quinta-feira, abril 12, 2007

Teoria e Observação.

Ocorreu-me que as discussões que tenho tido com o Santiago (1), o Desidério Murcho (2) e o Bernardo Motta (3) têm em comum a ideia que se pode separar claramente a teoria da observação. Vem-se a arrastar desde Platão mas, finalmente, penso que podemos enterrá-la de vez.

No último século percebemos que a percepção e o pensamento fazem parte do mesmo mecanismo neurológico, e que a própria consciência é uma forma de percepção. A lógica, matemática e computação mostraram que a razão pura se limita ao que o computador faz: manipular símbolos ou os seus equivalentes sem lhes atribuir significado. São zeros e uns, electrões no circuito, ou contas no ábaco, e mais nada. E fomos forçados a rever até conceitos que pareciam imutáveis e transcendentes, como o espaço e o tempo.

No conhecimento não há uma distinção clara entre empírico e ideal, entre a teoria e a observação. Ver o vidro partir não é uma observação pura, mas uma inferência dependente duma teoria que relaciona a percepção com o acontecimento. O vidro parte, a luz incide na retina, os impulsos nervosos chegam ao cérebro, e isso gera a percepção de ver o vidro partir. É desta teoria que infiro que vi o vidro partir mesmo.

Mais importante, também não há teoria pura. Se o acontecimento A ocorre antes de B, então ocorre antes de B para qualquer observador. Se é antes, não pode ser nem ao mesmo tempo nem depois. Isto seria aceite como conhecimento puramente teórico, ideal, a priori, até 1905. Mas a relatividade mostrou que esses conceitos de antes e depois não são adequados. Se A ocorre em Marte, e B ocorre na Terra cinco minutos depois no referencial da Terra, há outros referenciais nos quais B ocorre uns minutos antes de A, ou ao mesmo tempo. O tempo, o antes, e o depois, não são iguais para todos. Mudando os conceitos, muda a teoria, e torna-se evidente que tanto os conceitos como a teoria dependiam de algo empírico.

Para que a teoria seja acerca de algo temos que dar significado aos conceitos e isto mistura a teoria com a observação. A teoria passa a depender de resultados empíricos, e todo o conhecimento que dela deriva é conhecimento empírico: provisório, refutável por observações contraditórias, e adequado conforme corresponde ao observável.

O supra-empírico é treta porque não pode haver nada puramente ideal que seja mais que mera manipulação de símbolos sem significado. O a priori não pode ser conhecimento sem assentar no empírico, deixar de ser a priori, e adoptar todas as características do conhecimento empírico. E a premissa naturalista não passa de uma conveniência, pois nem sequer há uma forma platónica da ciência para conter essa premissa. É útil, mas sujeita a revisão como qualquer outra hipótese científica.

Eu proponho que todas estas confusões, e provavelmente outras, se resolvem compreendendo que não se pode separar o empírico do ideal. Não há percepção sem ideias e não há ideias sem percepção. São dois aspectos indissociáveis do conhecimento.

1- 27-3-07, Os Limites da Ciência.
2- 30-3-07, Imaginação e Conhecimento.
3- 1-4-07. O Supra-Empírico.

7 comentários:

  1. Caro Ludwig

    Gostei do seu post. O Ludwig é inteligentissimo mas desperdiça o seu enorme talento com trivialidades. É muito mais eficaz quando adopta uma postura séria.

    Parabéns.

    [este comentário tem vestígios de: sinceridade]

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  2. Ao falar desse "Rui" baralhaste-me... é de mim que falas?

    É que nem sou "Rui" nem me parece que a raíz da nossa "discordância" (assim mesmo, com aspas e tudo) seja a que apontas....

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  3. Oops, grande gralha... peço desculpa, nem sei bem de onde veio esse Rui, devo ter confundido um nome qualquer. Obrigado pela correcção (dessa parte... do resto não sei :)

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  4. Olá, Lud!

    Estás a confundir duas coisas.

