domingo, junho 06, 2021

Contradições.

Tenho acompanhado com ambivalência os analistas da Bitcoin. Se por um lado me parece que esta tecnologia pode ser útil, por outro lado o que tenho visto de análises e da conferência sobre Bitcoin em Miami parece-me tele-evangelismo de geração TEDx (1). A defesa irracional da Bitcoin, especialmente atacando as alternativas, cai em tantas contradições que me faz suspeitar das suas intenções. Hugo Ramos é um exemplo português desta religião. Trocámos há tempos algumas impressões cordiais sobre a COVID e desde então tenho seguido a sua análise técnica da price action da Bitcoin (2), em particular o seu price to time model. Este "modelo científico" que Ramos criou traçando uma linha exponencial a partir de dois pontos prevê que na primeira semana de Outubro cada Bitcoin vai valer 282 mil dólares (3). Mas esta abordagem pretensamente objectiva contrasta com o fervor ideológico dos olhos de laser, as mãos de diamante, o desprezo por qualquer outra implementação da blockchain e a recomendação constante de se comprar Bitcoin, se subir porque está a subir e se baixar porque está barata (4).

Outra contradição recorrente dos bitcoiners é queixarem-se de que os tweets do Elon Musk afectam o preço da Bitcoin ao mesmo tempo que apregoam a Bitcoin como robusta e invulnerável até ao poder dos Estados. Isto também destoa do silêncio acerca de outras formas óbvias de manipulação. A mediação financeira é fortemente regulada porque o mediador que vê por quanto cada participante quer comprar ou vender pode aproveitar-se disso para ganhar dinheiro à custa de todos. Também pode manipular o mercado com transacções fictícias ou permitindo que uma entidade venda a si própria para aumentar o interesse aparente por um activo. Estas maroscas são ilegais num mercado regulado mas são certamente corriqueiras na selva dos activos criptográficos (5). Perante isto, a preocupação com tweets é ridícula.

Mais estranha ainda é a cumplicidade silenciosa com o Tether. Falei sobre isto com Hugo Ramos mas ele ameaçou bloquear-me no Facebook. Temendo o terrível castigo, optei por escrever aqui, onde estou mais seguro. Ramos declarou ser «contra a existência do USDT desde 2017!» mas acha que isto não tem nada que ver com as Bitcoin. Para o analista técnico, 60% do volume diário ser em moeda falsa não é um risco (6). Nem acha preocupante que a Bitcoin, auto-regulada, distribuída e transparente, tenha o seu mercado capturado por uma "moeda" emitida de forma opaca, centralizada e sem garantias fiáveis. É quase como se as pessoas que participam neste mercado estivessem mais interessadas no lucro fácil do que nos ideais que apregoam.

A defesa evangélica da Bitcoin também está a deturpar o propósito destes activos. No artigo que inspirou isto tudo a blockchain serve para garantir segurança num sistema de transacções descentralizado, transparente e onde todos podem participar. A Bitcoin, sendo a primeira implementação, está para uma verdadeira moeda criptográfica como o Gopher esteve para as redes sociais. Só permite vinte mil transacções por hora, demora dez minutos a registar cada bloco e o registo é caro. Neste momento uma transacção custa 6 dólares mas em Abril, no pico do preço e movimento, chegou aos 60 (7). É óbvio que não vai destronar a Visa ou MasterCard (8). Mas o progresso tem continuado e há outros activos com transacções mais rápidas e baratas, com algoritmos mais sofisticados e outras funcionalidades. A resposta dos evangélicos da Bitcoin é chamar a tudo isto shitcoins e fingir que o propósito da Bitcoin afinal é outro, o de "guardar valor" em vez de facilitar transacções.

Os irmão Winklevoss defendem que a Bitcoin vai substituir o ouro (9) porque enquanto as reservas de ouro vão aumentando a Bitcoin está limitada a 21 milhões de tokens. Mas isto é falso porque cada ramo da Bitcoin (incluindo Bitcoin Cash, Bitcoin SV e Bitcoin Gold) tem os seus tokens e estão constantemente a surgir novos activos criptográficos. É muito mais fácil criar "criptomoedas" do que ouro. Basta convencer as pessoas, e é provavelmente por isso que os evangélicos da Bitcoin chamam shitcoins às outras. Chamar heresia ou blasfémia seria antiquado e demasiado revelador mas estão obviamente receosos da diluição das suas bitcoins num mercado crescente de activos do mesmo tipo. A tese de Michael Saylor é ainda mais absurda: a Bitcoin é o único activo que realmente garante direitos de propriedade porque terrenos, casas, ouro ou dinheiro podem-nos ser retirados por outros ou taxados pelo Estado (10). Mas Bitcoin também. Por muita segurança criptográfica que o algoritmo tenha, qualquer malfeitor com acesso ao dono das Bitcoin consegue contornar essa protecção. Basta uma corda, um barrote e um alicate. Como reserva de valor a Bitcoin é muito menos segura do que praticamente tudo o resto porque a única coisa que temos é uma chave de autenticação numa rede organizada por desconhecidos. Além disso, o carácter automático e anónimo das transacções torna os donos mais vulneráveis a ameaças, chantagens, roubos ou burlas. Somando insulto ao ridículo, Saylor até alega que Bitcoin é ideal para milhares de milhões de pessoas em países pobres, como se o problema dessas pessoas fosse fugir dos impostos e da inflação em vez de garantir um sítio onde dormir e encontrar comida para dar aos filhos.

