quarta-feira, maio 02, 2007

Mente e fisiologia, parte 4: causas.

Se rejeito o dualismo e assumo que isto tudo não é mera ilusão só me resta o materialismo. Existe matéria, é na matéria que está a mente, e volto ao problema de como é que a matéria pensa, e sente, e deseja. Vou deixar os detalhes para a neurologia e focar só um problema filosófico: se a neurologia revelar todos os mecanismos do sentir e do pensar o que vamos compreender com isso?

Parece trivial. Se sabemos tudo o que os neurónios fazem compreendemos as causas da mente. Mas não, porque temos problemas na percepção de causas. Especificamente, a tendência de ver causas onde não há e apenas ver como causa e efeito certos tipos de relação.

Vou começar pelo primeiro tomando como exemplo uma explicação do forno de microondas. A radiação agita rapidamente as moléculas e «esta agitação ao rubro causa uma tremenda fricção dentro dos alimentos e -- tal como esfregar as mão as faz aquecer – esta fricção produz calor» (1). É um disparate revelador. Revela tal apetência por causas que até aceitamos um relato causal que não explica nada. Afinal, como é que a fricção faz calor? A explicação correcta é que a agitação molecular e a temperatura são a mesma coisa. Nisto não há causa e efeito. Mas esta explicação parece batota. Quem tem a mente deformada pela física sente-se obrigado a aceitá-la pelo peso das evidências, mas que a temperatura seja apenas a agitação das moléculas é uma ideia sensaborona, decepcionante. A explicação da fricção é mais atraente e intuitiva.

Analogamente, defendo que a mente é a actividade dos neurónios. Não há causa e efeito. É decepcionante, mas são a mesma coisa. Pior ainda, além desta relação de identidade nos privar da satisfação de uma causa e um efeito, há ainda um fosso psicológico entre duas percepções de causalidade que não conseguimos conciliar.

Se acontece algo de desagradável o meu modelo materialista diz que esse acontecimento faz o meu cérebro produzir menos serotonina, a falta de serotonina causa uma preponderância de certos padrões de actividade neurológica, e esses padrões de actividade são a minha depressão. Mas eu vejo dois tipos diferentes de causalidade. Por um lado, que o acontecimento desagradável causou a minha depressão. Por outro lado, que a falta de serotonina alterou o meu cérebro. Não consigo ver a falta de serotonina como causa da depressão. Estou-me nas tintas para a serotonina! Se a serotonina não me interessa nunca a sua falta me vai causar transtorno. Intuitivamente, não consigo relacionar uma substância química que não me interessa com uma depressão que me afecta tão profundamente.

Tal como a percepção de cor é diferente da percepção de sabor, também tenho diferentes percepções de causa. Tenho a percepção de causas mecânicas, como a serotonina afectar neurónios. E tenho a percepção de causas intencionais, como estar triste por causa de algo que correu mal. É tão estranho à minha percepção que a serotonina cause depressão como seria estranho uma cor ter sabor.

A mente como actividade do cérebro é uma ideia estranha porque sai do que é intuitivo à nossa percepção, tal como a mecânica quântica, a relatividade, ou até o forno de microondas. Mas isso não é razão para rejeitar esta hipótese, que é a melhor que temos. Nem razão para considerar a mente um Mistério.

Todo estes problemas com cores, sabores, causas e intuições têm uma origem comum. Milhões de anos de evolução que adaptaram o nosso cérebro a um conjunto específico de tarefas. Encontrar comida e parceiro. Criar os filhos. Evitar predadores e vencer competidores. Nada nos preparou para compreender o decaimento radioactivo, a geometria do espaço-tempo, ou a mente como actividade neurológica. Quando nos aventuramos por estas coisas temos que abandonar a compreensão intuitiva e construir os modelos com cuidado, peça a peça, colando tudo com evidências e abanando de vez em quando para fazer cair as partes soltas.

Só assim podemos compreender o amor, se há um deus que é amor, e se o universo foi criado por amor. Mas isso fica para o último episódio.

1- How Do Microwaves Cook?

