sábado, junho 05, 2010

O pirata e o pescador.

Quando eram copiados à mão os livros eram raros. Gutenberg facilitou a cópia, muita gente passou a ter acesso a material impresso e muitos governantes começaram a preocupar-se com o que os governados podiam ler. Por isso criaram guildas de editores, concederam direitos exclusivos e policiaram as cópias. E não era para menos. A impressora passou a ser uma arma importante em qualquer revolução.

Mas muitas sociedades foram ficando mais democráticas. Nem todas, nem totalmente, e não sem alguns retrocessos, mas em muitas percebeu-se que a censura era mau negócio. O sistema de controlo foi então adaptado para tornar ideias e informação algo que pudesse ter dono. Para incentivar a inovação, diziam, mas o efeito não foi tão claro. Quando os EUA declararam independência deixaram de respeitar as patentes e os direitos de cópia dos britânicos, acelerando o desenvolvimento e industrialização da nova nação. Mas no final do século XIX, já preocupados com o uso que outros davam às suas inovações, assinaram o tratado de Berne. A indústria cinematográfica também começou por fugir às patentes do Edison mas, mais tarde, pressionou que se acrescentasse à lei o “trabalho por contrato”, considerando que uma empresa é a autora legal das obras criadas pelos empregados*. E hoje esta indústria defende o controlo da informação com tal afinco que parece ter regressado à censura original**.

Apesar de, ao contrário do que se esperaria pela tese do incentivo, a exigência de direitos exclusivos e de propriedade intelectual muitas vezes só surgir depois da inovação, eventualmente as empresas querem uma arma para combater a inovação dos concorrentes e essa pressão sistemática tem inchado os monopólios. Aumentou a sua duração, o seu âmbito e a sua interferência na vida privada. Os direitos de cópia sobre material impresso passaram a cobrir discos, filmes, transmissões de rádio e ficheiros de computador. As patentes hoje incluem ADN e comprar coisas com um click (1). E o “incentivo” à criação de obras estende-se por cinquenta anos após a morte do autor, período durante o qual não se espera grande criatividade.

No tempo de Gutenberg havia poucos livros mas muito peixe no mar. O peixe no mar era até metáfora para qualquer coisa inesgotável. Já não é. Com o avanço da tecnologia fomos pescando cada vez mais e ameaçando esgotar o peixe do mar. No final da década de 1960 chegou-se a pescar, por ano, oitocentas mil toneladas de bacalhau no noroeste do Atlântico. No início da década de 1990 a população de bacalhau tinha colapsado nessa região (2). E como o bacalhau demora entre 4 a 8 anos a atingir a maturidade, mesmo ao fim de vinte anos ainda está muito longe de recuperar.

Gutenberg tem pouco que ver com o bacalhau, julgo eu, mas há um contraste interessante entre a pesca e a cópia. Enquanto a tecnologia foi tornando a informação cada vez mais abundante, mais fácil de copiar e distribuir, mais a lei tentou restringir o uso dessa tecnologia. Hoje querem que a lei torne tão difícil copiar um ficheiro quanto era copiar um livro no tempo de Gutenberg, quando é algo trivial e que só torna a informação mais acessível.

Em contraste, a pesca descontrolada ameaça um recurso finito e cada vez mais escasso, mas a lei pouco faz. A legislação internacional tem mais buracos que as redes de pesca (3,4), é muitas vezes descurada e, mesmo no papel, as medidas tendem a ser insuficientes. Parece que anda tudo mais preocupado com a possibilidade de alguém ouvir música de graça do que com o colapso das reservas de peixe, um resultado inevitável se deixarmos as coisas andar como estão.

Este contraste seria estranho se a lei fosse feita para benefício da maioria. Mas tanto a propriedade intelectual como a regulação das pescas são assuntos tratados entre países, fora do processo legislativo normal, e que acabam por ser guiados pelos interesses imediatos daqueles cujo negócio é pegar em algo que já existe e cobrá-lo a quem o quiser. Se for algo que todos podem ter querem proibir o acesso para aumentar a cobrança. Se for algo em risco de se esgotar querem apanhar o máximo, e o mais depressa possível, antes que outro o esgote.

Mas é irónico que o pirata seja aquele que multiplica a informação e a torna mais acessível, porque quando o faz viola a lei, mas não seja o outro que escraviza a lei para roubar o que é de todos.

*Na legislação dos EUA é mesmo assim porque a Constituição só permite a atribuição de direitos iniciais aos autores das obras. Por isso a lei tem de dizer que o autor da obra é a empresa em vez da pessoa que a criou. O que demonstra que na lei, com um pouco de imaginação tudo se consegue. Wikipedia, Work for hire.

** Por exemplo, o resultado de um processo contra uma comunidade online na Holanda, onde se determinou ser ilegal sequer dizer onde se pode encontrar filmes para descarregar (1) Publishing Locations Of Pirate Movies Is The Same As Hosting Them (TorrentFreak)

1- Wikipedia, 1 Click
2- Wikipedia, Overfishing
3- BBC, Ports 'failing to halt illegal fishing'
4- BBC, Hooking the high seas' fishing 'pirates'

6 comentários:

  1. Mas é irónico que o pirata seja aquele que multiplica a informação e a torna mais acessível, porque quando o faz viola a lei, mas não seja o outro que escraviza a lei para roubar o que é de todos.

