A tradição já não é o que era (mas anda lá perto)
Segundo a Agência Ecclesia (1), menos de metade das crianças britânicas entre os 7 e os 11 anos sabe que o Natal é a celebração do nascimento de Jesus. A culpa parece ser do carteiro:
«Os protestos viraram-se, em boa parte, contra o Royal Mail, serviço postal britânico que este ano eliminou qualquer referência cristã dos seus selos: só há renas, árvores de Natal, bonecos de neve e pais natais. Nenhuma imagem lembra, como em ocasiões anteriores, o Nascimento de Cristo.»
Qualquer dia até ensinam às crianças que já havia um festival Romano celebrado nesta semana muito antes do Cristianismo. Dedicado ao deus Saturno, incluía um período de férias escolares, troca de presentes, muita bebida, comida, alegria, e um mercado especial da época. Até o cariz comercial do Natal antecede o Cristianismo. Eventualmente os Cristãos aproveitaram o festival para os seus propósitos. Espetaram uma missa no fim, substituíram Saturno por Jesus, e acabaram com a tradição de ir tudo cantar nu para a rua. Esta última talvez a única melhoria; para cantar nu na rua é mesmo melhor esperar pelo tempo mais quente.
Mas agora voltamos às origens. Dezasseis séculos depois da usurpação Cristã o Natal é finalmente o que era: comer, beber, gastar rodos de dinheiro, e divertir-se à brava quer se queira quer não. Jesus nasceu? Boa! Junte-se à festa, que quantos mais, melhor.
1- Católicos e muçulmanos procuram «salvar» o Natal na Inglaterra
Ludwig,
ResponderEliminarOs festejos do solstício, na cultura romana, eram indissociáveis do culto a Janus, uma divindade de que se fala pouco, mas que dá o nome ao mês de Janeiro. O "deus das duas faces", uma delas a olhar para o passado e outra para o futuro. Uma delas na direcção da luz que cresce (solstício de Inverno) e outra a olhar para a luz que decresce (solstício de Verão).
O Ludwig fala em "usurpação cristã"?
Uma religião que manteve as datas das festividades romanas? Que associou a luz solar do culto do Imperador (o "Sol Invictus") à luz da revelação do "logos" Jesus Cristo?
Apenas uma nota, que os cépticos verão com desinteresse, cegos como estão ao simbolismo e às suas mecânicas.
S. João Baptista é celebrado a 24 de Junho (em cima do Solstício de Verão) e S. João Apóstolo e Evangelista a 27 de Dezembro (em cima do Solstício de Inverno).
O "Baptista", o precursor de Cristo. As "trevas" antes da chegada da "luz" que é Cristo.
O "Evangelista", o último dos autores sacros. Quem também escreveu o "Apocalypsis", ou seja, a "revelação" do fim dos tempos.
Um abre o ciclo revelador de Cristo.
O outro fecha-o.
O simbolismo é poderoso e reinventa-se continuamente.
Fico sempre perplexo quando vejo leituras superficiais deste tipo de matérias. Não sei se leu a tristeza que é o artigo da última revista Sábado acerca de Deus?
A ignorância está à solta...
Toda e qualquer religião, quando se afirma socialmente sobre uma religião extinta ou em vias de extinção, procura adaptar os locais (espaço) e os rituais (tempo) do culto antigo para fazer o novo culto.
Onde o ignorante vê um "roubo" do património extinto, o sábio vê a reutilização do valor sacro intrínseco dos lugares e dos rituais. O Portugal profundo ainda guarda a memória (por vezes viva) de ritos celtas cristianizados. O final de uma religião a caminho da extinção deixa sempre para trás uma sacralidade latente que qualquer religião consciente quer aproveitar para propulsionar o novo culto.
Quando a "Hagia Sofia", em Istambul, deixou de ser cristã com a ocupação turca no século XV, em vez de se demolir o maravilhoso templo (o que seria uma decisão animal), transformou-se esse templo em mesquita...
Um abraço e Bom Natal!
Cristo, quando nasce, é para todos! ;)
Caro Bernardo,
ResponderEliminarNão sou cego nem desinteressado pelo simbolismo, mas vejo-o como é: não algo que revela um aspecto da realidade, mas uma racionalização a posteriori para moldar a percepção.
