domingo, abril 01, 2007

O Supra-Empírico.

Antigamente a religião dominava o empírico. E quanto mais empírico melhor. Grande trovoada, tudo de joelhos a rezar. Seca durante uns tempos, sacrificavam os carneiros, os prisioneiros, e até a filha do rei se ao sacerdote lhe desse para isso. Batalhas, pestes, cometas. Até o nascer do Sol provava empiricamente que o faraó era um deus. Afinal, o Sol não nasce sozinho. Quando a situação estava empírica* era a religião que mandava.

Hoje é diferente. Há pára-raios nas igrejas e os padres vão de carro para a missa. O domínio empírico da religião reduziu-se à estátua que chora e à velhota que se dizia paralítica e lá andou devagarinho, a muito custo, e depois morreu. Isto não chega, por isso a religião mudou-se para o supra-empírico.

O supra-empírico é o domínio do conceptual, da lógica e da matemática. E do Super-Homem e do orçamento de estado equilibrado. É para onde vão as promessas dos políticos a seguir às eleições. O Bernardo Motta escreve (1):

«Operação intelectual sobre objectos supra-empíricos (ideais): é uma operação comum ao filósofo, por exemplo; neste caso a verificação da veracidade de uma tese ou raciocínio é uma operação puramente intelectual (usa-se como ferramenta central a Lógica), que não carece necessariamente de confronto com o nível empírico da realidade»

O Bernardo distingue a verdade por correspondência da verdade por coerência. A primeira diz que «está a chover» é verdade quando corresponde à realidade. A segunda diz que a verdade de «nenhum solteiro é casado» vem da definição dos termos, e que não é preciso observar para saber que é verdade. Mas a segunda engana muita gente porque é também preciso que os termos em si correspondam a algo empírico. Por exemplo:

A- Se x é impar não é divisível por 2.
B- Se blih transforma bleh em blah, blih de bleh dá blah.
C- A proposição P é verdadeira e falsa ao mesmo tempo.

Rejeitamos C pelo critério do Bernardo, pois é incoerente: a proposição P não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Exigir coerência elimina muitos disparates. Mas não elimina todos: A e B são ambas coerentes, mas B também é disparate.

O supra-empírico que o Bernardo defende não vê diferença entre A e B porque a diferença está na correspondência ao empírico. «Bleh» e «blih» não correspondem a nada, mas «ímpar» e «divisível por 2» sim, e sabemos por A que precisamos de uma faca para dividir três laranjas por duas pessoas. O valor de A não é só a sua coerência, mas a sua ligação ao observável.

O que nos traz de novo ao conhecimento como correspondência entre ideias e observações. As ideias têm que ser coerentes, mas isso não basta. Nem basta coleccionar observações, como fazem os ovniólogos. É preciso encaixar as ideias nas observações, o que não se pode fazer só por operação mental ou contemplação umbilical.


* Há uns anos, a propósito de uma desgraça qualquer que já não me lembro, uma jornalista na televisão perguntou a um transeunte como estava a situação. Ele respondeu que estava tudo empírico. Ela perguntou o que ele queria dizer, e ele esclareceu: «É pá, tá fodido!».

1- Bernardo Motta, 29-3-07, Ludwig e os "mafaguinhos"

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