    Pessoalmente não acho que seja irónico. Toda a história do capitalismo tem sido um processo cada vez mais acentuado de geração artificial de escassez e contenção forçada da abundância. Só assim podem existir lucros ;)

    Mas existem diversos estudos (principalmente da prémio Nobel da Economia Elinor Ostrom) que apontam para o facto dos recursos escassos podem em certos casos ser melhor geridos e distribuídos pelos próprios "produtores" sem a intervenção do Estado ou dos mercados, através de um conjunto de regras bem definidas que reúnem o consenso de todos. Uma desses modelos de autoregulação são as chamadas ITQs:

    Now here’s a case lesson in how modern industrialized societies are so besotted by the powers of private property that they can’t help but attribute near-magical powers to them. Last week, Science magazine published a study (unfortunately locked behind a paywall) that claimed that fisheries “are much less likely to collapse if fishers own rights to fish them, called ‘catch shares.’ If implemented worldwide, they say, this kind of market-based management could reverse a destructive global trend.” The Science headline (September 19) read: “Privatization Prevents Collapse of Fish Stocks, Global Analysis Shows.”

    In the study, UC Santa Barbara professor Christopher Costello and his colleagues looked at more than 11,000 fisheries worldwide. They found that those fisheries that assigned catch shares to individual fishers through “individual transferable quotas,” or ITQs [which are sometimes known as IFQs, or “individual fishing quotas”], were far less likely to be over-exploited. Essentially, ITQs set limits on what any individual fisher may take. Because the fisher “owns” a specific share of the total fish harvest, each has incentives not to over-fish. In fact, they have incentives to actively protect the fish stock because it would increase the value of their individual catch shares.


    Alguns pescadores da América do Norte têm também vindo a criar trusts para preservar os bens comuns e defender a pesca artesanal dos grandes grupos de pesca industrial.

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  2. «E o “incentivo” à criação de obras estende-se por cinquenta anos após a morte do autor, período durante o qual não se espera grande criatividade.»

    E chegam ao ridículo de aumentar o período de protecção sobre obras já criadas e cujos criadores estão mortos. Há uns anos atrás, quando o Rato Mickey estava prestes a cair no domínio publico, lá passaram uma lei nos EUA a prolongar os direitos de autor por mais 20 anos. Como se tal fosse incentivar o Walt Disney a levantar-se da sepultura e criar mais qualquer coisa.

    Se uma obra foi criada com um "contracto social" que estipulava um certo número de anos, não faz sentido alterar as condições à posteriori. Claramente o autor não precisou de maior incentivo para a criar na altura. Os direitos de autor servem, ou aliás deviam servir, apenas para incentivar a criação, não para aumentar os lucros de certas empresas quando dá jeito, nem para garantir reformas douradas aos "ídolos" dos anos 50-60, e muito menos para garantir rendimentos aos filhos e netos.

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  3. Isto do aperto dos direitos de autor já me valeu o pagamento de uma taxa pela impressão de um livro, licenciado com a cc-by-nd-nd-3.0, na staples.

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  4. O LUDWIG PIRATA E O ICAUTO CIDADÃO!!!

    tou a brincar! :D

    Mas enfim, concordo com tudo o que o text expõe.
    De facto não faz sentido que o Mickey Mouse tenha tido um prolongamento do periodo de copyright. E há muitos mais abusos por parte das editoras o que por sua vez causa mais pirataria ainda.

    Eu não sou um individuo para quem a propriedade é deus e os anjinhos, acho que a esse respeito até gostava de te ler algum texto: propriedade privada, de onde vem e de onde vêm os supostos direitos.

    Mas acredito que o esforço de um artista deve ser recompensado de uma maneira um pouco melhor que o equivalente a tocar na rua com o chapéu aberto. E se um disco, livro, quadro, anything tivesse um periodo de protecção de 3 anos? É um número arbitrário claro mas julgo que seja esse o periodo mais rentável de uma dada obra, findos 3 anos penso que na esmagadora maioria dos casos as vendas de um dado audiovisual tornam-se residuais.

    Fundamentalmente discordamos da natureza de um bem intangivel e no facto de tu apontares o 80 que está mal sendo a solução o 8. Acho que haverá um meio termo que permita que um criador tenha a sua propriedade protegida durante algum tempo antes de poder ser copiada livremente.

    Mas ainda assim pergunto: o que é mais importante para a inovação artistica musica: a pauta de uma dada musica ser do dominio público ou uma determinada gravação dessa musica que tenha tido um investimento brutal em estúdio e musicos? O guião de um filme ou uma dada produção desse filme? É que o star wars também pode ser filmado sem cenários e sem actores, só com figuras de papel ou action figures...

    Eu compreendo plenamente o teu ponto de vista mas tu não devias aplicar a chapa 5 a todas as industrias e situações. O matemático que produz formulas não enfrenta a mesma realidade que o musico que grava um disco. Tal como o vendedor de melancias não terá as mesmos problemas que o vendedor de laranjas.

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  5. GUTEMBERG E A BÍBLIA

    Não é por acaso que o primeiro grande livro que Gutemberg imprimiu foi a Bíblia.

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  6. e isso é que é estranho os posts mais interessantes no meu ver claro...tem poucos comentários
    não vive da polémica nem da discussão o ktreta
    mas de uma vontade de cada um afirmar os seus pontos de vista
    que no (ao) meu ver são risíveis
    hum?

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