É uma pena.
Os criacionistas não gostam da ideia que a nossa inteligência evoluiu, como outras características, pela adaptação de populações ao seu ambiente. O Mats disse que não está confirmado que a inteligência seja «uma característica física como penas.» Como não explicou o que serão características não-físicas, vou assumir apenas que as físicas resultam da interacção de átomos (ou moléculas, células, tecidos). E o Jónatas Machado deu uma boa razão para considerarmos que a inteligência está nesta categoria, tal como as penas. As penas «só são possíveis porque o DNA contém instruções precisas e altamente complexas para o seu fabrico.»(1) Exactamente como a inteligência. Quem nascer com ADN de pulga ou de beterraba não vai longe nos caminhos do intelecto*.
E há outros indícios. Do traumatismo craniano ao síndroma de Alzheimer, e do álcool à trombose, há muito que mostra a inteligência como indissociável do funcionamento de um cérebro tão físico como qualquer pena. A inteligência que simulamos com computadores, como jogar Xadrez, demonstrar teoremas e identificar pessoas pela voz, é recriada por processos físicos. E em todo o reino animal, do nemátodo ao humano, a correlação entre o sistema nervoso e a inteligência no comportamento é demasiado forte para ser mera coincidência.
A este sólido corpo de evidências contrapõem-se os relatos de quem diz ter sentido sair a alma do corpo e ver coisas fantásticas nunca vistas por mais ninguém. Numa conversa há tempos, um aficcionado de OVNIs e mistérios afins perguntou-me como se explicava que, durante uns dias, lhe tivesse desaparecido o tórus supra-orbital, aquela protuberância óssea que temos sob as sobrancelhas. Eu disse que se explicava da mesma forma que o desaparecimento das minhas orelhas no dia anterior entre as 10:00 e as 11:00 da manhã. O ar ofendido dele mostrou que percebera o problema. O que se tem que explicar aqui é o relato. O alegado facto relatado é uma possível explicação. Talvez as pessoas relatem sair do corpo porque saem mesmo. Mas há explicações alternativas que se ajustam melhor aos dados, especialmente à ausência de confirmação independente das maravilhas relatadas.
O peso das evidências indica que a inteligência é a actividade física de algo como um cérebro, tal como a corrente eléctrica é o movimento de electrões e a temperatura a agitação das moléculas. O problema é a nossa tendência para atribuir coisas aos conceitos. Esta semana um dos meus filhos perguntou-me se as bactérias causavam doenças porque traziam as doenças dentro delas e as deixavam no nosso corpo. Como bactéria e doença são conceitos diferentes ele achou que deviam corresponder a coisas diferentes. Isto não afecta só as crianças. Na história da ciência temos casos como o calórico (a substância do calor), o flogisto (a substância da combustão) ou o éter (a substância por onde a luz se propaga), em que adultos inteligentes e cultos cometeram o mesmo erro. Quando se fala de inteligência, consciência ou emoção há sempre quem assuma que por estes conceitos serem diferentes do conceito de actividade cerebral então as coisas também têm que ser distintas. Não são.
Outro indício importante é a inteligência animal ser composta por mecanismos especializados em vez de ser uma capacidade genérica. Um computador é uma máquina genérica de fazer contas. Quaisquer que sejam. O cérebro humano é muito diferente. Calcular a raiz quadrada de 24551224 exige uma capacidade de computação insignificante comparada a subir escadas a assobiar enquanto se reconhece a cara da avó num quadro meio às escuras. Mas para nós a segunda tarefa é trivial e a primeira laboriosa e mais sujeita a erros. Tal como nenhum pássaro tem penas genéricas mas sim penas especializadas em impermeabilidade, isolamento térmico ou aerodinâmica, também nós temos um grande pacote de inteligências especializadas em controlar os movimentos do corpo, identificar imagens e sons e assim por diante. E linguagem.
Essa foi a nossa sorte. A capacidade de comunicar por símbolos e copiar ideias surgiu empurrada pelas vantagens que trouxe aos nossos antepassados mas ganhou vida própria. Agora não são só os nossos genes que evoluem mas também as nossas ideias, a cultura, que competem entre si para moldar cérebros e criar pessoas. Os genes são praticamente os mesmos de há cem mil anos para cá mas as ideias mudaram muito e, por este mecanismo, a nossa inteligência tem evoluído muito mais rapidamente que os nossos genes.
E aí está outra pena. A teoria da criação por abracadabra é atraente, como a teoria que as bactérias trazem as doenças lá dentro. Mas o nosso cérebro é capaz de muito mais e é pena que cérebros tão capazes sejam infectados por disparates que os impeçam de compreender as suas origens.
*Mas há abóboras que se safam.
1- Comentários em Pegas
Assim podemos admitir que a inteligência só é possível porque o DNA contém instruções precisas e altamente complexas para formar o cérebro.
ResponderEliminar«Do traumatismo craniano ao síndroma de Alzheimer, e do álcool à trombose, há muito que mostra a inteligência como indissociável do funcionamento de um cérebro tão físico como qualquer pena.»
