no mau. A economia é importante mas não me ajuda a distinguir estes partidos sem assumir uma capacidade irrealista de prever o futuro num sistema tão complexo.

Por isso dou mais importância a factores onde vejo diferenças significativas. Questões de valor, sem margem de erro, como os deveres do estado, direitos dos animais, justiça e direitos do cidadão. E questões práticas onde a margem de erro seja pequena. Como patentes de software, legalização da partilha de ficheiros para uso pessoal e assim por diante. Coisas que, além de serem importantes, permitem distinguir os partidos sem ter de fingir que sou melhor vidente que quem discorde de mim. É com isto que o PSD fica logo de parte.

Na investigação e ensino superior o PS parece o melhor, até porque se tem portado bem nisto. Mas na privacidade, liberdade de comunicações digitais, patentes de software e afins fica muito atrás do BE. E tem um historial de argoladas que me deixa relutante em votar neles. Mas o BE tem as medicinas alternativas. O João Semedo explicou-me que decorre um processo para os ministérios da saúde e da educação certificarem os cursos de terapias complementares. Mas quando perguntei se aceitariam que ensinassem coisas sem fundamento, como os meridianos ou os desequilíbrios energéticos, remeteu-me para a legislação e sugeriu que eu consultasse os programas do pólo português da universidade de Chengdu, a do Pedro Choy (2). Este é um problema sério e não concordo que legitimem algo que, não há outra forma de o dizer, é treta. Mas seria pior proibi-lo. O mérito destas terapias é uma questão científica e não legislativa. O erro do João Semedo é enquanto médico e não enquanto deputado. Não posso culpar a política por isto porque a culpa é da ciência, que ainda não conseguiu explicar às pessoas a diferença entre medicina e fantochada. É a ciência e a educação que têm de resolver este problema.

Por isso estou inclinado a votar no BE, e aproveito para deixar o meu apelo ao voto. Não necessariamente no BE, que o voto é secreto e cada um sabe do seu. Além disso, até Domingo ainda posso mudar de ideias. Mas votem. Quer queiram quer não, dia 27 elegemos 230 pessoas para nos representar. A todos, incluindo quem não vote. E o problema da nossa democracia é ter os partidos vinte anos atrás dos eleitores, no tempo em que o que contava era a cor da camisola. Esta é uma boa oportunidade para lhes mostrar que queremos soluções e não slogans ou ideologias. A melhor maneira de o fazer é votando.

Se não gostam dos grandes, votem no pequenino que esteja mais perto de algo que vos interesse. Seja o que for. Escolham um tema e força. Porque de votos em branco e abstenções eles riem-se. Mas se os obrigamos a partilhar a Assembleia com uma data de partidos já lhes estragamos os arranjinhos e já prestam mais atenção daqui a quatro anos. A democracia é como o Xadrez. É preciso pensar várias jogadas à frente.

* Considero que é rendimento líquido, mas a diferença entre o rendimento bruto e o líquido está nos impostos, que redistribuem os rendimentos e não afectam a média.

Correcção: O PIB per capita da Alemanha é só 150% do nosso. Vi mal os valores. Mas o dos EUA é o dobro do nosso, e entre ganhar menos cá ou mais lá prefiro ficar por cá...


1- Por exemplo, neste post do Ricardo Schiappa: Justiça social
2- Neste momento o site está em baixo, mas deixo o link à mesma: www.univ.pedrochoy-chengdutcm.eu

quarta-feira, setembro 23, 2009

BE

O problema principal do BE, e da esquerda em geral, é a mentalidade de crise. Não vivemos num mar de rosas, mas o alarmismo de afirmações como «A recessão de 2008-2009 é a maior tragédia social desde o meio do século passado, quando terminou a guerra mundial»(1) é, além de irrealista, demasiado clichê para ter sequer impacto emocional. No entanto, se despido da retórica do punho erguido, a maior parte do programa do BE até é razoável.

O nosso problema não é tanto a produção de riqueza mas sim a sua distribuição. Por isso concordo que o estado deve redistribuir mais, desde aumentando subsídios e pensões mínimas a eliminar os benefícios fiscais dos PPR. Estou também de acordo com a ideia do estado prestar serviços a todos por igual, com a expansão do SNS – exemplo importante deste principio – para incluir a medicina dentária e a reprodução medicamente assistida mesmo para mulheres solteiras. É um absurdo a mulher ter de apresentar um papel a dizer que “tem homem” para poder receber assistência médica. Ao contrário da gravidez, a infertilidade é mesmo um problema de saúde.

Por outro lado, discordo das tentativas de distorcer o mercado. Aumentar o ordenado mínimo e combater a precariedade do trabalho com restrições aos contratos, por exemplo, são medidas com efeitos secundários contrários ao pretendido. E que normalmente acabam por ser mais prejudiciais que benéficas. Apesar disso, concordo que o despedimento colectivo seja apenas para casos em que a sobrevivência da empresa o exija. Não para forçar os contratos, mas porque esta forma de despedimento, ao contrário das outras previstas na lei, permite cessar os contratos de vários trabalhadores ignorando o disposto no contrato de cada um. Sou a favor que haja mais flexibilidade nos contratos, mas sou contra que os empresas os possam ignorar sempre que queiram.

Também concordo com a legalização das drogas leves e com a administração médica das restantes, com a investigação em células estaminais, um controlo mais apertado das condições de higiene e segurança no trabalho e, pelo menos em princípio, com a legalização da morte assistida para doentes em estado terminal. Mas discordo da abertura do BE às “medicinas” alternativas. Pedi alguns esclarecimentos ao João Semedo, deputado responsável pelas políticas de saúde do BE, e a resposta não me satisfez.

Na educação, estou a favor da redução nos horários escolares das crianças e de ensinar mais arte, mas penso que deviam também preocupar-se em ensinar melhor ciência. E não concordo com as críticas do BE ao processo de Bolonha. Correu melhor nuns sítios, pior noutros (por exemplo, com os “mestrados integrados”) mas a ideia é boa e penso que o processo é benéfico para o ensino superior na Europa.

Um ponto polémico no programa do BE é a proposta de nacionalizar a produção de energia, que tem sido progressivamente privatizada nos últimos governos. Não sei se é boa ideia. Mas também não vejo porque seja tão má. É uma área na qual o mercado livre não funciona. Os preços têm de ser regulados, não há concorrência e não há razão para ser um negócio privado. E não me preocupa que alguns investidores estrangeiros fiquem chateados. Por outro lado, também não vejo grandes vantagens nesta medida. Tanto me faz.

Globalmente, o programa do BE é claro, explícito e estou de acordo com a maior parte do que defendem. Principalmente nas questões éticas, mais fundamentais. Os direitos dos animais, os direitos do cidadão e as responsabilidades do estado, a justiça, a liberdade de acesso e participação na cultura. Mas não me agrada o tom de “urgência” e “crise”, discordo da forma como querem interferir no mercado e da oposição ao processo de Bolonha. E, especialmente, preocupa-me a legitimação das medicinas alternativas. Também desconheço a capacidade do BE para implementar este programa mas penso que, neste ponto, merecem o benefício da dúvida.

Um aspecto importante que o destaca do PS e do PSD é o BE compreender a tecnologia de informação e preocupar-se com o seu aproveitamento em benefício de todos, em vez de a querer amarrar aos interesses de alguns. As respostas do BE à ANSOL são claras e explícitas como o seu programa, e nestas nem vejo defeitos a apontar (3). Alguns comentadores propuseram que a minha preocupação com isto é exagerada, que há coisas mais importantes a decidir. Só se for a muito curto prazo. Menosprezar o potencial da tecnologia de informação é tão míope como dizer ao Watt que isso de motores e máquinas é uma brincadeira inconsequente. Esta rede de computadores é cada vez mais o nosso meio principal de comunicação, de participação cultural, de cidadania e até um registo permanente do que somos e de tudo o que fazemos. Não me parece que a nossa liberdade e privacidade neste meio sejam menos importantes que saber quando se constrói o TGV ou se a EDP é privada ou pública.

1- Bloco de Esquerda, Programa Eleitoral
2- ANSOL, Respostas dos Candidatos

terça-feira, setembro 22, 2009

PS

Em geral, concordo com o que consta no programa do PS. Não tudo, mas com a maioria das medidas propostas. O investimento em energias renováveis é boa ideia, mas em vez do TGV deviam investir na rede ferroviária nacional. O alvo de aumentar 20% o transporte ferroviário de mercadorias e 10% o de passageiros é pouco ambicioso, principalmente quando também querem continuar a construir autoestradas. Para poupar energia e o ambiente, trocar camiões por comboios devia ser uma prioridade. Os objectivos para a educação são bons, na maioria, mas as Novas Oportunidades são um embuste. Só engana as pessoas dando-lhes um canudo sem lhes dar educação. Concordo com a simplificação da burocracia, o melhor acesso a serviços do estado e com a maioria das medidas de promoção da cultura. Excepto o disparate do acordo ortográfico. E nos planos para os apoios sociais, ambiente e justiça não vi nada de muito grave. No entanto, com 120 páginas para ler, admito que algumas partes passei a page down, page down, page down...

