Comunismo, capitalismo e partilha.
O painel onde vou estar no dia 6 de Outubro, na conferência “Cultura Pirata na Sociedade da Informação”(1), vai discutir o tema “Consumismo e comunismo na Cultura Pirata”. O primeiro termo já abordei noutro post (2). Este é sobre a ideia de que partilhar ficheiros é uma forma de comunismo.
Há duas grandes diferenças entre o comunismo e o capitalismo. Uma é que enquanto o capitalismo assenta num mercado livre, onde cada indivíduo aplica os seus recursos segundo os seus interesses, o comunismo tem um planeamento central da economia, estipulando, em teoria para bem de todos, onde se pode investir. A outra diferença é na propriedade, com o comunismo a excluir da propriedade privada tudo o que seja classificado de “meio de produção”, uma categoria bastante vaga. Nestes mecanismos, a proibição da partilha de obras aproxima-se mais do comunismo do que a partilha em si.
A partilha gratuita, e mesmo a pirataria – a venda de cópias sem autorização – não dependem de planeamento central. São um produto da mão invisível do mercado, emergindo dos interesses individuais de cada participante. Se copiar e distribuir música tem um custo marginal praticamente nulo e uma empresa cobra vinte euros por álbum, é de esperar, num mercado livre, que surjam concorrentes oferecendo cópias por muito menos. E quando o preço é baixo outros interesses prevalecem sobre os interesses económicos. O resultado é que milhões de pessoas decidem livremente pagar um pouco mais de electricidade só pelo gozo de partilhar ficheiros e fazer um manguito virtual às editoras. O que se aproxima do comunismo, no mecanismo se bem que não na motivação, são os monopólios concedidos por um poder central que ditam quem pode aplicar os seus recursos a copiar e quem está proibido de o fazer.
Nos direitos de propriedade passa-se o mesmo. Tanto no capitalismo como no comunismo, os direitos de propriedade servem principalmente para gerir recursos escassos, cujo usufruto por parte de uns necessariamente exclui outros de um usufruto igual. Em geral, os limites impostos à propriedade seguem esta orientação: não se pode ser proprietário da luz do Sol ou da poesia de Camões, das quais todos podem usufruir, não se pode usar a propriedade para a privar outros do usufruto da sua, como poluindo, desviando rios, impedindo acesso aos terrenos dos vizinhos e assim por diante. Mas, além disto, o comunismo também nega direitos de propriedade sobre meios de produção, uma restrição arbitrária e pouco consistente. Por exemplo, por este critério pode ser legítimo ser dono de cada uma das peças do tractor quando separadas, mas já não se estiverem juntas porque o tractor é um meio de produção.
A concessão de monopólios sobre a cópia cria um efeito análogo nos computadores. O legítimo proprietário de um computador tem direitos de propriedade sobre cada byte que lá estiver armazenado. Em abstracto, os números não são propriedade de ninguém, mas o disco magnetizado que representa esses números pode ter dono. No entanto, se guardar no seu computador uma sequência de bytes que represente uma música então os seus direitos de propriedade serão limitados por uma restrição abstracta. Não por serem “meio de produção” mas por serem “conteúdo protegido”, uma diferença insignificante perante violação dos direitos de propriedade sobre aquele objecto físico, seja computador ou tractor.
É verdade que a motivação de quem partilha ficheiros parece mais comunista do que capitalista. Tal como contribuir para a Wikipedia, escrever blogs, criar software gratuito e tantas outras coisas que muita gente faz sem cobrar nada. Mas, num capitalismo democrático, é perfeitamente legítimo que indivíduos se guiem por ideais comunistas, porque o fundamental neste sistema político e económico é a liberdade de cada um agir de acordo com os seus interesses. O que não é compatível com um capitalismo democrático é a imposição dos mecanismos comunistas de planeamento central e de restrição arbitrária de direitos de propriedade. Infelizmente, os monopólios sobre a cópia são mecanismos deste tipo, impondo ao mercado livre um pouco do que há de pior no comunismo para impedir que as pessoas livremente façam aquilo que o comunismo tem de bom.
1- Cultura Pirata 2011
2- Produtores, consumidores e colaboradores.
Proun
ResponderEliminarWhat is Proun?
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http://www.proun-game.com/index.html
"O capitalismo assenta no mercado livre..."
ResponderEliminarTal náo acontece necessariamente. Aliás, em muitos casos o que sucede é precisamente o contrário: o capitalismo enquanto sistema económico assente na formação de oligopólios e monopólios precisa frequentemente de uma "ajuda" especial do aparelho do Estado.
