quarta-feira, fevereiro 07, 2024

Criacionismo e desenvolvimento.

Fui bloqueado de um grupo sobre criacionismo e evolução no Facebook (1). Deu para alguns dias de diálogo com criacionistas que, ironicamente, se queixavam da recusa dos "evolucionistas" em debater com eles. Não me disseram a razão do bloqueio mas alguns dos meus últimos comentários foram sobre o desenvolvimento embrionário e pareciam estar a incomodar.

O criacionismo não pode contribuir para o conhecimento porque dizer "foi milagre" é tão informativo como dizer "não sei". Por isso o criacionista limita-se a argumentar que a evolução é impossível na esperança de vencer por omissão. Alega que nenhum processo natural pode criar informação, que sistemas complexos não podem surgir de sistemas simples, que o aumento de complexidade viola as leis da termodinâmica e outras confusões. Diz também que a evolução é pura especulação porque ninguém viu os milhões de anos que o processo terá demorado. O problema do desenvolvimento embrionário para o criacionista é mostrar como células embrionárias geram galinhas, golfinhos ou humanos num processo que podemos observar em detalhe. Como as células embrionárias diferem entre si muito menos do que os organismos adultos, é o desenvolvimento que faz o trabalho quase todo de criar coisas complexas. Os milhões de anos de evolução precisam apenas de acumular mutações em moléculas como o ADN. Comparado com o que acontece entre a fecundação e o organismo adulto isto é quase trivial.

Há criacionismos light que lidam bem com isto. O criacionismo católico, por exemplo, limita-se a pôr Deus à volta da ciência. Se vemos que o desenvolvimento embrionário transforma uma célula num organismo complexo então Deus criou esse processo natural. Se depois percebemos que é consequência de reacções químicas, então afinal Deus criou as reacções químicas. Quando notamos que a química resulta da física atómica, então o que Deus fez foi a física atómica. Isto é irracional e desonesto, porque cola um "foi Deus" onde a honestidade exigiria um "não sei", mas não exige deturpar nem rejeitar a ciência. Basta um cantinho vazio onde se possa arrumar Deus.

O criacionismo evangélico é diferente. Especializou-se num nicho fundamentalista e o seu negócio de cobrança do dízimo assenta em impingir a Bíblia como infalível e literalmente verdadeira. Isto exige, entre outras coisas, "refutar" a teoria da evolução. Mas quase tudo o que apontam como impossível à evolução acontece durante o desenvolvimento e a tese de que Deus anda a milagrar cada reacção química durante o crescimento de cada organismo é demasiado ridícula até para o criacionismo. Tampouco podem dizer que Deus criou esses processos naturais, como fazem os católicos, porque isso admitiria ser possível haver um processo natural de evolução, contradizendo o Génesis. Pior ainda, a ciência não é um saco de crenças como as religiões. É possível ser cristão acreditando literalmente no Génesis, acreditando que o Génesis é uma metáfora ou sem sequer ligar ao Génesis. Mas a ciência exige que tudo encaixe e não se pode simplesmente amputar um pedaço sem afectar o resto.

Por isso, para o criacionismo evangélico negar a evolução tem de deturpar toda a ciência. Tem de aldrabar conceitos, como dizer que informação exige significado e inteligência e que o ADN tem um código, ou que a segunda lei da termodinâmica impede que a ordem aumente mesmo em sistemas abertos. Tem de fingir que a evolução está isolada da química, biologia e genética. Como o desenvolvimento embrionário ou as reacções metabólicas que transformam dióxido de carbono em células vivas. E têm de aldrabar o método em si para fazer parecer que o criacionismo é uma alternativa ao mesmo nível. Por exemplo, inventam uma "ciência criacionista" e disciplinas como a "baraminologia" (2), baseadas no Génesis, omitindo a parte mais importante da ciência. Se ciência fosse só dizer como as coisas são Darwin teria escrito um parágrafo em vez de centenas de páginas. Mas, em ciência, tão ou mais importante que as conclusões é a descrição detalhada do que se fez, o que se observou, que explicações se considerou e como se chegou a essas conclusões. É isto que permite a verificação independente de cada tese e, assim, chegar ao consenso. Em vez de se fragmentar tudo em crenças diferentes como acontece com as religiões. E é isto que permite corrigir erros, melhorar teses e progredir no conhecimento. É por isso que a teoria da evolução está hoje muito além do que Darwin poderia imaginar enquanto os criacionistas evangélicos ainda andam agarrados a uma fábula da idade do bronze.

É pena que tanta gente enfie este barrete e perca, além de parte do seu rendimento, a possibilidade de compreender o que é a ciência e como a ciência contribui para a nossa sociedade. E é especialmente grave que façam isto a crianças. O sistema educativo português permite que famílias evangélicas usem a escola pública para enganar os jovens e dificultar-lhes a compreensão da ciência, doutrinando-os nesta caricatura deturpada que o criacionismo lhes apresenta. Mas isso fica para outro post. Este queria concluir com uma sugestão. Se um criacionista vos disser que é preciso muita fé para acreditar que órgãos complexos se podem formar a partir de algo mais simples, perguntem-lhe o que acha que acontece nas duas décadas entre o óvulo fecundado e o humano adulto. Se for no Facebook provavelmente acabam bloqueados, mas só por isso já vale a pena.

1- Criacionismo vs Evolucionismo
2- Answers in Genesis, Baraminlogy, e Wikipedia, Created kind