O Grande © é um «concurso de criatividade para as escolas» e tem como missão «enraizar o valor da criatividade e da diversidade da obra original, como fundamento para a protecção concedida pelo Direito de Autor». No vídeo introdutório*, a ministra da cultura esclarece o que se pretende proteger: a nossa herança cultural e os conteúdos culturais produzidos para meios digitais (1). A “área pedagógica” apresenta aos alunos conceitos chave da cultura e da protecção da herança cultural, tais como «Aproveitamento da obra contrafeita ou usurpada», «Autorização», «Contrafacção», «Direitos de carácter patrimonial» e «Poder de impedir».
Isto não protege a cultura. Pelo contrário. A cultura é algo que se partilha, ensina, aprende, transforma e interioriza. É algo que, desde crianças, flui livremente dos outros para nós e de nós para os outros. O download e a Internet não ameaçam isto. Ameaça é até a ministra da cultura julgar que se deve regular o usufruto e conceder direitos de carácter patrimonial sobre a cultura. É por causa destas ideias que, só na Europa, se estima haver três milhões de livros que não podem ser editados porque não se sabe quem detém os tais direitos patrimoniais (2). Por causa da “protecção” que proíbe a cópia, nos EUA há cerca de duzentos mil filmes antigos, de grande valor cultural mas sem valor comercial, que não podem ser preservados e vão acabar perdidos para sempre quando o celulóide apodrecer (3). A necessidade de acções “pedagógicas” como a deste grande C vem precisamente de não ocorrer a ninguém que seja preciso proteger a cultura de quem a quer partilhar com os outros ou usufruir dela. A ninguém que pense com a cabeça, é claro. Quem pensa com os bolsos chega a conclusões diferentes.
A ênfase desta “pedagogia” limita-se a partes seleccionadas do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, omitindo alguns pontos importantes. Por exemplo, o disposto no ponto 2 do artigo 75º, segundo o qual é lícita, mesmo sem autorização, «a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos». Ou o artigo 189º, que esclarece que nada do que consta no título dos direitos conexos abrange o uso privado.
Já para não falar de outros elementos legislativos com prioridade sobre este código. Como o ponto 1 do artigo 73º da constituição Portuguesa, «Todos têm direito à educação e à cultura.» Ou o ponto 3, «O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultura». Ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que no ponto anterior a estipular que «Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria», estabelece primeiro que «Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.» A protecção dos interesses comerciais faz sentido no contexto do comércio, mas a cultura não é o negócio e essa regulação só é legítima se não interferir com o direito de usufruir livremente das obras publicadas. Um direito que é de todos.
É um erro pôr o autor num pedestal como se fosse a única fonte da nossa cultura. Por um lado, porque ninguém cria sozinho. Toda a criatividade é transformativa e toda a obra é derivada. E, por outro lado, porque a criatividade não está só em quem pinta, compõe ou escreve. Se quem lê não criasse, das marcas no papel, uma história viva na sua mente, ninguém seria reconhecido como escritor. O mesmo para a música, filmes, ciência ou filosofia. A arte não começou quando um primeiro génio rabiscou a parede ou batucou num tronco. Começou quando todos viam no desenho o boi que tinham caçado ou dançavam ao som da música. Por isso, não faz sentido tirar direitos a todos só para dar direitos extra aos autores. E, menos ainda, aos distribuidores, principalmente agora que a distribuição é trivial.
O prémio deste concurso até ilustra bem o parasitismo inútil destas organizações. «O prémio em cada categoria consiste na divulgação da(s) obra(s) vencedora(s) [. A] AGECOP – Associação para a Gestão da Cópia Privada, mediante autorização escrita dos autores das obras, reserva-se o direito de expor, publicar, utilizar ou por qualquer forma explorar os trabalhos recebidos [...]. Esta autorização é concedida mediante aceitação dos termos e condições do formulário de aceitação electrónico que faz parte integrante do formulário de inscrição. Não serão aceites inscrições que não sejam acompanhadas da respectiva autorização.»(4) Dá mesmo vontade de concorrer...
Em 1710, os editores ingleses exigiram um monopólio legal sobre as obras impressas. O seu argumento foi que, sem esse monopólio, não iriam imprimir livros. O propósito dos direitos patrimoniais e dos monopólios sobre a cópia foi sempre subsidiar os distribuidores (5), que nessa altura ainda eram suficientemente honestos para o admitir. Gananciosos, mas honestos. Hoje já só lhes resta a ganância. Dizem que querem proteger a nossa criatividade e a nossa cultura. Cultura, o grande c. O que eles querem é dinheiro.
*Parece haver outros vídeos, da ministra da educação, do Pinto Balsemão e assim. Mas, talvez alguma restrição de licenciamento, nem com o Opera nem com o Firefox os consegui ver...
1- Grande ©, O que é [um grande C]?
2- Resource Shelf, 2010-7-2, New Report: 3 Million Orphan Books In Europe – EC Report
3- Duke, Law, CSPD: Access to Orphan Films
4- Grande ©, Regulamento
5- Question Copyright, The Surprising History of Copyright and The Promise of a Post-Copyright World, via Falkvinge on Infopolocy