terça-feira, dezembro 05, 2006

Alhos e bugalhos, parte 2.

O Francisco Burnay levantou duas objecções ao meu post anterior (aqui). A primeira foi o direito à reprodução:

«Se aceitar o ponto de vista do Ludwig de que abortar um ser humano em desenvolvimento é criminoso porque estamos a anular a possibili[d]ade de uma consciência se vir a tornar independente, não posso pôr de parte o problema que se levanta por me ter reservado o direito de ter criado uma consciência independente de mim»

O que condeno é matar aquele ser específico (aborto), e não um ser hipotético que pode ou não vir a existir (contracepção). Fazendo uma analogia, quando um engenheiro aprova um grande projecto de construção sabe que é quase certo haver fatalidades entre os trabalhadores (morrem cerca de 100 por ano em Portugal), mas eticamente (e legalmente) isto é muito diferente de dar um tiro num deles. O direito a não ser morto aplica-se àquele organismo vivo que está a tornar-se consciente, e não à mera possibilidade abstracta de consciência. O direito oposto, o direito de nunca ter sido criado, não me parece fazer sentido, por isso não vejo conflito de direitos quando alguém decide ter filhos.

A segunda é novamente a questão da autonomia, na forma do coma irreversível:

«Porque é que um ser em coma irreversível perdeu todos os direitos? Porque perdeu a sua autonomia e a sua liberdade.»

Não concordo que a autonomia tenha muito a ver com isto, especialmente na relação entre pais e filhos. Parece-me até o contrário: quando um filho mais precisa dos pais, os pais têm mais responsabilidade e não mais direitos de o matar ou deixar morrer. Mas o problema principal é justificar um efeito permanente – a morte – com uma incapacidade temporária. No exemplo do Francisco a perda é permanente, mas se soubermos com a certeza com que sabemos no caso do feto que esta falta de autonomia e liberdade dura apenas alguns meses não se justifica dizer que o paciente perdeu todos os seus direitos.

Em suma, aceitar que é errado matar um ser humano vivo e em pleno desenvolvimento não implica que seja errado ter filhos, ou deixar de os ter. E não é razoável que a falta temporária de autonomia dum ser imaturo permita que os pais o matem.

9 comentários:

  1. Ludwig,

    Estou totalmente de acordo com a sua argumentação. É porque existe uma plataforma argumentativa anti-aborto que é neutra em termos religiosos que eu me enervo de ver tanta gente a transformar (convenientemente) a questão numa questão religiosa.
    Faço apenas um comentário: não é nítido porque razão alguém em coma irreversível perderia todos os seus direitos. Talvez o Francisco nos possa explicar como é que ele conclui que um comatoso em estado irreversível perde todos os seus direitos.
    Eu poderia concordar que apenas a morte é uma situação irreversível. Um indivíduo perde todos os seus direitos quando morre, sobretudo porque deixa de ser um indivíduo, e só quando se é um indivíduo se pode falar em "direitos" desse indivíduo.
    Não é nítido que a situação de coma irreversível, ou que a chamada "morte cerebral" possa ser equiparada à morte física. Há quem o defenda, mas isso está longe de ser algo factual ou taxativo nos termos em que o Francisco o coloca.

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  2. Caro Bernardo,

    Para mim é claro porque um paciente em coma irreversivel não tem direitos. Os direitos são consequência da subjectividade. Uma máquina de escrever não tem direitos. Um porco tem o direito de não ser torturado, porque para o porco isso é mau. Um paciente em coma reversível tem o direito de não ser morto porque viver ou morrer são duas alternativas que para ele terão consequências diferentes.

    O paciente em coma irreversível perdeu a subjectividade. É tão indiferente como a máquina de escrever, e tem por isso os mesmos direitos.

    Outros defendem que os direitos vêm de alguma atributo metafísico (ser humano, num sentido não biológico), ou de circunstâncias como autonomia, raça, sexo, etc. Mas para mim todos esses sistemas sofrem do mesmo problema: conferem on negam direitos a uns com base numa escolha de outros.

