quinta-feira, maio 24, 2007

A dúvida como método.

«Truth is something that we can attempt to doubt, and then perhaps, after much exertion, discover that part of the doubt is unjustified.»

Niels Bohr



Muitas vezes vejo proposto que a realidade varia conforme o que acreditamos. Falam-me de coisas que existem só para os crentes, ou de verdades para uns que são falsas para outros. É um abuso dos termos e uma grande confusão.

Em certos casos «existe» e «verdade» parecem problemáticos: é verdade que Sherlock Holmes vivia em Baker Street, e existe o cargo de presidente da Republica. Mas o problema desaparece se percebermos o contexto. «Verdade» como concordando com uma ficção em particular no primeiro caso, e «existe» como convenção social no segundo. Mas os crentes não propõem a fé como ficção nem Deus como convenção social. Propõem algo mais substancial, que o seu deus existe mesmo, de verdade.

Mas é absurdo que a realidade seja uma para uns e outra para outros. Nunca foi verdade que a Terra é plana. O Pai Natal não existe. Nem para uns nem para ninguém, e quem acredita o contrário apenas se engana. A fé não dá ao crente uma realidade alternativa isolada da realidade dos restantes. Pode dar uma ilusão, mas a crença é independente da realidade. Só com esforço é que podemos fazer com que crença e realidade concordem.

Moldar a realidade às crenças dá para pouca coisa. Dá para inventar rituais, fazer estátuas e chamar-lhes deuses, ou desperdiçar tinta a escrever tratados teológicos, mas não faz com que exista um ser omnisciente e omnipotente. Impor a crença à realidade só cria deuses a fingir. Deuses de verdade, e tudo o que não conseguimos simplesmente inventar, podemos apenas tentar conhecer. E no saber é a realidade que manda na crença.

O caminho para o conhecimento é tortuoso e cheio de obstáculos. Quem vai a direito movido pela fé entala-se no primeiro buraco que encontrar. Para compreender a realidade temos que usar a dúvida em vez da crença. Como o cajado do caminhante, testando se o solo é firme, se o charco é fundo, se a pedra está solta. E sem medo que a descrença estrague a realidade. Pelo contrário. Quanto mais real, mais resiste à nossa dúvida. O Pai Natal é frágil; uma pergunta bem posta e desvanece-se. O dinheiro é pouco mais resistente. Se a maioria deixa de acreditar que papel com números tem valor lá se vai toda a riqueza. Mas podem duvidar à vontade da força da gravidade que não lhe faz diferença nenhuma. Até podemos definir realidade e verdade como aquilo que resiste à descrença.

Niels Bohr aconselhava os alunos a interpretar o que ele dizia como perguntas e não como afirmações. A melhor forma de compreender a realidade é mesmo fazendo perguntas. O agnóstico, convicto que não há respostas, não sai do ponto de partida. O crente, fiel à primeira ideia que lhe ocorre, lá fica no seu buraco a imaginar que a realidade dele é diferente da dos outros. E o céptico usa a dúvida como método para abrir caminho, questionando o que pensava ser verdade, descobrindo coisas novas, compreendendo cada vez melhor onde está e o que está a fazer.

É este método da dúvida que nos dá as vacinas, a agricultura moderna, os computadores, e toda a sociedade onde agnósticos e crentes podem insistir em conforto que não sabemos nada ou que temos certezas absolutas.

15 comentários:

  1. Aaaahhh, agora entendo porque é que o meu dinheiro desaparece sempre tão depressa: não é que gaste muito ou ganhe pouco, é falta de fé ;-)
    Cristy

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  2. Excelente!!!

    Mais um de antologia :)

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  3. É o dinheiro e quase todo o que não contribui para a reprodução e subsistência, só tem valor relativo. Qual a utilidade de 1 tonelada de ouro transformado em aneis? Zero... A menos que alguem ache que fica mais bonito com um anel de ouro, e depois tem que se atribuir valor a essa beleza, mas, para mim um anel de ouro na mão de um empreiteiro é apenas mais uma inutilidade, talvez se for no dedo da rapariga certa valesse alguma coisa, mas, até assim o valor do ouro é relativo, e tende para zero.

    E acho que o mesmo se passa com a religião. Um deus só vale aos olhos dos seus crentes. O buda deve ter um valor diferente aos olhos de um cristão, comparativamente aos olhos de um budista. E o dinheiro vale menos aos olhos de um rastafari, do que aos meus, e por aí em diante...

    É só relatividades. :-)

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  4. Estou com a Cristy, a minha fé deve andar pelas ruas da amargura porque o dinheiro nem ver : )

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  5. A dúvida é uma característica exclusiva dos ateus?

    Permita-me discordar. Considero-me agnóstico. Acredito que não nos será possível, nunca, termos a certeza da existência de *um deus*. No entanto, esta posição permite-me negar a existência de todo e qualquer deus "conhecido" da humanidade, pois que tal é impossível. Portanto, sou ateu em relação a todos os deuses, mas agnóstico em relação a *um deus* (e por *um deus* refiro-me a...qualquer coisa. Qualquer espécie de consciência cósmica ou natural...).