11 comentários:

  1. bom, alguns comentários de física :-)

    nem sempre a transição micro -> macro é simples; noutras palavras, conhecermos precisamente a natureza microscópica de um fenómeno não implica necessáriamente que tenhamos uma compreensão clara do correspondente fenómeno macroscópico. por exemplo, embora eu conheça bem a descrição microscópica de um fluido, e inclusivamente conheça bem a sua formulação macroscópica (neste caso, hidrodinâmica, através das equações de navier-stokes), um dos grandes problemas da física actual reside precisamente em entender quantitativamente o fenómeno da turbulência. ela tem que "estar" algures nas equações de navier-stokes, mas não é nada óbvio "onde". isto para dizer que mesmo com boas descrições micro e macro do cérebro, não é óbvio que o problema da consciência seja de solução trivial! :-)

    um detalhe: quando dizes "A explicação correcta é que a agitação molecular e a temperatura são a mesma coisa" isto não é inteiramente correcto. elas estão relacionadas num formalismo micro-canónico da física-estatística / termodinâmica, mas, strictly speaking, elas não são a mesma coisa :-)

    e, pessoalmente, penso exactamente o oposto de "A mente como actividade do cérebro é uma ideia estranha". acho que é a única ideia que faz sentido!! devo ter evoluido de um macaco diferente do teu ahaha ;-)

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  2. Sim, tens razão. Em detalhe, os modelos são diferentes. E aquele site de onde tirei isto do microondas nem distingue calor de temperatura.

    Mas o contraste que eu queria fazer era mais filosófico. Em rigor a temperatura é um aspecto estatístico do movimento das moléculas, e não o movimento em si, mas para a temperatura não precisamos mais nada que o movimento das moléculas. Por exemplo, não precisamos do calórico.

    Ou seja, a explicação no nível mais alto não precisa assumir a existência de entidades que não se assuma na explicação de nível mais baixo. Isto para a temperatura e para a mecânica dos fluidos. É o que os filósofos chamam ontologicamente redutível.

    Apesar de concordar em quase tudo o que Searle diz sobre isto, eu dou o passinho que lhe falta, e digo que a consciência é ontologicamente redutivel à actividade dos neurónios.

    Quanto ao macaco, agora corrijo eu: provavelmente temos os mesmos macacos como antepassados. A probabilidade de haver algum individuo que tenha vivido há mais de um milhão de anos e que seja antepassado de apenas um de nós é ínfima. Se é antepassado de um de nós é de certeza antepassado de toda a humanidade.

    Devemos é ter herdado pedaços diferentes do macacal todo que veio depois :)

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  3. Vá lá! Não discutam sobre isso. A realidade é que vocês podem ter herdado as metades diferentes de cada um desses macacos de há 1 milhão de anos. :-)
    E não façam também confusão, que depois os criacionistas põem-se a inventar. Nós não descendemos de macacos! O que a Evolução diz é que nós e os macacos temos um ancestral comum, de onde evoluimos, mas, de formas distintas. Ainda nos aparece um criacionista a torturar macacos para tentar obter humanos. :-)

    Agora mais a sério...
    Essa questão de o pensamento ser uma acção fisica do cérebro parece-me a mesma ideia que o "penso logo existo". A ideia de eu pensar, implica que eu tenho uma existência fisica, mas, não me garante nada sobre a vossa existência. A realidade que eu conheço, e sobre a qual penso, pode ser fruto da minha imaginação, e eu na realidade não passar de uma montanha de matéria, matida viva, numa realidade diferente. A unica coisa que posso ter a certeza é que sou real, independentemente de ser como me vejo, ou, numa masmorra qualquer, onde imagino toda uma realidade.
    Chiça, que de repente só me ocorre uma palavra: Matrix

    É melhor parar antes que me humilhe mais ainda.

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  4. António,

    O «penso logo existo» não implicava nada de físico, apenas o eu da consciência que Descartes julgava ser irrefutável e resistente ao cepticismo mais extremo.

    E mesmo nisso ele se enganou. De um pensamento a única coisa que podemos concluir é que há um pensamento. O tal eu como um ser que persiste, que é sempre o mesmo de um pensamento para outro, é já uma inferência duvidosa.

    Mas o solipsismo está correcto. Para mim vocês são só letrinhas que me aparecem no ecrã ;-)

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  5. Olá Ludwig,


    Queria responder ao post dos direitos de autor, mas sou um desastre a gerir o meu tempo,
    e este comentário, provavelmente será isolado.

    Pegando em:

    “O tal eu como um ser que persiste, que é sempre o mesmo de um pensamento para outro, é já uma inferência duvidosa.”

    Lanço um facto/observação e não uma crítica.

    O nosso corpo é renovado na sua totalidade, átomo a átomo, aproximadamente ao fim de 7 anos, o que me lavra a formular várias hipóteses:

    1.º - morro de 7 em 7 anos?