ResponderEliminar< Advogado do diabo >
É possível manter que a inteligência é exterior ao cérebro sem contradizer o facto de lesões físicas no cérebro poderem perturbar a expressão da inteligência. O modelo é este: (a) a inteligência existe na alma imaterial, mas (b) comunica com o mundo material por meio do cérebro; então uma lesão no cérebro pode perturbar a comunicação, dando a ilusão de que a própria inteligência foi perturbada.
< / Advogado do diabo >
Jaime,
ResponderEliminar«É possível manter que a inteligência é exterior ao cérebro sem contradizer o facto de lesões físicas no cérebro poderem perturbar a expressão da inteligência.»
Acontece. Uma lesão na parte que controla os músculos da boca podem impedir a fala, e uma lesão no nervo auditivo pode impedir a audição.
Mas quando uma pessoa não consegue falar mas consegue cantar (ver aqui, por exemplo), a explicação já tem que ser outra. Nesses casos o mais razoável é concluir que a lesão afectou uma parte daquilo a que chamamos inteligência.
"Quando se fala de inteligência, consciência ou emoção há sempre quem assuma que por estes conceitos serem diferentes do conceito de actividade cerebral então as coisas também têm que ser distintas. Não são."
ResponderEliminarLudi,
Por causa destas confusões existem muitas doenças neurologicas e psiquiatricas que ficam por tratar...Porque as pessoas não querem acreditar que as manifestaçãoes emocionais, racionais e outras que tais são resultado da actividade cerebral e não da alma ou lá do que lhe quizeres chamar :)
Beijos
De facto é uma pena que mentes tão brilhantes, capazes de desmontar as mais elaboradas teses burricionistas, tenham tanta dificuldade em entender a diferença que há entre a gravidade de censurar a internet e a gravidade de massacrar milhões de pessoas no Iraque…
ResponderEliminarA Milou diz que são assim, os neo-humanistas… Mas é uma pena… Ai que pena que eu tenho…(das mentes…)
Xiquinho,
ResponderEliminarEstás a sugerir que eu não sei a diferença? Ou é por eu não cumprir o "dever" de me dedicar só àquilo que tu achas importante?
Mas façamos as contas à tua maneira. Tal como com a pena de morte na China, no Iraque está tudo bem porque a guerra, até agora, só afectou 2% da população ;P
Ah, e pesquisei no Google por serious human rights violations, e "iraq" aparece apenas em 58º lugar. Por isso não me faças perder tempo com coisas irrisórias ;)
ResponderEliminarLudwig,
ResponderEliminarNão estou a sugerir nada, apenas a dizer que tu defendes que apesar de não ser na China que acontecem as violações mais graves ela deve ser o alvo principal das críticas por ser quem tem mais população.
E achas que de uma população de 29 milhões que tem o o Iraque, com mais de um milhão de mortos, mais de 4.7 milhões de deslocados e mais não sei quantos milhões de feridos afecta apenas 2% da população? Que raio de contas são essas? Contas à burricionista?
Já na sondagem fizestes evaporar 20% dos inquiridos, quanto é do senso comum que 100 menos 80 sobram 20.
O lugar em que aparece o Iraq é irrelevante. O que pretendi fazer foi uma estatística pegando numa amostra e contando o número de ocorrências. E se contares o número de ocorrências dedicadas aos USA em vez do Iraq? Em 36, encontras 5…
Mas concordo que é uma perda de tempo. Aliás é mesmo ridículo que um ignorante como eu que passou (por favor…) com 10 a probabilidades e Estatística pretender dar lições de matemática a um professor universitário com a tua cultura e conhecimentos. Mas bué de distraído… :-)
xiquinho, não compreendo bem de onde surge o teu non-sequitur, poderias elucidar-me um pouco melhor?
ResponderEliminarJá agora também agradecia-te que mencionasses o iraq como Iraque e os USA como EUA, não é por nada e compreendo-te bem (após discutir coisas nos sites americanos, dou por mim a fazer as mesmas coisas) mas faz-me uma confusão tremenda e penso não ser o único. Seja como fôr, é apenas uma sugestão.
Aquilo que eu gostaria de saber no entanto foi onde buscaste o tal número de um milhão de mortos no iraque. Cheira-me a treta.
Barba Rija,
ResponderEliminar«Aquilo que eu gostaria de saber no entanto foi onde buscaste o tal número de um milhão de mortos no iraque. Cheira-me a treta.»
Deve ser da guerra com o Irão nos anos 80...
Barba,
ResponderEliminarElucida-te noo post da cerimónia.
As referências aos USA e Iraq, são devidas a estar a referir-me à wikipedia versão inglesa, sem qualquer intenção de causar-te uma confusão tremenda.
Finalmente consulta esta pagina.
Dispõe sempre.
Xiquinho, bem sei que a tua intenção não era confundir-me.
ResponderEliminarQuanto aos números descobertos, bem vejo pela página do wikipedia que eles estão em "toda a parte". Mais uma vez os dados estatísticos mostram aquilo que se quer que se mostrem, ao invés de mostrarem aquilo que aconteceu realmente. Quando leio frases do tipo the survey's methods were "close to best practice" and the study design was "robust", tenho calafrios. Deve ser das más experiências que tive ao ler semelhantes estudos "robustos" no campo do Aquecimento Global...