O problema do programa do PS, para mim, é o que lá falta. Não menciona privacidade, patentes de software ou o uso de software livre na função pública. No que toca aos direitos de cópia, parecem querer o ovo e a omelete, defendendo «a revisão da lei da cópia privada, uma pedagogia de respeito pelos direitos de autor e a procura de modelos de negócio e outras soluções que permitam a adequada e equitativa remuneração dos autores e intérpretes, bem como o livre acesso de todos à cultura e aos produtos culturais». Mas pelo menos têm o objectivo de:

«Garantir que a banda larga seja acessível a todos os portugueses, numa lógica de serviço universal, tal como acontece com outros recursos estruturantes da vida em sociedade, como a electricidade, a água ou as telecomunicações, bem como promover uma política de concorrência forte e transparente entre operadores, que garanta o acesso ao menor preço possível, a par de incentivos específicos para o acesso das famílias com menores recursos;» (1)

Mas o problema principal do PS não é o programa. As ideias são boas. O problema é que não confio neste partido para as implementar. O Magalhães foi uma boa ideia, mas encomendar tudo a uma empresa por ajuste directo e “formar” os professores a compor músicas sobre o portátil foi uma aldrabice. A avaliação dos professores foi uma boa ideia, mas pôr os avaliados e os avaliadores a concorrer para os mesmos lugares em função da classificação tornou-a um absurdo. O Cartão de Cidadão foi uma boa ideia, mas não juntando os números todos e dependendo de sistemas de autenticação que nem os funcionários sabem como manter seguros.

Já para não falar das asneiras que nunca foram boa ideia. O chip das matrículas, os PIN, as leis de “cybercrime”(2), dar à ASAE poder policial sem a aprovação da Assembleia da República (3), avaliar polícias contando quanta gente prendem (4), pagar fortunas à Microsoft por ajuste directo (5) e assim por diante.

É verdade que o PS tem uma desvantagem. Aos outros é mais difícil apontar estes defeitos. Mas tem havido muita coisa que não é propriamente erro inocente. Mesmo que sejam falsas parte das alegações como as do Freeport, da licenciatura ao Domingo e essas coisas, em conjunto com o resto das asneiras e da forma como o dinheiro tem saltado de mão em mão, parece claro que é preciso dar umas vassouradas pela casa. Nem que seja para obrigar as aranhas a fazer as teias de novo.

Avaliando pelo programa, o PS é claramente melhor que o PSD. Mas não aborda adequadamente as coisas que mais me interessam e o historial recente não me inspira confiança. Entre um governo PS forte com oposição fraca e um governo PSD fraco com oposição forte não sei dizer qual seria pior.

1- Disponível no site do PS
2- Software Livre, Cibercrime: Legislação põe em causa segurança nacional
3- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 358/08.3ECLSB.L1-9
4- Jornal de Notícias, 27-04-09, Polícias têm de prender para cumprir números
5- Transparencia-pt.org, pesquisa por “microsoft”

segunda-feira, setembro 21, 2009

A outra.

Segundo anunciado no Portal Ateu, no dia 12 foi fundada a Associação Portal Ateu – Movimento Ateísta Português (PAMAP). Apesar dos dois posts a apresentar a PAMAP (1,2), os detalhes são escassos e não percebi bem o propósito desta associação que «tem como objectivos a divulgação do ateísmo, [… a] anulação da influência da superstição e do sobrenatural na sociedade, [...] assim como a gestão de conteúdos online, nomeadamente do sítio Portal Ateu (www.portalateu.com), principal órgão de comunicação da PAMAP.»

Se fosse a Associação Portal Ateu percebia que era uma associação para gerir os conteúdos do Portal Ateu. Se fosse a Associação Movimento Ateísta Português esperava que tentasse representar o ateísmo português. Mas uma associação cujos objectivos, presumidamente lavrados em escritura pública, a comprometem a um site específico na Internet parece pouco compatível com algo tão mais abrangente como a promoção do ateísmo e a «anulação da influência da superstição e do sobrenatural na sociedade». Como esta associação fundada pelo Hélder Sanches e o Ricardo Silvestre dá a impressão de ser um movimento dos ateus portugueses, e como eu sou um ateu português, preocupa-me a confusão que, naturalmente, levará alguns a julgar que o Hélder e o Ricardo são porta-vozes do ateísmo.

Quando formámos a Associação Ateísta Portuguesa (AAP), o processo começou semanas antes da escritura, foi anunciado em vários fóruns e houve um esforço para reunir opiniões e obter um consenso acerca do que deveria orientar essa associação. Na altura até tive uma conversa com o Hélder, que estava preocupado que a AAP acabasse subordinada a algumas opiniões minoritárias e desrespeitasse o consenso. Assegurei-lhe que partilhava essa preocupação e que defendia, como defendo, que «não queremos uma associação ateísta para dizer aos ateus como ser ateu. [...] Queremos uma associação que descreva o que os ateus são e que mostre as preocupações e interesses de quem é ateu.» (3) Ou seja, uma associação para representar fielmente o consenso dos ateus e não para uns falarem pelos outros ou para ser plataforma de protagonismos.

E isto tem sido um desafio. Várias pessoas têm ficado desiludidas porque a associação não faz o suficiente. Não percebem que o ateísmo é, acima de tudo, uma opção pessoal. Individual. É cada ateu que deve militar pelo ateísmo. Uma associação de ateus deve servir apenas para destilar dessa diversidade de opiniões, escolhas e atitudes aquilo que é partilhado pelos ateus. O Hélder e o Ricardo foram duas dessas pessoas, tendo o Hélder abandonado a AAP com uma carta aberta publicada no seu blog (4) porque, pelo que me recordo da reunião que precedeu a sua saída, não concordámos em ter alguém oficialmente mandatado para representar a AAP em debates ou para organizar debates em nome da AAP. Eu opus-me a essa proposta porque acho que nenhum ateu consegue representar os outros. Cada um fala em seu nome, como eu faço aqui neste blog, sem comprometer mais ninguém. E os comunicados da associação são sempre feitos em grupo e só sai aquilo que for aceite por unanimidade. Isto não deixa ninguém completamente satisfeito mas tem evitado que saia asneira ou algo do qual outros ateus discordem. O que é bem mais difícil do que parece.

A PAMAP parece ser exactamente o contrário. Não houve anúncio prévio ou discussão e ainda nem há estatutos publicados. O Hélder diz que «Este é um movimento que representa todos os ateus que se sintam representados por nós»(1). Facilmente exequível, mas faz recair sobre quem não se sinta representado por eles o ónus de o esclarecer. Pelo que descreveram, esta associação está estatutariamente associada ao Portal Ateu. Ou seja, dependente dos seus administradores. E parecem ter pouco cuidado com a forma como apresentam o ateísmo.

«Divulgar o ateísmo e lutar contra as superstições e dogmas que consideram "castradores para a sociedade" são os principais objectivos do Portal Ateu - Movimento Ateísta Português (PAMAP) […] "Não queremos limitar-nos a bater no ceguinho, a atacar a religião. O que queremos é divulgar informação", diz Hélder. "Ajudar as pessoas a pensarem por elas próprias é difícil, mas vale a pena", acrescenta Ricardo Silvestre, outros dos fundadores.»(5)

Ainda não sei bem o que é a PAMAP. Talvez quando saírem os estatutos no Diário da República dê para ter uma ideia melhor. E é com alguma relutância que escrevo isto, porque reconheço que estas divisões podem prejudicar a divulgação do ateísmo. Ou talvez não. Talvez seja bom admitir que há muita coisa acerca da qual não concordamos, e apregoá-lo como uma virtude. Seja como for, quando o Hélder e o Ricardo se apresentam como Movimento Ateísta Português obrigam-me a esclarecer que não tenho nada a ver com isso. Reconheço a cada um o direito a enfiar o pé na boca. Mas apenas na sua.

1- Helder Sanches, 12-9-09, Nasceu a associação Portal Ateu – Movimento Ateísta Português
2- Ricardo Silvestre, 13-9-09, Apresentamos a PAMAP
3- Associação Ateísta Portuguesa, continuação.
4- Hélder Sanches, 19-1-09, Carta aberta à direcção da AAP.
5- DN, 20-9-09, Nova associação ateísta discute influência social da religião

domingo, setembro 20, 2009

PSD

A ideia destes posts era enumerar os prós e os contras de cada um dos três partidos a que limitei a minha escolha: PSD, PS e BE. Infelizmente, uma leitura do programa do PSD (1) só me deixou com contras.

Os primeiros “fundamentos e valores” do partido são a pessoa humana e a família, que também prezo mas que prefiro deixar fora das mãos dos políticos, e a comunidade e o interesse nacionais. Destes desconfio sempre. Se fazem as coisas no interesse das pessoas não é preciso invocar entidades arbitrárias como comunidades e países. Isto só parece vir à baila quando nos querem vender algo contrário aos nossos interesses. Finalmente, manifestam-se a favor da liberdade, dos direitos, da democracia e da paz. Não discordo, mas parece-me pouco original.

O resto do programa é ainda mais demagógico e vago. Há coisas com as quais concordo. Por exemplo, «Crescimento e desenvolvimento económicos não são sinónimos. Aquele não é um valor em si mesmo e só tem razão de existir se visar o benefício de todos os cidadãos». Mas parece que o PSD entende com isto exactamente o contrário do que eu entendo. Porque, adiante, salienta que:

«O Estado deve evitar a tentação de tudo fazer, abrindo espaço à saudável iniciativa dos cidadãos e dos grupos. Devem ser valorizadas e protegidas as formas naturais de solidariedade que encontram na família o lugar privilegiado da sua expressão, e no voluntariado social e nas instituições particulares de solidariedade social um critério supletivo da maior relevância.»

