sexta-feira, dezembro 08, 2006

Visões Diferentes

O Bernardo Motta comentou aqui recentemente que a revelação mostra a todos os crentes uma “mesma verdade transcendente”:

«Considero que o Homem crente tem reagido de forma diferente em locais e alturas diferentes a uma mesma verdade transcendente. O "revelatum", quando surge, é para todos! Grande parte da minha fé está fortalecida pela clara constatação de estruturas intelectuais comuns em várias crenças radicalmente separadas no tempo e no espaço e sem contactos históricos ou transferências de ideias que sejam conhecidas.»

Vou tentar mostrar aqui por três hipóteses que a verdade não é revelada pela fé, mas pela dúvida. Começarei pelo contraste entre o modelo Cristão e o modelo Hindu da escola advaita vedanta, o meu preferido nestas coisas da fé.

Segundo o modelo Cristão o universo é uma criação deliberada de um deus inteligente. Há uma diferença clara entre o criador eterno e a criação temporal, que tem inicio e fim. Somos dotados de independência e autonomia, mas temos o dever de contribuir para um plano divino que é o propósito de toda a criação. O criador fez um universo com um propósito sério, recompensa quem contribui para esse fim, e castiga quem se opõe. O mal e o bem são absolutos, determinados pelo propósito do criador.

Segundo o modelo Hindu a consciência de cada um de nós (atman) é idêntica ao ser absoluto para além do tudo e do nada (brahman). O universo não é uma criação, nem tem um propósito. Todos nós e tudo o que vivemos é esta totalidade consciente a brincar e a representar papeis, a fingir que é um médico, uma professora, um morcego, uma pedra, e a perder-se num jogo de faz-de-conta sem inicio nem fim. Não há um propósito. É como uma música ou uma dança; o objectivo não é levar o bailarino deste lado do palco àquele, mas sim dançar. É um fim em si mesmo, e não há mais nada que isto. Não há mal nem bem, culpa nem castigo, mas sim karma, a relação entre acto e consequência que dá drama a esta peça.

Estes são apenas dois exemplos de milhares de modelos contraditórios que a fé criou. Mas se a fé traz discórdia, a dúvida traz consenso. O terceiro modelo, dado pela ciência moderna, inverte a posição da consciência no processo. Sendo humanos vemos tudo com consciência, e por isso assumimos que a consciência está na origem das coisas. Mas combatendo esta tendência compreendemos a consciência como o produto de processos inconscientes. Como a chuva, o diamante, ou a divisão celular. Assim vemos um universo que é. Não é para. Não é porque. É. Neste modelo o mal e o bem, explicações, razões, causas, tudo isso são conceitos nossos que podemos aplicar apenas onde aplicável. A realidade transcendente é a realidade que, a qualquer momento, nos transcende, mas que se torna acessível quando desenvolvemos ferramentas materiais e conceptuais para a compreender. O electromagnetismo, a gravidade, o DNA, a vida. A origem do universo. A consciência em si, eventualmente.

Mas falei inicialmente de três hipóteses, e não de modelos. Estas hipóteses são que cada um destes modelos corresponde à realidade. Separar a hipótese do modelo pode parecer um preciosismo desnecessário, mas é importante. Se virmos o modelo como verdadeiro ou falso vamos avalia-lo de dentro do modelo e cair em argumentos circulares. A consistência interna que o Bernardo invoca, ou o acreditar para compreender e compreender para acreditar, como dizia Ricoeur. Mas a hipótese de o modelo corresponder à realidade é exterior ao modelo, e por isso a única forma de validar o modelo é compará-lo com a realidade externa ao modelo. Qualquer que seja o modelo.

A fé é a nossa relação íntima com o modelo. A dúvida questiona a hipótese de o modelo corresponder à realidade e abre o modelo ao confronto com o que observamos à nossa volta. É a dúvida que usa os modelos para revelar o que a realidade nos esconde.

Concordo com o Bernardo que o “revelatum” é para todos. A realidade revela-se a todos. Mas pela dúvida, não pela fé. É por tentar encaixar modelos com a realidade que a ciência se torna uma e igual para todos, e este confronto constante entre modelos e realidade amplia gradualmente o nosso conhecimento. A fé é o apego sentimental a um modelo qualquer, e gera um conjunto disjunto de crenças contraditórias que são mais reveladoras das limitações humanas que da realidade que nos transcende.

3 comentários:

  1. Ludwig,

    Com todo o respeito para este artigo, que está escrito com cuidado, penso que há algumas notas a fazer:

    «Segundo o modelo Hindu a consciência de cada um de nós (atman) é idêntica ao ser absoluto para além do tudo e do nada (brahman).»