    Eu acho que o mais correcto é conferir direitos de acordo com a subjectividade daquele a quem os direitos são conferidos, e não de acordo com as opiniões de terceiros.

    Quanto à sua posição, noto que a morte não é um conceito biologicamente nítido. Algums células do cérebro morrem ao fim de uns minutos sem oxigénio, mas células da pele podem viver durante dias após a morte. Mais uma vez, em vez de sermos nós a decidir o que é a morte, consideremos a perspectiva do paciente. Se para ele a vida acabou, então está morto, independentemente do estado dos seus tecidos.

    Eu acho mesmo que isto é o fundamento mais básico da ética. Não é a palavra de um deus, nem um imperativo categórico, nem um principio como o melhor bem para o maior número, mas a consideração pela subjectividade de cada um.

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  3. Ludwig,

    Antes de expor melhor a minha opiniao sobre o aborto e ao saber que um aglomerado de celulas (feto ate' 'as 10 semanas) nao pensa, nao sente, nao tem um cerebro activo, nao tem consciencia e e' sensivelmente a mesma coisa que um espermatozoide sozinho, um ovulo, ou os estagios iniciais de uma fecundacao dos 2 (espermatozoide mais ovulo), gostaria que me explicasse porque e' que o Ludwig se refere sempre a esse aglomerado de celulas como sendo um ser humano, uma crianca (pode vir a ser mas nao e'), menciona infanticidio, ou menciona retirar algo a um ser humano que ainda nao o e'. Nunca vi seres humanos sem cerebros activos (se bem que alguns parecem nao o usar, e' verdade! :)).

    O espermatozoide tem a possibilidade de se tornar um ser humano desde que encontre pelo caminho um ovulo, e um utero. Caso contrario, morre. Sao essas as suas condicoes ou etapas para seguir a sua transformacao ate' ser humano.

    O feto precisa do utero. Se um espermatozoide fecundar um ovulo e depois se vir dentro dum frasco ou tubo de ensaio sem utero tb nao vai a lado nenhum e morre. E' esta a sua condicao para se transformar em ser humano.

    Ambos precisam do que existe dentro da mulher, e dai eu achar que estao precisamente na mesma situacao: ter a possibilidade de se tornarem humanos, nada mais.

    Nenhuma destas 2 coisas (espermatozoide ou feto ate' 'as 10 semanas) e' significante ou humana se vista sozinha sem as condicoes atras referidas.

    Pq olhar um aglomerado de celulas como ser humano? Vai ou pode vir a ser humano, mas ainda nao e'.
    Sera' que temos de proibir a masturbacao e chama-la de infanticidio tambem?
    Aquilo que sera' ainda nao e'.
    Nao prendemos aqueles que vao ser criminosos, so' tentamos prender aqueles que sao.

    Porque insistir em tratar o algomerado de celulas vivas como se de um individuo se tratasse?
    Obrigado.

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  4. Ludwig

    Considerando (tu) que:

    -A decisão sobre a não vida de um feto deve ser baseada nas potencialidades desse feto.
    -O feto, qualquer que seja a sua idade, é um ser humano com um futuro potencial.
    -Decidir pela morte desse feto é interferir inaceitávelmente no seu direito de viver.
    -As pessoas em coma irreversível não gozam deste estatuto, uma vez que não têm futuro como seres humanos viáveis.
    -As pessoas que estão em coma reversível, ou com hipóteses de tal, têm futuro, logo, gozam desse estatuto.

    O raciocínio funciona quando aplicado a:
    -Fetos
    -Pessoas em coma reversível
    -Pessoas em coma irreversível
    -Todas as outras pessoas.

    Ou talvez não.