Activos criptográficos podem ser bons como moeda de troca mas não como reserva de valor. O problema é que a motivação principal para os comprar tem sido a especulação, naquilo que um dos criadores da Dogecoin chama de princípio do tolo maior (10): por muito caro que eu compre agora, há de haver quem me pagará mais ainda. As atitudes irracionais a que recorrem para manter este esquema em pirâmide impedem a boa utilização desta tecnologia de dinheiro inteligente. Mas tenho esperança que o ciclo corrente de manipulação, insuflação e colapso dos preços seja diferente dos anteriores. Este mercado deixou de estar isolado e a aldrabice já não deverá escapar despercebida dos reguladores.

1- Bitcoin 2021
2- Youtube, Hugo Ramos.
3- O vídeo completo está aqui, mas esta parte é especialmente engraçada: 11m09s. É preciso ver alguns minutos para apreciar o método científico em acção, que boa ciência não se faz à pressa.
4- Aparentemente, vendendo até propriedades para comprar Bitcoin, o que me parece insensato: My house arrived at the exchange! #Bitcoin
5- Um short é uma aposta que o preço de um activo vai descer. Por exemplo, alugo Bitcoin por uns dias, vendo-as imediatamente e compro novamente antes de ter de devolver. Se entretanto o preço desceu tive lucro. Neste post no Reddit pode-se ver o gráfico dos shorts no dia antes ao colapso do preço da Bitcoin no dia 19, evidência clara de que alguém sabia antecipadamente o que ia acontecer: BTC short positions on Bitfinex in days leading up to May 19th.
6- No Facebook, num post que julgo ser público:
31 May at 18:42
7- Ycharts, Bitcoin average transaction fee
8- Há formas de fazer transacções rápidas usando uma blockchain. A rede Lightning, por exemplo, usa um fundo registado na blockchain para fazer uma série de transacções e depois registar o resultado consensual dessas transacções. Mas isso nem é específico da Bitcoin nem resolve inteiramente o problema porque as transacções só ficam realmente seguras quando registadas na blockchain que dá segurança ao sistema.
9- News.com.au, Bitcoin price will increase tenfold, argue the famous Winklevoss twins
10- Bitcoin Magazine, Bitcoin 2021 Fireside: Michael Saylor And Max Keiser
11-Benzinga, Dogecoin Co-Creator Says 99.9% Of Crypto Market Is Driven By 'Greater Fool Theory'

quinta-feira, junho 03, 2021

A palhaçada, parte 1.

Há tempos conversei com uma pessoa que defende que «A ética é uma palhaçada» porque, enquanto «os objetos de estudo [da ciência] continuariam a existir quer existissem humanos ou não», os valores morais não existem «sem sujeitos. Portanto, são subjetivos». Enquanto «a ciência é procurar saber como é a realidade. A ética é sobre como a realidade deveria ser [... e] isso pode decidir-se de muitas maneiras diferentes, e não há forma de demonstrar que umas estão certas e outras erradas.» (1) À primeira vista, parece ter razão. Afirmar que é maldade torturar crianças é associar à tortura de crianças um conceito de “maldade” que não existe no objecto em si e que tem de ser imaginado por um sujeito. Em contraste, afirmar que a Terra é aproximadamente esférica parece ser uma constatação objectiva de um facto. O interessante em qualificar a ética como “palhaçada” por estas alegadas diferenças é errar não só na compreensão da ética como também da ciência.