    No entanto, não é por considerar a busca desta consciência irrelevante que sou completamente apático em relação à vida. Pelo contrário, ao libertar-me dessa inútil tarefa, uso as minhas energias e o meu tempo para "duvidar" doutras coisas...

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  6. É... Convém lembrar que o filósofo que defendeu a dúvida como método chegou à conclusão de que a única realidade de que pode estar certo é que se pensa, e por isso que se existe. Caíu num idealismo extremo porque pôs em causa crenças - sim, crenças - de que o Ludwig, pelos vistos, não abdica, como é o caso de que o mundo é aquilo que a ciência nos mostra.
    Claro que o objectivo de Descartes foi o de chegar a uma primeira verdade capaz de fundamentar o conhecimento produzido pela ciência emergente e matematizada. Mas o que eu pretendo salientar é que se a dúvida e o questionar da realidade forem radicais e hiperbólicos (como foram para Descartes), percebe-se que o que o Ludwig concebe como oposto às crenças afinal também não passa de uma crença.
    É que ao contrário do que você diz as crenças não são independentes da realidade. As suas crenças como as dos outros são dependentes de determinados pressupostos e de determinadas pré-compreensões da realidade, ou seja, estão dependentes da realidade cultural em que se exsite e que se assimilou.
    O conselho de Niels Bohr, se for realmente seguido, deve conduzir a que se ponham questões como: «O que é compreender?»; «O que é a realidade?»; «O que é a verdade?». Se Ludwig tiver coragem de pôr estas questões concluirá facilmente que as suas certezas objectivas também são crenças.

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  7. Caro Zé Carlos,

    Tem razão quanto às certezas. Até a de Descartes estava errada. O facto de pensar apenas indica que há um pensamento; a existência de um sujeito é questionável.

    Mas o Zé Carlos assume que eu tenhos certezas. Não tenho. Nem preciso. Não vale a pena andar à procura do 100% certo quando, na prática, basta os 99.99% de confiança.

    O importante é deixar sempre algum espaço para a dúvida. Tenho crenças numa realidade objectiva, mas não tenho certezas, pois estou sempre disposto a mudar essas crenças se a observação o justificar.

    Penso que o Zé Carlos comete o erro de considerar apenas os dois extremos: ou há certeza absoluta (crente) ou não se pode saber nada (agnóstico). Mas há muitas possibilidades pelo meio.

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  8. Caro J.H.,

    Se é ateu em relação a todos os deuses que se afirma existir, então é ateu.

    Se é agnóstico em relação aos deuses dos quais nunca ouviu falar, bem, também eu. Desses não sei mesmo o que dizer.

    Mas uma consciência cósmica podemos rejeitar com confiança. A informação não pode viajar mais rápido que a luz, e há partes do cosmos que já estão desligadas de outras, por isso nenhuma consciência pode abarcar todo o cosmos. Tanto quanto sabemos, mas, lá está, não é uma questão de certezas mas sim da confiança dos dados de que dispomos.

    E discutir a crença em deuses não me parece uma tarefa inútil, pois este tipo de crenças está ligado a muitos problemas importantes nas sociedades modernas.

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  9. Fora de tópico.

    "Pegadas comprovam que dinossauros nadavam"

    aqui.

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  10. Os crentes são politicamente incorrectos (não respeitam outras crenças e acham que ser ateu também é uma crença), e os agnósticos são, como diz o Luís Rodrigues, ateus apaneleirados.

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  11. Mas quem disse que para Descartes existia um sujeito? Descartes disse apenas que era uma coisa pensante. E se é uma coisa (que pensa) existe.
    Quanto à questão do erro dele, não sei se reparou mas eu afirmei que o que ele pretendeu foi encontrar um fundamento para o conhecimento cientifico matematizado. Se você pôe em causa o principio dele (a razão como fundamento do conhecimento), pôe também em causa o que decorre desse princípio: a possibilidade de se conhecer a realidade.
    E engana-se quando diz que para mim ou há certezas absolutas ou «certezas de nada». Não. É porque qualquer visão da realidade assenta numa determinada pré-compreensão, que o que se pode dizer é que o que existe são diversas crenças. As várias possibilidades a que você fez referência consistem nesta diversidade. Quem opõe a crença ao conhecimento objectivo é que está a estabelecer uma dicotomia e a considerar que só há «dois extremos».
    Só que como eu disse, quem assim divide o pensamento, o que é pensado, tem determinadas ideias preconcebidas do que é a verdade, o que é compreender e o que é a realidade. Você considera que a verdade é a correspondência entre o pensamento e a realidade; considera que compreender consiste em representar o mundo; e considera que a realidade se identifica com uma representação objectiva criada pelo pensamento.
    Mas há mais concepções daquilo que é a verdade, daquilo que é compreender e consequentemente daquilo que é a realidade. A sua concepção acerca do que estes são é tão legimita como outra qualquer, até porque nestes casos nem se pode servir da «superioridade» da(s) ciência(s) para demarcar a sua visão das outras. É que é a visão cientifica que pressupôe estas suas crenças e não o contrário. Estas suas crenças não são falsificáveis, não são cientificas; são simplesmente crenças.

