sábado, agosto 27, 2011

Treta da semana: com isso não se brinca!

Já ouvi dizer muitas vezes que há coisas das quais não se pode troçar, supostamente por serem sérias. A nação, a religião, o clube de futebol, a verruga no nariz, o que calhar. No seu post desta semana, o João César das Neves critica o Jon Stewart, o anfitrião do excelente Daily Show, precisamente pelo «perigo da atitude» de brincar com coisas sérias. Esclarece que «Podem tratar-se coisas sérias fingindo brincar», mas são se for para rir com gosto, porque «é tão perigoso brincar com coisas sérias.» (1). Parece-me que o João tem alguma dificuldade com o humor.

Dois amigos andam à caça quando um, subitamente, desfalece. O outro telefona para o 112.
- Está? É o meu amigo... agarrou-se ao peito, caiu no chão e não está a respirar. Acho que está morto!
- Tenha calma. Primeiro, temos de ter a certeza...
Ouve-se um tiro.
- Pronto. E agora, o que faço?*

Para apreciar o humor é preciso ter capacidade para mudar de perspectiva, percebendo as coisas de uma forma contrária à pré-concebida e, igualmente importante, ter prazer em fazê-lo. A maior parte das pessoas consegue, em teoria, imaginar o que seria ver as coisas de outra forma. Mas, para muita gente, há situações em que fazê-lo é quase doloroso. São essas pessoas que dizem que não se brinca com coisas sérias, as tais em que lhes custa contemplar uma mudança de ideias.

É por isso que o João César das Neves diz que podemos criticar fingindo brincar mas, com “coisas sérias”, o gozo tem de ser fingido. Nesses casos, dói tentar pensar de outra forma, mudar de perspectiva ou largar os preconceitos, pelo que só se pode dar um esgar sofrido e não um sorriso com gosto. Daí a dificuldade que pessoas como o João César das Neves têm em aceitar o humor nessas situações. E, suspeito, é também por isto que há tão poucos cómicos de sucesso que são crentes religiosos. A religião é, por excelência, uma “coisa séria”, onde se treina desde criança a temer a possibilidade de mudar de ideias.

O defeito desta relutância é que a capacidade de ver as coisas de outra perspectiva é uma ferramenta fundamental para resolver problemas, porque permite procurar alternativas, corrigir erros, tomar boas decisões e avaliar correctamente as situações. Principalmente quando o problema é sério. Quem se mantém disposto a rir mesmo com coisas sérias não só demonstra esta capacidade como também a disposição para se servir dela. E isto é bom, dá-nos jeito a todos e devemos praticá-lo com frequência para nunca perder o hábito. Não é por acaso que os xenófobos, nacionalistas, hooligans e fanáticos têm, geralmente, um sentido de humor bastante pobre.

Por exemplo:



Eu sou fã do Dawkins, acho que os problemas que ele aborda são sérios e, para mim, o cepticismo é uma coisa importante. Também não me parece que a motivação dele para escrever seja esta que o sketch dá a entender. Mas não só me dá gozo ver, por uns momentos, as coisas desta perspectiva – mesmo sabendo que não é verdade – como acho útil ser capaz de considerar esta possibilidade. Não se aplica aqui, mas talvez se aplique noutros casos.

O humor é brincadeira, mas é também um teste importante da nossa capacidade de nos colocarmos fora dos nossos preconceitos, hábitos e tabus. Se gozar com uma coisa nos custa, se não conseguimos rir por nos parecer “coisa séria”, então não estamos preparados para lidar com o assunto de forma objectiva e imparcial. Só para concluir, deixo mais este. Tentem adivinhar o tipo de pessoa que não achará graça a isto.




Adenda, 29-8: Este exemplo talvez seja melhor do que o sketch sobre o Dawkins. É uma edição feita por um fã do Dawkins a uma entrevista com o Steven Pinker. A conversa original era sobre a origem da linguagem, mas ficou um pouco diferente. Penso que mais ateus se riem disto do que se ririam católicos se fosse com o Papa ou Nazis se fosse com o Hitler. Obrigado ao Nuno Dias pela sugestão.




* Segundo os inquéritos do Richard Wiseman, esta é a piada mais engraçada do mundo, originalmente do Goon Show. Infelizmente, não encontrei uma expressão em português tão ambígua como o “let´s make sure he's dead” original.

1- DN, O poder de Jon Stewart

16 comentários:

  1. Ludwig,

    Concordo com o essencial do teu texto, mas não me parece que o exemplo do Dawkins seja assim tão adequado. É bastante claro que estão a fazer pouco do mundo editorial e não do Dawkins nessa peça.

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  2. Nesse sentido, não a considerares desagradável diz pouco a respeito da tua «abertura».

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  3. João Vasco: Sim, mas arranja-se exemplo melhor? Tudo o que me vem à cabeça, transpondo do Ludwig para mim, é quase sempre muito falho em termos humorísticos, geralmente caricaturizando estereótipos auto-propagados e remotos da realidade, e bonecos de palha com que não me identifico — tais como sátiras com cientistas “típicos”, distraídos e/ou amorais, ou talvez caricaturas ao movimento ambientalista que com o confundem com “velhas dos gatos” ou hípis de Nova Era…

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  4. Percebo bem...