Da mesma forma, aliás - embora menos saliente - que o Comunismo náo tem que coincidir necessariamente com o planeamento centralizado da produção económica. Não é à toa que muita gente se identifica como anarco-comunista. Este texto distingue bastante bem as diferentes acepções de capitalismo:
Libertarian anticapitalism http://bleedingheartlibertarians.com/2011/08/libertarian-anticapitalism/#
"But “free market anticapitalism” is a term that raises eyebrows. Mainly because it doesn’t seem to make any sense. The reason I use it is because of the eyebrows it raises — not because I enjoy confusion or confrontation for its own sake, but because I think that existing ideas about the relationships between markets and capitalism are already confused, and that a superficial overlap in language tends to obscure the confusions that already exist. In particular, the term “capitalism” is used by almost all sides in economic debates as if it were obviously the ideal governing libertarian policy proposals, and is debated over both by nominal pro-”capitalists” and by nominal anti-”capitalists” as if it were perfectly obvious to everyone what it means."
Miguel Caetano,
ResponderEliminarNa prática, tanto os ideais comunistas como os capitalistas acabam por se vergar às complexidades da implementação. Mas, conceptualmente, a diferença fundamental é que no capitalismo os meios de produção são privados e cada um entra com os seus no mercado, livremente, enquanto que no comunismo os meios de produção são geridos em nome de todos pelo Estado, o que implica planeamento central da economia e restrições adicionais à propriedade privada.
Se há quem se diga capitalista mas exija monopólios legais ou quem se diga comunista mas rejeite um planeamento central por parte do Estado, admito que sim, mas aí já estão a escolher só umas partes. O que acaba por ser o melhor. Eu, por exemplo, considero-me um capitalista de esquerda :) Mas isso não muda o fundamento ideológico do capitalismo nem do comunismo.
Ludwig:
ResponderEliminar"...conceptualmente, a diferença fundamental é que no capitalismo os meios de produção são privados e cada um entra com os seus no mercado, livremente, enquanto que no comunismo os meios de produção são geridos em nome de todos pelo Estado, o que implica planeamento central da economia e restrições adicionais à propriedade privada."
Até posso concordar contigo em relação ao que escreveste mas desta forma também tu estás a fazer uma filtragem selectiva dos factos históricos e até jurídicos. Por exemplo, o trabalhos de história económica de Braudel e Karl Polanyi mostram que a ascensão do capitalismo está intimamente ligada a privilégios concedidos pelo Estado á determinadas guildas e outros grupos de mercadores e burgueses. Basta olhar para a história da Companhia das Índias. Basta olhar para a história dos Caminhos do Ferro no Reino Unido e do Petróleo nos EUA. Ao longo dos séculos grandes grupos económicos foram-se consolidando graças à intervenção directa do Estado, quer através de leis e regulamentos que favoreciam os maiores agentes em detrimento dos mais pequenos, quer através de monopólios exclusivos como o próprio copyright.
Da mesma forma que sempre houve e continuam a existir importantes comunistas (Rosa Luxemburgo, Negri, etc.) que defendem que a verdadeira acepção da palavra comunismo remete para o poder exercido pelas comunidades de proletários e não por uma vanguarda de burocratas através de um aparelho estatal.
Digo mais: cada vez mais pessoas se sentem indignadas quando se associa automaticamente a palavra Comunismo a Ditadura e planeamento centralizado. Em termos de história económica, a tese que começa a dominar é a de que os países chamados "comunistas" do antigo bloco de Leste nunca passaram de um Capitalismo Estatal.
E de facto, a própria etimologia da palavra "Capitalismo" lhes dá razão: Capitalismo deriva de Capital, de dinheiro mas sobretudo de lucro. Quanto a isto, penso que continuam a perpetuar-se muitos mal-entendidos: capitalismo é pura e simplesmente todo o modelo de produção económica que visa gerar mais e mais lucro em termos totais sem ter em conta os limites de crescimento do planeta Terra. E é aqui que se pode dizer que os chamsdos países "comunistas" foram na verdade capitalistas porque tinham na altura como único e exclusivo objectivo gerar mais prosperidade para os seus cidadãos do que os EUA e a Europa Ocidental. ~
Nesse sentido, o seu fracasso foi total e absoluto. Mas o que eu digo é que é necessidade observar atentamente as diferenças entre os diferentes cenários de aplicação de supostos diferentes sistemas económicos, caso contrário existe o risco de cairmos em grandes contradições. Por exemplo: quem foi mais estatizante: o Chile de Salvador Allende ou o Chile de Augusto Pinochet?