O estado deve garantir justiça na redistribuição da riqueza. A esmola certamente que deve ficar a cargo de cada um, mas essa solidariedade voluntária, por caridade, é diferente da responsabilidade social. Discordo que se deva prescindir da justiça com a desculpa de dar “maior relevância” à piedade.

Na última parte do programa, o PSD apresenta soluções para os novos desafios. Entre estas estão antecipar o futuro (?), identificar-se com orgulho com o passado do País, com maiúscula e tudo, promover a “autonomia e liberdade no ensino” – ou seja, cada um ter a liberdade para ter o ensino que os pais possam pagar – e valorizar a língua portuguesa. Outra coisa que não compete ao estado, mas sim a nós. Aquilo que na nossa língua tiver valor será valorizado. O que não tiver, será melhorado. Tem sido assim há milhares de anos. Não vou eleger a Manuela Ferreira Leite para mudar isso agora.

Na parte do ambiente e da ciência quase que acertam, mas depois saem-se com uma destas:

«O PSD defende a adopção de providências legislativas no domínio da bioética, fixando o quadro legal que definirá as práticas lícitas no âmbito das modernas ciências da vida, pondo-as ao serviço da pessoa humana, da sua dignidade e bem-estar físico e espiritual.»

O bem estar e os interesses das pessoas são importantes, concordo. Mas isso do espiritual é treta. Não passa de uma desculpa para exigirem que se trate como algo objectivo aquilo que é mera expressão de preferências pessoais. Objectivamente, um pacote de esparguete é tão espiritual como um crucifixo ou o Corão. E não faz sentido subordinar a investigação científica a critérios subjectivos tão arbitrários e acerca dos quais não há qualquer consenso.

O programa do PSD dá a impressão de ter sido escrito numa tarde de Agosto, entre imperiais e caracóis. Cada interveniente ia ditando chavões conforme se lembrava, para grande diversão dos convivas. E, de vez em quando, alguém dizia “Essa é boa! Mete a bold!”

1- Disponível no site da Manuela Ferreira Leite, em programa.

sábado, setembro 19, 2009

Treta da semana: dois em um.

A propriedade intelectual e as medicinas alternativas têm sido duas tretas recorrentes neste blog. Mas desta vez vêm juntas. A patente WO/2002/096440, registada na World Intelectual Property Organization, concede a Virendrakumar Jain o direito exclusivo de fabricar comprimidos de urina de vaca (1).

Uma das inovações reconhecidas ao inventor é «urina recém filtrada escolhendo uma vaca que tem uma bossa em forma de pirâmide perto do pescoço». E, segundo o inventor, esta urina é do melhor que há. Aqui vai a tradução, com maiúsculas e tudo.

«A URINA DE VACA É UMA CURA CERTA PARA A MAIORIA DAS DOENÇAS. Vaca, a venerada vaca indiana […] é um HOSPITAL AMBULANTE, para a maioria das doenças. É um ARMAZÉM de medicamentos. A maioria das doenças incuráveis são curadas pelo seu uso regular*. Os elementos conhecidos como Panchgavya, i.e. a urina da vaca, o excremento, o leite, o coelho e Ghee possuem capacidades terapêuticas para curar doenças. […] a urina da vaca é amarga, Pungente, picante, Acre, morna e cheia de cinco tipos de elidires nela. É muito pia, matadora de venenos, Insecticida, solenizadora para todas as três aflições como Wat/Pitta e Tosse.» E assim por diante. Dá para ver o estilo.

É claro que quem concede patentes não tem de avaliar se a coisa funciona. Mas a patente é um monopólio legal, pago pelos estados que participam na WIPO, com o objectivo de incentivar a inovação tecnológica. Além de restringir a “propriedade intelectual” exclusivamente às aplicações comerciais, seja as patentes seja o copyright, também deviam ser mais exigentes na concessão destes monopólios. O mijo de vaca, mesmo que fizesse bem a tudo e mais alguma coisa, não merece a concessão destes direitos exclusivos. A menos que seja à vaca.

* Pode parecer contraditório, mas quem engole este remédio engole tudo...

1- WIPO, patente WO/2002/096440.

sexta-feira, setembro 18, 2009

Evolução: Acaso.

Um significado de “acaso”, como o António Parente apontou há dias (1), é a causa que desconhecemos. Ou porque o detalhe dos nossos modelos não chega ou porque, tanto quanto sabemos, não há causa para conhecer. Quando ocorre uma mutação temos poucas possibilidades de saber se foi devida a um fotão ultravioleta, agentes oxidantes ou qualquer outra coisa. Por isso dizemos que foi por acaso. E, mesmo que soubéssemos tudo o que é possível saber acerca do sucedido, esbarrávamos no acaso da mecânica quântica. Há um nível de detalhe a partir do qual a própria noção de causa deixa de fazer sentido.

Por isso o acaso, neste sentido, tem um papel tão grande na descrição da evolução como tem nos modelos de qualquer outro processo. O que não quer dizer que a evolução seja por acaso. Como numa explosão, há detalhes imprevisíveis cujas causas não conseguimos identificar mas há outros aspectos que, conhecendo as circunstâncias, é fácil antecipar. Cada molécula de nitroglicerina reage, ou não reage, por acaso. Mas com um número suficiente o resultado, grosso modo, é bastante previsível. Da mesma forma, pelo número de vezes que surgiram em linhagens independentes, sabemos que características como asas, dedos, olhos ou cérebros grandes são uma consequência provável um ecossistema suficientemente diverso e maduro. Mais cedo ou mais tarde, algum organismo há de lá calhar.

E mesmo que uma característica surja por acaso, a sua evolução posterior pode dever pouco à sorte. Não sabemos que mutações fizeram uns machos de uma população ancestral do pavão ter penas ligeiramente mais vistosas que as dos seus competidores. Mas assim que as fêmeas começaram a escolher os parceiros por esta característica condenaram os seus descendentes remotos a uma cauda deslumbrante. É por isso falso que a teoria da evolução descreva a origem das espécies como sendo por acaso, neste sentido de se desconhecer a causa. É como acusar a química de dizer que as coisas explodem por acaso. Há muitos detalhes que nos escapam, mas há também muito que a teoria da evolução permite prever*. Por exemplo, pela anatomia e distribuição geográfica dos outros primatas, Darwin previu que a nossa espécie tinha surgido em África. Por análise filogenética de formigas modernas, Wilson, Carpenter e Brown previram correctamente muitas características das formigas do cretáceo, antes de se conhecer fósseis desses organismos. O uso de pesticidas, antibióticos e vacinas é, ou deve ser, informado pela forma como se prevê que as populações reajam a esta pressão selectiva. E assim por diante.

Mas há outro sentido no qual a evolução é mesmo por acaso. No sentido em que é por acaso que encontro um amigo que não combinei encontrar. Não é por desconhecer as causas. Ambos podemos saber bem porque fomos àquele sítio àquela hora. Mas é por acaso que nos encontramos porque o que nos levou lá não visava aquele efeito em particular. E neste sentido toda a evolução é por acaso. Uma mutação no gene da hemoglobina torna-a menos solúvel e confere uma resistência à malária. Por acaso. Não no sentido de não sabermos porquê. O mecanismo é até bem conhecido. Mas por acaso no sentido que a mutação não ocorre por antecipar aquele efeito ou a necessidade de proteger alguém da malária. Não há plano nem propósito nas mutações que a selecção natural mais tarde irá eliminar ou favorecer.

Neste sentido, o acaso já não é uma expressão do nosso desconhecimento. Pelo contrário. Sabemos que as mutações ocorrem sem almejar um efeito futuro porque sabemos como ocorrem, como têm efeito nos seres vivos e que nada neste processo antecipa as vantagens ou desvantagens que isso trará aos herdeiros. Tal como sei que encontrei o meu amigo por acaso porque sei que aquilo que lá nos levou não incluía o objectivo de nos encontrarmos.

Há muito na evolução cuja causa desconhecemos e muito que, em última análise, depende de processos para os quais nem faz sentido falar de causa. Mas, à parte disto, há também este outro acaso. O acaso de nenhuma causa visar o seu efeito futuro. Os meus antepassados que saíram de África para climas mais frios não perderam melanina com intenção de sintetizar melhor a vitamina D quando fossem para sítios com menos sol. Simplesmente os que tinham menos melanina acabaram por ter, em média, menos problemas de saúde e mais filhos.

Cada mutação que herdámos dos nossos antepassados, da bactéria mais primitiva aos nossos pais e avós, é apenas uma entre muitas outras. E todo o nosso ADN é composto por mutações que se acumularam durante milhares de milhões de anos. No sentido de ser imprevisível ou de causa desconhecida, só parte disto foi acaso. As mutações prejudiciais foram quase todas eliminadas pela selecção natural, um processo de causas claras e estatisticamente previsível. As mutações neutras é que foram ou ficaram conforme calhou. Mas no outro sentido dos efeitos não serem o propósito das das causas, tudo isto foi por acaso.

É este acaso que torna a teoria da evolução incompatível com qualquer providência divina ou plano inteligente. Esta incompatibilidade não é imaginada naquilo que chamamos acaso porque desconhecemos as causas. Está patente nos mecanismos que conhecemos. No facto comprovado das mutações não ocorrerem em função do que vai acontecer às gerações futuras.

