sábado, janeiro 08, 2011

Propriedade.

Em 2007, o gabinete de patentes dos EUA atribuiu à empresa Actify uma patente cobrindo o uso do duplo-clique para «possibilitar uma nova interacção com o conteúdo representado por um elemento visual activo». Neste momento, várias empresas estão a ser processadas por violação desta patente (1). Julgo que até os defensores da propriedade intelectual dirão que isto é um abuso. Por um lado, porque a Actify não inventou este uso do duplo-clique e, por outro, porque a invenção em si não merece um monopólio.

Concordo com estas objecções, se bem que haja razões ainda mais fortes para não conceder estes monopólios. Mas estas objecções só são relevantes se admitirmos que uma patente é um monopólio e não um direito do proprietário da invenção. Se ninguém reclama a propriedade de algo é legítimo que o primeiro que o apanhe se aproprie dessa coisa. Por exemplo, se for algo que está no lixo ou abandonado.

Assim, se o duplo-clique for passível de ser propriedade, e estando por aí aos caídos, temos de aceitar que alguém o apanhe e diga “é meu”. O dono original, se algum houver, que não o tivesse abandonado. E é irrelevante tratar-se de algo trivial ou de pouco valor. Os meus lenços de papel são triviais e a minha escova de dentes tem um valor de revenda muito baixo, mas nem por isso deixam de ser propriedade. Enquanto a concessão de monopólios legais podem exigir coisas como relevância e originalidade, os direitos de propriedade não olham para isso. Se é propriedade, tem dono e ponto final.

Outro problema da propriedade intelectual é a inconsistência com a propriedade. A outra, aquela que é a sério. Se compro um CD, o disco de plástico é meu, a película reflectora é minha e, naturalmente, os sulcos microscópicos também deviam ser meus. Senão, era como comprar um queijo Gruyère e não ser dono dos buracos. No entanto, a canção que está representada no padrão dos sulcos, segundo dizem, é propriedade da editora. Que é ainda mais do que dona dos buracos no CD. É também dona dos padrões de pintas reflectoras em qualquer CD-R ou CD-RW que eu possa comprar, dos padrões de magnetização nos meus discos rígidos e de carga nos meus cartões de memória. Padrões que nem precisam ser semelhantes aos do CD, porque cada meio usa um formatos específico para representar sequências de zeros e uns. Nem essas sequências precisam ser as mesmas, porque os pacotes de dados que viajam pela Internet e os ficheiros comprimidos, encriptados ou convertidos para outros formatos têm todos sequências diferentes dos bytes no CD original.

Isto não é uma forma de propriedade. A propriedade serve para usufruirmos daquelas coisas cujo usufruto necessariamente exclui terceiros. Um CD, uma horta, uma bicicleta. Desta forma reduz-se os conflitos e a interferência de uns nos direitos dos outros. Estes monopólios a que chamam “propriedade intelectual” são precisamente o contrário. São restrições aos direitos de propriedade dos outros, limitando o que cada um pode fazer com as suas coisas para, alegadamente, proteger algo que todos poderiam sem ninguém interferir no usufruto alheio. Quando se canta no duche não se rouba notas musicais, e quando se copia bytes não se rouba bits.

Proibir os outros de aceder, copiar ou partilhar algo que voluntariamente se tornou público não é um direito. É um privilégio ilegítimo. A razão principal para opor estes monopólios, bem como a noção absurda de que são direitos de propriedade, é violarem os direitos dos outros. Violam direitos de propriedade e de acesso à cultura e informação. Violam a liberdade de expressão e, por necessidades de implementação, violam também o direito à privacidade, à presunção de inocência e a um processo judicial diligente. Tudo isto numa tentativa fútil de impedir que milhares de milhões de seres humanos façam o que os humanos fazem melhor. Partilhar informação.

A propriedade intelectual é uma treta. Felizmente. Porque, se não fosse, não estávamos a discutir quem tem a patente do duplo-clique. Estava uma carrada de advogados ainda a negociar o licenciamento da combustão de matéria vegetal para o aquecimento de cavernas.

1- MacObserver, Apple Sued for Violating Double Click Patent, via o FriendFeed do J M Cerqueira Esteves.