    As versões «conservadoras» do «Daily Show» foram um tremendo falhanço, não apenas para o meu gosto, mas para o gosto generalizado.

    Os bons humoristas tendem a ter geralmente um espírito algo liberal. Os conservadores tendem a ter mais dificuldade em fazer rir. Posso estar enganado, mas é esta a minha percepção.

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  5. Kom Krippahl num se brinca...

    só ele o Omni in potente se digna achincalhar a concorrência

    e a concorrência é DEUS

    a virge nã concorre com ele qué gaja

    Machista anti-feminista-virgencida e megaladonte

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  6. como diz seu apóstolo João Vasco disse...

    Percebo bem...

    Mesmo que não perceba tal é a fé...

    dá-nos cá fé ó nosso krippahl

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  7. Zarolho e João Vasco,

    É difícil encontrar um bom exemplo porque é sempre possível ver porque é que não me incomoda e porque acho graça. Por exemplo, há uns tempos o Jon Stewart gozou com a associação ateista americana por quererem proibir que se guarde uma cruz de metal que ficou nos destroços do WTC. Achei piada ao Jon Stewart nisto, mas, além de achar piada, também concordei que o presidente daquela associação ateísta estava a fazer um disparate.

    Quanto às piadas dos conservadores e criacionistas, do género da Palin que pôs os alvos no mapa nos sitios onde havia representantes do partido democrata, ou as piadas que o Mats gosta, como isto, não lhes acho graça pelo simples facto de serem piadas como deitar a língua de fora ou rir da velhota que caiu. Não têm aquele componente essencial do humor (a partir dos 3 ou 4 anos de idade) que é a experiência de perceber algo de forma diferente.

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  8. Talvez estes episódios da série South Park sejam um melhor exemplo:

    South Park: Go God Go

    http://www.southparkstudios.com/full-episodes/s10e12-go-god-go

    South Park: Go God Go XII

    http://www.southparkstudios.com/full-episodes/s10e13-go-god-go-xii

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  9. sxzoeyjbrhg,

    Estão porreiros. E, felizmente, não se lembraram de gozar com a Wilma Deering, porque há coisas com as quais não se brinca :)

    No entanto, também tem alguns problemas. Além de não ser prático para fazer meter no post, a maior parte do SP é palhaçada só mesmo para avacalhar – o Trey e o Parker até gozam com isso, com o Terrence and Phillip – e só de vez em quando é que há mesmo uma piada. Mas acho que a parte do Dawkins a ter sexo com o Mr/Ms Garrisson é capaz de ser um bom exemplo. Se fosse o José Policarpo ou o Joseph Ratzinger acho que havia muita gente com aneurismas :)

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  10. Além do espaço público e do dinheiro público, reivindicam propriedade exclusiva da razão, da ciência, agora do humor... Não têm mente totalitária, não.

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  11. Ludwig Krippahl disse...

    sxzoeyjbrhg,

    Estão porreiros. E, felizmente, não se lembraram de gozar com a Wilma Deering, porque há coisas com as quais não se brinca :)

    No entanto, também tem alguns problemas. Além de não ser prático para fazer meter no post, a maior parte do SP é palhaçada só mesmo para avacalhar – o Trey e o Parker até gozam com isso, com o Terrence and Phillip – e só de vez em quando é que há mesmo uma piada. Mas acho que a parte do Dawkins a ter sexo com o Mr/Ms Garrisson é capaz de ser um bom exemplo.

    South Park Jerk

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  12. É esta a alma do totalitarismo de facto.

    É dizer que os conservadores tendem a ter menos sentido de humor. Quem não vê nessa intolerância atroz a sementinha do fundamentalismo?


    Já alegar que o ateísmo é o maior drama da humanidade é apenas a constatação de um facto...

    Mas o Ludwig tem razão: se o Nuno Gaspar fosse consistente não poderia ter escolhido uma religião em detrimento de outras, pois não existe melhor fundamento para as alegações cristãs que para as islâmicas. Por isso é necessário dar o desconto a estas inconsistências, e ter consciência que apontá-las nem belisca a convicção de quem nelas incorre...

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  13. Nuno Dias,

    Sim, esse parece um bom exemplo. Obrigado :)

    Nuno Gaspar,

    Não é reivindicar nada, nem querer impôr nada a ninguém. Pelo contrário. Eu, por exemplo, nunca iria proibir pessoas de fazer piadas acerca de ateus ou do ateísmo. Muitos católicos, no entanto, quiseram proibir o cartoon do Papa com o preservativo no nariz. Proibir parece-me mais totalitário do que rir, mas pelo ar carrancudo dos teus comentários diria que a tua opinião, também nisto, talvez seja inversa da minha :)

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  14. E eu a pensar que não se brincava com coisas sérias...

    http://thecaucus.blogs.nytimes.com/2011/08/29/bachmann-plays-down-comments-linking-disasters-and-deficits/?hp

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