* Uma objecção comum é que a teoria não pode prever nada porque lida com o passado. Isto é incorrecto por duas razões. Primeiro, o que se prevê é sempre os dados que se vai obter e que ainda se desconhece. A aquisição desses dados está no futuro, mesmo que os dados revelem algo acerca do passado. E, em segundo lugar, a teoria da evolução é usada para prever como se vão transformar populações de bactérias, insectos, ou outros organismos que evoluam suficientemente rápido para nos preocupar.

1- Miscelânea Criacionista: a escolher cerejas.

quinta-feira, setembro 17, 2009

Saber e julgar saber.

Mais uma intervenção fabulosa do Neil deGrasse Tyson. É sobre OVNIS, mas foca algumas características humanas pertinentes para um tema recorrente neste blog. A tendência para imaginar que conhecemos aquilo que não compreendemos. O julgar que a ignorância é meio caminho para a verdade, e que o testemunho é algo de fiar. Ver intenção, propósito e inteligência em tudo o que, por falha nossa, pareça incompreensível. E, aos dois minutos e dez segundos, uma ilustração sucinta e extraordinária da diferença entre julgar que se sabe e tentar saber.

terça-feira, setembro 15, 2009

Mercado de trabalho.

A revolução industrial revelou o grande poder e perigo do mercado livre de bens e capitais. E deu origem a duas visões antagónicas daquilo que devemos fazer com economia. O capitalismo, inspirado pela capacidade de auto-organização do mercado e a sua enorme produtividade, defendeu que se deixasse a coisa andar, que a prosperidade eventualmente chegaria a todos e que, se alguém ficasse de fora, era porque não tinha feito por merecer os benefícios desta economia. E o socialismo que, preocupado com a miséria a que isto condenava grande parte dos participantes, queria controlar a produção para evitar o desperdício e a injustiça na distribuição dos benefícios. No século e meio que se seguiu, e após alguns falhanços espectaculares, foi-se conseguindo implementar uma solução de compromisso que já datava do século XIX. Deixa-se a produção a cargo do capitalismo e redistribui-se à socialista. A social-democracia.

Funciona bem porque, quando os intervenientes estão equilibrados, o mercado livre é tendencialmente justo. Se é voluntariamente que um compra uma couve a outro por 2€ é porque a couve vale mais que 2€ para o comprador e menos que 2€ para o vendedor. A transacção é justa e beneficia ambos. Mas este sistema é injusto se uma das partes não tem poder para negociar. Se a couve custa 50€ porque a alternativa é morrer à fome. É o que aconteceria com os médicos privados se não houvesse serviço público de saúde, com as escolas se não houvesse ensino público ou com crimes, ameaças e extorsão se não houvesse um sistema de justiça que tratasse todos (quase) da mesma maneira. Se redistribuirmos o suficiente para ninguém ser forçado a comprar ou vender, o capitalismo é um sistema excelente. Mas só se houver uma redistribuição eficaz.

Infelizmente, com o trabalho as coisas não correram tão bem. Na redistribuição ficámos pelo caminho. Se bem que os países mais ricos da Europa estejam lá perto, os subsídios de desemprego, rendimentos sociais de inserção e coisas do género acabam por ser remendos ad hoc em vez de um sistema abrangente que poupasse todos à coacção na venda do seu trabalho. Pior, isto é de propósito. A nossa sociedade não aceita que as pessoas sejam obrigadas a pagar o que o médico pedir sob pena de não serem tratadas. Mas muitos acham bem obrigar pessoas a trabalhar sob pena de passar fome.

E, para “compensar” a redistribuição inadequada, atravancam o mercado de trabalho com restrições impostas por lei. O ordenado mínimo, por exemplo, impede qualquer pessoa cujo trabalho tenha pouco valor de o vender, mesmo que queira, pelo pouco que vale. E sempre que tentamos restringir transacções, encontra-se formas de contornar os obstáculos. Muitas pessoas trabalham a recibos verdes não por o seu trabalho ser temporário ou esporádico mas porque contratá-los obriga o empregador a compromissos que não quer assumir. Quando queremos impor um preço ao mercado este responde com efeitos secundários difíceis de prever e impossíveis de evitar. Medidas de combate à precariedade acabam por ser umas das suas causas, controlar os ordenados condena muitos a ficar sem nenhum, e assim por diante.

É por isso que defendo que a forma mais razoável de trazer justiça ao mercado de trabalho é pelo mesmo mecanismo que o faz na educação, na saúde, na justiça e na cultura. É com o equivalente salarial das escolas públicas, dos hospitais, dos tribunais e das bibliotecas. Algo que se dê a todos, por igual, e por toda a vida. Um salário garantido pelo estado.

Assim podemos aliviar o estrangulamento deste mercado. Também não proponho a desregulação completa. Em todos os mercados precisamos de algumas regras, seja contra publicidade enganosa, brinquedos perigosos ou casas mal construídas. No mercado de trabalho também pode ser preciso garantir férias, indemnizações mínimas em caso de despedimento ou algo semelhante. E nem todas as alterações seriam favoráveis ao empregador. Por exemplo, neste momento a lei exige, em muitas condições, que o contrato passe a ser permanente. Mas depois permite, no despedimento colectivo ou por extinção do posto de trabalho, que essa garantia contratual seja ignorada pelo empregador praticamente sem consequências. É um sistema absurdo, contraditório.

Parece-me que, tal como em tudo o resto, esta alteração seria benéfica para todos. Tornava o mercado de trabalho mais justo e vigoroso, acabava com muita miséria e muito do estigma associado a viver à custa do estado e era uma forma muito mais transparente e eficiente de redistribuição. Nem era preciso aumentar muito a carga fiscal, se isto substituísse todos os subsídios públicos e pensões de contribuição obrigatória. Nem me parece razoável a objecção que muita gente preferiria ficar sem trabalhar. Isto porque qualquer pessoa poderia vender parte do seu tempo e usar esse dinheiro para ter mais conforto. Não era obrigado a fazê-lo com a ameaça da miséria, mas teria um forte incentivo para fazer o que soubesse, e pelo preço que o mercado estivesse disposto a dar por isso.

A razão principal para não implementar um sistema destes, suspeito, é uma noção deturpada de justiça. A ideia que só quem trabalha é que merece receber, e quem não o fizer é bem feito que passe fome. Se for pobre, claro, porque a preguiça dos ricos nunca foi pecado.

segunda-feira, setembro 14, 2009

Nova alteração aos comentários...

Peço desculpa a alguns comentadores, mas vou passar a restringir os comentários a quem tenha um perfil no Blogger ou Open ID. Não só para ajudar a quem lhe custe resistir à tentação de dizer disparates só porque sim, mas especialmente para evitar confusões de identidade. Por exemplo, no post Miscelânea Criacionista: a escolher cerejas, surgiram alguns comentários anónimos muito parecidos com o comentário que o Jónatas Machado costuma aqui pôr. Isto pode levar alguém a pensar que o Jónatas está tão desesperado que até já comenta anonimamente só para lhe darem alguma atenção. Com esta restrição aos comentários penso que se evita que comportamentos infantis como este possam dar azo a mal-entendidos.

Editado a 15-09-09: A pedido de várias pessoas, estou a mexericar com o aspecto dos comentários. Aceito sugestões, principalmente para as cores (de preferência com o código RGB...).

domingo, setembro 13, 2009

Comentários, novo look.

Mudei o layout para incluir a caixa de comentários na página de cada post. Penso que é mais prático, e estético, que abrir uma janela amarela.

Por isso actualizei o script de filtragem de comentários para funcionar também nas páginas dos posts. Quem já instalou a versão anterior pode ir a esta página no UserScripts.org e substituir pela versão nova.

Para quem não tem o script, não sabe o que é ou não se lembra como instalar, as instruções estão no post filtragem de comentários.

sexta-feira, setembro 11, 2009

Miscelânea Criacionista: a escolher cerejas.

O Mats aponta as defesas do feto contra o sistema imunitário da mãe como prova do «Génio Infinito do Criador, o Senhor Jesus Cristo.» Questiona «Porque é que o sistema imunitário da mulher grávida não reconhece o seu próprio filho como sendo distinto do seu corpo?» e o rejeita, como acontece com os transplantes, e menciona os três mecanismos propostos por Medawar, em 1953, para explicar a sobrevivência do feto em mamíferos placentários: reprimir a resposta imunitária da mãe; formar uma barreira que isola os tecidos fetais dos tecidos maternos; ou não exprimir os antigénios que desencadeiam o ataque do sistema imunitário materno (2).

O Mats diz que isto prova o génio infinito da sua divindade favorita porque «o bébé ainda por nascer, produz a enzima correcta de forma a impedir que o sistema imunitário da mãe o ataque. […] Este sistema tinha que estar 100% operacional desde que apareceu na Terra uma vez que um bébé que não tivesse o enzima para combater o sistema imunitário da progenitora, morreria. O enzima não poderia ser um qualquer, mas apenas e só o enzima certo para combater o sistema de auto-defesa da mãe.» Não é claro como excluiu todas as outras divindades nem explica porque omite todos os outros mamíferos. Este post tenta colmatar a segunda lacuna, que a primeira já nem vale a pena discutir.