    Uma vez que propões que o factor que pesa na decisão pela morte/não morte de um ser humano não é a sua idade, mas sim a sua viabilidade como pessoa, ou seja, desde que a pessoa, independentemente da idade, tenha um futuro previsível como ser humano, não existe o direito de outras pessoas lhe tirarem a vida, independentemente das consequências na vida delas que a existência desse ser vivo possa provocar.

    Então:
    Com encaixar, neste quadro lógico, a decisão que os pais possam tomar sobre a morte de um feto quando este apresenta deformações ou problemas graves?

    Exemplo A:
    João e Maria estão à espera do seu 1º filho.
    Em ecografia aos 2 meses, o médico anuncia que este ser irá nascer sem pernas. E sem braços.
    Mas será um ser humano minimamente viável, com possibilidade de viver uma vida "normal", produtiva, e possívelmente reprodutiva.
    Têm ou não os pais o direito de terminar esta vida, no quadro de referências do "ser humano viável"?

    Exemplo B:
    Bernardo e Vanessa descobriram, através de uma bateria de exames, que o seu 3º filho, com 6 meses de gestação, sofre de um problema cardíaco irreversível, que irá inevitávelmente matá-lo antes dos 12 anos de idade.
    Têm ou não, dentro do teu quadro de referências, o direito de abortar.

    Exemplo C:
    António e Katia acabam de saber que a sua esperada filha, com 4 meses de gestação, tem uma enorme bateria de problemas que irá implicar uma vida com cegueira, paraplegia, problemas graves de aprendizagem, IQ abaixo dos 50. Terá também problemas de funcionamento dos rins, prevendo-se o seu colapso na adolescência. Será sempre um ser humano totalemente dependente de assistencia médica, havendo poucas (mas algumas) hipóteses de chegar á vida adulta. Será um enorme encargo para a família financeiro e emocional, inviabilizando, na prática, que eles possam ter mais filhos.
    Decidem mantê-la?


    Onde eu quero chegar:

    O quadro de referência que tu propões para a decisão vida/não vida aplica-se fácilmente a casos de extremos. Caso seja um doente em coma irreversível, caso seja um feto saudável.

    Nestes casos, a sua viabilidade como ser humano serve de bitola para a sua eventual morte. Ser humano viável - vive. Ser humano inviável - morre.

    (Nota: não vou explanar o que considero como "viável", acho que toda a gente entende no presente contexto).

    Mas e quanto aos casos "cinzentos"?

    Como é que a tua lógica trata casos em que, num crescendo de inviabilidade, se decide que se pode ou não matar um ser humano?

    Se o feto indicar que a pessoa será dependente mas produtiva, como no caso A?

    Se o feto indicar que a pessoa será autónoma mas terá uma vida curta, como no caso B?

    Se o feto indicar que a pessoa será totalmente dependente e pouco ou nada produtiva, como no caso C?

    E todos os casos intermédios?

    Por exemplo, no caso B, se a pessoa vier a falecer não aos 12 anos mas aos 18? aos 25? Ou aos 7? 3? 1?

    Ou no caso A, se só faltarem as pernas? Uma perna? As pernas, os braços, e parte do sitema digestivo? E ainda os orgãos reprodutores?

    Etc, etc, etc.

    Em suma (wew):
    Se tomarmos como referência para a decisão da vida/não vida a viabilidade do ser humano, quem irá determinar essa viabilidade?

    Na minha opinião:
    Aquilo que tu esperavas ser um modelo matemático, com aplicação automática, apenas se aplica nos casos extremos.

    Todas aquelas situações em graus de cinzento, os casos concretos, inviabilizam uma decisão baseada numa fórmula simples.

    Não é possível aplicar, neste caso, uma regra simples, clara, universal, que produza sempre resultados coerentes independentemente das condições.

    Como tudo na vida real...

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  5. Caro Calhandro,

    Humano é um organismo do género Homo. Seja qual for a idade. Criança admito que é um termo talvez mais enganador, mas não costumo usá-lo quando me refiro a um feto.

