“Não é céptico; é normal.”
A conversa à frente das câmaras, hoje no “Querida Júlia”, não foi muito interessante (1). Ninguém lá defendia que o mundo iria acabar em 2012 e o José Martins, espiritualista (2), não se comprometeu a nada suficientemente concreto para justificar uma intervenção. A única coisa que acabei por criticar foi a teoria da conspiração de que estas profecias são um truque para nos distrair dos problemas económicos e sociais. Pareceu-me uma hipótese demasiado rebuscada só para explicar o facto, banal, de haver gente a ganhar dinheiro escrevendo disparates. Mais interessante foi a conversa que tivemos os três – eu, o José e o Rui Silva (3) – antes da emissão. O José estava a defender que não existe uma realidade, mas que cada um cria a sua realidade e as suas verdades. Um bom tema para outro post. Outra coisa interessante foi, depois da emissão, um comentário de uma senhora que acompanhava o Fernando Ventura. Disse-me que eu não era um céptico, mas sim uma pessoa normal. Concordei. O cepticismo é perfeitamente normal.
O cepticismo é, fundamentalmente, confiar na verdade de uma hipótese apenas na medida em que as evidencias a sugerem mais plausível do que qualquer alternativa. Isto é normal. Se quero a faca do pão e me disseram que está na gaveta, presumo ser essa a hipótese correcta. Mas se abro a gaveta e não vejo a faca, mudo de opinião e exploro as alternativas. Procuro no lava-loiças, na mesa e assim por diante. Todos somos cépticos nas condições ideais em que queremos apurar os factos de forma imparcial e nos dispomos a recolher os dados necessários.
Mas há muitas situações menos ideais, que nos induzem a procurar a verdade de forma anormal. Por exemplo, se um amigo nos diz que os flocos de cereais causam cancro. À partida, sem evidências nunca aceitaríamos tal hipótese. E vir de um amigo não a torna mais verdadeira. Mas custa duvidar de um amigo, e esta pressão emocional pode enviesar a avaliação da hipótese. O mesmo acontece quando nos identificamos com um grupo e queremos partilhar as suas crenças ou quando o problema é complexo mas queremos formar uma opinião sem perder tempo com os detalhes. O cepticismo consciente é o que nos safa nestas alturas, quando factores irrelevantes para apurar a verdade ameaçam condicionar a nossa avaliação das hipóteses.
Especialmente quando invocam uma anormalidade para nos empurrar para a crendice. Os astrólogos dizem que a sua arte é intuitiva e que não se pode testar de acordo com os padrões normais da ciência. É uma excepção. Os homeopatas dizem que a filosofia holística da sua medicina não pode ser avaliada por uma abordagem céptica. Excepção também. Os teólogos dizem que é preciso crer para poder compreender. Ao contrário de tudo o resto, em que se averigua a verdade com base nas evidências, na teologia tem de se ter fé. É comum as tretologias alegarem que a forma normal de apurar a verdade é só para as hipóteses dos outros, enquanto que as de cada tretologia exigem uma abordagem própria, excepcional e anormal.
O que torna o céptico menos normal do que a senhora julga não é o cepticismo. Como a senhora reconheceu, o cepticismo em si é perfeitamente normal. Todos somos cépticos em muitas ocasiões. O que é menos vulgar é tentar ser céptico em todas as ocasiões, não admitir estas alegadas excepções e avaliar todas as hipóteses da forma normal. Da forma que funciona. Se tivesse calhado discutirmos alguma hipótese que esta senhora defenda de forma anormal – acerca de um deus, por exemplo – provavelmente já estranharia a atitude do céptico.
1- Podem ver aqui, no site da SIC. Obrigado ao Barba Rija pelo link.
2- blogjosemartins.blogspot.com
3- Um dos autores do Esquerda Republicana.