O problema não é o feto ser rejeitado, como um transplante, porque o feto não está dentro do corpo da mãe. Está numa cavidade externa. O problema é na placenta, porque essa sim pode invadir os tecidos da mãe e ser atacada pelo seu sistema imunitário. Mamíferos que ponham ovos, como o ornitorrinco e o equidna, ou os marsupiais como o canguru, não têm este problema. O embrião alimenta-se da gema e, sem placenta, não precisa de se defender da mãe.

Também não é verdade, ao contrário do que o Mats afirma, que os mamíferos placentários só possam resolver este problema produzindo a tal enzima específica (3). Espécies diferentes têm adaptações diferentes, e hoje sabe-se que todos os mecanismos que Medawar propôs são usados por alguns organismos. Por exemplo, nos placentários cuja placenta invade profundamente a parede do útreo (placenta hemo-coriónica), como primatas e roedores, as células da placenta protegem-se com uma produção anómala das proteínas do complexo principal de histocompatibilidade (MHC). O MHC é um conjunto de “marcadores”, cada um com muitas variantes dentro de cada espécie, que dá uma identidade única às células de cada organismo. Nestas espécies, as células da placenta iludem o sistema imunitário materno omitindo algumas das proteínas do MHC e produzindo outras que as células normais não produzem (4).

E mesmo neste mecanismo há variações. Por exemplo, enquanto que nos humanos a proteína HLA-G, produzida só pelas células da placenta, é um dos factores principais de protecção, nos macacos rhesus esse gene não está activo mas usam, para o mesmo fim, uma variante da HLA-A, outra proteína do MHC. E há os outros mecanismos. Nos roedores, com apenas duas semanas de gestação, o feto pode ser protegido por uma depressão temporária no sistema imunitário da mãe. Os suínos têm uma placenta que não invade o tecido materno (placenta epitelio-coriónica), e que por isso não precisa de tantas defesas. E assim por diante. Do ovo do ornitorrinco ao HLA-G humano, há uma panóplia de soluções diferentes para o mesmo problema, e até formas de o evitar por completo. Isto não é o que se espera de um criador omnisciente e omnipotente. É o que se espera da evolução. Contingente, sem plano, propósito ou objectivos.

É por isso que os criacionistas têm de escolher, com cuidado, cada exemplo isolado. É por isso que o Mats não mencionou os outros mamíferos. Com as palas nos olhos, vendo só o feto humano, parece estranho que a evolução consiga resolver aquele problema precisamente daquela forma tão específica. Mas se olhamos em volta vemos que esse problema tem imensas soluções. Muitas estão implementadas nas espécies que conhecemos e outras, incontáveis, nunca chegaram a existir apenas porque calhou uma mutação ser assim em vez de assado.

Para quem julga que basta lançar dúvidas sobre a teoria da evolução para se demonstrar o criacionismo, este truque de mostrar só a cereja mais vermelhinha e esconder todas as outras cria a ilusão que o criacionismo é razoável. Mas o absurdo desta hipótese torna-se evidente quando consideramos os dados todos. A diversidade caótica da vida neste planeta não aponta para um criador inteligente, nem para um plano, nem para um sentido nisto tudo. É o produto da sorte, da lei dos grandes números e de só ter durado até hoje o que sobreviveu no passado.

1- Mats, Bébés defendem-se do sistema imunitário materno
2- Medawar P (1953) Some immunological and endocrinological problems raised by the evolution of viviparity in vertebrates Symposia of the Society for Experimental Biology 7 320–338, em (4)
3- Tony Baker, 10-6-2002, Mechanism that Enables Fetus to Survive In Mother Under Study
4- Bainbridge, Evolution of mammalian pregnancy in the presence of the maternal immune systemReviews of Reproduction (2000) 5, 67–74

quarta-feira, setembro 09, 2009

Treta da semana: diz que é proibido despedir.

Por um post do Ricardo Schiappa (1) fui ter a uma série de três do Carlos Santos, no Simplex, onde este “desmonta” a política económica do Bloco de Esquerda (2). O Simplex é um blog com bons conteúdos, mas sem um script para retirar bolds e pontos de exclamação custa muito a ler. Quase se vê os perdigotos a bater no lado de lá do ecrã. O que é pena. Este de hoje é sobre a infeliz tendência para perder a calma e a objectividade quando se discute política.

A primeira crítica do Carlos Santos é que o BE só vai investir na requalificação urbana e que, por isso, não conseguirá recuperar a economia. A inferência parece-me correcta mas discordo da premissa. O programa eleitoral do BE tem 110 páginas (3). O capítulo sobre a economia tem 11, divididas em oito pontos que cobrem desde as pensões à justiça fiscal. Um destes é sobre o «investimento público para a reabilitação urbana». Não é razoável ler isto como indicando que não haverá qualquer investimento além de arranjar casas velhas. Até porque há vários exemplos noutros capítulos. Na política ambiental vem explícito o compromisso na modernização da rede ferroviária e no financiamento público da investigação em energias renováveis, o capítulo sobre a educação defende o aumento das bolsas para investigadores e alunos em formação avançada e quem ler mais que as 11 páginas sobre a economia certamente encontrará outros exemplos onde o BE se compromete a promover o investimento público.

Concordo com o Carlos Santos que o BE não tem uma solução para a crise económica. Mas também não vejo essa solução mágica nos outros partidos. E nem todos os problemas do país são económicos. Mesmo os investimentos públicos que possam trazer benefícios económicos muitas vezes se justificam por mais que o retorno financeiro. A investigação em instituições públicas e a modernização da CP não são apenas bons negócios. São algo com valor por si e, por isso, até me parece positivo o BE reconhecer que o governo deve fazer mais que contar quantos euros cada coisa lhe rende.

A segunda crítica do Carlos Santos é que não temos dinheiro para alargar o Complemento Solidário para Idosos. Também não sei se temos. Aceito que o Carlos Santos possa ter razão. Mas, ao contrário do Carlos Santos, acho que vale a pena tentar mesmo que exija algum esforço. O Carlos Santos pergunta se «é legítimo esperar que alguém que as circunstâncias da vida colocaram na pobreza aos 30 anos possa ter a expectativa de viver o resto da vida à custa de um subsídio, sem lhe exigir que melhore as suas qualificações em programas de formação profissional?» Penso que a pergunta era retórica mas a minha resposta é sim. Não é uma situação boa mas a alternativa é pior. Condenar a preguiça com a morte pela fome parece-me excessivo. Por isso acho que esta segunda crítica apenas o reflecte uma divergência de valores. O Carlos acha que quem não trabalha deve passar fome. Eu acho que se não quer trabalhar, paciência, não vamos deixar ninguém morrer por causa disso.

E a terceira é mesmo treta. No terceiro post da série (2), o Carlos Santos escreve que o programa eleitoral do BE diz «expressamente que serão proibidos os despedimentos nas empresas que tiverem resultados positivos (página 47).»* Depois demonstra – persuasivamente, admito – que tal proibição seria ruinosa para a economia. Mas o que está escrito no programa eleitoral do BE, na página 47 do pdf, é «A proibição dos despedimentos colectivos em empresas com resultados positivos». Foi azar o “colectivos” ter ficado colado no clipboard quando o Carlos fez copy e paste. Porque se perdeu uma palavra crucial.

O despedimento colectivo não é qualquer despedimento. É uma forma de despedir empregados em grupo, evitando algumas obrigações contratuais, e que se pode justificar pela necessidade de fechar uma parte da empresa. Mas é apenas um dos processos de despedimento e não é o fim da economia se as empresas só puderem despedir os empregados desta forma em caso de necessidade. Se a empresa tem resultados positivos e quer despedir empregados é razoável que tenha de negociar com cada um os termos da cessação do seu contracto, em vez de simplesmente correr com todos ao preço de um salário por cada ano de trabalho.

Concordo que as propostas económicas no programa do BE não inspiram muita confiança. Mas a crítica do Carlos Santos é repreensível por uma deturpação difícil de desculpar como acidental. E o Carlos Santos nem é excepção. É a norma. Em todo o espectro político, o aproximar das eleições parece levar muitos a guardar o cérebro na gaveta e decidir tudo por quem grita mais alto ou usa o bold mais carregado. É de lamentar a miséria de escolha que nos obriga a procurar o partido menos mau por não haver nenhum bom. É preocupante que, em toda a campanha, os únicos cartazes que não soam a aldrabice sejam os dos Gato Fedorento (4). Mas a triste realidade é que enquanto não encararmos estes problemas de uma forma honesta e racional, enquanto isto for mais um campeonato para cada um torcer pela sua equipa, é exactamente esta a política que merecemos.

* Omiti o bold por considerar que, pelo menos neste blog, os leitores avaliam os argumentos mais pelo que lá está escrito que pela formatação e tipo de letra.

1- Ricardo Schiappa, ainda sobre a desilusão...

2- Carlos Santos:
A estagnação como inevitável resultado da política económica do BE, I
A estagnação como inevitável resultado da política económica do BE, II
A estagnação como inevitável resultado da política económica do BE, III
E o Nuvens de Fumo indicou este, que é o mesmo que o primeiro dos três acima, mas lê-se melhor portque não tem bolds...

3- Bloco de Esquerda, Programa Eleitoral

4- Gato Fedorento regressam segunda-feira para "esmiuçar" a campanha eleitoral

terça-feira, setembro 08, 2009

Legal, 7.