    O espermatozoide tem muitas possibilidades, mas é uma célula que pertence a um organismo. O embrião, mesmo muito pequeno, é um organismo em si, e não parte de outro.

    É verdade que o embrião morre num tubo de ensaio. Qualquer um de nós morreria ao fim de poucos dias se fosse fechado num tubo de ensaio. E é verdade que precisa da mãe para sobreviver. Mas o facto de alguém precisar de nós num dado momento não nos dá o direito de o matar, nem lhe tira o direito a viver. Sobretudo, não o torna menos humano por isso.

    Finalmente, todos nós somos aglomerados de células. Pensamos e sentimos, mas apenas quando estamos conscientes. Eu insisto em tratar aquele aglomerado de células como um individuo porque aquele aglomerado de células tem pela frente uma vida como individuo, e é essa vida desse aglomerado que está em causa.

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  6. Miguel,

    Temos que pesar três factores:
    1- O valor da vida que estamos a pensar eliminar (a vida toda, 70 ou 80 anos como ser humano).
    2- O valor da autonomia da mãe de poder fazer o que quer com o seu corpo.
    3-O custo moral e social de punir um acto com prisão, tribunal, etc.

    Quando perguntas se têm o direito de matar o filho, o que temos que considerar é se o valor de 1 é superior ao custo de negar o 2 durante 9 meses mais o custo do 3. Ou seja, há de haver muitos casos em que a decisão moralmente ideal seria preservar a vida do feto, mas que é preferível permitir que o matem que punir essa decisão. O custo 3 é considerável. Penso que em nenhum dos exemplos que dás eu posso dizer que compensa punir, e nem posso dizer ao certo se é melhor matar ou deixar viver.

    Concordo com a tua conclusão:
    «O quadro de referência que tu propões para a decisão vida/não vida aplica-se fácilmente a casos de extremos.»


    Nos casos cinzentos o problema não é a simplicidade da fórmula, mas a dificuldade de comparar valores – a margem de erro é grande nas estimativas de quanto é que cada coisa vale para cada um, e apenas se consegue fazê-lo quando as diferenças são grandes.

    Por isso o que proponho é exclusivamente para o caso extremo de um feto saudável, mãe saudável, adulta e imputável de responsabilidade pelos seus actos, e sexo consensual. Todos os desvios a este caso extremo tornam muito difícil decidir. Felizmente, isto é 99%+ dos casos, e é a este que o referendo se refere.

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  7. Ludwig

    O meu objectivo é claro:

    Demonstrar que o teu raciocínio não é coerente.

    Quando puxas para o debate questões de leis e punições, socialmente aceitáveis e percentagens de casos, estás a fazer o mesmo que se torna tão criticável nos fundamentalistas: clouding the issue.

    Vou tentar focar-me no essencial, usando para o efeito frases tuas neste blog:

    "Onde o sim falha é em mostrar uma diferença ética clara entre o infanticídio e o aborto."

    "Uma razão porque tenciono votar “não” é que não estou nada satisfeito que matar um feto seja tão diferente de matar um recém-nascido."

    "Além disso a questão essencial aqui é se a vida humana merece protecção como um todo ou só a partir de certa altura. Isso não é coisa que cada mãe decida acerca do seu filho."

    "Por isso a primeira questão que temos que colocar é se faz algum sentido tentar partir a mesma vida do mesmo organismo numa vida não humana seguida duma vida humana. Até agora não encontrei uma justificação adequada para inventar algo tão distante da realidade biológica."

    Podia procurar mais, mas não tenho tempo.

    Se rejeitas a hipótese de classificar fetos como humanos e não humanos em função da idade, também não o podes fazer em função da sua perfeição.

    Logo, um feto com deformações graves é um ser humano, integral, e todos os direitos que assitem aos outros seres humanos devem também aplicar-se a ele.

    Ora, se tu consideras que existe um direito fundamental em viver, independentemente do desconforto que possa provocar aos pais um feto normal, por ser um ser humano de pleno direito, terás que ampliar esse direito para os fetos não normais. Caso contrário, estás em contradição.

