sexta-feira, fevereiro 05, 2021

O pico.

Agora que o confinamento a sério e o fecho das escolas começam a surtir efeito quem era contra estas medidas aponta o seu sucesso como prova de que não eram necessárias. Não é estranho. Daqui a uns anos, quando isto estiver controlado, também haverá gente a dizer que as vacinas foram um desperdício porque bastava “estimular o sistema imunitário” ou treta do género.

Um argumento comum é que a melhoria não pode ser efeito do fecho das escolas porque, à parte da região de Lisboa, o pico de casos ocorreu antes. Realmente, quando olhamos para o gráfico com o número de novos casos por dia na região Norte é fácil de ver o pico já no dia 20 de Janeiro.



Isto, alegam, é prova conclusiva de que o fecho das escolas no dia 22 não pode ser causa significativa da melhoria que veio a seguir. Um erro neste argumento é ignorar que “o pico” é um ponto a meio caminho entre a parte que sobe e a parte que desce. Por isso, só pode ser encontrado retrospectivamente, depois de se ver que já está a descer. Isto é especialmente importante quando temos muito ruído nos dados. Para ilustrar, o gráfico abaixo mostra um cenário hipotético em que usei os valores reais para os casos diários no Norte até dia 30 de Janeiro e alterei apenas os valores do dia 31 em diante, fazendo os números aumentarem em vez de diminuírem.



O pico de dia 20 depende daquilo que acontece a partir de 31 de Janeiro porque, em rigor, com dados com esta oscilação diária o pico não é uma coisa que ocorre no dia 20. Só pode ser atribuído ao dia 20 mais tarde pelo padrão que surge nos pontos. Como tenho tido dificuldade em transmitir isto mesmo a pessoas com prática em análise de dados, deixo aqui os dois bonecos numa animação para ilustrar isto da forma mais clara que consigo.



Portanto, se ouvirem alguém dizer “ah, mas o pico...” apontem que o pico numa série com ruído é retrospectivo e dêem a ligação para este post. Não garanto que sirva para mudar de ideias, porque há opiniões com raízes muito rijas, mas pode ser que faça pensar.

Outro erro de raciocínio é que o efeito do fecho das escolas só se pode sentir mais tarde. Tipicamente, os sintomas surgem 4 ou 5 dias depois da exposição ao vírus mas a pessoa fica contagiosa cerca de dois dias antes dos sintomas (1). Passam pelo menos dois ou três dias entre o contágio e um teste positivo. Ou mais se só for testado quando tem sintomas. Se há atrasos no rastreio, se depois se atrasa a marcação do teste, mais um ou dois dias para registo e outros atrasos, é provável que em muitos casos demore semanas entre a exposição ao vírus e aparecer o caso confirmado no relatório da DGS. Portanto, é razoável esperar que demore duas semanas ou mais até se sentir em pleno o efeito do fecho das escolas. Mas não marcha tudo ao mesmo passo. Uma pequena fracção dos cerca de sessenta mil testes por dia vai apanhar infecções no início, dois ou três dias após a exposição. Uma fracção maior vai apanhá-las um dia mais tarde e assim por diante até aos tais 15 dias em que provavelmente já se apanha quase tudo. Portanto, mesmo poucos dias depois de mandar para casa dois milhões de pessoas pode começar a surgir algum efeito, ainda que esteja tão próximo do ruído que seja difícil de notar. O gráfico da taxa de crescimento semanal da região Norte ilustra isto:



As escolas fecharam dia 22, sexta-feira. Na segunda e terça seguintes a taxa de crescimento estava baixa mas ainda dentro da variância normal para as semanas anteriores. A partir de quarta-feira começou a descer de forma cada vez mais significativa. Exactamente como é de esperar pelo efeito previsto do fecho das escolas. E, sim, estou a contar com o fim de semana. O fecho das escolas no dia 22 teve um efeito imediato na mobilidade das pessoas, mesmo apesar das eleições. Porque obrigar os alunos a ir para a escola durante a semana faz com que o pedido para ficar tudo em casa no fim de semana pareça a parvoíce que é, nessas circunstâncias. Mas se é mesmo para fechar, então mais gente fica em casa. Apesar de haver menos empenho nisto do que havia em Março, fechar as escolas fez logo diferença na mobilidade das pessoas (2).

Finalmente, é verdade que fechar as escolas prejudica especialmente as crianças mais pobres. Parece-me que seria melhor garantir aulas presenciais a crianças carenciadas, tal como se faz aos filhos de trabalhadores essenciais (3). Mas parece-me fundamentalmente errado invocar a pobreza como razão para não fechar as escolas. O problema das crianças que não têm refeições regulares, que não têm acompanhamento dos pais e que vivem em casas sem condições de habitabilidade não se resolve com aulas presenciais. A pobreza é um problema estrutural que deve ser atacado independentemente da necessidade de fechar as escolas por causa da epidemia. Necessidade essa que, sabemos agora, é muito maior do que aquilo que queriam que pensássemos (4).

1- Harvard Health Publishing, If you've been exposed to the coronavirus
2- Expresso, Portugueses aderem menos ao confinamento que em março.
3- Dinheiro Vivo, Governo alarga serviços essenciais para acolhimento de filhos em escolas
4- Sol, "Mais de metade das escolas públicas registaram casos, o que foi encoberto durante mais de três meses"