Não me interpretes mal. Sempre achei a invasão terrível, estúpida e maléfica.
Como epílogo, gostaria de lembrar aos leitores que se todos nós nos preocuparmos com as mesmas coisas consoante o grau de importância, deixamos de resolver os milhões de outros problemas que estão continuamente a ser resolvidos todos os dias por pessoas que não têm simplesmente as mesmas prioridades.
É, no fundo, uma questão de liberdade!
Alto... progressos!!!
ResponderEliminarAqui já há uns considerandos mais interessantes acerca da inteligência... boa!
Já agora, quanto às bactérias e doenças ainda há uma 3ª interpretação... e parece-me que de longe a mais biologicamente correcta!
As bactérias nem são a causa da doença nem a trazem e a deixam no corpo... elas são apenas a sua natural consequência! Ou umas oportunistas, afinal... ;)
Mas de certa forma ambas as interpretações se podem considerar complementares ou permutáveis, como as tais imagens em que podemos trocar o fundo e o motivo.
Voltando à elusiva inteligência, a 1ª frase parece-me traduzir na perfeição esse conceito muitíssimo mais lato e abrangente da "inteligência natural" e universal. Digamos que de protointeligência, já presente nos átomos e moléculas primitivos, evoluiu progressivamente até à inteligência humana e mesmo artificial, uma extensão desta, afinal.
Contudo, isto também significa que esta noção mais vasta de inteligência não a limita a ser indissociável do funcionamento de um cérebro. Aliás, aqui há ainda um mais que vastíssimo caminho a percorrer, veremos até onde se chega nos nossos anos de vida...
Por fim, esse excelente exemplo da inteligência específica vai mesmo bem de encontro a tudo quanto venho dizendo sempre que abordo este tema... é mesmo isso!!! Multi-inteligência cooperante num universo funcionante! :)
Mas tal implica o abandono desse estreitíssimo e tremendamente limitador chavão da "inteligência humana", que essa é apenas a coroação de toda a cadeia evolutiva de um universo que é inteligente desde o seu início.
Com ou sem Deus, não importa. Esse é um departamento que só vale a pena começar a explorar quando, finalmente, pudermos compreender e aceitar essa ideia de que a inteligência tudo é!!!
Antes disso, como explicar cabalmente toda a fabulosa complexidade e essa espontânea tendência para a ordem e as estruturas significativas, do atómico ao molecular... inanimado, animado... monocecular, pluricelular... vegetal, animal... p'ra berlindes não está mal !!! :D
Sim, esta é de facto uma concepção holística e de unidade mas, no fundo, filosoficamente é mesmo isso que está subjacente à hipótese de um centro... o ovo ou gérmen cósmico!... de onde tudo surgiu!
Pode ter sido assim ou não, há outras teorias talvez ainda mais surpreendentes, por não divulgadas ou desconhecidas.
Mas há que dar tempo ao tempo, ser teimoso e paciente...
Rui leprechaun
(...gota a gota como a água insistente! :))
Ainda a propósito das bactérias, e porque o meu interesse pelos temas da saúde redespertou, há mais algo importante a dizer sobre a inteligência e até mesmo a consciência.
ResponderEliminarO fascinante livro de Carrell, "O homem esse desconhecido", faz uma descrição maravilhosamente viva de toda a intrincada fisiologia do organismo humano.
Sim, tudo é regulado pelas estruturas nervosas coordenadas a partir do cérebro e restante encéfalo, na sua imensa maioria de forma automática e inconsciente. Logo, para além da tal inteligência mental, outra existe que se manifesta aí em todas as células e tecidos. Mormente, a inteligência vital da sentinela e guardião do nosso corpo, o tal sistema imunitário ainda tão mal compreendido...
Ou seja, e falando de inteligência especializada, temo-la também pelo menos a 2 níveis já em nós: o mental e o físico, este que partilhamos com os restantes seres da natureza.
E esta não é apenas uma noção serôdia ou romântica, ela tem imenso a ver com a saúde, pelo modo como podemos realmente compreender o verdadeiro mecanismo da doença... e da cura!
Insisto neste ponto, ele é mesmo TÃO importante!!! Essa noção velhinha e hoje ignorada da Vis Medicatrix Naturae só pode ser aceite e entendida nesse quadro da inteligência natural e a sabedoria do corpo. Ignorá-la quase por inteiro, como é a prática da moderna medicina que pretende substituir o mecanismo auto-reparador do corpo, em vez de tão somente o ajudar, é um engano funesto. Não pode ser esse o caminho para a saúde e o bem estar, ou a tal inteligência cerebral não pode subjugar a corporal!
Eventualmente, iremos caminhando para esta compreensão mais vasta, regressando de certa forma a concepções que germinaram no passado e podemos agora comprovar de um modo que então não era possível.
Inteligência!... eis a chave...
Rui leprechaun
(...que a compreensão do mundo abre! :))
PS: Ah! e quanto ao velho éter, olha que ainda não morreu e na nova física renasceu!!! :D