    1: conhecimento a priori com revisibilidade. Estás a pressupor se algo conhecido a priori, então é irrevisível. Mas, mas se algo for conhecido a posteriori é igualmente irrevisível, pela simples razão de que o conhecimento é factivo. O que queres realmente dizer é que uma crença a priori não pode ser a priori se puder ser refutada pela experiência. Mas isto é treta. Por que razão do facto de uma crença ser a priori não pode ser refutada? Pode sê-lo, exactamente como uma crença a posteriori. Sem tirar nem pôr.

    2: Estás a argumentar que, pelo facto de haver um contínuo entre dois domínios, que não são estanques, então os dois domínios não existem. Isto é falacioso. Do facto de haver um contínuo e do facto de qualquer observação envolver imensa computação não consciente, não se segue que não seja muito diferente saber que nenhum objecto azul é verde de saber que há água em Marte.

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  5. Olá Desidério,

    Penso que é mais razoável ver o conhecimento como algo probabilístico, e sempre revisível. O extremo de facticidade irrefutável que tu exiges para que seja conhecimento leva-o para além da capacidade humana (ou mesmo para além da realidade).

    Quanto ao ponto dois, não é isso que estou a dizer. Não proponho que o empírico e o ideal sejam como o preto e o branco, claramente distintos mas com uma data de cinzentos pelo meio.

    O que proponho é que são dois aspectos da mesma coisa. Como o movimento das moléculas e a temperatura. Conceptualmente distintos, mas na realidade inseparáveis.

    Saber se há algum objecto azul que seja verde é tal e qual como saber se há água em Marte. Procuras. Se não encontras, inferes que não há. Se encontras, então há.

    É ilusório assumir que podes saber que nenhum objecto azul é verde. Literalmente. O contraste simultâneo de cores pode fazer o azul parecer verde se estiver rodeado de vermelho. Um disco de Benham é preto e branco parado mas tem várias cores quando roda. Essa afirmação é tão empírica como qualquer outra.

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  6. Lud

    O conhecimento é sempre probabilístico, dizes.

    O que tu queres dizer é que as nossas crenças são sempre probabilísticas. O que isto quer por sua vez dizer é que sempre que pensamos que sabemos algo, podemos estar enganados e não o saber. Mas não faz pura e simplesmente sentido dizer que o conhecimento em si é probabilístico. Se um agente sabe que p, então p. É isto a factividade do conhecimento. A crença, claro, não é factiva.

    Quanto à segunda ideia: o que queres dizer é que as nossas crenças a priori podem ser refutadas pela experiência. Mas não podes estar a querer dizer que para saber se todos os objectos azuis são brancos tenho de ir ver vários objectos azuis, tal como tenho de fazer para saber se todos os objectos azuis são pesados.

    Mesmo que a distinção a priori / a posteriori seja um contínuo, nos extremos desse contínuo a diferença é clara. Para saber fazer matemática não precisamos de telescópios, mas para saber se há água em Marte temos de recorrer à observação.

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  7. Só três coisas rapidinhas, prometendo melhor mais tarde:

    1- O conhecimento é a informação que temos acerca de algo. E o melhor modelo para a informação é probabilístico. Quanto maior a probabilidade de eu acertar mais conhecimento tenho. E a própria noção de verdade como adequação à realidade é contínua e não binária. É falso dizer que a Terra é cúbica, e falso dizer que a Terra é esférica, mas a segunda falsidade é bastante menos falsa.

    2- Não podes fazer matemática sem recorrer à percepção, seja observação, seja memória, seja consciência. Podes manipular simbolos sem percepção, como a máquina de calcular faz, mas a máquina de calcular não faz matemática.

    3- Há coisas nas quais podemos ter mais confiança que noutras. É muito mais certo que 2+2 seja 4 que amanhã chova. Mas isto não vem duma diferença entre ideal e empírico, mas sim da diferente confiança que podemos ter em diferentes percepções (e dois cardumes mais dois cardumes dá um cardume...)

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