Nova rusga por causa do copyright, com a apreensão de mais de seis mil CD pirateados. Mas esta foi invulgar em dois aspectos. Primeiro, quem fez a denúncia e accionou a intervenção policial foi um artista, o cantor mexicano Alejandro Fernández, em vez de uma empresa discográfica ou sociedade de cobrança. E desta vez apanharam mesmo um pirata. A Sony Music. Que não estava apenas a partilhar música com outros fãs. Terminado o contracto de sete álbuns que tinha celebrado com o cantor, a Sony Music mexicana decidiu fazer e comercializar o oitavo mesmo contra a vontade do artista (1). O Joel Tennenbaum foi condenado a pagar $675,000, e a Jammie Thomas quase dois milhões de dólares, por terem algumas músicas em partilha, sem sequer ficar provado que alguém as tenha obtido deles. Se a Sony Music for condenada por fazer seis mil CD ilegais com o propósito de vender esses e muitos mais, estou interessado em saber qual será o castigo. Curiosamente, o site do MAPiNET ainda não foi actualizado com a notícia desta apreensão. Mantém ainda em primeira linha a notícia de 13 de Agosto sobre o fecho de vários sites que continuam online.

Noutro acto de rebeldia por parte de artistas convencidos que os direitos de autor são para eles, as associações britânicas Featured Artists Coalition, British Academy of Songwriters, Composers and Authors e Music Producers Guild uniram-se em protesto contra os planos para cortar a ligação a quem partilhe ficheiros (3). As associações de distribuidores, no entanto, continuam a achar que a melhor maneira de vender músicas é chateando os clientes. E nem dez anos de evidências contrárias demovem pessoas como estas, para quem a Associação de Comércio Audiovisual de Portugal, quando se junta à Federação de Editores de Videogramas, passa a constituir um “movimento cívico”(4).

Mas no meio desta bizarria até há quem tenha alguma sensatez. No Canadá, o governo promoveu uma consulta pública sobre os problemas do copyright. A uns dias do fim, o Michael Geist faz um apanhado das opiniões manifestadas (5). Cerca de 80% das pessoas opõe medidas legais de protecção ao DRM, que servem para reconhecer o direito à cópia privada negando a possibilidade de a fazer, defende mais direitos de uso e cópia, protecção legal de quem copia para uso pessoal e que os provedores de serviços de ligação se limitem a passar aos clientes as queixas enviadas pelos detentores de direitos, sem identificar os clientes nem alterar o seu acesso à Internet.

Por cá, os partidos principais ainda acham que isto é para eles negociarem com as editoras. Nós, meros cidadãos e eleitores, se tivermos alguma coisa a dizer que falemos com o juiz. A excepção é o Bloco de Esquerda, que recentemente promoveu um debate sobre este tema no Porto (6). E depois querem que me preocupe com a nacionalização da GALP ou se é economicamente viável estender o complemento solidário para idosos a mais de um milhão de pessoas. Sei lá. De um lado e do outro parece-me tudo a mesma treta. Cada vez tenho mais vontade de dar o meu voto a quem faz por ouvir as opiniões que eu tenho em vez de me impingir as suas.

1- Torrent Freak, Pirated Artist Orders Police Raid on Sony Music Office
2- www.mapinet.org.
3- Guardian, YouTube and PRS make peace as musicians protest about plans to punish file sharers
4- MAPiNET, Quem somos
5- Michael Geist, Copyright Consultation Submission Summary: Over 4,000 Posted Through August 31st
6- Direitos contra Direitos.

segunda-feira, setembro 07, 2009

Pensamento Crítico: 1- Introdução.

No dia 31 de Dezembro do ano passado recebi um email de uma leitora deste blog a sugerir que eu escrevesse um livro que ajudasse pais e educadores a ensinar pensamento crítico às crianças. É uma boa ideia, e talvez quando os meus crescerem mais um pouco eu me sinta confiante para tentar. Mas esta sugestão, que muito agradeço, motivou-me a escrever um manual para a disciplina que lecciono. Este semestre vou começar com uma primeira versão, tentando avançar a par da matéria para ser mais útil aos alunos.

O primeiro capítulo já está nesta página, que irei actualizando conforme vá melhorando este e escrevendo os próximos.

Agradeço, como sempre, os vossos comentários e críticas, que desta vez serão especialmente úteis porque irão ajudar-me a melhorar o texto. Mas, pela atenção especial que terei de dar aos comentários pertinentes, decidi apagar todos os que não sejam relevantes. A cavaqueira animada do costume, as trocas de insultos e o serviço de chat para quem não quer instalar o messenger podem continuar em qualquer um dos outros (mil!) posts. Mas neste pedia que comentassem o post em vez de uns aos outros.

Até porque o blog é um bom sítio para os alunos deixarem comentários anónimos. A maioria deverá esclarecer as suas dúvidas nas aulas e por email, mas é provável que alguns alunos se sintam inibidos de criticar quem os avalia, e não quero perder críticas úteis por causa disso. Nem por causa disso, nem por causa das conversas que por vezes se instalam nestas caixas de comentários...

sábado, setembro 05, 2009

Treta da semana: redistribuição pelo emprego.

Esta semana a TVI despediu a Manuela Moura Guedes. E eu ralado. Este post, felizmente, não tem nada a ver com isso. O que motiva o milésimo post deste blog* é o argumento recorrente, entre os defensores da direita, que devemos reduzir o apoio social em benefício das empresas. A razão, como escreve o João Caetano Dias (JCD), é que «a redistribuição de riqueza faz-se, em primeiro lugar, pelo emprego. É uma redistribuição automática e justa, em que não se tira a uns para dar a outros.»(1)

Este é um exemplo da falácia do equívoco, aproveitando dois significados de “redistribuição” para dar a impressão que o argumento é sólido. No sentido lato, redistribuir é simplesmente alterar a distribuição. Se cada um começa com uma laranja e acabam todas propriedade de um só então houve redistribuição de laranjas. Mas no contexto da política e da economia, o sentido que nos interessa é mais restrito. Redistribuir não é apenas alterar a distribuição. É também torná-la mais equitativa.

Esta falácia engana porque o emprego leva realmente a uma redistribuição do dinheiro. O trabalhador recebe o ordenado para comprar bens e serviços e o empregador compra-lhe o trabalho para produzir bens e serviços que depois vende. Isto faz o dinheiro circular e altera a distribuição. Mas o empregador só se mete nisto se vir que, no final, fica com mais dinheiro que tinha no inicio, vendendo o produto do trabalho por um preço superior ao que pagou por esse trabalho. O resultado é que o dinheiro que o empregado ganha fica sempre aquém do que precisa para comprar o equivalente ao que produziu. E, se deixarmos a coisa correr, esta diferença vai aumentando. Isto só é redistribuição no sentido lato, pois altera a distribuição, mas não no sentido que nos interessa.

E não é necessariamente justo. Num mercado livre, quem tem dinheiro pode esperar por bons negócios. Mas que não tem precisa de vender o seu trabalho com urgência, nem que seja pelo mínimo necessário para sobreviver até ao dia seguinte e vender o seu trabalho novamente. Por dar vantagem a quem tem mais, o mercado livre tende a agravar as desigualdades na distribuição. Como aconteceu durante a revolução industrial, quando a enorme oferta de emprego levou a uma rápida redistribuição da riqueza, mas só no sentido lato e oposto ao que queremos dizer com o termo.

Concordo com a crítica do JCD, que a esquerda quer «matar a galinha dos ovos de ouro». Mas não por «sacar à economia que ainda funciona para distribuir em apoios ditos sociais». A galinha poedeira é útil pelos ovos. Se bem que, individualmente, cada empresário queira ser um Rothschild e ter mais que todos os outros, esse não é um objectivo razoável para a sociedade. A economia é um meio, não um fim, e para a maioria não serve de nada se só alguns ficarem com os ovos todos. Por isso a esquerda tem razão em querer redistribuir parte do que a economia produz. No fundo, é para isso que a economia serve. O erro da esquerda é estrangular a galinha com impedimentos à compra e venda de trabalho. Coisas como salários mínimos e leis contra o despedimento podem parecer boas para quem já tem um emprego mas fazem mal a muita gente e travam a economia.

O dinheiro não se redistribui sozinho, no sentido estrito. Só na forma ambígua do termo com que a direita engana. Por isso precisamos tirar uma boa parte dos lucros da economia e distribuí-los igualmente por todos. Seja em escolas e hospitais seja em dinheiro, é importante garantir a todas as pessoas um mínimo de qualidade de vida, de acesso a recursos e de liberdades. Assim podemos deixar a galinha à vontade. Se ninguém correr o risco de ficar na miséria não é preciso aquelas restrições que se impõe para combater as desigualdades. E quanto menos restrições tiver, melhor a economia funciona.

Há quem receie que garantir um conforto mínimo leve muita gente a deixar de produzir. Mesmo que isso seja verdade, é pior obrigar as pessoas a trabalhar ameaçando-as com fome e miséria, um castigo mais severo que os aplicados a criminosos. E é pouco relevante porque a ameaça da fome só serve para “incentivar” trabalho barato e de fraca qualidade. Se queremos trabalhadores qualificados, produtivos e que possam competir a outro nível precisamos da cenoura em vez do pau.