    Ah, afirmas tu, mas aqui trata-se de tomar uma posição concreta, em função de um referendo que se aproxima, e, besides, a lógica exposta só falha em menos de um por cento dos casos, logo, não vale a pena considrar essas excepções.

    Falácia! (aprendi essa palavra aqui...).

    Decidir arbitráriamente a quem se aplica ou não este raciocínio (e não a lei, noto), é o mesmo que decidir arbitráriamente que um feto só é pessoa a partir das x semanas. Uma convenção, não um dado científico.


    Pelo teu raciocínio:
    -Qualquer feto, independentemente da idade ou do seu grau de perfeição é um ser humano.
    -Todos os seres humanos, desde que não estejam num coma irreversível, têm direito a escolher se vivem ou não.
    -Não há nenhum direito de terceiros que se sobreponha a esse direito, a não ser o mesmo (o direito á vida).
    -Os pais não têm a autoridade para decidir sobre um direito tão fundamental quando aplicado ao filho por nascer.

    Neste quadro, não vejo nenhuma saída á questão que coloquei:
    Não é possível aplicar, neste caso, uma regra simples, clara, universal, que produza sempre resultados coerentes independentemente das condições.

    Repito: O facto de testar a tua teoria com casos limite não invalida o meu argumento.

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  8. Caro Ludwig,

    A eutanásia no caso de um coma reversível é criminosa porque o coma é temporário.

    Este temporário diz respeito ao recuperar do estado de liberdade e autonomia anterior. Trata-se de recuperar o que já havia e de devolver a condição a um ser humano.

    Isso não acontece no caso de um feto. Um feto se morrer não perde nada a não ser a vida biológica. Essa vida biológica que tinha não lhe garantia nem autonomia nem liberdade - ele não tinha uma vida humana igual à que os adultos têm.

    Volto a frisar que a autonomia não é uma independência meramente biológica. É o carácter arbitrário do conjunto de circunstâncias a que um ser pode estar sujeito. Uma criança é autónoma porque pode ser livre tanto nas mãos dos pais biológicos como na de pais adoptivos. Isso não lhe retira a autonomia.

    Tal como uma criança que é obrigada a comer a sopa não perde a liberdade - essa liberdade está a ser eventualmente contrariada mas não deixa de existir.

    Todos os fetos com menos de 24 semanas estão em igualdade de circunstâncias. A menos do património genético, são equivalentes. Aquilo que os faz ser diferentes uns dos outros é justamente a sua autonomia e a liberdade que terão de seguir o seu caminho. Mas um feto não pode fazer isso. Um feto não pode fazer senão o que a sua biologia lhe ordena e esperar que nasça.

    O que um feto vai ser é, até certo ponto, irrelevante. É indiferente matar um homem de 25 anos ou um homem de 45. Ninguém acusa um pedófilo de gerontofilia. O que conta em termos éticos são as consequências para os valores daquele ser no momento da acção cuja legitimidade se avalia.

    O que nós vamos todos ser no futuro é algo de completamente amoral. Eu vou perder tudo o que tenho, e todos nós vamos. Toda a matéria que me constitui foi e vai ser algo sem significado ético. Ninguém se lembra de absolver um assassino com base no argumento de que ele matou um ser que ia morrer de qualquer maneira.

    Um assassino que é impedido no acto de matar uma pessoa não é acusado de homicídio mas de tentativa de homicídio. Ele ia matar a pessoa - era uma questão de segundos para ele premir o gatilho ou deflagrar a bomba. Mas ele não é julgado com base no que não aconteceu.

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  9. Por nao ter estudado biologia e ter vindo dum curso tecnológico, resolvi rever a definição de organismo.
    A que mais me pareceu enquadrar-se na definição referida neste blog em resposta a um comentário meu foi:

    Organismo: entidade viva que tem (ou consegue desenvolver) a capacidade de agir e funcionar independentemente.