Em suma: a distinção entre capitalismo e comunismo não é bem a mesma coisa que escolher entre carne e peixe ;)
Miguel Caetano,
ResponderEliminarPenso que estás a fazer uma confusão desnecessária.
Primeiro, eu não estou a considerar os factos históricos. Na prática, no capitalismo metade das pessoas vive de lixar os restantes enquanto que no comunismo é precisamente o contrário ;) Mas o que estou a considerar são as ideologias, em teoria. É como o vegetarianismo. Na prática, ninguém consegue viver sem engolir ácaros, nemátodos ou ovos de insectos. Mas, conceptualmente, podemos dizer que o vegetariano só come vegetais. É essa a ideia fundamental.
E, conceptualmente, a diferença entre o capitalismo e o comunismo é que no comunismo há uma gestão colectiva de uma data de coisas, e quem não gosta aguenta porque é a maioria que manda (em teoria, na prática é o Sr. Comissário, eu sei, mas estou a falar conceptualmente), enquanto que no capitalismo há uma gestão individual dessas coisas, e quem não tem aguenta porque é quem tem que manda.
O meu ponto é que a partilha de ficheiros é mais capitalista do que comunista porque é uma decisão individual de quem tem os recursos para o fazer (PC, ligação à net, conteúdos para partilhar, etc) e não uma decisão colectiva da comunidade que estipula quem partilha o quê e por quanto tempo, dever esse que depois cada um tem de cumprir.
Na prática, o que temos em todas as sociedades é uma mistura destes sistemas. Por exemplo, no condomínio, cada um pinta a sua casa quando quiser e se quiser, mas a fachada do prédio é pintada quando a maioria decide pintar e, nessa altura, todos pagam, quer queiram quer não. Enquanto o capitalismo favorece a gestão individual de recursos, o comunismo favorece a decisão centralizada (por votação de maioria em princípio ou, na prática, por outros meios). A concessão de monopólios é a imposição de uma decisão centralizada enquanto que a partilha de ficheiros é a expressão das decisões individuais dos participantes.
Ludwig:
ResponderEliminar─"O meu ponto é que a partilha de ficheiros é mais capitalista do que comunista porque é uma decisão individual de quem tem os recursos para o fazer (PC, ligação à net, conteúdos para partilhar, etc) e não uma decisão colectiva da comunidade que estipula quem partilha o quê e por quanto tempo, dever esse que depois cada um tem de cumprir.
Apenas concordo parcialmente. Em termos básicos, as características essenciais do capitalismo são as seguintes: 1) predomínio da propriedade privada sob todas as restantes formas de organização da propriedade (mutualismo, colectivismo nacionalizante, etc.); 2) o primado do lucro enquanto objectivo da produção económica.
No que toca à partilha de ficheiros, embora algumas empresas ganhem indirectamente bastante com essa prática (RapidShare, ISPs, Google, etc.) e alguns utilizadores paguem dinheiro para poderem descarregar maiores quantidades a uma velocidade mais rápida, o processo não implica necessariamente nem por sombras a troca de dinheiro entre as partes envolvidas. Isto porque quando é possível efectuar cópias perfeitas de bens intangíveis o custo marginal desses bens tende inevitavelmente para zero. E quando se passa de um ambiente de escassez para um ambiente de abundância, tornar-se bastante difícil - embora não completamente impossível, como o prova o modelo de negócios das águas engarrafadas - obter lucro. E mesmo quando isso acontece, sucede muito à custa de gerar escassez artifical através da atribuição de características supostamente distintivas de um produto ou mediante a criação de restrições e imposições várias ao acesso (é o caso das DRMs).
Ou seja, a abundância é algo com o qual o capitalismo não sabe conviver precisamente porque a "ciência" económica em que o capitalismo teve parte da sua génese visa precisamente eliminar:
The basic premise of capitalism has always been scarcity. Economists see deprivation, or “opportunity cost,” or the necessity of giving up something one wants in order to have something else instead, as the primordial – and necessary – condition of humankind.
...e não uma decisão colectiva da comunidade que estipula quem partilha o quê e por quanto tempo, dever esse que depois cada um tem de cumprir.
Então e as políticas de utilização razoável impostas pelos ISPs para limitar o número de GBs que podemos descarregar? E o traffic shaping da ZON que reduz bastante a largura de banda disponível para protocolos como BitTorrent? É certo que existem outros operadores mas no sector da banda larga, a tendência será sempre no sentido da maior consolidação o que acaba por levar à formação de oligopólios ou mesmo de monopólios.
