sábado, janeiro 29, 2011

Interoperabilidade metafórica.

Acerca do uso de normas abertas na Administração Pública (AP), o Luís Amaral alega haver uma «confusão entre conceitos, como o do "software livre" (vulgo, open source) e o das "normas abertas". De facto, são conceitos que estão relacionados, mas um não implica necessariamente o outro.»(1) Não é bem assim. É que, na verdade, o código aberto implica necessariamente normas abertas. Porque se disponibilizam o código fica automaticamente acessível qualquer norma que lá esteja implementada.

Isto é importante na prática porque as duas normas abertas mais usadas para documentos de texto e folhas de cálculo, a OOXML da Microsoft e a ODF da OASIS, omitem aspectos como, por exemplo, os programas (“macros”) que se pode incluir nesses documentos. Um documento do MsOffice com estas funcionalidades não pode ser aberto por outras aplicações que não sejam da Microsoft, e nem há garantias de ser compatível com versões futuras criadas por essa empresa. Quando o Luís Amaral afirma que «Qualquer tipo de software pode ser interoperável (e, nesse sentido "aberto") com outras normas e com outro software» não só deturpa o sentido de “aberto” como ignora o problema mais importante.

É claro que o software proprietário pode usar normas abertas e ser interoperável com o software livre. O problema é que também pode não ser. Basta gravar uma macro num documento Excel ou Word para se perder a interoperabilidade. As normas abertas em software proprietário são uma treta porque, na prática, não dão garantias nenhumas. A empresa faz a norma, diz que é aberta, e depois acrescenta funcionalidades, em formatos proprietários, que continuam a prender os utilizadores ao seu esquema de licenciamento. Em contraste, com o software de código aberto isto não pode acontecer. Quem usar o LibreOffice, OpenOffice, KOffice ou qualquer programa de código aberto nunca terá este problema porque, mesmo que esse programa implemente funcionalidades únicas, essa implementação está acessível no código fonte e pode ser incorporada noutras aplicações se for necessário.

Segundo o Luís Amaral, não se deve usar software livre e aberto na AP «a curto/médio prazo» por causa do «custo dos serviços de suporte, da formação dos utilizadores e, no limite, o custo das funções de gestão de informática» Isto não faz sentido. Gerir umas dezenas de computadores com o mesmo kernel Linux é muito mais simples do que gerir o inevitável zoológico informático de Windows XP, Vista e 7 que se vai acumulando porque o equipamento antigo não funciona com os sistemas operativos mais inchados e a Microsoft não autoriza que se use os sistemas operativos antigos em computadores novos. O apoio técnico a software que qualquer empresa pode instalar, distribuir e configurar também não vai ser mais caro do que o apoio técnico monopolizado por distribuidores autorizados de software proprietário. E a formação dos utilizadores não é um custo. É uma medida de redução de custos.

A entrega do acórdão do caso “Casa Pia”, por exemplo, foi adiada várias vezes por um “problema informático”. Quando o problema é mesmo informático, resolve-se num instante levando os documentos para outro computador. Mas suspeito que, neste caso, o problema “informático” tenha ocorrido entre a cadeira e o teclado. O mais certo é os senhores juízes não saberem criar um documento grande e, tendo formatado tudo com enters e espaços, quando mexeram numa ponta desmanchou-se o resto. “Poupar” na formação dos funcionários não é boa ideia.

Apesar de todas estas asneiras, há um erro ainda pior no texto do Luís Amaral. Ironicamente, considerando as referências que faz às confusões dos outros. Como muita gente, o Luís Amaral parece julgar que o computador inclui a área de trabalho, pastas, programas e afins como se isso fizesse parte da máquina. Assim, julga que a interoperabilidade é apenas poder levar os documentos de um lado para o outro. Mas o computador é só a máquina. Todo o software, desde o sistema operativo ao jogo de cartas, é o equivalente electrónico da posição das contas do ábaco. Os programas, os ficheiros, as pastas, os botões e as janelas não são entidades reais. São metáforas. São uma ilusão criada por uma máquina que só faz contas com zeros e uns.

Por isso, a interoperabilidade do Luís Amaral também é só metafórica, limitada a poder levar o documento de texto ou a folha de cálculo para outro computador, mas tendo de o editar lá com o programa e ambiente que o vendedor ditar. A interoperabilidade a sério é mais que isso. Inclui a liberdade de usar o mesmo software, com as mesmas configurações, nos mesmos documentos ainda que o equipamento seja diferente. E isso só se garante com software livre e de código aberto. Só esse pode ser usado sem restrições impostas pelo distribuidor, livremente adaptado ao equipamento que se tiver, e sem ter de se pagar licenças a empresas privadas só para poder ter o computador novo a funcionar de forma igual ao do computador que se avariou. É essa interoperabilidade que a AP tem a obrigação de garantir. Qualquer alternativa é desperdiçar o dinheiro dos impostos em monopólios privados e criar mais dificuldades a longo prazo.