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  12. Zé Carlos:

    Considerar verdadeiro aquilo que corresponde à realidade não é uma «crença como outra qualquer».

    Só para dar um exemplo, duvido que discorde que é melhor que a seguinte alternativa: «Considerar verdadeiro aquilo que não corresponde à realidade».

    Hum... Afinal esse tipo de crenças epistemológicas não são todas iguais...

    Parece que há umas mais adequadas para interagir com o mundo que nos rodeia (a realidade) do que outras... Há umas produzem remédios e computadores, há outras que produzem rituais, etc...

    Eu prefiro as primeiras.

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  13. Zé Carlos:

    «Mas quem disse que para Descartes existia um sujeito»

    Descartes. Chamou-lhe a coisa pensante, uma substância. Foi esse o grande erro do dualismo. O pensamento é algo que acontece, mas isso não justifica assumir uma coisa especial feita de pensamento (o tal que pensa e que é).

    A crença é independente da realidade desta forma simples: dada uma proposição X, qualquer que seja X e como quer que seja a realidade, eu posso acreditar que X é verdadeira ou que X é falsa.

    Para ligar a crença à realidade é preciso um esforço adicional. Ou alterando a realidade, dentro dos limites das nossas capacidades. Ou então pela dúvida, que nos permite alterar as crenças para que concordem com a realidade.

    Tudo o que eu sei são crenças, pois claro. Não posso dizer que sei aquilo em que não acredito -- isso seria contraditório.

    Mas o importante é que eu duvido das minhas crenças (e das dos outros, como penso ser óbvio neste blog ;)

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  14. Parece-me que você está a confundir o sujeito entendido como um individuo com o sujeito do conhecimento. É este, e não o primeiro, que existe para Descartes. Acerca dos indivíduos, como disse Descartes, não se podem ter certezas, pois podem ser autómatos. É o sujeito do conhecimento que é uma substância. E como esta palavra indica, esta substância é o que está subjacente à possibilidade do conhecimento, e da ciência moderna, para Descartes.
    Ora, isto pode ser (e foi) contestado, mas quem o faz tem necessariamente que rever a sua concepção do que é o conhecimento, do que é a realidade e do que é a verdade. Será que afinal a base das crenças cientificas do Ludwig não é a razão, mas sim a emoção? Ou talvez a cultura popular? Ou certos valores? Ou as opiniões da maioria? Se Descartes está errado a concepção do mundo do Ludwig está errada, a sua concepção de que as crenças se distinguem em objectivas e subjectivas está errada.
    Ao contrário do que defendeu no seu post, você não pretende seguir o conselho de Bohr. Porque você permanece fixado na crença de que a verdade é a correspondência entre as ideias, ou as proposições, e a realidade. Só que a verdade também pode ser entendida como o consenso, com a coerência, como perspectiva, como utilidade, como processo, como desocultamento, etc, etc. Assim, pode-se afirmar que você tem crenças de que não duvida. Aliás, acerca da proposição de que a verdade consiste nessa correspondência não se pode dizer se é verdadeira ou falsa. Porque, por mais esforço que você faça, só através da suposição de que há uma meta-realidade é que você conseguiria fazer com que essa crença encontrasse algo com que concordasse. E daí que surja a questão do que é a realidade (e com isto estou também a responder ao Vasco). De acordo com o comentário do Vasco já tem que ser aquilo que é útil, aquilo que serve para alguma coisa. Ou seja, a verdade como correspondência passa a estar subordinada à verdade como utilidade (para não dizer que está subordinada às suas preferências).
    Em suma, você pensa que rejeita o dualismo cartesiano, mas não o faz, pois recupera-o na sua concepção de verdade: de um lado está a razão, e do outro está o mundo, sendo que a verdade seria a relação de correspondência estabelecida entre os dois, entre as tais duas substâncias distintas; numa palavra, entre o sujeito e o objecto do conhecimento. A verdadeira rejeição do dualismo cartesiano passa pela superação da distinção entre o que é objectivo e subjectivo.

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  15. «Porque você permanece fixado na crença de que a verdade é a correspondência entre as ideias, ou as proposições, e a realidade. Só que a verdade também pode ser entendida como o consenso, com a coerência, como perspectiva, como utilidade, como processo, como desocultamento, etc, etc. Assim, pode-se afirmar que você tem crenças de que não duvida. »


    Há aqui uma confusão.

    Não é uma questão de crença dizer que a verdade é a correspondência com a realidade.

    É um questão de linguagem. "Verdade" é uma palavra, e nós usamos essa palavra para nos referirmos à correspondência com a realidade.

    Para nos referirmo, por exemplo, ao consenso, usamos outra palavra: "consenso".



    Aquilo que eu acredito - isso já é crença - é que a verdade é útil.
    É bom conhecermos o mundo como ele é.

    Mas esta crença não é infundada. Há boas razões para considerar que temos vantagem em acreditar que o mundo é como é, em vez de acreditar que é como gostarísmo que fosse, por exemplo.

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