quinta-feira, maio 29, 2008

Razões para crer. 2- Dois é companhia.

«Convém, agora, fazer uma rápida menção das diversas formas de verdade. As mais numerosas são as verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: esta é a ordem própria da vida quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de carácter filosófico, que o homem alcança através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por último, existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes também na filosofia; estão contidas nas respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às questões últimas.» João Paulo II, Fides et Ratio (1)

No sentido filosófico, o conhecimento é uma crença verdadeira obtida de forma fiável. Num sentido mais pragmático é uma crença que, por ser obtida de forma fiável, julgamos ser verdadeira (2). Este segundo sentido é importante porque, não tendo acesso directo à verdade, na prática não podemos ter a verdade como critério inicial. Qualquer juízo de verdade virá no fim de uma inferência falível e susceptível de erros.

Assim, as “verdades” mencionadas por João Paulo II são apenas crenças que ele julga verdadeiras. As verdades não «assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência». O que tem que assentar num método fiável são as crenças acerca do que é verdade para que sejam conhecimento. João Paulo II propõe três formas de conhecimento: a ciência, que assenta «em evidências imediatas» ou recebe «confirmação da experiência»; a filosofia, que depende da «capacidade especulativa do [nosso] intelecto»; e a teologia contida «nas respostas [das] diversas religiões».

Mas as primeiras são as duas partes do conhecimento. Para formar uma crença por um método fiável precisamos de capacidade especulativa e de confirmação empírica. Precisamos da filosofia e da ciência, e a distinção entre as duas é móvel e ténue. Móvel porque muitos problemas começaram por ser filosóficos e acabaram científicos. Problemas como a composição das estrelas ou a diferença entre ser vivo e inanimado foram abordados primeiro de forma especulativa, argumentando definições e debatendo implicações das ideias, mas eventualmente cristalizaram-se os conceitos e, com a possibilidade de obter dados relevantes, passaram a problemas científicos. É este processo que nos dá conhecimento.

E a distinção é ténue porque os cientistas também fazem filosofia e os filósofos ciência. Em qualquer investigação científica é preciso definir conceitos e argumentar hipóteses especulativas e inferências. E na filosofia é inevitável assentar argumentos em dados empíricos e naquilo que se observa. Até as experiências conceptuais dos filósofos, dos comboios que atropelam escuteiros aos celeiros que só são fachada, têm valor apenas por ser consensual que resultariam se testadas na prática.

A filosofia* e a ciência parecem distintas se virmos apenas os extremos da especulação e teste empírico. Mas na gama intermédia de análise crítica, argumentação, inferência lógica e compreensão de conceitos vemo-las abraçadas, unidas para gerar os meios fiáveis que justificam considerar certas crenças como verdadeiras. Este namoro apaixonado tem sido muito prolífico.

A teologia é o pau de cabeleira. É a tia solteirona, velha chata e meio surda que julga ter sempre razão e só atrapalha. A teologia finge ter uma linha directa para a verdade. Chama-lhe fé, revelação, graça, Espírito Santo, espiritualidade e muitas coisas mas a ideia é sempre a mesma. Quem tem isto, desde que esteja de acordo com a doutrina, tem automaticamente a verdade. Não precisa de justificação nem métodos fiáveis nem nada disso.

Não há «diversas formas da verdade». Há verdades e há tretas. E há poucas tretas maiores que os atalhos para a verdade. Chegar à verdade dá trabalho. É preciso compreender bem o que especulamos ser verdade. É preciso inferir o que distingue as alternativas, verdade ou falsidade. É preciso testar, repetir, confirmar e encaixar cada suposta verdade no puzzle que vamos construindo. E é preciso levar a dúvida para todo o lado porque algumas peças, ou mesmo o puzzle todo, podem estar erradas.

Para a teologia basta a «graça prévia e adjuvante de Deus e os auxílios internos do Espírito Santo, que move o coração e converte-o a Deus, abre os olhos da mente e dá a todos suavidade no consentir e crer na verdade»(3). Plim, já está. Isso é batota. Pior, é treta.

* Aqui devia distinguir entre filosofia a sério e a poesia pretensiosa a que alguns chamam filosofia. Mas isso seria outro desabafo e mais uma série de posts...