    2.º - renovo-me de 7 em 7 anos?

    3.º - o meu eu/mente transfere-se de um entidade física para outra ao fim de 7 anos, mesmo que de forma progressiva? Neste ponto fica aberta, claramente, a transferência da mente/eu, teleportagem etc... E eu, enganado ou não, nunca perco a percepção que sou eu! Dever-se-á à progressão suave do processo?

    4.º - não há uma mente/eu, mas varias ao longo do tempo, e se sim o processo será contínuo ou descontínuo. Descontínuo, quando durmo por exemplo: acordo sou outro, ou mais do mesmo mas com um pequeno incremento/decremento? E se for contínua a mudança? porque julgo ser o mesmo, sempre!

    5.º - uma combinado das hipóteses anteriores?

    Ou seja o que faço é mais um atirar factos ao ar para ver quem agarra e como.

    P.S. – o meu Nick é infeliz e deriva de uma situação única, penso em breve mudá-lo para não haver conotações infelizes, depois informo se o fizer.

    Um abraço

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  6. Bem...

    Eu diria que a analagia com os fluido é bastante apropriada.

    Imagino que a sensação seja como a turbulência - só surge com fluidos, e não é fácil dizer "o que é", mas podem existir fluidos sem turbulência.

    Suponho que possam existir redes neuronais com quase tantos neurónios como o cérebro humano, e mesmo assim não existir sensação. Se as suas ligações forem muito uniformes (tipo cada um liga ao do lado) e não existir INPUT, não estou a ver a sensação a emergir.

    Mas não sei muito mais do que isto. Adoraria compreender ao certo quais os padrões de actividade neuronal que são mínimos e necessários para a sensação. Ao certo como podem ser influenciados. Como é que deles ela surge. Como podem ser reproduzidos?
    Qual a estrutura mínima para a sensação? Qual o tipo de INPUT que a permite?

    Isto são tudo questões a responder. Quando estiverem muito melhor entendidas (se bem que, concordo com o Ludwig que dificilmente serão intuitivas para muitos (todos?)) a alma será mais difícil de engolir.

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  7. joão, esse ponto é bom. uma forma de pensar nele é a seguinte: naturalmente numa rede se as interacções forem demasiado fortes ou demasiado fracas não se formam padrões com estrutura global. isto apenas acontece para valores críticos das interacções, onde se dá o fenómeno de scaling ou self-similarity. isto é também o que acontece na turbulência (inclusivé existem propostas para utilizar conformal field theory na descrição da turbulência, o mesmo tipo de teoria de campo que usas para descrever transições de fase -- ou mesmo teoria de cordas ahah). assim é muito provável que a um nível de rede neuronal também tenhas que procurar um ponto crítico, onde se dá uma "transição de fase", e a rede passa a ser consciente de alguma forma. decerto milhares de anos de evolu&ccedilão (do mesmo macaco, de macacos diferentes, ou de primos distantes ahah) regularam a nossa rede neuronal precisamente para o seu valor crítico... ludwig?

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  8. Agora não sei, lá está o Ludwig com a causalidade.
    Eu sei que a depressão não é causada pelos acontecimentos desagradaveis mas sim por um baixo nivel se seratonina. A questão é o porque de termos baixos niveis de seratonina.
    Quais as causas, para alem da genetica que está provada, que causa a flutuação dos niveis de seratonina em certas pessoas?
    Esta historia da causalidade deixa-me com baixo niveis de seratonina, hihihi!!!

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  9. Não tenho acompanhado os últimos artigos sobre o tema, mas espero recuperar em breve.

    Mas essa afirmação do efeito sem causa é mesmo MUITO idealista... ó artista!

    Ou seja, dito assim claro que não... ;)

    Analogamente, defendo que a mente é a actividade dos neurónios. Não há causa e efeito.

    Ou seja, trata-se de uma simultaneidade, certo?! Só que tal não está nadinha de acordo com várias experiências que já datam de há 30 anos atrás, ó Ludwig! Falo das muito controversas e de difícil explicação observações do neurofisiologista Benjamim Libet, cuja interpretação dúbia continua a não ser nada pacífica na comunidade científica que estuda o fenómeno da mente e da consciência.