Os tais «apoios ditos sociais» não são um desperdício. São um investimento necessário para dar a cada um a possibilidade de se formar e de escolher uma carreira que tire partido das suas aptidões. O que é bom para si e para todos. Não ganhamos nada em deixar talento atolado na miséria. Porque a livre operação do mercado não consegue garantir a toda a gente o acesso à educação, assistência médica e à qualidade de vida necessária para que se tornem membros produtivos da sociedade. E quanto àqueles que, por falta de talento, sorte ou iniciativa, acabem por nunca contribuir para a criação de riqueza – por muito incorrecto que pareça reconhecê-lo, haverá sempre pessoas assim – o melhor para todos é deixá-los viver em conforto em vez de os forçar a reagir por desespero.

* É mesmo. Mil. Chiça...

1- João Caetano Dias, Blasfémias, Sem rumo.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Talheres e outros bichos.

Há uns meses, o Marcos Sabino escreveu um post com a rábula criacionista da evolução dos talheres (1), onde contou ter encontrado talheres “fossilizados” e reconstruído a sua evolução. A ideia, como sempre no criacionismo, é usar um exemplo que dê a impressão que a teoria da evolução é falsa mas não propor qualquer explicação útil, ou pelo menos coerente, que a substitua.

O Pedro Amaral Couto já apontou o problema principal desta rábula criacionista. Os talheres não se reproduzem, e a teoria da evolução explica a variação, ao longo do tempo, de populações de seres que se reproduzam (2). Por isso os talheres são irrelevantes para apontar problemas na teoria da evolução. Como o Pedro já mostrou que a analogia é falsa e como eu ultimamente já tenho sido mauzinho que chegue com o Marcos, decidi escrever sobre um aspecto positivo desta historieta. Os talheres não podem evoluir porque não se reproduzem. Os seres vivos, como se reproduzem, podem evoluir. Mas também podiam ter sido criados por um ser inteligente, e é interessante ver porque podemos dizer que, ao contrário dos talheres, os seres vivos tiveram mesmo de evoluir.

A primeira pista está logo nesses processos que geram talheres e seres vivos. Quando seguimos um talher até às suas origens vemos um processo de fabrico guiado por seres inteligentes. Mas na origem de cada organismo está um organismo parecido, mas ligeiramente diferente, e não uma inteligência superior. Os garfos são feitos por pessoas. As aranhas são feitas por aranhas, que foram feitas por aranhas, e é aranhas até perder de vista. Por isso, pelo menos os organismos de agora não foram criados por um ser inteligente. Isto não exclui já a tal criação num passado remoto mas demonstra conclusivamente que os organismos podem ser criados, sem inteligência, por outros organismos semelhantes. Garfos é que não dão garfos.

Outra pista importante é a distribuição das características. Nos talheres, os elementos de design, decoração e materiais estão distribuídos em função da utilidade para os seus criadores. Os talheres de plástico podem ser facas, colheres, garfos ou combinações destes*, e todos estes podem ser também de aço inoxidável ou alumínio. Os cabos podem ser de metal, madeira ou plástico, as lâminas de aço ou cerâmica, e assim por diante. É o que se espera de algo criado por seres que têm o poder de combinar características conforme o que lhes convém.

Nos seres vivos não é isto que acontece. As características vêm em grupos e distribuem-se por famílias de espécies parecidas. Por exemplo, as penas são um revestimento muito versátil e útil, principalmente para animais voadores. E a placenta permite alimentar o feto dentro do útero durante toda a gestação, protegendo a prole na sua idade mais vulnerável. No entanto, com quinze mil espécies que têm ou penas ou placenta, não há uma única que tenha ambas as características. Nem morcegos ou esquilos voadores, a quem as penas dariam muito jeito para voar. Nem os pinguins, a quem ter o filho no útero seria muito mais prático que ficar sentado no ovo meses a fio. E isto é assim em todos os seres vivos**, exactamente o que se espera de um processo de herança e modificação pelo qual cada organismo herda um pacote de características dos seus pais, em vez daquelas que um ser inteligente julgue mais convenientes.

E depois há o propósito. Quando era miúdo vi um programa do David Attenborough que falava dos peixes polumados. Em África, estes peixes enterram-se na lama, num casulo feito de muco, e podem sobreviver durante anos de seca. Em ambos os sentidos. Quando chegam as chuvas, alimentam-se e reproduzem-se furiosamente durante umas semanas e depois voltam mais uns anos para o buraco. Impressionou-me a futilidade desta existência, mas essa futilidade é a norma entre os seres vivos. Anos de lagarta dentro de uma maçã para depois se transformar em borboleta, pôr ovos e morrer em três dias. Os talheres vemos bem para que servem. Percebe-se o propósito inteligente por trás deles. Mas no plasmódio da malária, na mosca da fruta, lombrigas, pulgas, carraças e em tantos outros seres não se vislumbra propósito algum. Pelo menos, que seja minimamente inteligente.

Finalmente, há a futilidade da hipótese em si. A hipótese que os talheres são feitos com um objectivo inteligente é uma explicação útil porque especificamos o objectivo. Este para descascar fruta, estes para levar para o campismo e assim por diante. A hipótese que os seres vivos de hoje resultam de um processo de herança e modificação, a partir de um ancestral comum, é útil porque explica a distribuição geológica dos fósseis, das características nos seres vivos, a adaptação aos habitats, a variação entre gerações e muitos outros aspectos. Mas a hipótese que os seres vivos foram criados por milagre para um propósito inteligente que não se consegue especificar serve-nos tanto quanto encolher os ombros e dizer “sei lá...”.

* Como os sporks e as spifes.
** Há excepções, principalmente entre microorganismos. Mas mesmo nesses casos vemos, por exemplo, que as bactérias trocam plasmídeos por processos naturais de conjugação e não por intervenção divina.

1- Marcos Sabino, 3-2-09, A teoria da evolução dos talheres.
2- Pedro Amaral Couto, 14-3-09, Re: Lógica do Sabino > A teoria da evolução dos talheres > analogia e também, a 15-3-09, Re: Lógica do Sabino > A teoria da evolução dos talheres > design e evolução.

quinta-feira, setembro 03, 2009

Corrigindo.

Num comentário, o Nuno Gaspar chamou a atenção para o post «Ciência X Religião: retardo mental», do Luciano Henrique (1). Dando uma olhada rápida, pareceu-me pouco interessante: «com problemas mentais sérios.[...] a mania […] a mais debilóide de todas […] essa turminha […] Tudo besteira. Tudo balela», e assim por diante. Mas como a discussão, aqui, já vai em mais de quinhentos comentários (2), decidi reconsiderar e dedicar algum tempo ao Luciano. Quanto mais não seja pelo esforço. Peço desculpa aos intervenientes se repetir muita coisa, mas não consegui acompanhar a conversa.

A tese do Luciano é que a ciência não se corrige, e que dizer que a ciência se pode corrigir é «uma besteira inominável, uma estupidez». Demonstra-o assim: «A ciência só poderia se corrigir se a ciência estivesse errada. Mas não estava. A definição de ciência segue a mesma de sempre.» Não sabendo a idade do Luciano não sei se este exemplo já faz sentido, mas pensemos que a professora lhe corrige as contas onde ele se enganou. Seria pouco correcto o Luciano chamar besta estúpida à professora só porque a definição do termo “contas” permaneceu a mesma.

Outro equívoco transparece num exemplo do Luciano, «quando um estúdio traz uma nova técnica que supera uma anterior, isso não significa que “o cinema se corrigiu”. Da mesma forma, uma nova teoria de administração, ou uma inovação, não implica em “administração se corrigindo”. Por isso que dizer “a ciência se corrige” é burrice.» Concordo que se alguém disser que o cinema a cores corrigiu o cinema a preto e branco terá de explicar o que quer dizer, pois não é óbvio em que sentido se pode falar de correcção, neste caso. Mas a ciência é diferente. Se um modelo matemático do sistema solar prevê um eclipse, é evidente que se o eclipse não ocorre na data prevista o modelo está errado. E se alterarmos o modelo para prever correctamente os eclipses então corrigimos o modelo. Neste contexto, as noções de correcto, errado e corrigir não levantam problemas porque é objectivo expresso da ciência que os seus modelos correspondam à realidade. Ao contrário do que se passa no cinema, o que espero não seja novidade para o Luciano.

Por isso é falso que o conflito entre ciência e religião «só existe na cabeça de alguém com problemas mentais sérios.» A origem do conflito é clara. A ciência e as religiões dizem coisas diferentes mas todas pretendem afirmar algo que corresponda à realidade. Não é apenas por serem diferentes que há conflito, nisso estou de acordo. Não há conflito entre as histórias do Batman e do Tio Patinhas. Mas há conflito, necessariamente, entre descrições incompatíveis da realidade. Porque a realidade é só uma. O resto é fantasia.

«E a religião?», pergunta o Luciano, «Originada do latim “religio”, pode ser definida, na visão do todo, como o conjunto de crenças relacionadas ao divino, sobrenatural, sagrado, transcendental, etc. Na visão individual, é o conjunto de práticas religiosas, junto com o código moral, que se deriva dessa crença.» Concordo que o conjunto de práticas religiosas, por si, não cria conflitos com a ciência. Ir a um baptizado é perfeitamente compatível com a teoria da evolução. Mas para evitar o conflito a religião tem de se abster de afirmações acerca da realidade. E este é um preço demasiado alto para qualquer religião, pois implica o desemprego de todos os sacerdotes e teólogos, cuja carreira depende da crença que eles sabem algo que os outros desconhecem.