1- Encíclicas, João Paulo II, Fides et Ratio
2- Razões para crer. 1- Conhecimento.
3- Concílio Vaticano II – Dei Verbum

17 comentários:

  1. Caro Ludwig,

    Na citação que fazes da Dei Verbum, do seguinte modo:

    Para a teologia basta a «graça prévia e adjuvante de Deus e os auxílios internos do Espírito Santo, que move o coração e converte-o a Deus, abre os olhos da mente e dá a todos suavidade no consentir e crer na verdade»(3). Plim, já está. Isso é batota. Pior, é treta.

    fazes batota. O texto da Dei Verbum é o seguinte:

    Para que se preste essa fé, exigem-se a graça prévia e adjuvante de Deus e os auxílios internos do Espírito Santo, que move o coração e converte-o a Deus, abre os olhos da mente e dá a todos suavidade no consentir e crer na verdade.

    A 'graça prévia' é uma condição necessária mas não suficiente da fé. Não basta. É uma condição de possibilidade que não dispensa a liberdade e a fadiga de compreender aquilo em que se acredita. Afinal, o que têm feito e continuam a fazer ao longo dos séculos os teólogos que publicam estudos sobre as questões da fé? Estarão simplesmente a repetir-se?
    Estarão simplesmente a dizer 'que sim, que sim'?

    Caro Ludwig, podes crer que o pensar cristão é muito mais árduo do que se pensa. O acesso à verdade não é de modo nenhum 'plim, já está"!
    De modo nenhum!

    Nem os cristãos pretendem ter o acesso a toda a verdade, nem acreditam que pderão desfazer as muitas dúvidas que rodeiam a crença em Deus. Mas essa é a situação normal de cada ser humano, mesmo no que se refere a outras crenças, mesmo no que se refere ao conhecimento científico.

    Saudações,

    Alfredo Dinis

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  2. «Aqui devia distinguir entre filosofia a sério e a poesia pretensiosa a que alguns chamam filosofia. Mas isso seria outro desabafo e mais uma série de posts»

    É uma boa ideia. Servia para dar folga à série religião e é treta garantida durante alguns milénios (e, possivelmente, uma boa oportunidade para mais uma aparição de D. Aragão).

    Ah, e este post está um tanto ou quanto parecido com o imediatamente anterior :)

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  3. Este texto está repetido.

    Já agora, bom texto!

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  4. Alfredo,

    «A 'graça prévia' é uma condição necessária mas não suficiente da fé. Não basta. É uma condição de possibilidade que não dispensa a liberdade e a fadiga de compreender aquilo em que se acredita.»

    Sim, há muito esforço em escrever sobre as verdades reveladas. Mas essa verdade vem, literalmente, de graça. Para obter a verdade teológica o teólogo tem um papel passivo. É o espirito santo e a graça que lhe "abre os olhos" etc.

    E isto é batota porque não há razão nenhuma para concluir que o que se obtém com a fé e estas coisas é verdade. É batota porque põe a verdade no inicio (seguida do esforço de compreensão) e não no fim onde ela pertence.

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  5. Concordo com o que foi escrito pelo Alfredo Dinis.

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  6. João e Pedro,

    Já é a segunda vez que isto me acontece... a primeira, há uns dias, notei logo mas desta foi um caso mais grave de gaguez blóguica :)

    Obrigado pelo aviso.

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  7. Ludi,
    "não há diversas formas de verdade", mas as verdades têm uma vida, às vezes mais curta, outras mais longa.
    Tanto as verdades científicas como as religiosas ou filosóficas.Geralmente as verdades ciêntificas destronam as filosóficas e as científicas com novos conhecimentos.
    A verdade sócio-política também conta: pode construir ou destruir verdades, incluindo a religiosa.
    Acho que as verdades se substituem umas às outras de acordo com vários factores sócio históricos, científicos e pessoais.
    è complicado, mas as verdades não são eternas.
    Bjs Karin