A questão é que esta concentração não é propriamente nova no sector dos media. Aconteceu o mesmo com a rádio e a TV, etc. Eu diria mesmo que é uma característica intrínseca ao capitalismo. Aliás, a tese de alguns juristas é que a tendência de evolução da Internet nos próximos anos será nesse mesmo sentido e que tal só não aconteceu com tanta força até agora justamente porque a Internet enquanto tecnologia de consumo ao dispor do consumidor em todo o lado é ainda relativamente recente.
Miguel Caetano,
ResponderEliminarEstás a confundir o sistema com algumas das suas consequências. Se queres implementar um sistema capitalista, tens de criar regras que garantam o «predomínio da propriedade privada sob todas as restantes formas de organização da propriedade». Nisso estamos de acordo. Mas não há no capitalismo nada que obrigue «o primado do lucro enquanto objectivo da produção económica.» Isso é com cada um. Uns pode querer matar-se a trabalhar para enriquecer, outros podem preferir trabalhar em part time e escrever poesia na praia.
Também não é verdade que «the basic premise of capitalism has always been scarcity.», pelo menos não totalmente. É verdade que o capital será constituído de bens escassos, visto que a luz do Sol ou a teoria da relatividade não servem como repositório de valor transaccionável. Mas o capitalismo também coexiste bem com a abundância. Basta que alguma coisa escassa exista para que leis de propriedade privada sejam úteis e haja capitalismo.
Eu concordo que a motivação para partilhar ficheiros não é o lucro, e concordo que o lucro é uma motivação tipicamente associada com o capitalismo. No entanto, não faz parte do sistema capitalista, enquanto tal, haver regras que obriguem ao lucro. Isso apenas surge porque, aparentemente, muita gente gosta de ter lucro.
Por outro lado, a origem dos monopólios sobre a cópia e a distribuição, pelo menos o copyright, é a promoção da criatividade para o bem de todos. A justificação original era essa: temos de conceder monopólios para incentivar a criatividade e todos beneficiarmos com isso. Se usam essa justificação para limitar os direitos de propriedade que temos sobre o nosso hardware, isso é claramente comunista. E mesmo que essa justificação seja treta e esteja tudo deturpado só para uns sairem a ganhar, acaba por não ser igual ao que é o comunismo em teoria, mas fica ainda mais próximo do que o comunismo se revelou ser na prática :)
Ludwig, como o miguel já explicou por alto estás a confundir o comunismo (como teoria politica) com a sua implementação na URSS e afins( o leninismo), pois apenas nos anos 20 na URSS é que se "descobriu" e juntou ao comunismo o conceito de economia central centralizada, este conceito é novo e inventado na russia, não existe no conceito de comunismo anterior (em papel digamos), nem em muitas outras vertentes dele.
ResponderEliminar"Este é sobre a ideia de que partilhar ficheiros é uma forma de comunismo."
ResponderEliminarFez-me lembrar um artigo que li, que irei partilhar por poder alimentar a discussão: http://firstmonday.org/htbin/cgiwrap/bin/ojs/index.php/fm/article/view/631/552
No entanto, não faz parte do sistema capitalista, enquanto tal, haver regras que obriguem ao lucro. Isso apenas surge porque, aparentemente, muita gente gosta de ter lucro.
ResponderEliminarAí é que penso que te enganas ;) O lucro é-nos (indirectamente) forçado a todos nós a partir do momento em que para obter o capital necessário para investir ou adquirir uma casa é necessário contrair um empréstimo cuja cobrança implica o pagamento de juros. Isto implica que a partir desse momento, impõe-se uma pressão social no sentido da expectativa de crescimento continuado e cada vez maior. Num sistema capitalista, o objectivo último de uma empresa ou de um Estado nunca pode ser assegurar um mero crescimento sustentável no sentido de equilibrado mas sim garantir um ritmo de crescimento suficiente capaz não só de pagar a dívida original mas também os juros que com o tempo váo sendo acrescidos. Trata-se de uma espiral à qual é impossível escapar. Daí as dezenas de casos que nós vemos na TV de empresas que apesar de serem rentáveis, terem clientes e encomendas, não são lucrativas. É claro que com a crescente dependència de cada país em relaçáo ao mercado externo, torna-se gradualmente mais difícil remover-nos dessa teia. Em última instância, no capitalismo o lucro torna-se não tanto um desejo mas uma obrigação. Daí que muita gente ache que estamos perante um sistema insustentável que não tem em conta os limites naturais do planeta Terra ao crescimento. Mas isso é outra história...