    Olhe que não, olhe que não, como dizia o outro.
    O "âtma" não é "a consciencia de cada um de nós". De onde é que retirou isso?
    De que texto?
    Vou-lhe enviar por email uma obra fundamental de René Guénon, "L'Homme et son Devenir selon le Vêdanta", porventura o único ocidental a ter compreendido o Vedanta ao ponto de o conseguir explicar noutra língua que não o sânscrito.
    Por favor, recomendo-lhe que leia o capítulo II, que fala acerca da distinção fundamental entre o "eu" e o "Si". São coisas bem diferentes. O primeiro marca a individualidade, e o segundo marca a personalidade.
    Não é correcto identificar o Ser (Brahmá) a algo purmente individual e contingente como o "eu". Atenção que Brahmá é apenas o Ser (substantivo masculino) não é o absoluto Brahma (substantivo sem género para designar a totalidade: Ser e Não-Ser).
    Guénon afirma:

    "O «Si mesmo» é o princípio transcendente e permanente do qual o ser manifestado, o ser humano por exemplo, não é mais do que uma modificação transitória e contingente"

    É inegável que não se pode afirmar, de forma precipitada, que o Vedanta é equiparável à revelação cristã, o que seria um absurdo, e permitiria inaceitáveis ilacções sincretistas que eu abomino. As várias doutrinas não são equivalentes ou substituíveis. O que afirmei foi que, após maturado estudo, se torna notório que qualquer doutrina divinamente revelada possui claros indícios de provir de uma mesma fonte, que terá que ser a Verdade absoluta manifestada, o Logos.
    Repare-se que o catolicismo mais ortodoxo não nega que haja verdade revelada noutras doutrinas, apenas explica que tais revelações apenas fazem sentido à luz do Logos-Criador, que dá sustento ontológico à Criação.
    Dou um exemplo de um possível paralelo entre ambos: do mesmo modo que o Vedanta afirma que o mundo contingente vive na ilusão (maya), também se pode afirmar que a Criação (conceito ausente do Vedanta, é certo) cristã não tem a sua realidade em si mesma. O conceito ocidental de existência (não ter a sua origem em si mesmo mas em algo acima) está ancorado nesta ideia de que o mundo contingente apenas pode ser visto como real em certa medida, e nunca em termos absolutos.
    O referecial de "real absoluto" pertence a Deus, à sua ilimitada transcendência. O Vedanta poderia afirmar o mesmo acerca de Brahma.

    Relativamente às duvidas e certezas, há sempre mal-entendidos que importa esclarecer.
    É evidente que tenho duvidas, imensas dúvidas, sobretudo dúvidas em torno do modo como deve ser procurada a essência da Verdade divina por debaixo das formas que ela assume em cada "revelatum".
    Isso não implica que eu não saiba bem para onde quero ir (para Deus), apesar de ter grandes dúvidas acerca do melhor caminho para o alcançar...

    «Não há mal nem bem, culpa nem castigo, mas sim karma, a relação entre acto e consequência que dá drama a esta peça.»

    Ludwig, não salte a correr para a conclusão de que há aqui contradição. É perfeitamente possível deduzir o destino escatológico de cada ser humano de acordo com a doutrina cristã (Purgatório, Inferno, Paraíso) a partir de relações de acto e consequência. Jesus Cristo ser o Juíz absoluto que nos julgará a todos é uma forma teológica de afirmar uma realidade evidente: teremos um destino compatível de acordo com as nossas acções. Não há Juízos Finais no Hinduísmo, mas certamente que há escatologias distintas de acordo com as acções mundanas. E, analogamente ao nosso Cristo-Juiz, os hindus têm o conceito de Manu, o legislador universal.
    Há que saber ler nas entrelinhas, procurar pensar como um cristão, e sob o cristianismo, encontrar a Verdade que o originou. Do mesmo modo, é útil procurar pensar como um hindu, e sob o hinduísmo, encontrar a Verdade que o originou.
    Eu não tenho dúvidas: Cristo é a revelação definitiva. Mas não duvido também que, antes de Cristo surgir, outras doutrinas receberam certamente uma luz divina (que tenho que reconhecer como incompleta por falta da manifestação humana de Deus-Cristo), por muito diferente que a refracção desta luz na cultura hindu seja da sua refracção na cultura hebraica/grega. Há imensas diferenças, mas muitas são de forma e poucas serão de essência.
    Um abraço,

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  2. Caro Bernardo,

    Como em qualquer religião, há muitas interpretações do Hinduismo, todas elas afirmando ser a Única e Verdadeia, mas discutir esses detalhes é como discutir os rituais de acasalamento dos unicórnios.