    Depois de notar que o meu "amontoado de células" é um organismo, nao consegui alterar a minha opinião sobre o aborto.

    Ludwig diz:
    "O primeiro é o valor que toda a vida daquele organismo terá para ele que a vai viver. Não é a vida às 10 semanas pois não o matamos só provisoriamente. É a vida toda porque a morte é permanente."

    É aqui que algo arranha (no meu ver, claro). Não consigo ver a relação entre a vida do organismo às 10 semanas e a necessidade de a somar à sua potencial vida para efeitos de decisão sobre a legalidade do aborto até às 10 semanas.

    Continua a não fazer sentido para mim desenvolver uma empatia ou instinto proteccional por um organismo inconsciente.
    É a vida de um organismo inconsciente que eu estou a terminar, e não uma vida inteira de um ser humano. Este organismo não é humano (ainda) a não ser do ponto de vista genético. A etapa temporal onde o feto com menos de 10 semanas se encontra obriga-me a considerar as coisas desta forma, pois ele ainda não é humano, autónomo, pensante, consciente... Só seres humanos têm potenciais vidas pela frente. Senão o espermatozoide tb tem uma potencial vida pela frente caso encontre as condições certas...

    A morte ser permanente não muda nada.
    Não deixando o feto atingir a consciência, ou seja, a sua humanidade, o feto está ainda na categoria de qualquer outro organismo terrestre, muitos dos quais terminamos por causas nobres como pesquisa de curas para doenças, causas menos nobres como um belo bife no prato de muita gente (meu inclusivé), etc...

    A mim, parece-me mais nobre facilitar a vida a alguém que está a ser confrontado com uma gravidez indesejada (ou com uma possivel perda de qualidade de vida ao ter a criança), do que trazer ao mundo uma criança indesejada ou com piores condições do que aquelas que teria se o fosse (desejada), mesmo que o preço seja terminar a vida de um organismo inconsciente que não está sequer dotado da capacidade de sofrer a perda da tal potencial vida humana que poderia ter.

    Por que é que temos de respeitar este organismo inconsciente e proteger a sua vida qnd não o fazemos em relação a todos os outros organismos? (não estou a dizer que temos de respeitar os outros tb da mesma forma)
    É por este ser humano do ponto de vista genético? Não vejo relevância nenhuma em destinguir este organismo só por ser geneticamente humano.

    Quando o Ludwig diz:
    "Humano é um organismo do género Homo. Seja qual for a idade."
    Eu pergunto, que idade tem um feto? 10 semanas? 9? 1? É possivel. Que idade tem um feto como ser humano? Zero, ou menos. Um ser humano tem idade qnd nasce. Eu acho que podia ter idade qnd começa a pensar, mas percebo a facilidade de só começar a contar após o nascimento em vez de se tentar descobrir qnd começa a pensar para iniciar a contagem.
    O feto não tem idade. Não como ser humano que ainda vai ser, e claro, não é.
    Ser humano não é só pertencer ao género Homo para discussão do aborto. Na discussão do aborto, ser humano é ou deveria ser ter consciência, pensar, sentir, ser um animal racional e usar essa nova capacidade cerebral para se tornar na espécie dominante do planeta, ou seja, ser digno da mesma empatia que sentimos por outro ser humano com certidão de nascimento, ou pelo bebé que pontapeia num útero, sonha e sente o que a mãe sente. Esse tipo de humano.

    Depois diz:
    "Eu insisto em tratar aquele aglomerado de células como um individuo porque aquele aglomerado de células tem pela frente uma vida como individuo, e é essa vida desse aglomerado que está em causa."