Flávio,
ResponderEliminarA economia centralizada faz parte do comunismo até em Marx, que já falava disso. Faz parte até do conceito de propriedade colectiva dos meios de produção. Se a produção é de todos, não pode ser cada um a decidir por si o que vai produzir. Tem de haver uma gestão colectiva e isso obriga a que haja um sistema que obrigue todos a acatar as decisões tomadas em conjunto.
É como a administração do condomínio. Se a assembleia de condóminos vota que se vai pintar o prédio e calha €500 a cada um tem de haver um sistema que permita coagir o pagamento a qualquer condómino que discorde.
Miguel Caetano,
ResponderEliminar«Aí é que penso que te enganas ;) O lucro é-nos (indirectamente) forçado a todos nós a partir do momento em que para obter o capital necessário para investir ou adquirir uma casa é necessário contrair um empréstimo»
Indirectamente, e não por regra do capitalismo. É legítimo, num sistema capitalista, que eu compre a casa que tu queres comprar e me vás pagando até perfazer o que eu paguei, e depois eu dou-te a casa. Os muçulmanos fazem coisas desse género, por serem religiosamente contra os juros. O problema aqui não é de alguma regra obrigatória do capitalismo. É simplesmente que, à parte de alguma obrigação religiosa ou ideológica, não tenho interesse nenhum em emprestar-te dinheiro sem cobrar juros. As pessoas cobram juros pelos empréstimos num sistema capitalista pela conjunção de duas razões: porque podem, e porque querem. O sistema em si não obriga a nada disto.
Concordo que o capitalismo, por si só, é instável. Precisa de um sistema paralelo de redistribuição forçada que o mantenha equilibrado. Um lastro, por assim dizer. Mas não é instável por obrigação do sistema em si. É instável porque, ao dar às pessoas a liberdade de comerciar e acumular capital, um número significativo vai tentar acumular muito e desestabilizar o mercado.
Parece-me que estás a confundir o capitalismo enquanto descrição daquilo que as pessoas fazem quando lhes damos a liberdade de o fazer (ganância, procura do lucro, tentar ganhar às custas dos outros, etc) com a ideologia que promove a liberdade individual de cada um gerir como se entender a sua propriedade.
Ludwig:
ResponderEliminarParece-me que o Miguel Caetano está a fazer aquilo que muitos marxistas fazem (não que ele seja marxista, bem entendido) que é definir «capitalismo» através da raiz etimológica da palavra:
«o poder vem do capital».
Aquilo que tu descreves é, por assim dizer, uma economia de mercado sem intervenção externa.
Alguns equivalem capitalismo a economia de mercado, e outros equivalem capitalismo a economia de mercado sem intervenção externa.
A doutrina marxista alega que a economia de mercado naturalmente resvala para um sistema de monopólios/oligopólios protegidos pelo aparelho repressor do estado, e a esse estado para o qual a economia resvalou é que se dá o nome de «capitalismo» porque aí sim o poder vem do capital - da classe dominante.
O problema é que a palavra «capitalismo» é usada com várias definições diferentes, e é complicado dizer qual é que é a certa.
Para evitar ambiguidades e meles entendidos, eu prefiro evitar essa palavra e falar em «economia de mercado» para me referir à ausência de proibições ou restrições proibitivas á propriedade dos «meios de produção».
João Vasco,
ResponderEliminarAcho que o problema é que "capitalismo" é usado para referir três coisas diferentes: uma ideologia, um modelo descritivo da economia, e um conjunto de implementações por pessoas com interesses vários. No fundo, é como "comunismo" também. É diferente se referires uma ideologia acerca da partilha dos meios de produção, um modelo socio-económico que prevê a abolição das classes e assim, e as implementações práticas nos países que dizem seguir esses princípios.
Ah, mas isto é para o próximo post :)
ResponderEliminarPois, é isso. É uma palavra confusa porque usada por usada com significados diferentes por diferentes pessoas, muitas vezes sem se considerar que não são apenas as conotações (positivas ou negativas) que variam, mas a própria definição «"objectiva"» do termo.
ResponderEliminarNa wikipedia em inglês:
ResponderEliminar«There is no consensus on the precise definition of capitalism, nor on how the term should be used as a historical category.[2] »
O problema é este mesmo...