    O ponto que eu queria fazer é que há modelos criados pela fé que são completamente opostos ao seu, e um exemplo é o dos que crêm na identidade de Atman e Brahman, e que todos nós somos a mesma consciência a brincar consigo própria.

    É bastante refelador aquilo que o Bernardo aponta como sendo elemento comum entre o Catolicismo e o Hinduismo Vedanta: a tal verdade transcendente. Curiosamente, é isso que faz com que os classifiquemos de religiões, e que me levou a escolher esse exemplo. Se não exigirmos o transcendente podia dar como exemplo de um modelo criado pela fé o atomismo de Demócrito (Demócrito não tinha evidências que justificassem escolher esse modelo; aceitava-o por mera convicção pessoal).

    Em suma, o Bernardo vê em todas as religiões algo de comum: aquilo que nos leva a classificá-las de religião. E nada mais.

    Quando às dúvidas, aceito que o Bernardo tenha as suas, mas o problema é que aquilo em que se baseia na sua procura pela verdade é a fé em vez da dúvida, quando devia ser ao contrário. Pela fé nunca vai encontrar a verdade; pela dúvida pelo menos tende a ficar cada vez mais próximo.

    Finalmente, um promenor: como no hinduismo não há um fim último, em rigor não podemos falar de escatologia. Nem sequer da vida humana, dada a crença na reencarnação.

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  3. Ludwig,

    Hoje, infelizmente, estou com menos tempo para responder ao seu comentário com o vagar devido.
    Apenas umas notas rápidas:
    O que me espanta ao estudar outras religiões é constatar que, salvo importantes diferenças de de forma, existem inegáveis semelhanças em aspectos essenciais, e essas semelhanças não são explicáveis pelo contacto histórico, visto que não há provas desse contacto no tempo ou no espaço. À falta de provas, parece-me insensato não considerar uma explicação boa: as semelhanças detectadas revelam uma reacção condicionada (e por isso diferente na forma) a uma mesma realidade e a uma mesma verdade.

    «Finalmente, um promenor: como no hinduismo não há um fim último, em rigor não podemos falar de escatologia.»

    Seguramente que não, em sentido cristão. Mas se a escatologia estuda o fim último, é inegável que o fim último ao qual qualquer brâmane aspira é a união (yôga) com o Ser supremo, Ishwara, e, no limite último, o desvanecer da última barreira (a do Ser) com Brahma.
    Não é absurdo falar em escatologia hindu nestes termos. Em termos individuais, existe um fim último desejado por qualquer hindu: a libertação da corrente de existências condicionadas, o samsara.
    Em termos cósmicos, há que considerar que a cosmologia hindu, fundada sobre o Sankya e desenvolvida no Vaishêshika, tece longas considerações acerca dos ciclos. A dissolução do presente mundo e o início de um novo fazem tanto parte da escatologia cristã como das doutrinas hindus.

    «Nem sequer da vida humana, dada a crença na reencarnação.»

    O que entende por reencarnação?
    Infelizmente, são muitos os que dela têm uma ideia errada. Há que distinguir a opinião que os populares na Índia têm e sempre tiveram acerca dela e o que ensina a mais rigorosa doutrina brâmane acerca disso. A doutrina dos estados múltiplos do ser, o eixo teórico sobre o qual está estruturado o Vedanta, é bem claro acerca da impossibilidade da repetição de um mesmo estado para um ser. Se sou homem, não voltarei a sê-lo nem a assumir qualquer forma deste mundo. Se sou árvore, não voltarei a sê-lo nem a assumir qualquer forma deste mundo. Por outras palavras, tanto o homem como a árvore são estados condicionados de um mesmo ser, mas quem é homem não voltará a ser homem nem outra qualquer criatura deste mundo. E vice-versa.
    A reencarnação, em bom rigor, de um ponto de vista vedantino, é a visão de que os seres que ainda não se libertaram estão presos a uma cadeia causal (e não temporal) de existências condicionadas. A libertação implica o abandono da individualidade e a plena realização da personalidade. Enquanto um ser não o atinge, vive uma série de existências condicionadas às quais está preso pela sua própria natureza e pela sua inacção em tentar contrariá-lo.
    O Samsara não é aquilo que os imbecis reencarnacionistas ocidentais (estilo Allan Kardec ou Papus) pensam que ele é. Nem deve ser equiparado às superstições populares em voga na Índia. Sou da opinião de que, se queremos aprender doutrina hindu a sério devemos estudar com os professores e não com os alunos ou com os analfabetos.
    Um abraço,

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