Ludwig,
ResponderEliminarParabéns, vc se saiu muito bem :-)
OFF TOPIC
Nasa descobre, no espaço, substâncias que compõem DNA
http://ultimosegundo.ig.com.br/ciencia/nasa+descobre+no+espaco+substancias+que+compoem+dna/n1597126003292.html
O teu erro foi categorizares-te no programa como um "céptico" e desenvolveres o "cepticismo é isto e aquilo" como se estivesses a descrever uma seita e uma prática da seita.
ResponderEliminarPodias ter simplesmente ter-te descrito como uma pessoa normal cujo cepticismo etc. Dessa maneira terias ganho muito mais simpatia, acho.
Seja como for, concordo foi banal ;). Talvez para a próxima haja mais fogo. A Júlia teve azar ou falta de competência ao não encontrar alguém que acreditasse naquilo.
Barba,
ResponderEliminarTalvez. Mas penso que se alguém concordar comigo por causa da minha simpatia isso acaba por ser precisamente o contrário do que eu quero. O meu cepticismo faz-me preferir que concordem comigo por achar que tenho razão :)
Não vou ser propositadamente antipático, mas prefiro dizer as coisas como julgo que são, o mais claramente possível. E parece-me que caracterizar-me como um céptico é correcto pela forma determinada como rejeito todas as desculpas que as tretologias invocam para que sejam tratadas de forma excepcional.
Ludwig,
ResponderEliminarO problema, que tu e o Barba de certa forma apontaram, foi terem-se esquecido de convidar alguém que defendesse a tese proposta. Assim aquilo acabou por não ser tecnicamente um debate, mas antes quatro pessoas sensatas (in latu sensu, no caso do espiritualista), a tentarem meter algum juízo na cabeça da Júlia Pinheiro. O que pode ser, à partida, uma tarefa pouco sensata.
Fico à espera, com muito interesse, do post sobre as variações da realidade, conforme propostas pelo José.
Ludwig,
ResponderEliminartens um discurso fluido e bem estruturado. Que tal uns vídeos, tipo versão suave de Pat Condell?
É que isto de ler torna-se num esforço sobrenatural aquando das férias.
não é cético é séptico....
ResponderEliminarAS INCONSISTÊNCIAS DE UM "ESPECIALISTA" EM PENSAMENTO CRÍTICO
ResponderEliminarO Ludwig diz:
"À partida, sem evidências nunca aceitaríamos tal hipótese."
No entanto o Ludwig acredita, sem qualquer evidência, que a vida surgiu por acaso.
Os milhres de estudos científicos realizados ao longo de décadas sobre a origem da vida mostram que não se conhece qualquer lei natural ou processo físico aleatório que crie vida.
Isto, em qualquer tempo e sob quaisquer condições!
Pelo contrário, toda a evidência mostra que a vida depende de informação codificada e que esta tem sempre uma causa inteligente.
Ou seja, toda a evidência corrobora a fé na criação sobrenatural e inteligente da vida.
As "evidências" do Ludwig não passam, afinal, de especulações naturalistas sem qualquer fundamento.
O Ludwig é que não quer ver e reconhecer a sua inconsistência e dualidade de critérios.
"Pelo contrário, toda a evidência mostra que a vida depende de informação codificada e que esta tem sempre uma causa inteligente."
ResponderEliminarEsta frase cria um grande paradoxo, e me parece que ela se auto refuta.
Se toda a vida sempre tem que ter uma causa inteligente, então quem criou a primeira inteligência?
Nota .:. Se for para responder que Deus é a causa primária pura e simplesmente, nem perca seu tempo para responder. Isso não explica absolutamente nada.
O pastor e radialista evangélico Harold Camping diz que o “fim do mundo” será no próximo 21 de Outubro de 2011 . É a sua terceira previsão …
ResponderEliminarNão poderia estar mais de acordo com a expressão “outros carnavais” utilizada pelo teólogo e frade franciscano Fernando Ventura (16m17s) :
“esta tendência … para a escatologia, se quiseres, são outros carnavais “
Uma releitura do capítulo 20 do Livro da Revelação seria algo adequada ao tema .