(Este comentário é do Miguel Caetano, com quem o Blogger tem andado a embirrar)
ResponderEliminarAs pessoas cobram juros pelos empréstimos num sistema capitalista
pela conjunção de duas razões: porque podem, e porque querem. O
sistema em si não obriga a nada disto.
Bem, aí estás a incorrer no mesmo erro que é analisar um modelo de
produção económica a partir de um prisma completamente teórico sem ter
em conta a sua aplicação prática. É como eu dizer que nos sistemas
comunistas não existem classes sociais quando isso é manifestamente
falso: na prática existiram (existem?) os apparatchiks e membros da
nomenklatura e existem todos os "restantes".
Do mesmo modo, é praticamente impossível escapar aos efeitos do
endividamento e, por consequència, à exigència de mais e maior
crescimento de forma a pagar os juros. Basta olhar para esta
lista da Wikipedia para verificar que os países com um
"capitalismo" mais avançado são precisamente aqueles que se encontram
mais endividados. Da mesma forma, o número de países do mundo com uma
balança
de pagamentos positiva representa uma minoria face ao total e
alguns dos que estão na frente são precisamente aqueles cujo modelo
econõmico não se rege pelas regras convencionais do capitalismo. OK,
muitos desses países possuem recursos naturais que já foram
praticamente esgotados noutras partes do globo. Mas em termos
macroeconómicos, o endividamento é quase um requisito de admissão no
mercado internacional de transacções comerciais.
É evidente que isto acaba por ter repercussões a nível microeconṍmico
na medida em que aos contribuintes de um país altamente endividado
como Portugal é-lhes exigido níveis elevadíssimos de produtividade
para assegurar um ritmo de crescimento suficiente. Caso contrário,
terão que arcar com medidas de austeridade. O endividamento público
acaba também por implicar por arrastamento as pequenas e médias
empresas - que têm mais dificuldade em mover rapidamente os seus
activos para outros países menos endividados - porque passam a ter um
acesso mais difícil ao crédito.
(Continuação, ainda do Miguel Caetano)
ResponderEliminarTudo isto para dizer que a dependência do capitalismo para com o lucro
é inerente ao seu funcionamento real no seu estádio avançado referente
aos dias de hoje. Viver numa sociedade capitalista e escapar à
obrigação de mais crescimento a que o aumento da taxa de lucro
intimamente relacionado com o endividamento sujeita é praticamente uma
missão impossível :) Das duas uma: ou vivemos como os Amish em comunas
e aí já nos estamos deliberadamente a afastar do modelo capitalista ou
então temos a sorte de viver num país ainda repleto de vastos recursos
naturais ;)
Como na partilha de ficheiros não existe qualquer pressuposto de lucro
na maioria dos participantes do processo e uma vez que até os recursos
necessários à participação tendem a tornar-se mais acessíveis e
democráticos com o passar do tempo, a conclusão óbvio que eu posso
tirar é que a partilha de ficheiros não é um fenómeno
predominantemente capitalista.
Parece-me que estás a confundir o capitalismo enquanto descrição
daquilo que as pessoas fazem quando lhes damos a liberdade de o fazer
(ganância, procura do lucro, tentar ganhar às custas dos outros, etc)
com a ideologia que promove a liberdade individual de cada um gerir
como se entender a sua propriedade.
Desculpa, mas há muitos historiadores e economistas de esquerda que
discordam. Segundo eles, o capitalismo limita-se a ser modo de
organização económica e não uma ideologia. Da mesma forma que o
feudalismo o foi e antes deste a escravatura. De qualquer forma,
analisar a partilha de ficheiros a partir da dicotomia Capitalismo Vs
Comunismo parece-me mais um exemplo daquilo que o Marshall McLuhan
disse há umas décadas atrás:
"When
faced with a totally new situation, we tend always to attach ourselves
to the objects, to the flavor of the most recent past. We look at the
present through a rear-view mirror. We march backwards into the
future..."
Ou seja: é sempre mais sensato olhar para novas realidades empregando
novos conceitos e não propriamente descongelando aqueles que herdámos
do passado. A este propósito, recomendo a leitura deste óptimo
texto de Michel Bauwens que eu traduzi para portuguès ;)
Voltando um pouco ao tema central da entrada no blog:
ResponderEliminarRichard Stallman presented at University of Calgary on 2009-02-03 regarding copyright laws, and the meaning of free/libre software - http://vimeo.com/3100872 e também disponível em http://www.archive.org/details/RMS-20050518-SoftwarePatents