    Essa vida não pode estar em causa. Estará ou estaria. Ainda não está.
    Se eu abortar não tem vida pela frente.
    Encadear essa frase de modo a termos de considerar uma vida futura e dizer que está em causa é errado. A vida não existe, não pode estar em causa. Estará em causa qnd existir.
    Se trata esse aglomerado de células apenas porque tem pela frente uma vida como individuo, vida essa que ainda não existe qnd o feto tem 10 ou menos semanas, e se o aborto inviabiliza a mesma coisa que faz o Ludwig olhar o aglomerado de células como individuo, estamos perante um problema:

    O aborto até às 10 semanas, garante que a vida que tem pela frente que faz o Ludwig olhar o aglomerado como individuo, não existe nem vai existir.
    Não há vida pela frente de um aglomerado de células inconsciente que se vai ou quer abortar.
    Aquilo que faz o Ludwig ver um feto como individuo não existe nem vai existir se abortarmos. Por essa lógica, não matámos qualquer individuo... Esse feto só tem uma vida pela frente pq o Ludwig (ou qq outra pessoa) não quer deixar abortar.
    Esse feto só é individuo pq o Ludwig não quer deixar abortar.
    Só é individuo pq... sim...!
    Não é um facto que o feto seja individuo.
    Não há nada na existência de um feto até às 10 semanas que o torne indivíduo,
    a não ser a definição mais literal de indivíduo que vem no dicionário que diz que indivíduo é qualquer ser indiviso.
    É a vontade do Ludwig querer juntar ao presente uma possibilidade (ainda por realizar) futura que faz com que o feto se torne individuo. Isso faz sentido ou é legítimo? Ser-se algo devido a uma possibilidade? Eu posso ser inteligente qnd souber que posso vir a ser inteligente?
    Eu posso considerar-me generoso se achar que só dou dinheiro à caridade no dia em ganhar o euro-milhões (possibilidade, claro!)?
    Licenciado pq acho que vou acabar um curso?
    Indivíduo pq posso ter uma vida pela frente?

    Para mim, o aborto é a terminação de um organismo inconsciente. Nada mais. Esse aborto exclui possibilidades tais como: vir a ser humano, potencial vida como individuo, etc... Com aborto essas probabilidades são todas zero e é ilógico defender estatutos para o feto (organismo inconsciente, aglomerado de células, etc...) que o aborto inviabiliza e nunca deixa existir, tais como a tal vida pela frente, ou a possibilidade de nascer um Einstein.
    Se garantirmos que o aborto vai acontecer já amanhã, ele já hoje deixa de ser individuo pois perdeu a vida que teria pela frente.
    Amanhã ao abortar, não estaremos a terminar a vida a um individuo, mas sim a de um aglomerado de células ou organismo inconsciente.
    Assim um feto só é indivíduo qnd quisermos. Se de repente mudar de ideias e já não quiser abortar, o feto passa novamente a indivíduo.
    Há qualquer coisa aqui de errado.

    Aliás, se a lei passar, é precisamente isso que vamos poder passar a dizer: O feto a abortar não é individuo pois não tem vida pela frente.

    Por que é que temos de partir da assunção que tem?
    Por que é que não podemos partir do princípio oposto que não tem (pois "vamos" abortar)?
    Ou do princípio lógico e real de que é irrelevante pois está no futuro e até às 10 semanas essas possibilidades são todas zero havendo aborto?

    Esta é a principal razão pela qual acho que devemos olhar um feto (até às 10 semanas) como aquilo que é e nunca como aquilo que vai ser, principalmente qnd falamos que um conceito (aborto) que afecta aquilo que o feto possa vir a ser, pois a morte, é realmente permanente.

    Será possivel que o Ludwig veja o feto como individuo por outra razão mais clara que me esteja a escapar?
    Porque eu também não gosto de "encalhar em perconceitos" (como o Ludwig tão bem disse uma vez) e gosto da possibilidade de dúvida nestes assuntos, gostaria que tentasse demonstrar mais razões para olhar um feto como indivíduo sem se basear em potencialidades que podem (com aborto) ou não (sem aborto) ser nulas.

    Obrigado.

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