Usei o termo usurpação precisamente por aquilo que o Bernardo aponta: manter as datas e os festivais e alteraram a tradição duma cultura para dar lugar a outra.
É isto que a notícia apontava como ilegitimo, sendo por isso uma usurpação, e é o mesmo que aconteceu há uns 1600 anos.
Ludwig,
ResponderEliminarEspero que tenha tido um bom Natal!
Eu, sinceramente, não vejo nada que se pareça com usurpação. A adesão dos antigos praticantes dos cultos pagãos ao cristianismo foi lenta, mas a partir de certo momento, decidida e entusiástica. O cristianismo "pegou" e os cultos romanos simplesmente morreram.
A minha visão da coisa é a de que tais cultos estavam moribundos já há séculos, e que o cristianismo apenas deu um pequeno empurrão a um edifício que estava já em ruínas.
O próprio politeísmo formal, que muitos julgam ser a característica fundamental dos cultos romanos, é disso exemplo: quando o politeísmo surge, é sinal de que uma degeneração intelectual já fez perder de vista o princípio unificador. É certo que ainda tinham Júpiter, mas a sua figura estava longe de ter um significado metafísico profundo e unificador. O politeísmo era a evidência mais clara de que os cultos romanos estavam degenerados em simples superstição.
Por isso, o cristianismo não "usurpou" (ou seja, não roubou) nada. As datas e os símbolos, os que verdadeiramente eram universais (os festejos nos solstícios são universais), só podiam ser adaptados à nova realidade cristã.
Vejo a troca da religião pagã para o cristianismo como um fenómeno natural, a passagem de um testemunho.
Para mais, quem estuda História sabe bem que isso de "roubos" de ideias é sempre um pouco especulativo. Parece "conspiratório", uma elite cristã a roubar simbolismo à descarada. Porquê desprezar a adesão entusiasta das populações aos novos ritos?
É evidente que os primeiros líderes cristãos tinham pela frente populações acostumadas a ritos antigos.
Em Portugal, quando se deu a cristianização, tínhamos um legado celta riquíssimo.
O que era universal, reutilizou-se com novas roupagens. O que não era, perdeu-se.
Isto parece-me perfeitamente natural!
Não estou a discordar só por discordar, Ludwig, mas visualizar um cristianismo tirânico a tomar os templos de assalto, contra tudo e contra todos, e massacrando quem se opusesse a tal assalto, parece uma cena de fantasia digna de Ron Howard, nessa pérola documental que é o filme "O Código da Vinci"...
Lá também se vê um "imaginativo" ódio zeloso cristão anti-pagão, que curiosamente, foi invertido, uma vez que o ódio zeloso começou por ser pagão e anti-cristão. Quem morreu nas arenas?
No fundo, soa-me a revisionismo essa ideia de que os cristãos são ladrões de símbolos. Eu vejo as coisas de outro modo. A reutilização de alguns símbolos antigos das religiões decadentes é feita no final de um longo processo, e apenas quando surge uma hierarquia espiritual da nova religião autorizada e sancionada pelo poder temporal. Mas antes disso, era preciso que a nova religião fosse tolerada (fosse legal). E antes disso, era preciso que a nova religião fosse desejada por muitos romanos de vários estratos sociais. E antes disso, foi preciso que muitos cristãos morressem por entre os dentes de animais selvagens para causar frémito suficiente para converter muitos ao cristianismo...
Por muito entusiastas que sejam os jacobinos defensores da ideia da "tirania cristã" ou do "obscurantismo cristão", pura propaganda terrorista, a verdade é que o cristianismo, mesmo para um ateu que o veja como falso, deve ser defendido como a mais genial ideia da intelectualidade ocidental!
É esta a opinião de várias pessoas cultas mas não cristãs (recordo-me neste momento de Umberto Eco).
Para o crente, "calha" ainda que a ideia genial de Cristo, mais do que uma boa ideia, seja sobretudo a Verdade, o que convenhamos, é muito mais fascinante! ;)
Um abraço,
Acima:
ResponderEliminar"[...] mas visualizar um cristianismo tirânico a tomar os templos de assalto, contra tudo e contra todos, e massacrando quem se opusesse a tal assalto [...]"
Ei, assim foram as cruzadas!
hehe