sexta-feira, setembro 01, 2006

Direitos, cópias e computadores

A protecção conferida pelos direitos de autor depende de duas distinções. Uma é a distinção entre a ideia e a sua expressão material. Por exemplo, a protecção da imagem do rato Mickey cobre apenas a imagem, como expressão material daquele personagem, e não a ideia em si. Não é uma violação de direitos de autor descrever detalhadamente o rato Mickey ou dar a alguém as instruções necessárias para reproduzir a imagem. Esta distinção entre ideia e expressão material é necessária para se poder conferir direitos de autor sobre uma obra sem extremos de censura que violariam direitos mais fundamentais.

Igualmente importante é a distinção entre obras diferentes. Uma coisa é um desenho do rato Mickey, outra é o romance Romeu e Julieta. Esta distinção é essencial não só para atribuir a autores diferentes direitos sobre obras diferentes, mas especialmente para distinguir o que é protegido do que é de domínio público. Faça o que fizer, nunca poderei ter direitos de autor sobre as obras de Shakespeare; essas já pertencem a todos e não podem ser removidas do domínio público.

Com conteúdo digital estas distinções são impossíveis de fazer, porque um ficheiro de computador é apenas uma sequência de valores numéricos. Cada byte é um valor entre 0 e 255, e cada ficheiro uma sequência de bytes; tudo o resto que vemos e ouvimos no computador são apenas formas arbitrárias de interpretar e transformar essas sequências de números. Esta natureza arbitrária da codificação numérica e as suas propriedades matemáticas tornam impossível distinguir a ideia da sua expressão ou distinguir expressões de ideias diferentes.

Por exemplo, há quem diga que o nome “HAL”, na novela “2001: Odisseia no espaço” de Arthur C. Clarke, é derivado da sigla “IBM”, substituindo cada letra pela anterior no alfabeto. Mesmo que fosse essa a intenção de Clarke, a IBM não iria processa-lo porque “HAL” e “IBM” são diferentes. Há uma forma natural de interpretar conjuntos de letras que distingue claramente “HAL” de “IBM”. Mas “HAL” e “IBM” não existem no computador; quando vemos estas letras no ecrã estamos a ver um padrão de cores criado pelo monitor a partir dos valores que estão a ser fornecidos pela placa gráfica. Lá dentro são sequências de números.

Se usarmos o código ASCII para codificar letras, “HAL” é 110, 101, 114, e “IBM” é 111, 102, 115. Mas é uma convenção meramente arbitrária que faz corresponder o 110 ao “H”. Podia igualmente ser o 111, e com outra codificação podíamos representar “HAL” no computador da mesma forma como se representa “IBM” em ASCII. Não há nenhuma forma natural de representar “H” numericamente que nos permitisse distinguir o “H” representado por um 110 do “H” representado pelo 111.

Para estender a lei de direitos de autor ao conteúdo digital temos que especificar as sequência numéricas que correspondem a uma obra. O texto de “2001: Odisseia no espaço” pode ser codificado em ASCII, e a lei podia dizer que essa sequência numérica estava protegida pelos direitos de autor sobre esta obra. Mas isto permitia que qualquer pessoa difundisse a obra usando outra codificação que gerasse uma sequência diferente.

A alternativa, aplicada hoje em dia, é considerar coberta pelos direitos de autor qualquer sequência numérica que possa ser usada para codificar a obra protegida. Mas isso abrange todas as sequências e todo o tipo de informação acerca da obra. Por exemplo, podíamos descrever o texto de “2001: Odisseia no Espaço” indicando, para cada letra, em que posições se encontra. Para o “A” teríamos uma lista de números indicando onde aparece “A” no texto, para o “B” outra lista, e assim por diante. Ou criar uma lista de todas as palavras diferentes no texto e, para cada uma, em que posições se encontra. Sem computadores isto seria irrelevante; nenhum tribunal iria considerar uma lista de números com as posições de cada letra uma cópia de “2001: Odisseia no Espaço”. Mas para proteger por direitos de cópia qualquer representação digital desta obra tem que se cobrir todas as formas de transmitir informação detalhada acerca da obra.

Outro problema surge ao distinguir representações de coisas diferentes. Por ser completamente arbitrária, qualquer codificação numérica pode representar qualquer ideia. Matematicamente, é sempre possível converter uma sequência numérica noutra qualquer, e por isso não faz sentido dizer que uma certa sequência representa uma coisa e não outra. A mesma sequência numérica que, interpretada de uma forma, codifica uma imagem do rato Mickey, interpretada de outra forma codifica o texto de “Romeu e Julieta”.

Um exemplo muito relevante hoje em dia é o dos ficheiros mp3. Para o utilizador comum, um ficheiro mp3 parece ser uma coisa como um disco ou cassete, algo com sons guardados lá dentro que podemos “pôr a tocar”. Mas na verdade o ficheiro mp3 é, como qualquer ficheiro de computador, uma sequência de números. Interpreta-la como codificando sons é uma decisão arbitrária. Se abrirmos um ficheiro mp3 no Windows e desligarmos o som podemos vê-lo como codificando uma animação silenciosa (no Windows Media Player, por exemplo).

E mesmo quando interpretado da forma mais comum, como um ficheiro “de sons”, não é tão simples como parece. A codificação mp3 consiste em aproximar uma função de uma variável (neste caso, a intensidade do som em função do tempo) combinando funções trigonométricas (senos e cosenos, para os que ainda se lembram do liceu). O ficheiro mp3 contém parâmetros (amplitude, fase, e frequência) para as funções trigonométricas que são somadas para criar a função desejada.

Quando se diz que um determinado ficheiro mp3 está sob a protecção dos direitos de autor referentes a uma música, está-se a considerar como obra uma sequência de números que pode ser interpretada como codificando qualquer outra coisa e que mesmo quando interpretada de acordo com o algoritmo mp3 contém apenas parâmetros de funções trigonométricas. Nenhum matemático pode ser dono de direitos sobre sequências de números, e até hoje funções trigonométricas foram sempre do domínio público. Será razoável permitir que músicos se apropriem da matemática?

É duplamente injusto estender ao conteúdo digital os direitos de exclusividade de cópia e transmissão. Por um lado porque temos que os aplicar a informação abstracta, o que obriga a censurar toda e qualquer forma de transmitir informação acerca duma obra só para limitar a reprodução da obra. Por outro lado por ser impossível distinguir o que é protegido do que é de uso livre.

2 comentários:

  1. Curiosa argumentação. Será que podemos pela mesma ordem de ideias dizer que a fotocópia integral de "Romeu e Julieta" é uma outra forma de representação e não o original? Afinal, sendo um processo electroestático, não apresenta semelhanças directas com o processo original. Inclusive gera um efeito de distorção que torna a cópia assim gerada diferente do original...

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  2. Sim, podemos dizer que uma fotocopia é uma copia porque olhamos para um e para outro e vemos que são semelhantes.

    O mesmo não se passa se atribuirmos arbitrariamente um numero a cada letra, e codificarmos "Romeu e Julieta" como uma sequência de numeros.

    A diferença importante aqui é que no primeiro caso estamos a restringir a noção de cópia apenas aquilo que é semelhante. No segudo caso estamos a establecer uma relação completamente arbitrária e que não pode ser delimitada, pois "Romeu e Julieta" pode ser codificado como qualquer sequencia de numeros.

    Isto é a diferença entre uma restrição sobre algumas formas de exprimir uma ideia (o copyright), ou ter que restringir a informação em si (censura).

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