10 comentários:

  1. A propriedade serve para usufruirmos daquelas coisas cujo usufruto necessariamente exclui terceiros.Serve?
    ESSE É O PROBLEMA DAS Definições A EXCLUSÃO DOS OUTROS

    A INCAPACIDADE DE ADMITIR A PARTILHA QUER SEJA DE BENS QUER SEJA DE IDEIAS, OU mesmo tentar compreender os pontos de vista que os outros têm da propriedade, porque há muitas formas de propriedade

    As palavras por exemplo escritas ou faladas paralisam as acções, nos blogues portugueses estão arquivadas ideias, alvitres, observações e críticas em número tal que dava para se salvarem 30 ou 40 países do tamanho deste retalho de pedra

    Mas é o conceito de ter a propriedade dessas palavras que impede a cooperação que talvez salvasse da sorte da Guatemala as crianças que vivem hoje em Portugal.

    É a incapacidade de união de pessoas que partilham opiniões diferentes sobre a propriedade e que veêm no outro um obstáculo a vencer e não um potencial companheiro de caminho.

    Assim, tal como neste blogue há opiniões parciais que estão unidas em torno de um objectivo, mas raramente suportam a opinião da parte contrária, mesmo quando o assunto não toca no cerne das questões que os dividem.

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  2. É o João Vasquismo ou Cavaquismo nacional, eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas e é humano ter dúvidas quer sobre a existência de um Deus quando 2.000 crianças morrem de fome na Guatemala sem ninguém ligar nada a isso, assi como duvidar da sua inexistência quando um pequeno milagre (alteração significativa da lei das probabilidades)
    quotidiano.

    Admirável seria, e, mais que admirável milagrosa, a meu (o ser virtual que sou) ver, a existência de um consenso entre visões de propriedade (e ter ou não ter Deus é também uma questão de propriedade)neste ambiente atravancado de obstáculos seculares.

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  3. quando um pequeno milagre (alteração significativa da lei das probabilidades)quotidiano ocorre...

    e os erros, vê-los e admiti-los é a primeira condição para vir um dia a dominá-los
    e deixar os outros errar à vontade (filhos incluidos) e não tentar cloná-los às vossas ideologias particulares

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  4. "Se ninguém reclama a propriedade de algo é legítimo que o primeiro que o apanhe se aproprie dessa coisa"

    Estou convencido que as coisas que têm tradição de pertencer ao dominio publico não podem ser reclamadas, como contos populares, etc.

    Não tenho a certeza mas se não é assim esta errado. E não é preciso mudar tudo para corrigor isto.

    E sim o duplo click ser patenteado é um bug do sistema. So pode.

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  5. @Ludwig Krippahl

    E eu me perguntando porque a licença de uso do Windows 7 estava tão cara.

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  6. João,

    «Estou convencido que as coisas que têm tradição de pertencer ao dominio publico não podem ser reclamadas, como contos populares, etc.»

    Os contos populares não porque não são propriedade. Se alguém disser que é dono da história da carochinha o pessoal ri-se, porque é óbvio que tal coisa não pode pertencer a ninguém (é óbvio mesmo para alguns defensores da propriedade intelectual, que depois dizem ah, e tal, gesticulando vagamente alguma desculpa para que histórias mais recentes já sejam propriedade).

    Mas com a propriedade a sério isso não é assim. As conchas na praia são "domínio público", até que pegues numa e a leves para casa. A partir daí essa é tua.

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  7. João,

    Já agora, eu não proponho mudar tudo. Pelo contrário. Proponho deixar tudo como estava até ao aparecimento da Internet: o copyright e as patentes serem algo exclusivamente para regular actividades comerciais e não interferirem com actividades pessoais, aprendizagem, investigação, etc. Até o pessoal da ACAPOR estudou por fotocópias na faculdade...

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  8. "Se alguém disser que é dono da história da carochinha o pessoal ri-se"

    Se alguém disser que é dono do Sol, eu também me riria. No entanto ...

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  9. O João nunca há de compreender o paradoxo em que se situa. E o pior é que são pessoas como ele que sustêm o estado actual de coisas. Lenine tinha um nome para este tipo de pessoas.

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  10. Barba Rija disse...

    O João nunca há de compreender o paradoxo em que se situa.
    o barba rijismo está vivo

    E o pior é que são pessoas como ele que sustêm o estado actual de coisas.(é veternário nã é autarca nem funcionário público...salvo seja)

    Lenine tinha um nome para este tipo de pessoas.

    e é Leninista tipo Leninista de água

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