    Um breve relato dessas experiências, efectuadas em sujeitos conscientes durante operações ao cérebro, pode ser lido aqui, juntamente com alguns comentários muito esclarecedores:

    http://www.consciousentities.com/libet.htm

    O interessante é que esse "time lag" em que a mente parece desfasada da reacção neuronal ("neuronal adequacy") - adiantada ou atrasada? - é confirmado também por outras experiências ainda mais intrigantes que apontam igualmente para uma "antecipação" daquilo que o sujeito conscientemente ainda não sabe mas ao qual já reage.

    É que este conjunto de dados pode pôr em causa a identificação muito simplista entre "mente" e "cérebro", a qual não é reconhecida nem nas teorias dualistas nem no idealismo monista, claro.

    Logo, os dados estão aí, mas cada um os interpreta à sua maneira, conforme lhe dá mais jeito!

    E insisto em que essa ideia da não causalidade é muito mística, ó Luís! Obviamente, isso é precisamente aquilo que o idealismo sustenta, nem o cérebro causa a mente ou consciência, nem vice-versa. De facto, apenas existe a consciência imaterial e nada mais...

    Rui leprechaun

    (...na ilusão dual das partículas irreais! :))

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  10. http://feeds.feedburner.com/~r/TEDTalks_video/~5/113887887/ted_dennett_d_2003.mp4

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  11. Se acontece algo de desagradável o meu modelo materialista diz que esse acontecimento faz o meu cérebro produzir menos serotonina, a falta de serotonina causa uma preponderância de certos padrões de actividade neurológica, e esses padrões de actividade são a minha depressão.

    Ora bem, acontece que a existência deste modelo materialista, de novo NÃO é pacífica! É sempre a mesma questão da causa-efeito, afinal...

    Ou seja, é inegável que existem relações entre estados de espírito e certas substâncias químicas presentes no cérebro, os neurotransmissores. Mas fazer depender destes os tais estados é uma conclusão algo prematura e ainda não suficientemente comprovada, atenção! É que até se pode raciocinar inversamente e dizer que é a depressão ou o aborrecimento causados pelo acontecimento desagradável que provocam a diminuição dos níveis de serotonina, da mesma forma que a tristeza pode até afectar a capacidade imunitária do organismo.

    De igual modo, o entusiasmo ou o simples "pensamento positivo" talvez seja responsável pelo aumento das endorfinas que combatem a sensação de dor e despertam uma sensação de euforia e bem estar. Ora já foram efectuadas diversas experiências... e cada um de nós pode fazê-lo por si próprio, se quiser!... que comprovam à saciedade que o simples focalizar o pensamento numa ideia positiva de bem estar, ou mesmo o aceitar e NÃO combater a dor física, são simultaneamente acompanhados por uma melhoria no estado geral, que pode inclusive levar a uma analgesia mesmo de dores bastante violentas! Deveras, em doentes terminais que preferem permanecer conscientes o mais possível, essa aceitação da dor é encorajada para evitar uma sedação excessiva. Note-se que as endorfinas são consideradas opiáceos endógenos e "natural pain killers".

    É que, repito insisto e persisto, isto põe mesmo seriamente em causa essa noção muito primitiva da química do cérebro ser responsável pelos nossos estados de alma. É uma boa ideia para a indústria farmacêutica, só que não funciona, certo? Ou então, bastavam uns prozacs e estávamos na maior... but it is not like that!

    Logo, esse modelo materialista vai ter mesmo de ser muito melhor aperfeiçoado, embora não me pareça que ele tenha mesmo solução possível... ;) É uma crença, afinal, como outra qualquer e nada mais, que se baseia em muito "wishful thinking" e num interpretar dos dados consoante a teoria previamente congeminada para os fazer corresponder àquilo que queremos. Mas tal como o ditado que diz não podermos enganar toda a gente todo o tempo, também a ciência não vai poder prosseguir indefinidamente nesse erro de paralaxe.

    Pois há que olhar muito bem...

    Rui leprechaun

    (...p'ra ver mesmo quem é quem! :))


    PS: Ainda a propósito do se acontece algo de desagradável, relembro uma importantíssima máxima de vida que bem se aplica ao caso... serotonina ou não, beta-endorfina na ocasião!
    Não são os acontecimentos que importam, mas sim a maneira como escolhemos reagir ao que nos acontece!

    Porque não tem de ser automático, ó Ludwig, somos um bocadinho mais do que cãezinhos de Pavlov, ou não?!

    There is a free-will and not any blind determinism, the Human Being is much more than an automatic mechanism!!!

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