1- Luís Amaral, DN Opinião, 22-1-2011, Normas abertas e interoperabilidade, via o blog da Paula Simões.

9 comentários:

  1. Tudo é perecível

    sperm, abortus und human monsters are still human,

    and the means by and reasons for which we tame them or destroy them

    may themselves be of debatable ethical merit.

    Porquê Crucificar Cavaco e nunca o ter feito com Soares

    Há monstros mais humanos que outros

    E tecnologias Monstruosas....

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  2. "São uma ilusão criada por uma máquina que só faz contas com zeros e uns."


    Não, a imagem é verdadeira. Representa realmente aquilo que é. Uma interface grafica. Permite poderes controlar um cursor visual e dar ordens ao computador ( que alteram o binario) consuante a posição, gestos e clikes.

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  3. Ceci nest pas une pipe. And who cares? O território é sempre um mapa, por isso queixarmo-nos de que o que o computador faz é uma "ilusão" é tão verdadeiro como dizermos que toda a nossa experiência é uma "ilusão".

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  4. Поездка в ilusão......e no es?

    A perc epção de las choses es ilusoria...das coisas e dos seres

    reflexão de luz (onda y particula)

    ou de ondas de natureza mecânica ô electromagnética

    são a realidade ou a irrealidade

    já estamos a 30...

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  5. João,

    A imagem é verdadeira, tal como um desenho do Rato Mickey é mesmo um desenho do Rato Mickey. Mas não há lá pastas, nem uma mesa onde dispões programas, nem uma diferença real entre documentos e programas instalados.

    Barba,

    «queixarmo-nos de que o que o computador faz é uma "ilusão" é tão verdadeiro como dizermos que toda a nossa experiência é uma "ilusão".»

    Acho que já estás a filosofar demais... mas, seja como for, há um problema quando a ilusão embarreta a administração pública de tal forma que achem que interoperabilidade se aplica só a ficheiros .doc, e os .exe podem bem ficar presos pelo código fechado e acordos de licenciamento que não faz mal.

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  6. Pois, um caderno nao serve apenas para escrever um determinado tipo de notas, nem um determinado tipo de notas se pode escrever apenas num tipo de caderno. Basicamente é isso que se passa, os contribuintes andam a pagar a uns quantos comerciantes de cadernos e tintas da china, por cadernos ou tintas tao bons como quaisquer outros, mas com custos bastante elevados.

    É um pouco como admitir que todos os deputados no parlamento se vestissem exclusivamente com fatos gucci ou versace (apenas estes, de preferência os mais caros), à custa do dinheiro público, para poderem defender o interesse do país.

    Parece-me óbvio (e espero que a uma grande maioria também) que nao existe nenhuma necessidade real em ir trabalhar vestido com um fato versace, tal como me parece óbvio que nao existe nenhuma necessidade real em sustentar comerciantes de cadernos e tintas da china (digamos, por casualidade, que se tratam de máquinas da marca Zompaq e software da MicronSoft).

    A minha opiniao, que poderá pecar por ser simplista, mas sinceramente parece-me mais justa e realista que a alternativa vigente:

    Para cada determinado bem/serviço que é necessário comprar/contratar: escolhe-se a oferta de menor custo, de entre todas as que oferecem a qualidade necessária.

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  7. Ludwig:

    "A imagem é verdadeira, tal como um desenho do Rato Mickey é mesmo um desenho do Rato Mickey. Mas não há lá pastas, nem uma mesa onde dispões programas, nem uma diferença real entre documentos e programas instalados."

    Sabes que eu sei isso não sabes?

    A diferença é que o desenho do rato mickey se passar a servir de botão de televisão passa a ser um botão de televisão.

    O interface grafico faz de facto coisas recorrendo a simbolos que funcionam como algo entre a sonda e uma guia.

    Mas existem sequencias binarias que correspondem ao ficheiro e que se forem quebradas deixas de ter aquele ficheiro. Talvez se lhe chamarmos Maneldoszeros, ja não seja uma metafora?

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  8. Outra coisa.

    Estou de acordo com a quase totalidade do post. So acho que o nome que damos às coisas devia servir para identificar e não para atribuir propriedades.

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