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  8. Olá.
    Chegar à verdade dá trabalho. Concordo. Mas pergunto se o papel último da verdade não será sossegar o espírito de quem a aceita. Parece-me que é. Nesse caso a ideia de divindade tem, ao menos para mim que sou ateu, o seguinte mérito: é um mecanismo de obter justificações muito compensador . Se não fosse não durava há tantos milénios. Entendo-o como uma espécie de consequência da lei do menor esforço (ressalvo que pode ser simplista reduzi-lo a tal). Esta lei é uma manifestação de adaptabilidade. Então talvez não seja fácil encontrar uma população inteligente e, portanto, adaptável (humana ou não), que sendo capaz de descrever o que a rodeia não tenha uma ideia de divindade. Quem sabe, Deus pode ser um conceito tão ou mais universal que a Matemática. Nesse caso pode não ser uma boa opção querer irradicá-lo [não estou a sugerir que seja essa a intenção dos seus posts, que são, aliás, bastante interessantes].

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  9. Karin,

    «Acho que as verdades se substituem umas às outras de acordo com vários factores sócio históricos, científicos e pessoais.
    è complicado, mas as verdades não são eternas.»


    Estás a misturar duas coisas diferentes. Uma é a correspondência entre uma proposição e a realidade. Por exemplo, "a Terra foi criada no ano 4000AC" não corresponde à realidade. Por isso é falsa. E sempre foi falsa mesmo quando toda a gente julgava que era verdade.

    É a crença no valor de verdade de uma proposição que muda conforme o que as pessoas pensam. A verdade é sempre a mesma. Não foi a origem da Terra que mudou mas as nossas crenças acerca disso.

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  10. Ludwig, Karin,

    Há uma expressão, já não me lembro onde a li que diz mais ou menos isto:

    "Não ha verdades absolutas, excepto, talvez, esta"

    Parece-me que Gödel também andou por aqui ;-)

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  11. Ludi,
    ok, se defines a verdade como sendo sempre a mesma independentemente do que as pessoas pensam ou sabem, concordo.
    No entanto eu não usaria o termo verdade para isso, mas usaria facto. Os factos são sempre os mesmos, independentemente do que acreditamos ser verdade ou não.
    Bjs Karin

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  12. Karin,

    Eu prefiro distinguir assim:

    O facto é o estado real das coisas. Por exemplo, estar a chover.

    A crença é a minha opinião acerca das coisas. Neste caso, a aceitação da proposição "está a chover".

    A verdade é a propriedade que tem a proposição "está a chover" por corresponder ao facto de estar a chover.

    Não é um uso universal destes termos, mas penso que é suficientemente comum para funcionar.

    Seja como for, na maior parte das discussões não há problema. Neste em particular penso que é útil esmiuçar os termos. Resumindo, factos são parte da realidade em si. Verdade é propriedade de proposições que correspondem à realidade. Crença é o que nós achamos ser verdade. Conhecimento, sentido prático, é a crença justificada. Conhecimento em sentido estrito filosófico é a crença justificada em proposições verdadeiras.

    Ufff... :)

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  13. Ludi,
    rendo-me.
    A minha crença justificada é que deverias ter sido advogado.
    Bjs Karin

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  14. Ludi,
    só para chatear:
    para mim, a verdade é que um caneta é pequena. Para uma formiga, a verdade é que uma caneta é grande. O facto é que ela mede 14 cm.
    Bjs Karin

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  15. Karin,

    Não me dava bem como advogado porque eu quero os conceitos como ferramentas e não como um fim em si :)

    Mas a verdade é a correspondência de "para a formiga a caneta é grande", "para a Karin a caneta é pequena" e "a caneta mede 14cm" com os factos de a caneta ser maior que a formiga, menor que a Karin e medir 14 cm :)

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  16. AAAAAArrrrrrgggghhhhh.
    Bjs Karin

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  17. Acho sempre curioso que quando alguém clama o óbvio de que as verdades religiosas provêm apenas e somente de uma ligação directa dogmática e de tabu, sempre vem alguém a dizer que não é bem assim, é mais complicado, e depois entranham-se numa bola emaranhada de raciocínios, com imensas bibliografias teológicas e etc., mas a única razão de tal é baralhar e confundir a razão, nunca responder ao óbvio. Fica-se sempre com a noção de que é "mais complicado" e de que os especialistas, leia-se os "Teólogos" "know better".

    Vai lá vai que até a barraca abana. Só tenho pena que a religião demore tanto tempo a morrer. É como uma doença que apesar de todos os esforços médicos e científicos teima em desaparecer...

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