O Luciano também se insurge contra a «arrogância excessiva»(3) dos ateus que apontam as contradições entre o que a ciência nos diz, que somos resultado de um processo natural sem inteligência nem propósito, e o que a religião nos diz, que tudo isto tem um sentido porque, sem explicar o que isso adianta, foi tudo criado por um ser omnicoisas. O Luciano argumenta com duas analogias, uma em que um homem solteiro critica um casado e outra em que um trabalhador por conta própria critica um que trabalha para outrem. Diz que são «exemplos exatamente iguais ao do comportamento neo-ateísta.»(3) mas, em ambos, falha por completo o alvo.

É verdade que não me agrada ir à missa, nem trabalhar num navio pesqueiro e que me sinto bem casado. Mas não tenho problemas em aceitar que outros tenham gostos diferentes. E se assumirem a religião como uma questão de gosto pessoal nada tenho a criticar. O problema, para aproveitar a analogia do Luciano, é se houver uma data de gente convencida que está casada com o Mickey ou com a Minnie, que ensina isso às crianças, que exige que se respeite essa convicção, que a apregoa como um facto e que reclama que a sua relação especial com o Mickey e a Minnie lhes dá acesso a um conhecimento que transcende o que a ciência pode alcançar. Nesse caso parece-me bem avisar que o Mickey e a Minnie não são verdadeiros. São ficção. Bonecos.

O que critico nas religiões não é as pessoas gostarem de rezar, de se benzer ou ir à missa. Não tenho nada contra isso, tal como não tenho nada contra quem goste de ser pescador ou solteiro. O problema é não perceberem que a religião é uma questão de gosto e, por isso, levarem demasiado a sério as proclamações de quem diz representar este ou aquele boneco.

1- Luciano Henrique, Ciência X Religião: retardo mental
2- Teorias e sobrenaturalices.
2- Luciano Henrique, Ateus e o eterno olhar de pidão do lado de fora

quarta-feira, setembro 02, 2009

Legislativas 2009.

Aproveitando o trabalho com as eleições europeias (1), vou reduzir as opões ao PS, PSD e BE. Um dos primeiros dois provavelmente será o próximo governo, o último está mais alinhado com as minhas preocupações principais e os restantes não me interessam.

Na minha família não se falava muito de política, mas lembro-me, há uma data de anos, da ideia que a AD é que era bom. Talvez por isto tenha começado a minha vida de eleitor votando no PSD. Foi Sócrates que me fez virar à esquerda. Ao contrário dos outros que eram advogados e economistas, este, julgava eu na altura, era engenheiro, e enfrentou muita treta durante a novela da co-incineração, quando era ministro do ambiente. E não me sinto enganado. Na maioria das coisas penso que estou ideologicamente mais alinhado com o PS. Pelo menos é o que a bússola indica (2). No eixo “Esquerda-Direita” estou a meio e no eixo “Libertário-Tradicionalista” estou a caminho do libertário, alinhado com o PS e o BE.

Mas esta bússola omite os temas cuja legislação mais me importa, como a privacidade, liberdade de expressão e acesso à informação e cultura. Nesses não estou muito alinhado com o PS. E suspeito que fiquei no meio entre esquerda e direita porque discordo das políticas económicas de ambos os lados. Todos misturam a criação de riqueza com a sua distribuição, e acabam por descurar os deveres do estado ou metendo o governo onde não deve.

A riqueza cria-se com o capitalismo. Isto já nem é ideologia. É um facto. Os dados são inequívocos. Por isso sou contra o ordenado mínimo, entraves à contratação e despedimento e essa areia toda que os políticos vão deitando nas engrenagens. Principalmente contra as ideias da esquerda de centralizar a produção e pôr o governo a gerir as empresas. Mas a direita é uma miséria a redistribuir. Literalmente. Vêm no estado uma loja de serviços que vende o melhor a quem pagar mais impostos e querem aumentar a produtividade sacrificando quem mais precisa. O estado é o que se reparte por todos. Se não há riqueza não há nada para repartir. Mas o que vai nos impostos deve garantir a todos o mesmo acesso à justiça, saúde, educação, infraestruturas e o suficiente para evitar a miséria e poder vender o trabalho a preço justo.

Pensando na economia, custa-me votar à esquerda. Mas também me custa votar à direita. Ou seja em quem for. Infelizmente, nenhum partido propõe acabar com a caldeirada de subsídios, pensões e abonos, liberalizar o mercado de trabalho e garantir um ordenado vitalício igual para todos os cidadãos. Quem quisesse uma reforma de sete mil euros como a do padre Melícias (3) que investisse num plano de poupança privado, que o estado não é para isso.

Como nas eleições para o PE, vou dar mais peso aos problemas que se resolvam com legislação e para os quais haja partidos a propor soluções razoáveis. Isto deixa o PSD muito mal colocado. Mas também é importante a confiança que tenho na concretização, e aqui o PS também sofre. O PS tem tido ideias boas mas parece que está sempre a pisar a bola. E o BE é o único que propõe as soluções que considero acertadas para as coisas que mais me importam. E, pelo menos nessas, tenho confiança que tentem cumprir.

Por isso o meu dilema é entre votar no BE e aumentar o risco do PSD ser governo, ou votar no PS e ceder no que me parece mais importante. A decisão terá de ser em função das diferenças entre o PS e o PSD, as sondagens e os detalhes nos programas eleitorais ou, no caso do PSD, o CV da Manuela Ferreira Leite.

Entretanto deixo abaixo a tabela do costume. Foi tirada da Bússola Eleitoral (2), clicando em cada partido no final. Pode ter escapado algum. O programa, o código fonte e os dados estão aqui. Como da outra vez, a escala vai de 2 (concorda totalmente) a -2 (discorda totalmente), com o zero para o neutro e o traço a indicar que não respondeu.

1- Indecisão 2009: prólogo; a tabela; primeira eliminatória; a semi final.
2- Bússola Eleitoral, Portugal
3- Jornal de Negícios, revista de imprensa, Padre Melícias tem reforma de 7450 euros (Correio da Manhã).

Pergunta BE PS PSD CDU MEP MMS PCTP PDA MPT CDS PND PNR
O sector privado deveria ter um papel muito limitado no sistema de ensino21-12-2-2-21-2-2-2
O financiamento da segurança social deve ser feito exclusivamente com dinheiros públicos22-12-2-11-20-1-1-1
A sustentabilidade da segurança social passa pelo aumento da idade da reforma na função pública-211-210-2-201-1-1
A iniciativa privada deveria ter um papel muito limitado no sistema de saúde21-12-1-12-21-2-2-1
A modernização da Administração Pública passa pela redução do número de funcionários-211-201-11-1112
Devemos reduzir os impostos para aumentar o crescimento económico-1-11-1-12-111221
Pergunta BE PS PSD CDU MEP MMS PCTP PDA MPT CDS PND PNR
O equilíbrio das contas públicas só se consegue sacrificando importantes objectivos económicos e sociais2-1-12-1-22-1-1-1-2-2
A nacionalização da banca deve ser encarada como solução de último recurso-212-221-2212-22
O combate às desigualdes exige uma maior contribuição das pessoas e das empresas com maiores rendimentos221220-2-111-22
Na sociedade portuguesa a iniciativa privada não é suficientemente recompensada001001-201212
As parcerias entre o Estado e os privados são uma forma eficiente de financiar o investimento público-211-221-1111-11
Actualmente as grandes obras públicas, tal como o TGV, são uma boa opção12-21-1-121-1-2-2-2
Pergunta BE PS PSD CDU MEP MMS PCTP PDA MPT CDS PND PNR
Devemos desregular os mercados sempre que possível-2-2-1-2-2-2-1-2011-2
O crescimento da economia passa pela flexibilização das leis laborais-211-211-21-122-1
O governo deve intervir directamente para regular os preços dos bens essenciais2-1-2210220-1-21
A descriminalização do aborto foi uma medida positiva2202-112-2-2-2-2-2
O casamento deve continuar a ser exclusivamente uma união entre pessoas de sexos diferentes-2-22-210021222
A descriminalização do consumo de drogas leves foi uma boa medida22-221-12-2-2-2-1-2
Pergunta BE PS PSD CDU MEP MMS PCTP PDA MPT CDS PND PNR
Devia-se facilitar ao máximo a obtenção do divórcio21-11-112-1-1-1-2-2
O recurso à procriação medicamente assistida financiada pelo Estado deve ser vedado a mulheres solteiras-211-21-2001122
Devemos proteger o ambiente, mesmo à custa do crescimento económico111122011101
Os criminosos deviam ser punidos mais severamente-1-12-102-110212
As quotas para mulheres na política são essenciais para aumentar a qualidade da democracia em Portugal22-2-212-21-1-2-2-2
Na conjuntura actual a redução da quota de imigrantes é uma boa medida-222-211-1-1-1212
Pergunta BE PS PSD CDU MEP MMS PCTP PDA MPT CDS PND PNR
Devia haver um alargamento das áreas em que a União Europeia define as políticas022-200-21-11-2-2
Portugal estaria melhor fora da União Europeia do que dentro dela-1-2-21-2-11-2-1-101
A integração europeia é uma coisa boa022-121-22110-1
A aprovação do Tratado de Lisboa, tal como está, é essencial para o futuro da União Europeia-222-210-20-21-2-2