quinta-feira, julho 30, 2015

Treta da semana (atrasada): Legalizar a tortura.

Ana Sá Lopes, no Jornal i, criticou asperamente as alterações que a coligação PSD/CDS introduziu à legislação sobre o aborto. Lopes diz ser a favor da introdução de uma taxa moderadora no aborto porque «não há, na minha opinião, nenhuma razão lógica para que o acto médico do aborto não fique sujeito às mesmas medidas que qualquer outro acto médico»(1). Concordo com o princípio, que também defendo como critério para avaliar estas medidas. Mas discordo da conclusão. Uma taxa moderadora serve apenas para evitar a utilização desnecessária de um serviço público. É adequada para coisas como as consultas ao médico de família, por exemplo, às quais muita gente gosta de ir só para conversar. Mas é absurdo cobrar taxas moderadoras a grávidas. Esta taxa moderadora pelo aborto é contrária ao princípio de tratar o aborto como qualquer outro acto médico.

Mas este é o problema mais saliente aqui. Qualquer outro acto médico depende de uma apreciação técnica que conclua ser esse o acto mais adequado para resolver aquele problema de saúde. Seja tirar um apêndice, tomar antibióticos ou engessar uma perna. É verdade que no meu corpo quem manda sou eu mas no Serviço Nacional de Saúde devem mandar pessoas que apliquem os tratamentos apenas quando são os mais indicados para tratar os problemas de saúde e que recusem aplicá-los se não forem. A legislação vigente faz do aborto uma excepção ao dispensar qualquer justificação médica. Quem decide é o utente. É de salientar que o referendo perguntava apenas sobre a despenalização do aborto e não sobre se o aborto deveria ser oferecido gratuitamente a todas as grávidas sem qualquer justificação médica. Suspeito que o resultado do referendo teria sido diferente se fosse essa a pergunta, e a forma como este foi transposto para a lei viola o tal princípio razoável de que, sendo o aborto um acto médico legal, devia ser um acto médico como os outros.

Mas, se a lei obriga o SNS a oferecer o aborto como solução para problemas que nada têm que ver com a saúde da grávida – problemas pessoais, financeiros, sociais ou profissionais – então é razoável que se foque esses problemas e se tente procurar, com a grávida, soluções alternativas. Uma razão forte para despenalizar o aborto era a de que retirar a ameaça legal permitiria atacar os factores que levavam as mulheres a abortar e tentar resolver com elas os verdadeiros problemas dos quais o aborto é um sintoma e não uma solução. Infelizmente, mas como era previsível, uma vez passado o referendo a retórica caiu e passou a apregoar-se o aborto como um direito em vez de um problema. Agora nem querem sequer que se discuta a miséria que obriga a mulher a abortar. Se o acto médico do aborto é para ser parecido com os outros, então terá de ser incluído num processo que averigúe qual é realmente o problema e procure a melhor forma de o resolver. Como muitas vezes apontam, presume-se que a mulher não aborta porque lhe apetece mas porque se vê forçada a isso contra a sua vontade. Sendo assim, mais vale eliminar esses constrangimentos do que eliminar o feto.

Além do aborto ser excepcional por ser um acto médico ditado pela vontade do utente, mesmo sem justificação médica, é também excepcional por ser eticamente questionável. Quer se pense que temos o dever de preservar um feto humano às dez semanas ou só a partir das onze, é evidente que a questão não está resolvida. Tanto que se permite aos médicos recusar participar neste acto médico por objecção de consciência, coisa que não se permite na generalidade dos casos. Um médico pode ser contra a pílula ou as transfusões de sangue mas é profissionalmente obrigado a seguir as boas práticas da medicina mesmo contra tais convicções pessoais. Excepto com o aborto porque não só tende a faltar justificação médica para o acto como não há consenso que o aborto seja mesmo um direito da grávida e não uma violação dos direitos do abortado. Neste contexto, faz todo o sentido garantir que a grávida percebe o problema ético e as suas implicações, especialmente sendo ela a única responsável pela decisão final.

Lopes dá um bom exemplo disto. «É como pôr [...] crentes que são contra as transfusões de sangue a fazerem “aconselhamento” junto dos médicos do serviço de urgências.» Pensemos no caso ao contrário. Um paciente com filhos menores recusa uma transfusão de sangue por motivos religiosos e os médicos sabem que isso causará a sua morte, deixando as crianças órfãs. Certamente não será tortura apontar a essa pessoa o conflito entre o seu direito de recusa e o bem estar dos seus filhos. Quando um acto médico suscita dúvidas éticas é razoável que quem toma a decisão o faça consciente destes aspectos da sua escolha.

Se o aborto fosse um acto médico como qualquer outro seria recusado na maior parte dos casos por não haver justificação médica para abortar. Se, por outro lado, vamos usar o SNS para resolver problemas pessoais, profissionais ou sociais, então é evidente que se tem de considerar também esses problemas para tentar identificar o problema certo. E sendo o acto em si eticamente dúbio – é infundada a certeza absoluta que muita gente tem de que o feto até às 10 semanas é totalmente diferente do que é das 11 em diante – é um direito e um dever do utente compreender bem as implicações da sua decisão. Quanto a ser uma tortura, o termo é incorrecto. Ninguém recorre à medicina quando tudo está bem e estes processos podem implicar sofrimento, diálogos desconfortáveis e decisões difíceis. Há casos muito mais trágicos do que uma gravidez indesejada, que nem sequer é propriamente uma doença. Mas diagnosticar o problema, aconselhar o paciente e procurar a melhor solução tem de fazer parte do processo, por muito incómodo que seja fazê-lo. A ideia de que basta deitar fora o feto para que tudo se resolva, sem perguntas ou diálogo, é uma ilusão politicamente atraente mas prejudicial.

1- Jornal i, Legalizar a tortura das mulheres que querem abortar

1 comentário:

  1. A taxa moderadora no aborto no sns faz sentido não enquanto do aborto já decidido ou em processo de decisão mas como dissuasão de futuras situações que levem a uma repetição do aborto. Dito de outra forma, a taxa moderadora deverá ser um incentivo ao uso de métodos contraceptivos que até são disponibilizados gratuitamente no SNS.
    De resto, nada acrescentar, concordo a 100%

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.