Tal como dizer que torturar crianças é maldade, dizer que a Terra é aproximadamente esférica também atribui à Terra uma classificação inventada por nós. “Aproximadamente esférico” não está algures na realidade. É um conceito inventado por nós. Até o conceito de “Terra” é inventado. Os átomos nos minerais do solo fazem parte da Terra. Mas se pegarmos em alguns desses átomos, construirmos um robô e o enviarmos para Marte, ou esses átomos deixam de fazer parte da Terra ou esta deixa de ser aproximadamente esférica. Por um juízo de valor, escolhemos a primeira opção. Os robôs em Marte não contam para a forma da Terra. É o que dá mais jeito. Se bem que “maldade” denote um juízo de valor que “aproximadamente esférica” não denota, a escolha dos conceitos em si também resulta de juízos de valor que guiam a ciência.

A ideia de que a ciência só procura «saber como é a realidade» também está errada. Se assim fosse bastaria listar factos. Medir, contar, registar e acumular dados. Mas não queremos a ciência só para dizer como a realidade é. Não basta dizer que a ponte caiu. Queremos saber porque é que caiu, o que poderíamos ter feito para evitar que caísse e como podemos construir a próxima ponte de forma a não cair. Ou seja, queremos também saber como a realidade podia ter sido e como poderá vir a ser. A explicação causal, peça fundamental da ciência, tem de ir além do que a realidade é. Dizer que houve erosão do leito do rio e a ponte caiu apenas descreve a realidade como ela é. Mas afirmar que a erosão do leito causou a queda da ponte implica que sem essa erosão a ponte não teria caído. Explicar é também saber como a realidade podia ter sido e em que condições seria diferente do que é. Em ciência saber isto é mais importante que a mera recolha de factos porque é isto que dá jeito saber. Este juízo de valor é que fundamenta a ciência.

É por isso ingénuo pensar que a ciência apenas procura a verdade como o critério objectivo de correspondência à realidade. Não só pelos contrafactuais, as tais coisas que poderiam ter sido mas não foram, mas também porque nem toda a verdade interessa. Quantas estrelas há na nossa galáxia? A resposta mais útil que a ciência hoje dá é que provavelmente será entre cem mil milhões e quatrocentos mil milhões. Apesar desta resposta poder estar errada, é melhor que infinitas respostas que sabemos ser verdadeiras mas que não interessam. O número de estrelas da nossa galáxia é metade e outro tanto, é o triplo da terça parte, não é a raiz quadrada de 27, não é -23 nem -35 nem qualquer um de infinitos números inteiros negativos. Claramente, ser verdade não é condição suficiente para ser relevante para a ciência. Nem sequer é condição necessária. Sabemos que as gotas de chuva não são esferas perfeitas mas se queremos calcular a sua velocidade terminal fingir que são esferas é muito conveniente. Sem isso é um berbicacho fazer as contas. Sempre que é útil fingir falsidades a ciência não hesita em fazê-lo nem em reconhecer que o faz. É daí que vem uma das invenções mais extraordinárias da história da humanidade, infelizmente menosprezada por muita gente: as margens de erro.

Quem teve paciência para chegar a esta parte do texto pode suspeitar que me converti ao pós-modernismo. Se a ciência não põe a verdade acima de tudo, se até prescinde dela quando dá jeito e se a sua utilidade nem é compreender a realidade como ela é mas fantasiar acerca do que poderia ter sido, pode parecer que a ciência não se distingue de tanta parvoíce que se inventa para enganar as pessoas. Não é verdade. Há uma grande diferença entre a ciência e os disparates das religiões, superstições e crendices várias que fingem dar conhecimento. O que motiva todas estas criações humanas é a nossa compreensão intuitiva de que temos poder para agir sobre o que nos rodeia mas o que nos rodeia também dá de volta. E isso motiva-nos a tentar saber o que podemos fazer, o que acontece se o fizermos e como podemos obter o resultado que queremos. Ler as folhas do chá, pedir favores aos deuses, espetar agulhas em bonecos ou escrever equações sobre campos electromagnéticos são tudo tentativas de resolver este problema. Que é um problema fundamentalmente subjectivo, de valores humanos. O que separa a ciência do resto é sua a honestidade. Se tentarmos resolver este problema sem nos iludirmos com soluções falsas acabamos eventualmente a fazer ciência. Todas as alternativas exigem fingir que encontrámos soluções sem ter resolvido nada.

Em suma, a ciência não é a procura pela verdade ou por «saber como é a realidade». É a melhor ferramenta para atacar o problema humano, e subjectivo, de obtermos o que queremos em vez de deixarmos o universo tramar-nos. É por isso que a ciência escolhe algumas verdades, ou prefere aproximações, ou se debruça sobre cenários fictícios. O que torna a ciência especial é que tenta mesmo resolver este problema em vez de fingir para impingir tretas. E isto torna a ciência muito parecida com a ética. Apenas diferem no problema. Mas isso fica para outro post.

1- Isto foi no Facebook numa conta que é privada, por isso não identifico a pessoa.